Relatório Final Expedição Purus - 2012

September 20, 2017 | Autor: Alexandre Cardoso | Categoria: Amazonia, Antropología Social, Indígenas, História da Amazônia, Rio Purus
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL NÚCLEO DE ESTUDOS DA AMAZÔNIA INDÍGENA

Relatório Final Expedição Purus 2012 Realização: Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/PPGAS/UFAM)

Apoio:

Instituto Nacional de Pesquisa Brasil Plural (IBP) (FAPEAM/CNPq) Pronex - Condições de Vida e Saúde de Populações Indígenas na Amazônia (FAPEAM) Pró-Reitoria de Extensão e Interiorização (PROEXTI/UFAM)

Manaus, 2013

Relatório Final Expedição Purus 2012 Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/PPGAS/UFAM)

SUMÁRIO SUMÁRIO .................................................................................3 LISTA DE FIGURAS ..................................................................8 LISTA DE TABELAS ................................................................10 APRESENTAÇÃO .....................................................................12 HISTÓRIA E MEMÓRIA NO PURUS .........................................17 INTRODUÇÃO .............................................................................. 17 O Barco ...................................................................................... 21 Tapauá ....................................................................................... 27 Canutama ................................................................................... 34 Lábrea ........................................................................................ 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 57

NARRATIVAS DO PURUS ........................................................60 INTRODUÇÃO .............................................................................. 60 A vida no barco: o avesso do tempo/espaço e a convivência íntima com o “outro estranho”........................................................................ 61 Tapauá, a cidade de nordestinos que sobem, e de índios que descem o rio Purus ..................................................................................... 63 Os nordestinos falam: as trajetórias de vida, andanças e anseios ....... 66 Raimundo Nival descendente de nordestinos e ‘filho’ do Purus ........... 70 Família paumari e vivência entre dois mundos: brancos/índios cidade/aldeia ............................................................................... 73 Maraza cacique mamori relembra o “ajuntamento” de seu povo aos paumari ...................................................................................... 76 Canutama a cidade de Manoel Urbano, Karipuna Maué e coronel Botinelly ..................................................................................... 78

Lista de documentos do arquivo público de Canutama ...................... 81 A fala de Sebastião Banawa, trajetos e andanças de um povo em contato com os brancos ................................................................ 84 João Cícero fala dos coronéis de barranco ....................................... 86 Raimundo Gomes cearense seringalista .......................................... 87 Marcelino Apurinã: feirante, agricultor e cacique na cidade de Lábrea . 88 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 94

O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA, MÉDIO PURUS (PARTE I) .......................................................96 INTRODUCCIÓN ........................................................................... 96 Carácterísticas del contexto donde se realizó la investigación............. 97 Importancia de la mandioca con respecto a las otras especies vegetales en la cosmovisión canutamense ..................................................... 98 Proceso de la elaboración de la farinha ........................................... 99 Articulación y funcionamiento de las unidades productivas para la obtención de la farinha de mandioca ............................................. 103 De la unidad familiar a la unidad productiva. Proceso de formación y organización .............................................................................. 106 Estrategias adaptativas de las unidades productivas para garantizar la producción en situaciones extremas ............................................. 110 Forma de repartir la farinha ......................................................... 112 Aspectos simbólicos entorno al proceso productivo ......................... 113 La casa de farinha como espacio físico y simbólico ......................... 114

O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA, MÉDIO PURUS (PARTE II) ................................................... 118 INTRODUÇÃO ............................................................................ 118 Várzea ...................................................................................... 129

Praia ........................................................................................ 129 Área do Seringueiro (composta pela área de cultivo da Beira do Lago do Seringueiro e área da Baixa Grande) ............................................ 132 Organização do Sistema Produtivo na Várzea: a área da Baixa Grande ............................................................................................... 135 Variedades de Mandioca e Macaxeiras........................................... 150 Mandioca .................................................................................. 150 Macaxeira ................................................................................. 151 Casa de Farinha ......................................................................... 154 Aquisição das sementes pelos agricultores da várzea ...................... 158

ROÇADOS E MANDIOCAS JAMAMADI ...................................165 INTRODUÇÃO ............................................................................ 165 Meu retorno a Lábrea ................................................................. 165 A chegada à TI Jarawara/Jamamadi/Kanamati ............................... 169 Aldeia Carapanazal ..................................................................... 174

ETNOGRAFIA E SISTEMAS PRODUTIVOS DOS PAUMARI DO RIO TAPAUÁ ............................................................................... 190 INTRODUÇÃO ............................................................................ 190 Notas sobre a Leishmaniose no Município de Tapauá ...................... 191 FOZ DE TAPAUÁ: ADENTRANDO O UNIVERSO PAUMARI .................. 192 Breve caracterização dos Paumari ................................................ 192 O contexto da Aldeia .................................................................. 196 Tipo de Moradia ......................................................................... 199 Os Mamori e Juberi..................................................................... 202

ATIVIDADES ECONÔMICAS E EXTRATIVISTAS ......................... 206 Agricultura ................................................................................ 206

Caça ......................................................................................... 206 Pesca........................................................................................ 207 Coleta de Castanha .................................................................... 207 Notas sobre Leishmaniose nos Paumari do Rio Tapauá .................... 208

ETNOGRAFIA DA QUEBRA DA CASTANHA JUNTO AOS PAUMARI DO RIO TAPAUÁ: PRIMEIRAS IDEIAS E APROXIMAÇÕES .....210 INTRODUÇÃO ............................................................................ 210 Métodos utilizados ...................................................................... 212 O desenrolar do campo ............................................................... 213 O TEMPO NA CIDADE .................................................................. 216 A cidade de Tapauá .................................................................... 216 “Índios urbanos” ........................................................................ 218 Conversa com um Paumari .......................................................... 219 Entrevista com um ex-seringueiro que quase virou Pajé .................. 220 A “ferida braba”: notas em relação à Leishmaniose ........................ 221 Notas sobre a farinha de mandioca em Tapauá .............................. 223 Notas sobre o esquema da castanha em Tapauá ............................ 225 O TEMPO NAS ALDEIAS .............................................................. 231 A Relação com os Paumari .......................................................... 231 Atividades produtivas ................................................................. 233 Pesca........................................................................................ 233 Caça ......................................................................................... 238 Roças ....................................................................................... 239 Coleta ....................................................................................... 241 A Castanha................................................................................ 242 “Comercialização das relações” .................................................... 242

