Relato de sete pacientes neurológicos com síndrome de erro de identificação

June 28, 2017 | Autor: Edson Amâncio | Categoria: Visual acuity, Temporal Lobe, Psychotic Disorder, Visual Field, Clinical Presentation
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Relato de sete pacientes neurológicos com síndrome de erro de identificação

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ARTIGO ORIGINAL

Relato de sete pacientes neurológicos com síndrome de erro de identificação Report of seven neurological patients with misidentification syndrome Edson José Amâncio1, Ana Paula Reolon Amadil Sanches2

ABSTRACT Objective: To present clinical, neuropsychological and laboratorial data on 7 patients with misidentification syndrome and discuss possible etiologies as well as its physiopathology. Methods: Seven patients presenting misidentification syndrome, 6 female and 1 male with ages between 64 and 78 years, were studied, all of them with encephalic disease diagnosed by clinical and laboratorial data. All were submitted to general clinical examination, neurological examination, neuropsychological examination, brain magnetic resonance imaging. Results: All patients were capable to recognize pictures of famous characters or family people. They presented good visual acuity in order to permit reading texts with a small and preserved visual field. The etiology of the encephalic lesions were ischemic vascular attack, tumour of the left temporal lobe, idiopatic hydrocephaly of the elder, Parkinson’s disease and probable Alzheimer’s disease. None presented cognitive disturbances sufficient to characterize senile demency. Conclusion: Misidentification syndromes are not necessarily tied to one single psychogenic etiology, on the contrary, multiple organic etiologies may be related to the clinical presentation. The majority of the patients improved when submitted to typical or atypical neuroleptics. Keywords: Capgras Depersonalization

syndrome;

Psychotic

disorders;

RESUMO Objetivo: Apresentar a análise clínica, neuropsicológica e laboratorial de 7 pacientes com síndrome de erro de identificação, discutir as etiologias possíveis e a fisiopatologia. Métodos: Foram analisados 7 pacientes, 6 do sexo masculino e 1 do sexo feminino, com idades entre 64 e 78 anos, todos portadores de doença encefálica diagnosticada clínica e laboratorialmente e que apresentaram síndrome de erro de identificação. Todos foram submetidos a exame clínico geral, exame neurológico, exame neuropsicológico e exames de ressonância nuclear

magnética encefálica. Resultados: Todos os pacientes foram capazes de reconhecer fotos de pessoas conhecidas famosas e familiares. Tinham acuidade visual suficiente para ler textos com fonte pequena e campo visual preservado. As etiologias das lesões encefálicas foram: acidente vascular encefálico isquêmico, tumor do lobo temporal esquerdo, hidrocefalia idiopática do idoso, doença de Parkinson e provável doença de Alzheimer. Nenhum paciente apresentava alterações cognitivas suficientes para caracterizar demência. Conclusão: As síndromes de erro de identificação não estão necessariamente vinculadas a uma etiologia psicogênica, ao contrário, múltiplas etiologias orgânicas podem estar relacionadas com o quadro clínico. A maioria dos pacientes melhorou dos sintomas de erro de identificação quando submetidos a tratamento com neurolépticos típicos ou atípicos. Descritores: Síndrome de Capgras; Transtornos psicóticos; Despersonalização

INTRODUÇÃO As síndromes de erro de identificação correspondem a um conjunto de síndromes onde os sintomas dominantes são constituídos pela crença delirante de que pessoas, em geral próximas do paciente (pai, mãe, irmãos, tios, etc.), foram substituídas por impostores(1-11). Alguns pacientes reduplicam pessoas, lugares ou eventos(1,8,11), outros tornam-se firmemente convencidos de que há várias cópias deles mesmos(1,8), e finalmente alguns pacientes cometem o erro de identificação atribuindo a pessoas desconhecidas a identidade de pessoas próximas, em geral familiares, a denominada síndrome de Frégoli(1). Os primeiros casos referidos na literatura foram de pacientes portadores de doenças psiquiátricas como distúrbios do humor e esquizofrenia(1,8,11). O primeiro

1

Médico, neurocirurgião, pós-graduado pela Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina - UNIFESP - São Paulo (SP).

