Relatório Figueiredo, fraudes e corrupção em terras indígenas: casos do Posto Indígena Selistre de Campos (Xanxerê/SC)

Share Embed


Descrição do Produto

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

Relatório Figueiredo, fraudes e corrupção em terras indígenas: casos do Posto Indígena Selistre de Campos (Xanxerê/SC) Luisa Tombini Wittmann1, Felipe de Oliveira Uba2, Luiza Tonon da Silva3

Resumo: Este artigo visa analisar documentos a respeito do Posto Indígena Selistre de Campos, em Xanxerê, Santa Catarina, contidos no Relatório Figueiredo. Esse relatório é um conjunto de documentos oficiais, jurídicos e financeiros, resultante do trabalho da Comissão de Inquérito (19671968) liderada por Jader Figueiredo para apurar irregularidades na administração do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Discutiremos a ação do poder tutelar do SPI e a corrupção que se alastrou nos últimos anos deste órgão indigenista, bem como irregularidades relacionadas à extração e venda demadeiras nobres. Com esta vasta fonte, que contem cerca de 7 mil páginas, podemos visualizar a abrangência nacional desta má administração, porém aqui apresentaremos, por questões práticas e metodológicas, casos de corrupção para enriquecimento próprio a partir de concorrências públicas, fraudulentas ou inexistentes, envolvendo a industrialização de madeiras retiradas de terras indígenas em Xanxerê. Tenta-se compreender este contexto histórico de esbulho do patrimônio natural indígena, que causou prejuízo material e cultural para o povo Kaingang - um exemplo dentre vários e lançar um olhar de denúncia sobre práticas capazes de impactar um grupo humano inteiro, e que tiveram como propósito o enriquecimento ilícito. Palavras-chave: Kaingang; História Indígena; Serviço de Proteção aos Índios; Relatório Figueiredo.

No dia 24 de julho de 1967, editada pelo Ministro da Agricultura Afonso Augusto de Albuquerque Lima, através da portaria nº154, outorgou-se a criação da Comissão de Inquérito administrativo, presidida por Jader Figueiredo Corrêa. Sua finalidade era apurar as irregularidades apontadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito (conhecida como CPI dos Índios), formulada pela resolução nº142 em 1965, cujas denúncias remontam a 1963; ao dossiê liderado por José Maria da Gama Malcher4, ex-funcionário do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). A situação moral desse órgão passava por uma grande degradação, resultado de décadas em que o esbulho das terras indígenas e o malbaratamento de seus recursos naturais, bem como violências diretas para com essas populações, geraram apelos dos mais diversos indivíduos para que algo fosse feito em relação à má conduta dos servidores do Serviço. As 1 Orientadora, professora do Departamento de História do Centro de Ciências Humanas e da Educação/UDESC – [email protected]. 2 Acadêmico de História (Licenciatura) do Centro de Ciências Humanas e da Educação/UDESC e bolsista de Iniciação Científica – [email protected]. 3 Acadêmica de História (Licenciatura e Bacharelado) do Centro de Ciências Humanas e da Educação/UDESC e bolsista de Iniciação Científica – [email protected]. 4 Já em 1963 fora publicado (BÍGIO, 2007, p. 17) o dossiê “Por que fracassa a proteção aos índios” pelo ex-diretor do SPI, José Maria Gama Malcher. Pretendia, com ele, refazer a imagem então desgastada do órgão, o qual, segundo Malcher, passava por dificuldades financeiras e perseguições políticas, além da falta de habilitação dos funcionários, que não mais se pareciam com a equipe da época de Rondon. Para se opor às críticas de que as terras ocupadas por indígenas eram improdutivas, atividades econômicas relacionadas ao comércio local e à exportação - pouco condizentes com as necessidades e vontades dos grupos indígenas - eram desenvolvidas pelo SPI com uso da mão-de-obra indígena.

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

críticas e denúncias começaram a ser feitas com veemência e por meio da mídia, de órgãos missionários, além do Conselho Nacional de Proteção aos Índios (CNPI), entidades internacionais e até por funcionários do governo e do próprio SPI. Essa investigação instaurada pela portaria 154/67 gerou um corpus documental com quase 7.000 páginas de investigação, as quais se compõem de diversos tipos de documentos, como ofícios e tramitações internas do SPI, contratos firmados em cartório, fotos, correspondências (cartas e telegramas), recibos, termos de inquérito, e mais uma sorte de documentos oficiais administrativos, judiciais e financeiros. A Comissão percorreu os Postos Indígenas5 de todo o país, e ao final das investigações foi de 123 o número de indivíduos acusados6. O resultado documental dessas investigações passou a ser chamado, por conta do nome do presidente da Comissão, de Relatório Figueiredo7. Para auxiliar a compreensão deste processo de exclusão em diversos aspectos relacionados a indivíduos e comunidades indígenas no país, marcados pela violência é de imenso valor a documentação vasta que compõe o relatório. Ele permite melhor entender o funcionamento, o pensamento e as ações do Serviço de Proteção aos Índios, sobretudo na década de 1960, quando este órgão indigenista se encontrava em crise. As possibilidades de se lançar novos olhares sobre o período podem ser otimizadas com essa documentação, na qual encontra-se diversas denúncias de ilegalidades cometidas na época, que geram ainda na atualidade prejuízo às populações indígenas, e que haviam sido obscurecidas nas narrativas dominantes. Na construção da memória sobre o fim do SPI, algumas agências históricas foram propositadamente esquecidas, e neste artigo, procura-se elucidar algumas violências contra os Kaingang, por meio de uma história-denúncia. Sobre o período de formação do SPI, o antropólogo Antônio Carlos de Souza e Lima possui um amplo estudo e sistematização. Seu livro e pesquisa de mestrado tratam principalmente das três primeiras décadas de existência do Serviço, e no último capítulo o 5