As relações comerciais ................................................................ 243 Ações e relações sociais .............................................................. 245 O transporte .............................................................................. 246 As distâncias ............................................................................. 246 As expedições de coleta .............................................................. 247 Regime de trabalho .................................................................... 249 Uso e territorialidade dos castanhais............................................. 249 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................ 252

LISTA DE FIGURAS Figura 1. Barco Vovô Osvaldo II no rio Solimões. Foto: Alexandre Isidio. . 21 Figura 2 – Encontro rio Ipixuna/rio Purus. Foto: Alexandre Isidio............ 27 Figura 3 – Cidade de Canutama. Foto: Alexandre Isidio. ........................ 34 Figura 4 – Decote de las manivas. Foto: Alba Garcia. .......................... 100 Figura 5 – Tubérculos en remojo. Foto: Alba Garcia. ........................... 100 Figura 6 – Prensa de la masa de la mandioca. Foto: Alba Garcia. ......... 101 Figura 7 – Família penerando farinha. Foto: Alba Garcia. ..................... 102 Figura 8 – Varones torrando la farinha. Foto: Alba Garcia. ................... 102 Figura 9 – Una casa de farinha. Foto: Alba Garcia. ............................. 114 Figura 10 - Croqui de uma área de produção de farinha. Autora: Thayná Ferraz da Cunha. ............................................................................. 123 Figura 12 - Casa de Farinha e depósito na beira do rio Purus. Foto: Thayná Ferraz da Cunha .............................................................................. 130 Figura 13 - Beira do Lago do Seringueiro. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ..................................................................................................... 134 Figura 14 – Retirada das partes aéreas e decotagem das manivas. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. .................................................................. 141 Figura 15 - Demolhagem nas áreas baixas. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ..................................................................................................... 142 Figura 16 - Retirando as mandiocas d’água. Foto: Thayná Ferraz da Cunha ..................................................................................................... 144 Figura 17 - Massa puba na gareira. Foto: Thayná Ferraz da Cunha ....... 145 Figura 18 – Prensagem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha....................... 146

Figura 19 – Peneiragem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha...................... 147 Figura 20 – Macaxeira sendo lavada na área baixa; macaxeiras assadas no forno. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ................................................ 153 Figura 21 – Estacas de mandioca. Foto: Thayná Ferraz da Cunha. ........ 163 Figura 22 - Cobrança de Pênaltis, aldeia “Casa Nova” dos Jarawara. Foto: Ingrid Daiane. ................................................................................. 170 Figura 23 - Campo de Futebol visto da casa onde estava (I e II Jamamadi sentados na “varanda)”, III (campo onde jogavam futebol). Foto: Ingrid Daiane. .......................................................................................... 171 Figura 24 - Aniversariantes na festa Jarawara. Foto: Ingrid Daiane. ..... 173 Figura 25 – A banda arrumando os instrumentos. Foto: Ingrid Daiane. . 174 Figura 26 - Varadouro próximo à comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane. .......................................................................................... 175 Figura

27

-

Chico

Inácio

em

um

de

seus

roçados,

Comunidade

Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane. ...................................................... 176 Figura 28 - Vane chegando à comunidade Carapanzal. Foto: Ingrid Daiane. ..................................................................................................... 179 Figura 29 - Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane. ........ 186 Figura 30 - Prensa, localizada na Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane. ................................................................................. 187 Figura 31 - Mapa de Localização das Terras Indígenas Paumari. Fonte: Instituto Socioambiental - ISA ........................................................... 193 Figura 32 – Genealogia de algumas famílias Paumari. ......................... 205

LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Livro de Actas.Arquivo Municipal de Canutama. Livro de actas das sessões da Intendência Municipal de Canutama.

Segunda

Reunião Ordinária da Legislatura – Presidente Monteiro Pantoja, 31 de outubro de 1927.* ............................................................................. 39 Tabela 2 - Notas dos baptisados e casamentos effectuados na freguesia de Lábrea, Estado do Amazonas nos anos de 1878 a 1908. ......................... 51 Tabela 3 – Calendário agrícola. Autora: Thayná Ferraz da Cunha. ......... 124 Tabela 4 - Mandiocas levantadas no São Francisco. ............................ 167 Tabela 5 – Divisão de atividades agrícolas por gênero. ........................ 168 Tabela 6 - Distribuição das casas Jamamadi - aldeia Carapanazal. ........ 180 Tabela 7 - Levantamento demográfico das aldeias. Fonte: Vieira, 2012. 198 Tabela 8 - Distribuição espacial e habitação dos Paumari. Fonte: Vieira, 2012. ............................................................................................. 201 Tabela 9 - Motivações que levam os Paumari a quebrar castanha. Fonte: Caderno de campo, 2012. ................................................................. 245

A partida para o Alto Purus é ainda o meu maior, o meu mais belo e arrojado ideal. Estou pronto à primeira voz. Partirei sem temores; e nada absolutamente (a não ser um desastre de ordem física, que me invalide), nada absolutamente me demoverá de um tal propósito. Euclides da Cunha