2

Neuropsicóloga, pós-graduanda da Faculdade de Saúde Pública da Universidade São Paulo - USP - São Paulo (SP). Endereço para correspondência: Edson José Amâncio - Av. Rouxinol, 388, apto. 33 - Indianópolis, CEP 04516-000 - São Paulo (SP), Brasil. Telefax: (11) 3283-3305 - e-mail: [email protected] Recebido em 10 de março de 2004 – Aceito em 14 de julho de 2004

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relato de síndrome de erro de identificação foi feito por Pick em 1903. A paciente de Pick era uma mulher de 67 anos que estava firmemente convencida de que havia dois professores Pick. Este autor atribuiu a síndrome a alterações de memória e chamou-a de paramnésia reduplicativa(11). Posteriormente, em 1923(8), foi descrita uma condição em que uma mulher de 63 anos portadora de uma síndrome paranóide afirmava que múltiplas pessoas, incluindo membros da sua família, haviam sido substituídas por impostores. Ela ainda afirmava que havia várias duplicatas dela mesmo. A síndrome ficou conhecida como síndrome de Capgras e é geralmente acompanhada de desrealização e despersonalização (1,8-11) e por outros sintomas paranóides(1,9,12). Posteriormente, inúmeras publicações referiram casos de síndrome de erro de identificação como sendo devidas a lesões orgânicas encefálicas de várias etiologias, entre elas: trauma de crânio(1), acidente vascular encefálico (1,6,13), infecções, doenças degenerativas encefálicas (doença de Alzheimer (1,12-13) doença de Parkinson(1,7,13)), hidrocefalia idiopática do adulto(13), tumores encefálicos(13) e alcoolismo(1). Eletroconvulsoterapia também tem sido associada à síndrome de erro de identificação(14). Extensa revisão sobre o tema foi feita em 1991(15), quando foram descritos 260 pacientes com síndrome de erro de identificação. Destes, 174 eram esquizofrênicos, 29 apresentaram distúrbio afetivo e 46 eram portadores de doença orgânica, incluindo demência. A fisiopatogenia dessa síndrome permanece obscura, sendo que exames de ressonância magnética funcional (RMf), Spect cintilografia e tomografia por emissão de pósitrons (PET), apontam para alterações frontotemporais, envolvendo principalmente o giro fusiforme, o giro paraipocampal no lobo temporal e a região orbitofrontal(1,4,16). Alguns pacientes, embora portadores de lesões cerebrais consideradas irreversíveis, apresentam remissão do quadro clínico com o uso de neurolépticos(6,13), segundo a experiência de um dos autores do presente trabalho(13) e outros(11) podem apresentar remissão espontânea.

OBJETIVO O objetivo do presente trabalho é apresentar 7 pacientes portadores de síndrome de erro de identificação, descrever o alvo do erro de identificação de cada caso e especificar as diferentes etiologias associadas, além de discutir a possível fisiopatologia das síndromes. MÉTODOS O estudo envolveu 7 pacientes, 6 do sexo masculino e 1 do sexo feminino, com idades entre 64 e 78 anos, todos apresentando doença encefálica diagnosticada clínica e laboratorialmente e que apresentaram no transcurso da einstein. 2004; 2(4):271-7