Os quais nesse artigo serão abreviados como Poind. Relatório Figueiredo, fls. 4927- 4978. 7 Pensava-se que o Relatório Figueiredo havia sido queimado num incêndio, que informalmente afirmava-se ter sido criminoso, na sede do Ministério da Agricultura em Brasília, onde se localizava seus arquivos. Porém não foi esse o fato ocorrido, haja visto inclusive que a data do incêndio é de começos de 1968, enquanto as investigações e o conseguinte resultado investigativo só iriam ser finalizados no segundo semestre do mesmo ano. De qualquer modo, essas milhares de páginas haviam ficado escondidas em alguma sede da FUNAI (que antes fora do SPI) e foram levadas ao Museu do Índio, onde o pesquisador Marcelo Zelic as encontrou em 2012 - quarenta e quatro anos depois. Jader Figueiredo, chefe da Comissão de Investigação responsável pela execução do Relatório Figueiredo, e sua equipe, percorreram todas as regiões do Brasil levantando registros contábeis, recibos, depoimentos e muitos outros documentos oficiais que comprovam as irregularidades que afloravam sobre a administração do SPI em todas suas inspetorias e em todas as suas instâncias. O impacto intelectual e político dessa documentação, o Relatório Figueiredo, é incomensurável, sendo atualmente estudado por inúmeros pesquisadores, e inclusive pela Comissão da Verdade. Zelic (2006), membro do grupo “Tortura Nunca Mais”, e organizador de uma pesquisa colaborativa sobre essa documentação, coloca que o desenvolvimento econômico no Brasil utilizou e utiliza hoje o emprego da violência para com o índios e a negação de seus direitos para alcançar seus fins, repetindo-se constantemente em conflitos espalhados pelo país. 6

2

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

autor discorre a respeito das alterações na forma de proceder desse órgão estatal à medida que transformações, principalmente políticas, ocorriam no Brasil. Quando da fundação do SPI, havia a preocupação principal por parte do governo nacional de estender seu poder político e seu aparato burocrático para sertões brasileiros que ainda continuavam sem a presença do Estado. Contituía-se pouco a pouco uma guerra de conquista, uma guerra velada pois não se usava de violência explícita, mas sim que se dava a minar o modus vivendi dos indígenas à medida que o “grande cerco de paz” se fechava. Por um lado, as populações indígenas poderiam ser transformadas em trabalhadores rurais, em mão-de-obra barata, alinhavando-se com ideal da época de transformação dessas populações que nada produziam economicamente segundo pessoas inseridas na lógica capitalista que se avultava no início do século XX no Brasil; por outro lado, visava-se o controle efetivo do poder estatal central sobre os territórios ermos, não só pelo valor econômico que essas terras poderiam ter, mas para garantir a consumação das fronteiras perante outros Estados nacionais. Mais do que a salvação das populações indígenas, a fundação do SPI visava, nas palavras de Lima, conquistar populações e territórios que ainda se achavam alheios à unidade nacional.8 Essa conquista era vista como necessária não só como ferramenta política (de definição de fronteiras) ou social (incorporação dos indígenas à nação), mas tinha também um caráter fundamentalmente econômico: a guerra de conquista dá lucros a seus participantes, tanto aos que exercem a dominação no campo prático, quanto os idealizadores e fomentadores de tal empreitada (LIMA, 1995). A conquista se dava, apesar do caráter laico, nos planos material e metafísico da vida dos invadidos: costumes e tradições culturais são atacados com o intuito de poder inserir os indígenas numa lógica do trabalho. Entre eles cabe destacar a imposição da fixação, o que atentava diretamente contra povos nômades ou seminômades, a exemplo dos Xokleng no território catarinense (WITTMANN, 2007). Se na criação do SPI em 1910, influenciado pelos princípios de Marechal Rondon de pacificação e de assimilação dos indígenas na sociedade brasileira, em caráter de evolução, na qual um dia esses indivíduos se “civilizariam”9 e se integrariam, portanto, na Era Vargas o nacional-desenvolvimentismo implementado pelo governo brasileiro no período pós-30, no entanto, deu outra feição ao indigenismo. Inicialmente 8 Os delineamentos da administração pública no Brasil têm no período que vai de 1889 a 1937 um momento privilegiado para a pequisa, já que então se colocavam problemas de gestão do espaço, de populações e dos indivíduos até então desconhecidos: o trabalho livre impunha, mesmo que apenas formalmente a um Brasil urbano, uma nova codificação da relações sociais. (LIMA, 1995). 9 Segundo teorias evolucionistas, nas quais o padrão eurocêntrico de sociedade seria o ideal, onde todas as sociedades percorreriam o mesmo caminho inexorável do progresso. As culturas indígenas, segundo esses pressupostos do século XIX, estariam em uma fase de amadurecimento étnico e necessitariam da tutela da cultura ocidental para permanecerem vivas e se inserirem em um outro pressuposto que se relacionava à época, no Brasil, com o evolucionismo cultural: nada menos que a formação do Estado-nação brasileiro aos moldes europeus, principalmente franceses e ingleses.

3

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

reorientou o evolucionismo, que norteava a existência do SPI, adaptando-o ao projeto nacional-desenvolvimentista implantado por Getúlio Vargas. Esse novo ordenamento ofereceu uma face econômica mais definida à política indigenista, propondo não apenas a transformação do índio em trabalhador nacional - como previa o positivismo nos primórdios do SPI -, mas principalmente a transformação do Posto Indígena (unidade básica criada pelo SPI, que ainda funciona no interior das terras indígenas) em uma empresa capitalista moderna. Nesta o funcionário poderia ser facilmente comparado a um capataz de fazenda, e o índio, ao peão assalariado ou a outra forma de relação social típica do mundo rural brasileiro da época (ROCHA, 1997).