APRESENTAÇÃO A Expedição Purus teve sua motivação a partir dos preparativos para o trabalho de campo das pesquisas de mestrado em Antropologia Social (PPGAS/UFAM) de Ingrid Pedrosa e Angélica Vieira entre os Jamamadi e Paumari, respectivamente. No contexto dessas pesquisas acadêmicas estavam

em

início

dois

projetos

coletivos

com

participação

de

pesquisadores do NEAI: “Sistemas Produtivos no Médio Purus”, integrante da rede de pesquisa intitulada (Política e redes) x (Heterogêneas e comparadas), coordenado pelo Professor Gilton Mendes dos Santos e desenvolvido no âmbito do Instituto Brasil Plural (IBP), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) e CNPq; e o projeto “Natureza, Cultura, Saúde e Doença no Médio Purus Condições de Vida e Saúde de Populações Indígenas na Amazônia, vinculada

ao

PRONEX

e

também

financiado

pela

FAPEAM,

com

a

coordenação de Luiza Garnelo, pesquisadora da Fiocruz. Soma-se a isso, ainda, um pequeno projeto de extensão (Purus Indígena II – Saberes e territorialidades), com apoio da Pró-Reitoria de Extensão e Interiorização da UFAM, que financiou algumas passagens fluviais e diárias. A somatória de todos estes interesses de estudos e pesquisas sobre os povos indígenas do Purus, levados adiante pelo NEAI, estimulou a formação de uma viagem mais abrangente (expedição) de cunho exploratório, de modo a envolver outros jovens pesquisadores, abordando diferentes temas de interesses do núcleo, sendo todos tributários dos referidos projetos coletivos.

A

expedição

envolveu

objetivos

que

se

cruzaram

e

se

complementaram - indo dos sistemas produtivos, como a coleta de castanha

e

os

roçados

de

mandioca,

passando

pelo

estudo

das

especificidades da vivência de algumas populações indígenas do rio, até um levantamento sobre a documentação histórica com vistas ao entendimento do avanço das frentes extrativistas na região. A palavra expedição, já muito utilizada em outros momentos, nessa nova empreitada tomou uma fundamentação distante do significado associado aos “pioneiros” do século XIX ou mesmo dos arrazoados de homens de “ciência” do início do século XX, que traduziram o território como uma terra sem história, inculta, sonhando com sua incorporação à

“civilização”. Bem diferente de outros tempos, não foi nosso objetivo traduzir o rio através de uma leitura preestabelecida, e sim tentar entender e aprender com quem vive e viveu a realidade do Purus. Os preparativos para a expedição começaram bem antes da viagem, compreendendo reuniões periódicas no NEAI para troca de informações sobre a região, como: seus povos, as cidades, o regime das águas, as atividades desenvolvidas nesse período do ano, etc; divisão das tarefas práticas (tomar vacinas contra a Hepatite, a compra de material básico e alimentos, etc) e sessões de estudos e leituras dos trabalhos produzidos sobre os temas de interesse do grupo e os povos do Purus. Nesses encontros preparativos no NEAI também se definiu a organização da equipe para o trabalho de campo propriamente dito. A equipe se dividiu em duplas que de acordo com a familiaridade e interesse nos temas de pesquisa tomaria diferentes destinos a partir de Tapauá. A expedição durou cerca de 45 dias - entre 7 de janeiro a 18 de fevereiro de 2012 - partindo de Manaus com destino a Lábrea, passando e parando nas cidades de Tapauá e Canutama. Ao todo foram envolvidos sete pesquisadores de áreas diversas, que foram distribuídos de acordo com as temáticas investigadas. Angélica Maia e Ingrid Daiane, mestrandas do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social – PPGAS/UFAM foram incumbidas de pesquisar a dinâmica de vida dos povos indígenas, especialmente dos Paumari e Jamamadi, que contemplavam não só os objetivos da expedição, mas também suas respectivas pesquisas de mestrado; Alba Garcia, Antropóloga pela Universidad Complutense de Madrid e Thayná Ferraz da Cunha, aluna da graduação em Biologia pela UFRJ, ficaram responsáveis pela observação dos sistemas produtivos dos roçados de mandioca e de produção de farinha no perímetro urbano de Canutama;

Mario

Rique,

ecólogo

e

mestre

em

Desenvolvimento

Sustentável pela Universidade de Brasília (CDS/UnB), ficou encarregado pelo acompanhamento das atividades de coleta da castanha do Brasil entre os

índios

Paumari;

Admilton

Freitas,

licenciado

em

História

pela

Universidade Federal do Amazonas e graduando em Ciências Sociais pela mesma universidade e Alexandre Cardoso, mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará, tiveram a tarefa de compulsar o material histórico sobre o Purus, buscando documentos, arquivos e testemunhos

orais, de modo a dar vazão a possibilidade do estudo da historicidade das relações humanas e suas dinâmicas na região. (FALTA THAYNA) Diante do exposto, é possível observar um panorama de interesses de pesquisa e de áreas de estudo diversas, que embora distintas, atuaram de maneira convergente, de modo a somar e agregar ao debate sobre o rio Purus, cruzando informações e formas de ver o mundo. O relatório a seguir é uma espécie de súmula, contendo informações, descrições, impressões e análises pessoais sobre a experiência e o tema que cada um se ocupou ao longo da viagem. O relatório é composto por sete textos, organizados em três blocos. O primeiro versa sobre a história e a memória oral do Purus (Alexandre e Admilton). O segundo trata dos sistemas produtivos com destaque aos sistemas de cultivo de mandioca em Canutama (Alba, Thayná) e em Lábrea entre os índios Jamamadi (Ingrid). O terceiro bloco traz os relatos etnográficos de Angélica e Mario entre os índios Paumari do rio Tapauá, destacando-se as atividades produtivas praticadas pelo grupo. É preciso salientar que tal divisão foi pensada com uma intenção organizativa, e não como uma arbitrária separação ou recorte das vivências da expedição. Estas devem ser vistas em conjunto, pois todos os pesquisadores interagiram e contribuíram uns com os outros. Cada relato traz sua interpretação, e cada autor discorre sobre suas experiências de campo. ~ Francisco, Maraza, Raimunda, Barrai, Brígida, Silvino, Feliciano, Iva, Diva, Geraldo, Damazia, Lauro, José, Francisco, Eládio, Titicurari, Feitosa, Chicó, Angélica, Juracy, Edilson, Luzia, Maria, Sebastião, Macacari, Dave, Pedro, João, Robson, Marcos, Nival, Moacir, Miguel, Ana, Regina, Maquiry, Normando, Bida, Vânia, Roberto, Zé, Jorge, Catarruri, Cícero, Marcelino, entre