sua doença sintomas correspondentes à síndrome de erro de identificação. Foram incluídos somente pacientes que apresentaram o delírio de erro de identificação de maneira inequívoca em uma ou mais de suas formas descritas e relacionadas abaixo: a) Substituição de uma pessoa familiar por um impostor (síndrome de Capgras)(1,8,16). b) Duplicação de uma pessoa conhecida (paramnésia reduplicativa)(1,12,16). c) Não reconhecimento de um local familiar, como a própria casa ou cômodo da casa, fortemente convencido de que sua verdadeira casa se encontra em outro local(1,8,12,16). d) Erro de identificação na TV, quando o paciente tem a falsa percepção de que imagens na TV são reais(14). e) Atribuir a um local desconhecido como sendo um local conhecido (por exemplo: paciente acamado num hospital ter a firme convicção de que está na própria casa, situada distante do hospital e até mesmo em outra cidade ou Estado)(1,16). f) Erro de identificação em objetos, quando o paciente tem a falsa percepção de que há pessoas sobre ou dentro de objetos(1,16). Foi excluído do trabalho 1 paciente com síndrome de Capgras que apresentava também prosopagnosia, porém tinha grave perda visual. Todos os pacientes foram acompanhados durante um período mínimo de 3 meses, nos quais os sintomas de erro de identificação persistiram. Todos foram submetidos a exame neurológico completo e exame neuropsicológico, incluindo: miniexame do estado mental (MM), capacidade de leitura e interpretação de textos, acuidade visual, capacidade de identificar faces familiares em fotografias fornecidas pela família, capacidade de reconhecer faces de pessoas famosas constituídas por fotografias de personalidades entre líderes religiosos, políticos, esportistas e atores, e a própria imagem refletida no espelho, bem como a capacidade de reconhecer expressões faciais denunciando conteúdos emocionais (raiva, surpresa, medo, desprezo, espanto, alegria), avaliados segundo o protocolo de Paul Ekman e Wallace V. Friesen(17), para identificação de expressões faciais. Todos foram submetidos a exames complementares: ressonância magnética de crânio, hemograma, glicemia, uréia e creatinina, dosagem de Na, K, Cl, Ca e Mg. A avaliação neuropsiquiátrica consistiu em entrevista com o paciente e familiares, realizada no seu ambiente familiar e no consultório. Na tabela 1 estão contidos os principais achados clínicos e laboratoriais dos pacientes.

RESULTADOS Todos os pacientes foram capazes de reconhecer fotos de pessoas conhecidas, famosas e familiares, além de

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Tabela 1. Identificação, dados clínicos e laboratoriais dos sete pacientes analisados Casos

Identidade

Idade

Sexo

Erro de identificação

Exame neurológico

MM

Etiologia

RNM

1

OT

78

M

Não reconhece a própria casa

Hemiparesia esquerda

19

AVCI

Múltiplos infartos, incluindo tálamo direito

2

NA

78

M

Duplicação da esposa; não reconhece a própria casa

Paraparesia crural (prévia à mielopatia cervical espondilótica)

23

HPN

Dilatação ventricular moderada; Atrofia cortical discreta

3

JJS

84

M

Não reconhece a própria casa

Apraxia da mancha; incontinência urinária

24

HPN

Dilatação ventricular importante

4

ALS

77

M

Substituiu o filho por um impostor e outros delírios

Marcha de pequenos passos; Tremores parkinsonianos; rigidez plástica global; instabilidade postural

25

DP

Atrofia cortical moderada

5

APR

87

M

Duplicação da esposa; visão de pessoas sobre objetos; outras alucinações

Fácies marmóreo marcha de pequenos passos; instabilidade postural

28

DP

Atrofia cortical moderada

6

JC

63

M

Não reconhece o local em que se encontra; assiste TV como se fosse ao vivo

Hemiáresia direta e sinais de hipertensão intracraniana

21

Tumor cerebral

Lesão expansiva frontotemporal esquerda *GBM

7

MOT

75

F

Não reconhece a própria casa. Insiste em ‘voltar’ para sua casa, onde se encontra o marido (morto há 20 anos)

Distúrbio cognitivo progressivo

25

DA

Atrofia cortical moderada, interessando principalmente os dois hipocampos

Legenda da tabela 1: AVCI = Acidente vascular cerebral isquêmico; HPN = Hidrocefalia de pressão normal; DP = Doença de Parkinson; DVP = Derivação ventriculoperitoneal; M = Masculino; F = Feminino; MM = Miniexame do estado mental; RNM = Ressonância Nuclear Magnética; GBM = Glioblastoma Multiforme