À medida que as relações comerciais avançam sobre o interior do Brasil, e à medida que os imigrantes europeus chegam em sua segunda leva no século XX, começa-se a pensar os postos indígenas menos como bases avançadas do poder estatal no interior brasileiro, e mais como possíveis produtores agroindustriais, inserindo-os no ideal de desenvolvimento econômico10. A imposição desse ideal desenvolvimentista, inteiramente exógeno, causou uma grande violência étnica contra os indígenas, pois empregava a agricultura como atividade a ser desenvolvida, alterando muitas vezes lógicas próprias nativas de subsistência, e delimitava um espaço de vivência para diversas populações sem levar em conta se tais grupos se relacionavam ou não ou mesmo se tinham suas culturas baseadas no nomadismo ou não. Quando se trata de um projeto político e de um órgão estatal11 inseridos historicamente numa conjuntura sociocultural, é imprescindível pensarmos na distância existente entre as leis e resoluções em si e as agências ou ações efetivamente empregadas visando esses pressupostos legais. As dissonâncias entre essas duas facetas da agência política na história se mostram visíveis. O estudo somente do que, por exemplo, está escrito no Regimento Interno que define as regras de funcionamento do SPI, não nos proporcionará nem uma visão do que era realizado de forma prática e como ocorriam as ações dos agentes históricos, nem das sutilezas do que poderia estar ocorrendo na esfera mais localizada do poder tutelar do SPI, que são os Postos Indígenas, com seus chefes e funcionários. Outra documentação burocrática importante sobre o assunto são os Boletins Internos do SPI, confeccionados pela administração central. Neles, são feitas descrições e levantamentos sobre os trabalhos realizados num período de tempo. Além do que estava sendo feito pelos funcionários do Serviço, o Diretor Geral, nesses boletins, dava ordens para que os Inspetores Regionais

10

Na esteira dessa concepção de Posto Indígena, principalmente a partir do golpe de 1937 e do Regimento Interno de 1943, as preocupações dos funcionários do SPI passam, para além dos grupos de indivíduos nativos em si e das terras enquanto território nacional (razões de ser do SPI), a se concentrar num maior aproveitamento dos recursos naturais existentes nas reservas, bem como de produções agropecuárias em torno dos Poinds, e aumentar a Renda Indígena, característica que duraria até o fim do SPI. Sendo que esta última passou a ser a estratégia direta de manutenção econômica, e por conseguinte material, dos Poinds localizados juntos aos povos indígenas. 4

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

fizessem levantamentos sobre a situação dos Poinds e dos indígenas que estavam sendo assistidos, na tentativa de mostrar trabalho e angariar mais verbas nacionais. Apesar da importância desses Boletins, não seria historiograficamente interessante se basear apenas em suas redações para lançar novos olhares a época. Nesse aspecto, o Relatório Figueiredo é de suma importância por permitir confrontar dados: os que foram divulgados por servidores do SPI, que tinham interesses em adquirir verbas para os Poinds, e os que foram arrolados pela Comissão de Jader Figueiredo, cuja incumbência era apurar irregularidades, não apontadas com clareza, logicamente, nos Boletins. Conforme os Boletins Internos da década de 1960, pode-se perceber o intenso movimento de industrialização das madeiras de grande valor que haviam nas terras indígenas, principalmente na região sul do Brasil. Quando da sua investigação, Jader Figueiredo levantou denúncias sobre o assunto em Poinds dos três estados do Sul12, e os casos se multiplicavam à medida que novos sujeitos e suspeitos iam aparecendo. Cabe notar que havia uma tensão naquela época referente à ilegalidade da venda de madeiras: os Inspetores do Serviço exercem um poder tutelar, que já tem na natureza do seu discurso a contradição interna nesse órgão estatal, que tanto visava a proteção das populações indígenas quanto o arrebanhamento e a transformação desses indivíduos de diferentes culturas em trabalhadores assalariados do campo aos moldes desejados pela república brasileira (LIMA, 1995). Tanto os indígenas em si, quanto suas terras e riquezas nelas contidas, estavam à mercê de um poder centralizador que enxergava os variados povos indígenas em vias de desenvolvimento e seus recursos como pertencentes à União, e passíveis de exploração por parte do Serviço. Desse modo, havia prerrogativas legais para o abate e venda de madeiras em terras indígenas até a outorga do Código Florestal Brasileiro de 1965 e a consequente “Portaria Ministerial nº 302, de 4 de junho de 1965, do então Ministro da Agricultura, Dr. Hugo de Almeida Leme, que proibia terminantemente a exploração de madeiras nas reservas indígenas e cujos contratos foram suspensos ainda pelo Ministro General Nei Braga”13. Como se pode destacar, o que efetivamente constituía crime eram esquemas e desvios burocráticos que visassem lucros privados durante os processos de concorrência pública para o abate das madeiras, bem como a não-aplicação desses recursos levantados em melhorias para os indígenas.

11 Qualquer que seja o órgão estatal a ser estudado, todos têm um texto que fundamenta legal e juridicamente sua instituição e seus modos de proceder. 12 Os estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul compunham a Inspetoria Regional 7. 13 Relatório Figueiredo, f. 911.