tantos

outros,

merecem

destaque

por

serem

os

verdadeiros

expedicionários do rio Purus. Todos foram interlocutores dos relatórios que seguem, fazendo parte das experiências de campo dos pesquisados. Seus relatos guardam os ritmos da natureza, das relações sociais, da cultura e da história multifacetada que permeia as meandrosas voltas do rio. Indígenas e não

indígenas, que podem ser enxergados como parte do estrato das trajetórias de vida historicamente constituídas em território amazônico. Eles e elas carregam experiências significativas, não sendo simplesmente “fontes” ou “objetos” de estudo, mas legítimos detentores do saber local e construtores de seus cotidianos e da vida no Purus. Desse modo, entendemos que os significados dos meandros de um rio, a exemplo da vida das pessoas, ultrapassam simples deduções sobre seu curso. Além de transportarem sedimentos, de abrigarem várias espécies de animais

e

vegetais,

sua

corrente

também

carrega

a

fluidez

de

acontecimentos humanos, que muitas vezes compartilham e constroem no espaço aquático referencias de vida e leituras de mundo. O território amazônico, atravessado por muitos rios, teve e continua tendo seu cotidiano e sua história erigidos através das vários povos que singram suas águas barrentas, pretas, esverdeadas... As cores dos rios são plurais, assim como a diversidade cultural de sua gente que atribuem sentidos à natureza, influenciando e sendo influenciados pela torrente que entrecorta a floresta. Portanto, é preciso muito critério para pensar a vida desses sujeitos, de modo a entender seus movimentos e trajetórias, acompanhar suas batalhas pela sobrevivência, compreender suas experiências. Esta foi à intenção do grupo de pesquisadores que vivenciou a Expedição Purus, que ao invés de simplesmente enquadrar e classificar o rio e seus habitantes buscou ouvir e aprender. Para tanto, foi necessário bastante planejamento e clareza em nossos objetivos, levando a “viagem” a ter início muito antes da travessia em si. Para além das narrativas e relatórios aqui apresentados, a Expedição Purus rendeu outros frutos. Dentre eles, vale destacar o envolvimento dos pesquisadores e seus interlocutores na região. Por um lado, os moradores e atores locais sentiram-se personagens ativos, narrando suas histórias e contando suas experiências na região com muita confiança e familiaridade com a equipe do NEAI; por outro lado, a maioria dos membros da equipe desdobrou essa experiência em futuros projetos de pesquisa, trazendo à tona impressionantes histórias e achados antropológicos, apontando para futuras pesquisas etnográficas na região: Alexandre ingressou no doutorado em História na USP com um projeto sobre a influência de Manoel Urbano da Encarnação na Bacia do Purus; Mario Rique foi aprovado no doutorado do

PPGAS/UFAM com um projeto sobre o conhecimento e uso da castanheira no contexto do povos do Médio Purus; Thayná e Admilton estão elaborando suas monografias de final de curso de graduação com temas derivados desse levantamento exploratório; Ingrid e Angélica, a partir da expedição, negociaram e aprofundaram suas pesquisas de campo de mestrado junto aos Jamamadi e Paumari. Por fim, vale lembrar que muito do material recolhido durante a Expedição carece de sistematização e análise, a exemplo da documentação compulsada e do acervo audio-visual. Importante dizer ainda que boa parte dos dados etnográficos encontra-se presente nos textos monográficos em elaboração, programados para virem à luz em breve.

Gilton Mendes Angélica Vieira Antonio Alexandre Cardoso

HISTÓRIA E MEMÓRIA NO PURUS Antonio Alexandre Isidio Cardoso INTRODUÇÃO A Expedição Purus foi concebida a partir de um viés interdisciplinar e pensada coletivamente, composta pelas experiências de pesquisa de várias pessoas, de áreas diversas, como a História, campo de atuação do qual me ocupei durante os 45 dias de trabalho. A palavra expedição, já muito utilizada em outros momentos, nessa nova empreitada tomou uma fundamentação distante do significado associado aos “pioneiros” do século XIX ou mesmo dos arrazoados de homens de “ciência” do início do século XX (Euclides da Cunha, por exemplo), que traduziram o território como uma terra sem história, inculta, sonhando com sua incorporação à “civilização”. Bem diferente de outros tempos, não foi nosso objetivo enquadrar, adequar, classificar, traduzir o rio através de uma leitura preestabelecida, e sim ouvir, tentar entender e aprender com quem vive e viveu o Purus. O cerne da questão que moveu a atividade de pesquisa foi o estudo dos arquivos do médio Purus, nas cidades de Tapauá, Canutama e Lábrea, juntamente com as possibilidades de entrevistas, mobilizadas através da história oral, que também foram importantes componentes no processo. Partindo com tais objetivos o trabalho foi tomando forma,contudo, a pesquisa em si, no sentido da vivência e fruição da viagem, começou muito antes da chegada as cidades ou com as entrevistas de seus habitantes. Já no barco, nas expectativas de cada dia, no contato com a errância dos sujeitos, que há tantos séculos constroem sua história no território amazônico, foi possível começar a sentir o trabalho de campo, sensação que ajudaria a esquentar o trato com as fontes, geralmente pensadas de maneira fria e distanciadas. Houve vários momentos nos quais ao ver as faces do Purus tornou-se possível enxergar alguns lampejos da história do rio. As idas e vindas diante da grande floresta, os encontros e desencontros entre povos, as conversas sobre castanha, sorva, pau rosa, seringais, empreendidas no barco (e que se repetiriam em várias outras ocasiões), ditaram o tom dos diálogos sobre os chamados “outros tempos”. Tendo em vista tais especificidades, o conteúdo dessas temporalidades não foi