expressões faciais demonstrando raiva, alegria, sofrimento, prazer, pavor, surpresa e tristeza. Todos tinham acuidade visual suficiente para ler textos com fonte pequena (Times New Roman n. 10), todos tinham campo visual preservado. O paciente com AVCI (caso 1) não reconhecia a própria casa como sendo a sua, insistia de maneira veemente com os familiares que queria voltar à sua própria casa. Diversas vezes foi levado para passear e retornou com a promessa de estar sendo conduzido para a sua “verdadeira casa”. Tão logo chegou em casa imediatamente se disse enganado, e queria voltar à sua verdadeira casa. Foi levado em viagem para outra cidade, onde permaneceu durante 15 dias. Novamente a família insistiu que o levaria de volta, finalmente à própria casa. Ao término da viagem negou que estivesse em casa. Indagado se reconhecia os objetos da casa em que se encontrava, respondia enfaticamente que “sim, são exatamente iguais aos da minha casa, mas aqui não é a minha casa”. Perguntado sobre pessoas e objetos, dizia reconhecer tudo e todos, mas “embora sejam iguais aos da minha casa, esta não é a minha casa”. Ao ser perguntado como explicava o que estava acontecendo, respondeu que também ele não conseguia compreender. Este paciente melhorou dos sintomas de erro de identificação com o uso de

olanzapina na dose de 5 mg/dia após 15 dias de tratamento. O paciente descrito como caso 2 havia sido operado anteriormente para descompressão da medula cervical por via anterior com fixação da coluna. Estava com paraparesia crural e acamado havia 6 meses quando se iniciaram os delírios. Este paciente não mais reconhecia a própria casa como sendo a sua, bem como também reduplicou a esposa. Reconhecia a verdadeira esposa como tal, mas insistia que havia outra, exatamente igual, “talvez um pouco mais nova” e da qual sentia saudade. A família levou-o a passear na cadeira de rodas. Ao retornar declarou, à porta do edifício onde morava, que reconhecia o prédio, mas que estava firmemente convencido de que havia um outro, “exatamente igual”. Perguntado por um dos examinadores sobre qual a explicação que dava para o fenômeno, retrucou: “Não posso explicar, talvez tenham vendido o meu apartamento sem o meu conhecimento. O certo é que aqui não é a minha casa”. Medicado com doses progressivas de olanzapina, os delírios tornaram-se cada vez mais raros, desaparecendo ao fim do quarto mês, quando então tomava 15 mg/dia. O paciente identificado como caso 3 apresentava hidrocefalia de pressão compensada com a clássica tríade sintomática: importante apraxia da marcha, incontinência einstein. 2004; 2(4):271-7

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urinária e distúrbios cognitivos mínimos. Este paciente não reconhecia a própria casa, de maneira intermitente. Antes de ser operado para interposição de DVP, foi submetido a várias punções lombares com retirada de 35 ml de LCR a cada punção. Imediatamente após as punções apresentava melhora da marcha e não mencionava a duplicação da própria casa. Passadas as primeiras 24 h da punção lombar, voltava a não reconhecer a casa ou o local onde se encontrava. Após a DVP, os sintomas regrediram. Ambos os pacientes com DP persistiram com os sintomas de erro de identificação. Em 1 deles (caso 4) a medicação antiparkinsoniana (levodopa, carbidopa e benserazida) foi suspensa gradativamente. Tal suspensão não produziu redução dos sintomas de erro de identificação, porém houve piora dos sintomas da doença de Parkinson. Enquanto permaneceu sem a medicação antiparkinsoniana, foi tratado com olanzapina na dose de 5 mg/dia sem obter melhora dos delírios. O outro paciente com DP (caso 5) suspendeu temporariamente a medicação para doença de Parkinson, porém não referiu melhora dos delírios de erro de identificação, piorando os sintomas da doença de Parkinson. Este paciente se recusou a fazer uso de neurolépticos na tentativa de melhorar os delírios. Argumentou que tais anormalidades não lhe traziam nenhum prejuízo e insistiu que, de certa forma, divertia-se com elas. Perguntado como distinguia a “esposa verdadeira” da “falsa”, alegou que a “falsa” não falava e se afastava quando ele tentava aproximação, além de não ajudá-lo nas suas tarefas motoras, como se levantar do leito, sentar numa cadeira ou fazer a higiene. O paciente com tumor cerebral (caso 6) apresentou complicações pós-operatórias e foi a óbito cinco dias depois da cirurgia. O paciente com provável doença de Alzheimer (caso 7) apresentava declínio cognitivo leve, porém lentamente progressivo. Os sintomas de erro de identificação apareceram cerca de 7 meses depois de iniciar os distúrbios cognitivos. Esta paciente se encontrava na sua casa verdadeira, porém argumentava de maneira insistente que estava em outra cidade, numa casa exatamente igual a sua. Durante o período inicial dos seus delírios, solicitava aos familiares que a conduzissem à sua casa verdadeira, pois desejava encontrar o marido que lá estava. O marido estava morto havia 20 anos. No entanto, apesar da intensidade e freqüência dos seus delírios, teve excelente resultado quando medicada com clorpromazina 15 mg/dia. Nenhum dos pacientes apresentou dificuldade no reconhecimento de faces familiares ou famosas (prosopagnosia) e apenas o caso 5 não apresentou