5

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

O abate de madeiras na região vai além de litígios em terras indígenas: o avanço sobre as matas de Araucária (que além dessa espécie, contém outras de grande valor comercial, como o cedro e a imbuia) começou já com as primeiras póvoas colonizadoras do oeste catarinense. Principalmente a partir da década de 1940 constituiu-se como um ramo de negócios de exploração lucrativo – aos não-indígenas. Além disso, muito se desmatou em prol de desenvolvimento agrário na região. Não à toa, um dos últimos bolsões de reserva dessas madeiras se encontrava, na década de 1960, na Terra Indígena então chamada Xapecó. O histórico de conflitos entre madeireiros e industriais nessas terras já remontavam à época de Antônio Selistre de Campos, quem decidiu em favor dos indígenas a contenda envolvendo um território de milhares de alqueires reivindicado por Alberto Berthier de Almeida, homem considerado inimigo histórico pelos próprios Kaingang, e portanto, deu nome ao que seria o Posto Indígena. A partir do que já levantamos a respeito da agência de certos funcionários do Serviço em seus últimos anos de existência, alguns apontamentos têm de ser feitos. Dentro de seu organograma funcional, o SPI dividia-se em três instâncias de trabalho: o chefe do Posto Indígena (local), o Inspetor Regional e o Diretor Geral, hierarquicamente. Apesar de podermos remeter a alguma anuência por parte dos Diretores Gerais, nos casos de espoliação da Renda Indígena fruto do abate de madeiras nobres, é possível vermos as relações de compadrio sendo feitas em âmbito regional e local. São os chefes de postos e inspetores regionais que têm contato no dia a dia com a população da região, indígena e não indígena. As disputas por terras e recursos naturais, em âmbito localizado, muitas vezes foram mediadas por funcionários do Serviço, e a própria imposição regimental de transformar os indígenas e suas terras para atividades economicamente rentáveis necessitava relações com as populações do entorno para desenvolver esses ofícios. Muito pequena era, segundo reclamações dos funcionários do Serviço, a verba destinada à assistência dos então chamados “silvícolas”. A partir da década de 1940, os postos indígenas começaram a se inserir numa lógica de produção que visava não só assistência aos indígenas, mas que garantisse o auto sustento material do posto. O cultivo das terras, inclusive com mão de obra indígena, e o dito aproveitamento dos recursos naturais foram efetivados no movimento de emancipação local dos Poinds perante a administração do SPI em âmbito nacional. Contatos, e mais tarde contratos, foram feitos entre moradores e industriais locais e os funcionários do Serviço; não os que trabalhavam nas sedes de inspetorias ou em Brasília, mas sim os que trabalhavam em nome desse órgão estatal nos interiores do país. 6

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

Não é possível ignorar o fato de que, desde sua fundação, o SPI sempre teve relacionamento estreito com as forças armadas, através de um grande contingente dessas últimas alocados como servidores daquele órgão estatal14. Na década de 1960, este fato é explícito: o Tenente-Coronel Moacyr Ribeiro Coelho exerceu o cargo de Diretor Geral de 1961 a 1963; o Major Aviador Luis Vinhas Neves entre 1965 e 1966; e o último diretor do SPI, Coronel Hamilton de Oliveira Castro de 1966 a 196715. Para tentar compreender até que ponto o fato de serem militares e terem posicionamentos políticos em comum, analisa-se aqui dois indivíduos, ambos com lucros obtidos na venda de madeiras na IR 716 um ano após o golpe militar de 1964: o Major Danton Pinheiro Machado e o Major Luis Vinhas Neves. Eram, respectivamente, Inspetor Regional da IR7 e Diretor Geral do SPI à época do malogrado contrato para industrialização de madeiras com a firma de Ernani Coutinho, que será aqui esmiuçado mais adiante. O Major Danton Pinheiro Machado foi uma figura participativa, política e socialmente, da primeira metade da década de 1960. Seu mandato enquanto Inspetor Regional da IR7 durou pouco, apenas quatro meses, e enquanto funcionário da Ajudância do Rio Grande do Sul esteve à frente do cargo por sete meses17. O referido major, à época apenas capitão, chegou a levantar sua arma contra aqueles que se recusavam a cumprir as ordens superiores, colocando-se contra os chamados legalistas e claramente se posicionando junto aos mesmos militares que mais tarde iriam ser responsáveis pelo desfecho do golpe de 1964 O Major Av. Luis Vinhas Neves afirma, com suas palavras, em entrevista concedida ao Jornal do Brasil, de ter assumido seu cargo no SPI “logo após a Revolução” 14

18

- mais

Inclusive com a preponderância de funcionários de altas patentes das forças armadas como Diretores Gerais e Inspetores Regionais do Serviço. 15 Além outros nomes de militares que exerceram o cargo de Diretor Geral, como o próprio General Cândido Mariano da Silva Rondon, e Antonio Martins Vianna Estigarribia, que promoveu incursões nas regiões de Minas Gerais e Espírito Santo no Vale do Rio Doce. Informações do Quadro nº1 em LIMA, 1995; 16 Sigla aqui usada para Inspetoria Regional. 17 Participou diretamente de alguns acontecimentos anteriores ao golpe de Estado de 1964. Um desses acontecimentos se trata da Rebelião dos Sargentos de 28/08/1961: após a renúncia de Jânio Quadros e o impasse quanto a quem o substituiria no cargo de presidente da República – impasse basicamente entre o vice João Goulart e o presidente da Assembleia Legislativa e seus apoiadores – os militares já vinham a construir uma rede organizada política que mais tarde culminaria com o golpe. Quando o cargo de presidente da República ficou vago, as forças armadas dividiram-se em dois posicionamentos: a alta cúpula desse segmento da defesa nacional, que já tinha intenções golpistas e não coadunavam com as ideais de João Goulart, era contra a outra proposta dos então chamados legalistas, que defendiam a tomada de decisões a partir unicamente da legislação e a tomada de posse do então vice presidente. Esses militares do alto escalão, homens com poder de decisão e ligados ao Ministério da Guerra, mandaram ordens, através de ligação feita pelo General Orlando Geisel, para os membros da Aeronáutica alocados na Base Aérea de Canoas/RS com ordens para bombardearem o Palácio do Piratini, sede do poder executivo rio-grandense em Porto Alegre, onde encontravam-se o governador Leonel Brizola, defensor fervoroso da posse de João Goulart, e os exércitos legalistas que o apoiavam. Aconteceu que os sargentos e coronéis que estavam sob o comando da Base Aérea de Canoas se recusaram a cumprir essas ordens, vendo essas últimas como medidas arbitrárias e ditatoriais. 18 Disponível em: . Acesso em 10 jul. 2014. 7