17

pensado através de um viés estático, rígido, alheio ao presente, como se o passado fosse refém de si mesmo, masao contrário, a cada passo tornavase perceptível a historicidade dos testemunhos, como fragmentos do passado que não respeitam barreiras, que cruzam as fronteiras do tempo, e que ajudam a atribuir sentidos a vivência das pessoas no presente. Foi assim, a cada ponto de parada e de partida, regado de conversas e muitas expectativas. Essa dinâmica acompanhou a chegada às cidades, espécies de entrepostos diante das atividades empreendidas pelos rios e florestas. A primeira foi Tapauá, após mais de três dias de viagem, cidade que em sua história administrativa já pertencera ao território de Canutama e também de Lábrea, mas que desde os anos 50 adquiriu autonomia política. Esse indicativo foi feito por alguns dos habitantes da cidade, e que ajudaram a pensar os passos da pesquisa, posto que, tendo tal referencia, certamente haveria pouca documentação na cidade, devido a seu caráter de subordinação administrativa no passado. Foram visitados o Cartório e a Igreja, onde foram encontradas algumas referências. Contudo, foi no campo das entrevistas que a cidade mais se destacou no âmbito da investigação. Foram

ouvidas

várias

pessoas,

que

tocaram

em

questões

muito

interessantes, como o processo migratório até a cidade, as problemáticas do contato indígena-não indígena, circuitos produtivos, tensões agrárias, dentre outros temas. Cenário semelhante foi encontrado em Canutama, embora tenha havido

uma

incursão

muito

fecunda

no

âmbito

do

levantamento

documental, já que foi aberta a possibilidade de pesquisar no Arquivo Público Municipal da cidade. Em tal local existe um grande acervo de fontes, onde consta uma periodicidade que abarca desde o final do século XIX até o tempo presente. Foi feita uma triagem do material, devido a sua grande quantidade, que guarda uma larga tipologia, que basicamente corresponde à documentação de caráter oficial. Na cidade também foram compulsadas fontes no Cartório, que diferente do Arquivo Municipal, tinha um acervo bem restrito. O funcionário do Cartório relatou que grande parte das fontes antigas existentes no espaço foramdestruídas numa enchente ocorrida no ano de 1997, restando somente uma pequena parte do material.

18

Já no que diz respeito às entrevistas o cenário foi mais promissor, foram encontrados um ex-soldado da borracha, o Sr. João Silvino dos Santos, além de Ana Banawá, liderança indígena na cidade e o Snr. Juraci Nogueira, antigo habitante que chegara do Rio de Janeiro acompanhado de seu pai à época da chamada Batalha da Borracha nos anos 1940. Além de outros, que foram consultados, mas que optaram por não registrar seus relatos. Mas que guardam, assim como os outros, a atualidade de suas memórias, seleções do passado, caras ao entendimento da história do Purus. Assim a viagem continuou, e o próximo destino foi Lábrea, a maior cidade em população da bacia do rio. Lá foi encontrado o maior contingente de documentação, presentes na Casa do Bispo (da ordem dos Agostinianos Recoletos) e no Cartório Judicial, onde existe uma grande quantidade de fontes, em condições bastante precárias. Basicamente foram compulsadas Escrituras de terras, Inventários, livros de batizamento (sic) e livros de tombo, que guardam ricas referências sobre a história da região. Sujeitos como o padre Francisco Leite, um dos primeiros religiosos a fazer incursões pelo Purus na segunda metade do século XIX, Manoel Urbano da Encarnação, homem ligado aos interesses do Estado que guiou muitas expedições ao rio, Antonio Rodrigues Pereira Labre, considerado fundador da cidade de Lábrea, dentre outros nomes, apareceram na documentação. Essas pessoas, no entanto, não devem aparecer solitárias, devem ser observadas como chaves de análise, como espécies de janelas que proporcionam vislumbrar experiências de outros tantos sujeitos, atentando a noções do contexto histórico. Até porque, almeja-se escrever algo sobre a região do médio Purus e seus habitantes guardando proximidade com a vivência e a história de seus povos, em sua pluralidade, e não somente reservando lugar especial a nomes que já aparecem contemplados na historiografia, muitas vezes até como tributários de uma versão da história que exclui a maior parte das pessoas. Mais uma vez, semelhante às experiências de Tapauá e Canutama, fica explícita a importância dos testemunhos orais, que ajudam a desanuviar esse cenário muitas vezes tolhido pelo discurso e interesses eminentemente elitistas. Ciente da importância desses testemunhos, no decorrer do