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distúrbio cognitivo (MM = 28), enquanto os demais apresentaram distúrbio cognitivo leve a moderado, sendo o paciente descrito como caso 1 o mais comprometido do ponto de vista cognitivo (MM = 19). Nenhum paciente foi considerado demente até o terceiro mês de acompanhamento.

DISCUSSÃO A fisiopatologia das síndromes de erro de identificação (SEI) permanece enigmática (2,4-6) e não pode ser definitivamente elucidada com base exclusiva nos achados do presente estudo. Há indícios de que áreas específicas do encéfalo podem estar envolvidas, como os lobos frontais, parietais e temporais, principalmente no hemisfério direito(1,4-5) e que alguns pacientes podem sofrer remissão espontânea dos sintomas(11,16), enquanto outros podem obter alívio com o auxílio de neurolépticos(13). Parece haver poucas dúvidas quanto ao fato de que há prejuízo no processamento de imagens faciais nos pacientes com SEI, particularmente na síndrome de Capgras(5). Um teste de combinação de faces foi realizado em pacientes com SEI e foi observado que esses pacientes eram significativamente mais comprometidos para combinar faces do que controles normais ou patológicos (18). Alexander e colaboradores(19) demonstraram que uma combinação de lesão frontal bilateral com lesão hemisférica direita pode estar presente na síndrome de Capgras e também na paramnésia reduplicativa. Esses dados foram confirmados por meio de neuroimagem (20) . A proximidade entre essas duas síndromes foi então aventada,(21) tendo sido chamada a atenção para o fato de que alguns pacientes com síndrome de Capgras duplicam objetos, além de duplicarem pessoas. Kapur e colaboradores(22) descreveram o caso de um paciente idoso de 71 anos que desenvolveu paramnésia reduplicativa para lugares, mas não faces, após ter sofrido lesão vascular frontal direita. A aproximação entre SEI com prosopagnosia (incapacidade de reconhecer faces) foi anunciada por vários autores (5,20). Na análise de um paciente com síndrome de Capgras transitória (20), foi descrita a ressonância nuclear magnética desse paciente que apresentava lesão temporooccipital bilateral, bem como pequenas lesões frontais bilaterais. Lesões frontais em pacientes com síndrome de Capgras coincidem com os achados anteriores(19), porém, lesões occipitotemporais constituem o achado mais comumente descrito nos casos de prosopagnosia (5,16,22-23). As lesões occipitotemporais subjacentes à prosopagnosia, em geral são bilaterais, mas em alguns casos foram descritas como localizadas exclusivamente no hemisfério direito(23).