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

conhecida como golpe militar de 1964. Sua relação com militares ligados à política da época o facilitou o cargo de Diretor do SPI: segundo a mesma entrevista, “quando estava em Brasília, ao tempo do Govêrno Castelo Branco, sempre era convidado pelo ex-Presidente para ‘bater papo depois do expediente e para assistir aos filmes quando tinha sessão’”19. No jornal Correio da Manhã20 é veiculada uma matéria na qual se fala da Comissão de Investigação presidida por Jader Figueiredo (que comporia mais tarde o Relatório Figueiredo), e da requisição do ministro do interior Ney Braga, o mesmo que abriu a comissão de inquérito administrativo 164/67, a fim de instaurar um inquérito agora criminal contra quatro denunciados pela comissão. Entre eles estava o Major Av. Luis Vinhas Neves, e relaciona o nome do Major Danton Pinheiro Machado como conivente e participante do enriquecimento ilícito de Neves. Segundo os jornais de época, as investigações acerca de irregularidades cometidas pelo major foram arquivadas após a assinatura do Ato Institucional nº5, e o principal caso no qual ele era investigado abarcava um assunto muito mais sério: o Major Neves é acusado de mandante do chamado Massacre do Paralelo 11, no qual 3.500 indígenas Cintas-Largas foram dizimados por metralhadoras e dinamites para que suas terras pudessem ser roubadas. Dentro desse caso está também o trágico ato de, antes da invasão propriamente dita, terem sido doados alguns quilos de farinha de mandioca com uma quantidade de veneno arsênico misturada. A Comissão liderada por Jader Figueiredo apurou denúncias e inquéritos sobre esse fato, e também sobre outros crimes como o abate e industrialização de madeiras em Santa Catarina. Objetiva-se portanto trazer à tona algumas agências históricas, talvez antes deliberadamente borradas nas páginas da História. Neste ímpeto buscamos garimpar ao longo das quase sete mil páginas, o que foi levantado de documentação a respeito de dois casos de roubo de madeiras no Poind Selistre de Campos, localizado no município de Xanxerê. Em 15/10/1965, através da Ordem de Serviço Interna nº125, o Major Neves criou a Ajudância do Sul, órgão veiculado e de auxílio ao SPI, e designou o Major Machado como seu Superintendente21. O esbulho de pinheiros se deu a partir de um contrato assinado em 19

Ibid. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=91104&pesq=&esrc=s&url=http://mem oria.bn.br/docreader#>. Acesso em 10 jun. 2014. 21 Cabe ressaltar que, segundo a mesma Ordem de Serviço Interna, a Ajudância do Sul ficaria subordinada diretamente à Diretoria Geral do SPI, facilitando a relação entre o Superintendente e o Diretor Geral. Sem passar pela Inspetoria Regional, contratos malogrados como o explorado nesse artigo poderiam ser levados a cabo sem o conhecimento de muitas pessoas, o que possibilitou desviar verba sem serem notados. (Boletim Interno do SPI nº6 de 1965, p.96. Disponível em: . Acesso em 10 jun. 2014. 20

8

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

12/11/65, na cidade de Xanxerê. Acontece que em 18/10, após pedidos do próprio Major Danton, o então diretor do SPI Major Neves havia determinado que a Ajudância do Sul tivesse por subordinados: apenas os Postos Indígenas “GUARITA”, situado no município de Tenente Portela, “NONOAI”, situado no município de Nonoai, “PAULINO DE ALMEIDA”, situado no município de Getulio Vargas, e “CACIQUE DOBLE”, situado no município de Lagoa Vermelha, todos naquele Estado (Rio Grande do Sul). 22

Se a jurisdição da Ajudância já não cobria os territórios catarinenses, como poderia o Major Pinheiro Machado ter assinado um Contrato de parceria industrial entre a firma de Ernani Coitinho e o SPI, na cidade de Xanxerê, para o abate de árvores em terras indígenas no mesmo município, sendo discriminado no contrato que o Major representava a Ajudância do Sul, e apenas indiretamente o Serviço de Proteção aos Índios (através da Ajudância), sem diálogo ou ciência do Inspetor Regional da IR7, cargo para o qual só seria nomeado em 20/01/6623. Além dessa, cabe frisar que a principal irregularidade consta no fato do contrato ter sido firmado sem a devida tramitação burocrática da época, a qual exigia a elaboração de um edital por parte do SPI, e uma concorrência pública onde empresas privadas concorrem pelo conteúdo desse edital aberto através da disputa pelo menor preço, e só depois que todas as exigências do Serviço fossem resolvidas é que se firmaria o contrato em cartório. Os documentos contidos no Relatório Figueiredo nos levam a crer em conivência – ou mesmo participação - do então diretor geral Major Neves para com esse caso. Em defesa apresentada à Comissão, o Major Machado reiteradamente afirmava um suposto compromisso para com as populações indígenas, bem como o conhecimento de inúmeras irregularidades no SPI. É no mínimo contraditória essa afirmação de um pretenso interesse especial pelos índios, se visto o levantamento das Receitas e Despesas da IR7 ao longo do período em que esteve no cargo de Inspetor regional. Todos os CR$37.200.628 gastos durante os quatro meses de chefia do Major Danton, de 32 itens em que são possíveis de enquadrar as despesas da Renda Indígena, o único item no qual não foi gasto um único centavo é o de número 20, denominado Auxílio aos Silvícola24s. Como nos informa a Receita da Renda Indígena da IR7 no mesmo período (janeiro a abril de 1966), quase todo o total de CR$46.343.185 foi arrecadado com venda de madeiras dos postos indígenas. Porém, dessa renda que legalmente àquela época pertencia aos nativos, mas era tutelada pelo Serviço, nenhuma soma foi aplicada em melhorias nos postos em questão, deixando um saldo no caixa 22 23