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percurso da Expedição foi sendo trabalhado o indicativo de cruzamento das fontes levantadas, tendo o indicativo que documentação “primária” e entrevistas devem encontrar-se, dialogar entre si, mas não de maneira arbitrária. Cada uma dessas fontes guarda índices analíticos, rastros do passado que o tempo ainda não teve a capacidade de apagar, e que podem ser potencializados se cruzados com outros indícios, atribuindo uma complexidade maior ao entendimento da História. Escrever sobre o passado através de fontes oficiais, portanto, não necessariamente quer dizer fazer um trabalho sobre o Estado, assim como escrever através de relatos pessoaise de entrevistas, não prescinde uma escrita de caráter biográfico. Os sujeitos e suas vivências podem aparecer mesmo na documentação administrativa mais sisuda, assim como as “estruturas” econômicas e políticas, estão presentes nas falas cotidianas das pessoas comuns. Logo, a história não pode ser vista através de uma indumentária monocausal, atada a um assentado tipo de fonte, e sim em sua pluralidade, fugindo de determinismos e estreitamentos analíticos, daí o saudável exercício de cruzamento de fontes. Esse encontro nem sempre é harmônico e plausível, assim como não o são os encontros entre pessoas e sua produção material e discursiva. As maneiras de dizer e fazer o mundo entram em choque em todo momento, assim como as formas de ver, sentir e escrever história. A historiografia configura-se como um campo de disputas e de poder. Diante disso é necessário posicionar-se. O viés analítico concebido na Expedição afina-se com uma “história vista de baixo”, que busca farejar o cotidiano, o rotineiro, o vulgar, a luta pela sobrevivência, e a construção da história das pessoas que não tem suas vidas registradas nos Anaes dos grandes nomes. Tudo isso afinado a uma perspectiva da História Social que nutre por tal demanda um especial apreço. Com isso, por fim, é importante salientar, que não se tem o objetivo de obliterar qualquer referência sobre outros sujeitos sociais, ou sobre questões gerais do âmbito político ou econômico, e sim entender suas interconexões e posicionamentos, sem delegar as rédeas da história a um lado em detrimento do outro.

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O Barco

Figura 1. Barco Vovô Osvaldo II no rio Solimões. Foto: Alexandre Isidio.

Seria de grande presunção tentar auscultar e entender todos os olhares que já foram voltados ao Purus a partir de embarcações. Muitos foram os que navegaram e viveram a experiência de conhecer os tortuosos meandros do rio, mas poucos ficaram registrados, a maioria composto pela roupagem do mundo letrado, principalmente no século XIX. São falas1 preocupadas com rotas comerciais, questões políticas e territoriais, conflitos com

povos

indígenas,

produtos

da

floresta,

dentre

outros

temas,

produzidas, em seu maior contingente, por órgãos oficiais e também por casas comerciais. Para além desses registros, também ficaram para a posteridade as impressões de estrangeiros, viajantes2 que buscavam corresponder às expectativas do velho mundo, onde havia pessoas que ansiavam pelos relatos de exotismos regados por potenciais riquezas. Esse cenário longe de impedir a análise de outros sujeitos (que mesmo silenciados teimam em aparecer) traduz-se num desafio do ponto de vista metodológico para o pesquisador da História. Afinal, como enxergar entre

1

Relatórios de Presidentes de Província (Império), Relatórios de Presidentes de Estado

(República), documentos comerciais (Casa de Visconde de Santo Elias, Casa de J.G. Araújo, dentre outros). 2

Cristóbal de Acunhã, William Chandless, entre outros.

21

as malhas das fontes, entre as tramas do tempo embutidas na produção documental ecos de vozes que emudeceram? As experiências do passado não se perdem em sua totalidade com a fruição e a passagem do tempo, encarnando-se na fala dos vivos, como um substrato que atribui sentido e dialoga com o presente. Um importante vetor

desse

processo

é

a

memória,

que

articula

lembranças,

acontecimentos, visões e sensações. Foi através de conversas com pessoas no barco, entrando em contato com suas reminiscências, que a concretude dessa reflexão veio à tona. Foram ouvidas histórias de décadas de trabalho em seringais, de aventuras na mata, de encontro com onças, de viagens pelos rios, de companheiros de trabalho, de festejos, de lugares visitados, tudo isso acompanhado do olhar sobre o Purus, debruçado no parapeito do barco, onde entre um assunto e outro, abria-se um parênteses para o reconhecimento de uma praia, de um estirão, de uma boca de igarapé. Um desses interlocutores foi o Sr. Francisco, que estava também no barco Vovô Osvaldo II, quando a Expedição Purus destinava-se a Tapauá. Meu contato com ele começou numa madrugada de lua cheia, quando a embarcação começou a fazer movimentos incomuns, singrando o rio como se estivesse desviando de alguma coisa, com movimentos um pouco bruscos. Nesse momento algumas pessoas levantaram, e as redes interligadas, encostadas umas nas outras, começaram a balançar, num movimento que atingia praticamente todos que estavam deitados, e me fez despertar do sono. Foi nessa ocasião que avistei o Sr. Francisco debruçado sobre o parapeito do barco, fumando um cigarro de palha, e olhando fixamente para o rio, que estava com suas águas espelhando a luz da lua, que reinava plena no céu. Sua figura naquela circunstância, diante da penumbra que se movimentava, tinha uma aura de fantasmagoria, como algo que bruxuleava como a chama de uma vela, ou como o reflexo da luz da lua nas águas do Purus. Aquilo definitivamente chamou minha atenção, e resolvi levantar e me dirigir até ele para puxar assunto. Começando pelos tratamentos triviais, depois de um silencioso “boa noite”, respondido por uma grave réplica de conteúdo homônimo, perguntei como ele se chamava, e depois de sanada a dúvida, questionei sobre a trajetória

incongruente

do

barco.

Ele

prontamente

me

respondeu,

22

argumentando que já fazia algumas horas que nossa embarcação navegava “emparelhada” com outra, e esta por ser de menor porte, ficava alternando as margens do rio. Essas manobras eram feitas para evitar a correnteza, que é menor nas margens. Enquanto conversávamos por várias vezes a tal embarcação cruzou muita próxima a nossa, e ao longe se podia ouvir um som vindo de cima, da cabine do Comandante do Barco, o Sr. Manoel, que esbravejava: “Esse leso deve tá é bebo!”. 3 Durante o diálogo descobri que o Sr. Francisco destinava-se à Lábrea, onde residia, e que naquela ocasião estava retornando de Manaus, onde fora fazer um tratamento de saúde, situação compartilhada por muitos dos tripulantes do Vovô Osvaldo II. Entrando mais na conversa, perguntei se ele já havia viajado muitas vezes pelo Purus, o que já tinha visto em suas andanças, em quê trabalhara, coisas do tipo. Foi então que ele começou a nomear algumas praias, a me explicar que em cada “volta” do rio existe um barranco e uma praia, sempre um oposto ao outro nas margens, falando ainda que o rio, em sua opinião, ainda iria encher muito e que as águas iriam crescer. Certamente tal vocabulário e conhecimento não adviriam de quem olha o Purus não apenas como passante, mas de quem somente transpõe todos aqueles lugares. Ficava claro que o Sr. Francisco era um interlocutor que vivenciara aquele conhecimento. Sua vida enquanto trabalhador fora atravessada pelo corte da seringa, pela retirada da sorva, e posteriormente do pau rosa, ofícios que foram descritos sem uma organização temporal precisa. Um ponto interessante da nossa conversa foi quando ele ficou sabendo que eu era cearense, momento em que ele começou a narrar várias histórias de antigos companheiros de trabalho naturais do Ceará. Segundo sua fala, no passado havia uma grande quantidade de cearenses no Purus, mas que hoje estes estão já misturados,