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Nos casos de síndrome de Capgras parece haver uma desconexão entre a percepção da face e a evocação da memória afetiva(24), conforme foi proposto por outros autores(4) como explicação para a síndrome. Bauer(25-26) defendeu o ponto de vista de que há duas vias para o reconhecimento facial. A via principal vai do córtex visual para o lobo temporal através do fascículo longitudinal inferior, a “via ventral”. Esta via corresponderia ao sistema responsável pelo reconhecimento consciente, e esta é a via tipicamente danificada nos casos de prosopagnosia. A outra, descrita como “via dorsal”, carreia estímulos entre o córtex visual e o sistema límbico, através do lobo parietal inferior, e está intacta nos pacientes com prosopagnosia. Segundo essa concepção, esta via dá o significado emocional da face, e é por isso que, quando a via ventral é seletivamente danificada, o paciente pode ter o reconhecimento da face a um nível inconsciente. Ellis e Young(27), partindo do raciocínio proposto por Bauer, das duas vias para o reconhecimento de faces, propuseram uma explicação para a síndrome de Capgras. Começaram por sugerir que a síndrome de Capgras é uma imagem em espelho da prosopagnosia. Em outras palavras, pacientes com síndrome de Capgras parecem ter uma via ventral primária intacta para o reconhecimento de faces, mas podem ter uma desconexão da via secundária ou via dorsal. Isto significa que eles recebem a imagem verdadeira da pessoa para a qual estão olhando, incluindo todas as propriedades contidas nos dados semânticos que a imagem oferece, mas deixam de receber outras informações que confirmem sua autenticidade, ou seja, o correspondente tônus afetivo em relação à imagem que é carreado pela via dorsal que se encontraria lesionada. Quando os pacientes se vêem em tais conflitos (recebendo alguma informação que indica a face em frente como pertencendo a X, mas não recebendo confirmação disso), eles podem adotar alguma estratégia de racionalização, na qual o indivíduo conclui que a figura contemplada só pode ser um impostor(27). A proposta desses autores, de lesão da via dorsal para explicar a síndrome de Capgras, foi parcialmente aceita por Hirstein e Ramachandran(5). No entanto, fazem algumas ressalvas, levantam questões ainda não de todo respondidas, contra essa explicação: 1) lesões pós-central em pacientes portadores da síndrome de Capgras são mais freqüentemente encontradas no lobo temporal do que no lobo occipital ou parietal(27); 2) a via visual dorsal contém primariamente informações oriundas da visão periférica, enquanto nossa interação visual com pessoas parece envolver principalmente a visão focal, uma função da via ventral; 3) a via ventral tem densas conexões recíprocas com a amígdala(24), a

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qual está fortemente implicada na resposta de condutância da pele, enquanto a via dorsal não está; 4) alguns pacientes com síndrome de Capgras também têm reduzida a sua capacidade de reconhecimento de faces(6), uma outra função da via ventral. Esses autores propuseram então a idéia de que a principal causa da SC é uma falha de comunicação entre áreas de processamento da via ventral no lobo temporal e o complexo límbico, especialmente a amígdala. A falha de comunicação provoca um distúrbio no gerenciamento da memória, especificamente uma habilidade relativamente intacta ou mesmo exagerada para individualizar diferentes episódios. Em decorrência disso ocorre uma deterioração na capacidade de gerar categorias duradouras extraindo e ligando a um denominador comum a partir de episódios sucessivos. Assim, quando conhecemos uma pessoa nova, formase um arquivo de memória na conexão temporolímbica para este evento(5). A informação é armazenada como memória recente e posteriormente consolidada em memória remota. Para esses autores, na síndrome de erro de identificação ocorreria desconexão temporolímbica, não havendo então consolidação da memória remota; dessa forma, o paciente lesionado, ao invés de acessar o arquivo antigo, cria novo arquivo para uma mesma pessoa. De acordo com essa engenhosa explicação, o paciente com sintomas de erro de identificação teria sofrido lesão neuronal interrompendo os circuitos que medeiam as informações no lobo temporal, entre as áreas de reconhecimento de face, situadas no córtex temporal, mais precisamente no giro fusiforme e a amígdala; de tal forma que um doente pode dizer “bem, parece com meu pai, mas não sinto nada em relação a ele e, portanto, não pode ser o meu pai, só pode ser um impostor”. Embora engenhosa essa hipótese não explica, a nosso ver, a totalidade dos casos de erro de identificação. Um dos pacientes do presente estudo (caso 2) dizia sentir saudades da antiga esposa “que era mais jovem”, mas mantinha intensas relações de afeto com “a verdadeira esposa”, à qual dedicava carinho e atenção especiais, conforme observação pessoal de um dos autores durante várias entrevistas(13). As interpretações psicanalíticas, mencionadas por alguns autores, parecem pouco convincentes para explicar o mecanismo da síndrome, uma vez que há casos descritos em que o alvo de duplicação foi o próprio cão do paciente(5). Embora alguns casos de SEI tenham sido descritos em pacientes com DP em uso de levodopa(7,13), não está definitivamente estabelecido o mecanismo pelo qual isto ocorre. Para Feinberg e colaboradores(1), excesso de estimulação dopaminérgica no sistema mesolímbico