Relatório Figueiredo, fl. 5240. Relatório Figueiredo, fl. 2532. 9

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

da IR7 em algo em torno de CR$9.000.000, que muito bem poderiam ter sido utilizados para construírem casas, comprar remédios, comida, roupas e outros materiais para os indígenas. Os rumos tomados por vultuosas somas de cruzeiros velhos não estão muito claros no documento, mas há um telegrama sucinto e direto de nº 514, enviado pelo Serviço de Rádio Telegráfico do próprio SPI, do Major Neves para o Major Danton, seu subordinado, que nos dá uma boa ideia do que ocorria, onde podemos ler exatamente assim: “Nº514 DE 19/04/1966 SOLICITO DEPOSITAR SETE MILHÕES AINDA HOJE PT”25. O contrato foi assinado também pelo empresário Ernani Coitinho, madeireiro conhecido na região noroeste do Rio Grande do Sul e político influente, que foi deputado de 1956 a 1959. Dentre as milhares de páginas do Relatório, delienamos mais um caso de corrupção em extração de madeiras no Poind. Selistre de Campos. Com ele é perceptível novamente que em todos os níveis administrativos do Serviço encontra-se a predisposição de gerar lucros com o patrimônio natural indígena, assim como trazemos à luz do nosso presente algumas agências históricas que haviam sido propositadamente não inseridas nos discursos oficiais sobre as políticas indigenistas no Brasil. Explicita-se aqui uma, dentre muitas, das táticas utilizadas para o enriquecimento ilícito de alguns indivíduos, e como as barganhas se desenvolviam em nível local, realizada por agentes do SPI que trabalhavam diretamente nos Postos e com a conivência da administração central, para qual um considerável montante de dinheiro era encaminhado paralelamente à Renda Indígena, após as transações locais. Sebastião Lucena da Silva era chefe do Poind. Doutor Selistre de Campos, no município de Xanxerê, nos idos anos de 1964. Ordens internas (nº 85 a 102, de agosto de 1964) do então diretor Cap. Av. Luis Vinhas Neves, determinavam aos inspetores regionais que vendessem todo o gado possível e comercializassem madeiras das terras indígenas. Alísio de Carvalho, então chefe da IR726, passou a ordem para Sebastião Lucena, então seu subordinado. Este, através do edital de concorrência pública nº1/64, publicado na Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, cuja firma vencedora foi João B. Tonial & Filhos, concedeu através do contrato27 de 04/11/1964 o abate de 10.000 pinheiros daquele posto, pagos em parcelas. A compra e venda foi registrada em Títulos e Documentos, na comarca de Curitiba, em 28 de dezembro de 1964, protocolada sob o nº 1.489. Segundo o contrato, a empresa não tem limite de área dentro do posto para efetuar o abate, nem de diâmetro dos troncos de árvores (somente 24

Relatório Figueiredo, pasta 16, fls. 1905-1906. Relatório Figueiredo, fl. 2201. 26 Relatório Figueiredo, fls. 4071; 4080. 27 Relatório Figueiredo, fl. 2276. 25

10

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

limite mínimo de 60cm). O preço pelo qual os pinheiros foram vendidos àquela firma foi de CR$12.125,00, ao passo que o preço médio da araucária na região era entre CR$25.000,00 e CR$28.000,00.28 A empresa concorrente ganhadora logo dividiu a tarefa com mais quatro firmas29, o que acelerou o abate e carregamento das madeiras, ao mesmo tempo em que dificultava a fiscalização por parte dos agentes designados para a contagem. Esta concorrência pública não foi investigada ao acaso. Ouvia-se correntemente sobre irregularidades tanto na concorrência quanto no abate em si, e de fato a Comissão de Inquérito pôde reconstruir outra versão do ocorrido. As irregularidades durante o processo de concorrência pública eram conhecidas por funcionários, como afirma em depoimento o trabalhador sede da IR7 em Curitiba , Vivaldino de Souza, auxiliar de portaria nível 7: No PÔSTO SELISTRE DE CAMPOS, em XANXERÊ, Santa Catarina, chefiado por SEBASTIÃO LUCENA houve venda de madeira sem concorrência, mediante coleta de preços; que ouviu falar haver SEBASTIÃO LUCENA recebido Cr$40.000.000 por ter facilitado o negócio em beneficio da firma JOÃO B. TONIAL E FILHO; (...) que a citada venda era de 10.000 pinheiros orçando, 30 portanto, o prejuízo entre 130 e 150 milhões de cruzeiros velhos.

Os designados por Lucena, através da ordem de serviço interna nº 1 de 08/01/1965, para fazer a fiscalização e a contagem dos pinheiros abatidos, eram os servidores José de Almeida, Avelino Alipio Flongrê, Nereu Moreira da Costa e Manoel Moreira de Lara: (...) o corte foi de aproximadamente de 13.000 pinheiros; que esse fato era do conhecimento de LUCENA; (...) ouviu comentários que a pós a concorrência para abate dos pinheiros LUCENA recebeu um automóvel AERO-WILLYS como presente do Sr. ALBERTO BERTIER DE ALMEIDA; que na gestão do Sr. LUCENA, dito BERTIER abateu certa de 60 pinheiros; (...) que quando o depoente e outros ficais constataram que estavam abatendo pinheiros além do numero determinado no contrato, avisaram ao Sr. LUCENA e este respondeu: ‘deixa, depois nós damos um jeito’.31 32 (...) que dentre as gestões a que serviu considera a do Sr. LUCENA a mais irregular, uma vez que foi nessa gestão que começaram a ser abatidos pinheiros no posto; que na concorrência para o abate desses pinheiros a firma vencedora foi J.B.TONIAL & FILHOS; que esta firma estava combinada com as demais, pois após vencer a concorrência distribuiu os pinheiros que iam ser abatidos com as demais concorrentes.33 34 (...) que conhece muito bem o caso da concorrência de 10.000 pinheiros; (...) que novamente subdividiram a tal ponto que chegou a haver trinta e duas firmas derrubando árvores no posto sem delimitação de área, todas escolhendo as melhores e mais grossas; que SEBASTIÃO LUCENA tinha conhecimento do fato não só 28