tornados

amazonenses.

Mas

antes

dessa

espécie

de

“adaptação”, ele discorreu sobre um processo nasquais estavam inseridos não só cearenses, mas todos os adventícios que chegavam a terras

3

Ouvindo essas palavras também, Admilton, um dos companheiros de expedição, que já

dormia com o colete salva-vida na rede, revirava-se, abraçando-o, como sua tábua de salvação.

23

amazônicas, e que se destinavam a labuta na floresta. Ele nomeou-os de “brabos”, que não sabiam manobrar a canoa, que desconheciam o manejo do corte das seringueiras, que não entendiam os modos de pescar ou caçar da terra, que não conheciam os animais, nem as plantas, nem as doenças, que estranhavam o clima, o calor, as chuvas, e até o regime de trabalho. Estes sujeitos passavam por uma espécie de escola, da qual o Sr. Francisco fora muitas vezes professor. Após alguns meses de “aulas”, quando os recém-egressos eram tutorados pelos já afeiçoados aos ritmos do trabalho da floresta, aos poucos, os “brabos” tornavam-se “mansos”, ou seja, começavam a andar “com as próprias pernas” definitivamente, entendendo pelo menos algumas feições superficiais da vida nas paragens amazônicas. A fala do Sr. Francisco sobre as categorias, “brabo” e “manso” guarda uma estreita relação com o processo histórico relacionado aos contingentes de migrantes que chegaram ao Purus, especialmente a partir da segunda metade do século XIX, em sua maioria, vindos de outras províncias no Norte4, como o Ceará, de onde vinham sujeitos alheios ao modo de vida na floresta, ambientados a outro tipo de trabalho, de lida com o mundo. Portanto, o relato do velho tripulante do Vovô Osvaldo II imprime sentidos ao passado, articulados através da memória. É interessante perceber a sutileza dessas composições, cuja base está em arranjos, em seleções de experiências passadas, que se materializam no presente através das lembranças, que podem ser analisadas, ajudando a entender as tintas do vivido. O processo de “amansamento” descrito pelo Sr. Francisco pode ser encontrado em vários trabalhos, que dão vazão a argumentos semelhantes, como no texto de Eurípedes Funes, que utilizou algumas entrevistas coletadas nos anos 1940 por Samuel Benchimol.

5

Entre os interlocutores

havia um cearense que definiu seus sentimentos, suas sensações, numa

4

A ideia de Nordeste, assim como sua atribuição de sentidos ao território, somente se

articula a partir da República Velha. Antes disso, a nomenclatura e seus significados não tinham ligação com a noção de região que existe no presente. O território do Brasil era dividido, grosso modo, apenas em Norte e Sul. Ver. JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN, Ed. Massaranga, 2001. 5

BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco antes e além depois. Manaus: Ed. Umberto

Calderaro, 1977.

24

frase bastante significativa, que serviu de mote para o trabalho de autor. “Quem vive no inferno se acostuma com os cães”. 6 Funes discute as noções de Eldorado e Inferno Verde historicamente através de experiências migratórias, que, segundo sua argumentação, também ajudaram a atribuir sentido a composição do que conhecemos como Amazônia. Tais referências comungam de conotações antípodas, que ora estabelece relação com uma ideia benfazeja, paradisíaca e enredada em riquezas, e ora mostra uma face maléfica, penosa, de uma vida de dificuldades. Tudo leva a crer que as experiências de deslocamento, do olhar a partir do barco, dos mundos do trabalho, dos estranhamentos e adaptações, foram ajudando a compor essas representações. “Ao levar em consideração

este

postulado,

é

necessário

frisar

que

as

lutas

de

representação são tão importantes quanto às lutas econômicas e políticas, envolvendo dinâmicas de confronto muitas vezes negligenciadas nos processos históricos”. 7 Todas essas facetas de atribuição de sentidos ao longo do tempo foram iniciadas com o deslocamento em embarcações, seja nas sumacas, que faziam navegação de cabotagem no período colonial, ou nos vapores que passaram a singrar águas amazônicas no século XIX, ou ainda nos navios com casco de ferro, que nos anos 1940 transportaram os chamados Soldados da Borracha. Essas embarcações não carregavam apenas pessoas e mercadorias, mas também notícias, ideias, visões de mundo, impressões e experiências que eram transmitidas a muitos outros sujeitos através do seu incessante movimento, de porto em porto. Pode-se dizer que essas travessias ajudaram a compor uma larga base conceitual que empresta sentidos ao que hoje entendemos como Amazônia.