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pode contribuir para o aparecimento de alucinações e paranóia em pacientes com DP tratados com levodopa, mas este fenômeno por si só não é suficiente para causar delírio de erro de identificação. Nos 2 pacientes com DP aqui relatados, ambos já faziam uso de levodopa quando apresentaram os primeiros sintomas de erro de identificação, porém em nenhum deles o delírio coincidiu com o início da terapia e nos dois pacientes a suspensão das drogas antiparkinsonianas não contribuiu significativamente para o desaparecimento efetivo do erro de identificação. Um dos pacientes com DP apresentava déficit cognitivo grave (MM = 25), enquanto o outro, embora mais idoso, apresentava déficit cognitivo leve (MM = 28). Entre eles, a intensidade dos delírios foi proporcionalmente mais intensa no paciente com maior comprometimento cognitivo e não no paciente mais idoso. Nossa conclusão é que, embora a levodopa possa ter uma participação na origem de delírios, podendo agravá-los, certamente não pode ser integralmente responsabilizada pelos erros de identificação nos dois casos relatados. A paciente do sexo feminino com provável DA apresentava delírios de grande intensidade. Chegou a procurar pelo marido, morto há 20 anos, no seu antigo emprego. Apesar de não reconhecer a própria casa, insistindo para regressar à sua casa verdadeira, onde certamente encontraria o marido, reagiu de forma surpreendente ao tratamento com olanzapina, embora as avaliações subseqüentes indicassem declínio cognitivo progressivo. Mais trabalhos, com casuísticas maiores e com maior tempo de seguimento, utilizando técnicas refinadas de análise de imagens funcionais e testes neuropsicológicos estandardizados certamente trariam contribuições para a melhor compreensão desse tipo de sintomas. Pode-se dizer, portanto, que na SEI os pacientes apresentam a firme convicção (delírio) de que pessoas próximas foram substituídas por impostores, de que locais geográficos foram duplicados, outros podem duplicar pessoas próximas e ainda um mesmo paciente pode duplicar pessoas próximas e lugares ao mesmo tempo. A explicação, contudo, para o erro de identificação não pode ser atribuída a déficit de acuidade visual nem ao processo de demência muitas vezes instalado ou em instalação, uma vez que todos os pacientes tinham acuidade visual satisfatória e a avaliação do nível mental à época em que o delírio surgiu era considerada satisfatória e nenhum deles se encontrava num estado mental de franca demência. Finalmente, podemos dizer que delírio de erro de identificação, embora possa trazer angústia e sofrimento para os pacientes e seus familiares, isso nem

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sempre acontece, haja vista o paciente que se recusou a tomar medicamentos, pois não via nenhum inconveniente no fenômeno, ao contrário, divertia-se com seus delírios.

CONCLUSÃO Os achados clínicos dos sete pacientes analisados sugerem que as síndromes de erro de identificação não estão necessariamente atreladas a uma etiologia psicogênica; ao contrário, múltiplas etiologias orgânicas podem estar implicadas na origem dos sintomas como DP, DA, AVCI, HIA. Entre as lesões encefálicas possivelmente associadas à síndrome podemos encontrar: atrofias corticais preferencialmente no lobo temporal do hemisfério direito, lesão parietal direita, dilatação ventricular e, em pelo menos um paciente, a lesão estava circunscrita ao lobo temporal esquerdo. Concluímos ainda que, embora a crença delirante nos fenômenos de reduplicação ou de erro de identificação sejam convincentes e inquestionáveis, esses pacientes estão perfeitamente aptos a identificar pessoas, objetos, faces de pessoas familiares e famosas, bem como expressões faciais. É ainda uma conclusão final de que neurolépticos típicos ou atípicos em doses relativamente baixas podem contribuir para o alívio dos sintomas.

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