Relatório Figueiredo, fl. 1730. Relatório Figueiredo, fl. 6751. 30 Relatório Figueiredo, fl. 1730. 31 Relatório Figueiredo, fl.1826. 32 Outro depoimento de Manoel de Lara sobre o assunto aparece no fl.4477. 33 Relatório Figueiredo, fl.1829. 34 Há outro depoimento de José de Almeida tratando do mesmo caso no fl. 4479. 29

11

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

porque o estava vendo como também porque foi advertido pelo depoente, por outros funcionários e até por índios; que SEBASTIÃO LUCENA não se incomodou com o fato e entrou de férias já ciente do descalabro (...); que o depoente levou à chefia da IR7 uma carta denunciando o fato e levou depois em mãos um memorial também denunciador dirigido pelos índios à aquela autoridade; que o chefe da Inspetoria, ALIZIO CARVALHO, prometeu tomar providencias mas nunca o fez (...); LUCENA regressou noventa dias após, e pressionado por funcionários e índios constituiu uma Comissão de contagem de pinheiros; que essa Comissão constatou; que PIFERO e COUTINHO haviam ultrapassado a cota determinada; que ao avisarem a SEBASTIÃO LUCENA declarou ele que podiam continuar cortando que acertaria posteriormente;(...) na carta denúncia dos índios falava-se de que BRANDINI estaria extraindo cedro o que levou o depoente a interferir para evitar a continuação; que foi procurado por DOMINGOS BRANDINI que o informou que derrubara apenas 6 arvores daquela madeira, mas que iria continuar a faze-lo porque vendera um automóvel Aero-Willys a SEBASTIÃO LUCENA para se pago em cedro “por fora” isto é, fraudulentamente em prejuízo do SPI; (...) JOÃO B. TONIAL & FILHOS remetia dinheiro diretamente ao MAJ VINHAS NEVES, talvez pelo Banco Nacional do Comércio, Banco INCO ou Banco do Brasil (...).35 36

As denúncias a respeito de Sebastião Lucena continuam nas palavras de outro encarregado pela contagem dos pinheiros, Avelino Alipio Fongrê, indígena Kaingang e funcionário do SPI: (...) contou cuidadosamente as arvores abatidas por cada uma das firmas, verificando paulatinamente que todas estavam excedendo em muito no nº de árvores que deviam ser retiradas; que em cada caso, comunicava o fato a Sebastião Lucena, frisando que a firma já havia cortado mais pinheiros do que o devido; que Sebastião Lucena ouvia a comunicação e dizia que deixasse o madeireiro continuar cortando e que o depoente continuasse contando; (...) que Sebastião Lucena era muito amigo de todas as firmas madeireiras; que o pessoal rendeiro Anoni Ferreira incendiou uma vasta área de floresta de madeira de Lei e pinheiro no limite das terras de seu arrendamento.37 38

Os lucros obtidos com a concorrência nunca foram aplicados em melhorias no posto. A prova desta falta de retorno ao Poind. é o fato de, na época da Comissão liderada por Jader Figueiredo, dos mais de mil índios instalados no posto, apenas quatro viviam em casas de madeira.39 Era um local de abundância de madeira e, contraditoriamente, de precariedade nas residências indígenas. Logo em seguida, no depoimento do Kaingang Pedro Alípio, Capitão da Polícia Indígena do Posto, vemos como a falta de assistência aos índios, permanecia trazendo danos à vida e à cultura daquele povo: é comum no posto de SELISTRE DE CAMPOS os índios trabalharem gratuitamente; que anteriormente a gestão do Sr. JOÃO GARCIA DE LIMA [chefe do Posto em 1967] os índios se embriagavam constantemente; que o posto não distribui tecidos nem comida; (...) que na gestão de SEBASTIÃO LUCENA DA 35

Relatório Figueiredo, fls.1840-4 Outro depoimento sobre o abate irregular de madeiras, proferido por Nereu Moreira se encontra nos fls. 4474-76. 37 Relatório Figueiredo, fl.1837. 38 Há outro depoimento de Avelino Fongrê sobre o fato no fl. 4478. 39 Relatório Figueiredo, fl.1826. 36

12

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

SILVA os índios passaram a ser presos numa casa bem velha ainda hoje existente no posto; (...) que há muita mortandade infantil não chegando entretanto a metade dos nascimentos verificados; que o corte de pinheiro no posto teve inicio na gestão de SEBASTIÃO LUCENA DA SILVA.40 41

Todo o rol de crimes cometidos, como o abate excessivo de pinheiros, a propina recebida por Lucena (Cr$40.000.000,00 e uma caminhonete), as mais de 30 firmas fazendo o desflorestamento e a conivência administrativa com todos estes fatos aparecem nos depoimentos de João Garcia de Lima42, Benedito Pimentel43, Boanerges Fagundes de Oliveira e nos depoimento e carta denúncia de Oscar Petry ao Presidente da República44. O comércio de madeiras na serraria do Posto foi interrompido pelo Ministro Ney Braga45. De fato os delitos aconteciam e ninguém era punido. Mesmo constatadas as irregularidades por uma Comissão solicitada pelo Ministro, Sebastião Lucena foi promovido a chefe da IR7, e em seu lugar no Poind. assumiu Arthur Santos, e em seguida Atilio Mazzalotti. Este foi incumbido pelo diretor do SPI Coronel Hamilton Oliveira de Castro, através da indicação de Lucena, na data de 08/05/1967, a vender as toras restantes, sem deixar que apodrecessem junto com seu valor comercial46. Sob o pretexto de que aquelas madeiras estariam estragando, vendeu-se o que restava, mediante nova coleta de preços, às firmas Ernani Coutinho e Lima Ltda.47 Esse caso teve um papel importante no desenrolar do nosso trabalho: com a grande variedade e quantidade documental de inquérito sobre o fato, será possível, num próximo momento da pesquisa, trabalhar (em consonância com a pesquisa nacional) para reaver de alguma forma o que foi tomado de forma ilegal do patrimônio indígena. 45 anos nos distanciam do tempo da Comissão 154/67, e resultados dos atos criminosos aqui estudados ainda são visíveis. O abate de mata original para industrialização em Santa Catarina começou na gestão das terras indígenas pelo SPI (especificamente em Xanxerê o fato ocorre a partir da gestão do acusado Sebastião Lucena), e na década de 1970, já sob a tutela da FUNAI, o 40

Relatório Figueiredo, fl.1828. A nossa escolha, ao retratar um caso de roubo de madeiras, é pela importância de uma espécie-chave, no caso a araucária, na lógica e na organização cultural de populações nativas. Pesou o fato de que a documentação jurídica a respeito deste caso já existe e está acessível, possibilitando revisões capazes de terem validade judicial, caracterizando o caráter prático e político do documento histórico. Neste depoimento lê-se atrocidades que atentam contra a vida indígena de maneira direta. Infelizmente, como a pesquisa ao redor do país mostra, a violência física e os deliberados maus tratos ocorreram por todo nosso território, e se estenderam por décadas. Se sobre esses casos a nossa documentação nos relegou apenas depoimentos e inquéritos, sobre a venda de pinheiros é possível achar desde recibos até circulares internas do SPI. 42 Relatório Figueiredo, fls.1830-32. 43 Relatório Figueiredo, fl.1520. 44 Relatório Figueiredo, fl.3687 e fl.3693. 45 O Ministro agiu de acordo com o Código Florestal aprovado em 15/07/1965, pela lei 4.771. Neste, fica embargada a derrubada de araucárias vivas, fato ocorrido na criminosa concorrência pública analisada (Relatório Figueiredo, fls. 2657 a 2668.) 46 Relatório Figueiredo, fl. 2809 e 2812. 47 Relatório Figueiredo, fl. 5734. 41

13

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

desflorestamento se intensifica, o que de fato atenta contra o patrimônio material e cultural indígena dos povos Kaingang e Xokleng. Trata-se de um criminoso avanço sob as matas de araucária e suas madeiras nobres, sendo responsáveis pelo aniquilamento de extensões infindáveis de preciosíssimas madeiras, que têm papel fundamental no bioma que vivem, inclusive para a vida sociocultural indígena. Em prol da agricultura e pecuária, atentaram contra o equilíbrio ecológico dessas regiões, e as consequências ainda estão em processo de consolidação. O novo Código Florestal (instaurado pela lei 12.651 de 25/05/2012)48 oferece um belo exemplo de que a luta pela conservação ambiental deve se intensificar, pois os interesses econômicos sob nossas terras e riquezas naturais ainda são capazes de gerar sérios problemas. As atuais investidas da bancada ruralista, a exemplo da PEC 215/200049, e mobilizações indígenas contemporâneas demonstram que a disputa por demarcações de terras continua. Como historiadores e atores sociais, devemos atentar para os crimes cometidos e o que está ao nosso alcance para elucidar os fatos. Percebe-se também a precariedade das condições de vida destinadas aos Kaingang - e não somente a eles, como podemos analisar em outras dezenas de documentos - pelos funcionários do que deveria ser um Serviço de Proteção aos Índios. O trecho acima é um dos muitos existentes sobre condições análogas à escravidão indígena acontecida há poucas décadas no Brasil. Além dela, outros problemas da contemporaneidade como os relacionados ao alcoolismo e a falta de suprimentos básicos em grupos indígenas aparecem com frequência. Questionamos, portanto: como um órgão criado pelo Estado a fim de garantir proteção desses indivíduos não pôde sequer adequadamente conceder alimentos, moradia, saúde e roupas? Atualmente os historiadores têm condições de, a partir da rica documentação do Relatório Figueiredo, analisar determinadas continuidades, e também mudanças, do posicionamento estatal sobre os povos indígenas. Além de demonstrar que populações indígenas foram por tanto tempo alvos de violências e interesses, reconhecer os indígenas enquanto agentes históricos, para assim compreender processos históricos e se posicionar também no presente.

48

Disponível em: . Acesso em 25 jul. 2013. 49 Ementa da lei: inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas; estabelecendo que os critérios e 14

Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”, 11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

Referências bibliográficas

BIGIO, Elias dos Santos. A ação indigenista brasileira sob a influência militar da Nova República (1967-1990). Revistas de Estudos e Pesquisas. FUNAI, Brasília, v. 4, n.2, p. 1393, dez. 2007. CUNHA, Manuela Carneiro da (org.). Historia dos índios no Brasil. 2. ed. São Paulo: FAPESP, Companhia das Letras, 1998. LIMA, Antônio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. RELATÓRIO FIGUEIREDO. 30 volumes. Disponível https://archive.org/details/RelatorioFigueiredo>. Acesso em 10 jul. 2014.

em:

<

WITTMANN, Luisa Tombini. O vapor e o botoque: imigrantes alemães e os índios Xokleng no Vale do Itajaí/SC (1850-1926). Florianópolis, Letras Contemporâneas, 2007. ZELIC, Marcelo. Povos Indígenas e ditadura militar: subsídios à Comissão da Verdade (1964-1988). Disponível em: . Acesso em 02 jul. 2013.

procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei. Disponível http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562>. Acesso em 27 jul. 2013. 15

em:

<

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.