6

FUNES, Eurípedes. El Dorado no Inferno Verde – Quem vive no inferno se acostuma com os

cães. In: GONÇALVES, Adelaide; EYMAR, Pedro (orgs). Mais borracha para a Vitória. Fortaleza: MAUC;NUDOC; Brasília: Ideal Gráfico, 2008. 7

CARDOSO, Antônio Alexandre Isidio. Nem sina, Nem acaso: a tessitura das migrações

entre a Província do Ceará e o território amazônico. (1847-1877). Fortaleza, dissertação de mestrado em História Social – Universidade Federal do Ceará, 2011.p.165

25

O olhar dos migrantes, em sua pluralidade, que se deslocavam rumo à floresta por diversas razões8, ajudaram a definir os significados, a emprestar cores ao mundo amazônico. É interessante lembrar que essa articulação de sentidos, assim como os olhares que o conformaram ao longo do tempo, não épassível de uma só definição, de modo atemporal e rígido. Essa reflexão torna-se válida em sua argumentação quando se entende que “os conceitos dos quais participamos não são conceitos, mas problemas, e não problemas analíticos, mas movimentos históricos ainda não definidos.” Falar em “brabo” e “manso”, “eldorado” e “inferno verde”, é discorrer também sobre um movimento similar ao de um barco, pois esses conceitos se movimentam nos meandros do tempo, mudam e permanecem a cada parada, como passageiros que embarcam e desembarcam, ajudando a compor elementos da memória das pessoas que vivem nas florestas e cidades amazônicas. O testemunho do Sr. Francisco pode ser inserido dentro desse grande movimento. Seu olhar fixo voltado ao rio, suas falas e memórias, seu conhecimento sobre cada praia, cada barranco, sobre cada volta do Purus, carrega grandes fardos de historicidade. Ao detectar essa composição e refletir sobre tais questões percebe-se que a travessia do barco não se faz somente através das águas de um rio, também se vive uma viagem no tempo. Debruçado sobre o parapeito do barco, o velho falava palavras e baforadas de fumaça. Nada se dissolvia no ar, misturava-se nele, etéreo e concreto ao mesmo tempo. Seu testemunho carregava ecos de vozes que emudeceram,

revelando

o

rendez-vous

incessante

entre

passado

e

presente. Amostra das marcas que o tempo deixa em tudo.

8

Ver. CARDOSO, Ibid.

26

Tapauá

Figura 2 – Encontro rio Ipixuna/rio Purus. Foto: Alexandre Isidio.

Era por volta de 14 horas quando chegamos a Tapauá. Depois de três dias de viagem, após muitas conversas e expectativas, descemos no nosso primeiro destino em terra. A partir dessa ocasião a cidade começou a tomar forma. Situada em terra firme, no alto de um extenso beiradão, Tapauá se espraia em ruas asfaltadas, que serpenteiam ignorando qualquer precisão cartesiana. De

cima é

possível contemplar as inúmeras

habitações

flutuantes que emolduram a orla, principalmente na parte que corresponde ao rio Ipixuna, que se encontra com o Purus bem em frente da cidade, formando um encontro de águas pretas e brancas que seguem brevemente lado a lado, até se misturarem, acontecimento peculiar em terras amazônicas. Os primeiros passos na cidade incidiram sobre um levantamento das possibilidades de pesquisa, tanto no campo dos acervos documentais quanto diante de possíveis entrevistas. Em conversas com as pessoas que nos viam chegar à cidade, sempre entre uma pergunta trivial e outra (como uma orientação na rua, etc) questionava-se sobre a história da cidade, sobre possíveis locais de guarda de fontes, sobre moradores antigos, e outros possíveis interlocutores. Muitos apontaram locais e pessoas que se repetiam a cada fala, sendo este um indicativo para começar o caminho de

27

pesquisa em Tapauá.

Um nome apontado pela maioria das pessoas foi

Daniel Albuquerque, pertencente a uma família com grande influência política no município. Infelizmente, este não se encontrava em Tapauá, restando-nos continuar o caminho, sem seu contato, devido à exiguidade do tempo. Então, seguimos para os locais de pesquisa mais citados, o primeiro foi o cartório da cidade, onde segundo sua Tabeliã (que recebeu nossa proposta com certa surpresa), certamente havia pouco material histórico, tendo em vista a história administrativa de o município estar vinculada em sua produção documental à Canutama e Lábrea. Somente a partir da segunda metade do século XX que Tapauá foi adquirindo autonomia política. Mesmo assim, foi encontrado no cartório livros de registro de casamento de uma localidade chamada Itatuba, correspondente aos anos da década de 1900. Certamente, trata-se de uma espécie de distrito, do que a época era o território de Canutama. Através da leitura de tal tipologia de fonte, é possível examinar alguns índices analíticos, como a “naturalidade” dos pais e dos próprios noivos e a faixa etária dos que casavam, sendo possível observar através da ancestralidade e da idade, os locais de nascimento dos envolvido (pais e filhos). Essas informações podem ser levantadas no sentido de examinar os fluxos de pessoas pelo Purus e alguns de seus arranjos matrimoniais. Lendo tais

índices

fica

claro

que

a

maioria

das

pessoas

presentes

na

documentação não é de Itatuba, aparecendo alguns como “naturais” do estado do Amazonas, mas nascidos em outras localidades, sendo que a maioria figura como “filho” do Ceará (aparecendo ainda alguns de outros estados do que hoje chamamos de Nordeste). Não há um indicativo direto sobre as presenças indígenas nessas ocasiões, embora a fonte permita uma análise do significado do “natural” do Amazonas, seria ingênuo afirmar de maneira direta que essa classificação fosse necessariamente relacionada a algum povo indígena. Contudo, cumpre notar que, sendo a maioria dos registrados “filhos” de outros estados, percebe-se que a composição das uniões civis e as migrações de pessoas para o Purus apresentavam uma estreita relação. Observando a origem masculina percebe-se que a maioria advem de outros lugares para o Purus, principalmente do Ceará, não sendo possível afirmar o mesmo para

28

as mulheres, pois muitas afiguram como “naturais” do Amazonas. Isto demonstra uma das facetas do fluxo migratório que se conformava desde longa data, mas que engrossou suas fileiras nas três últimas décadas do século XIX, onde a maioria dos que empreendiam a travessia eram homens. O caráter eminentemente masculino dessas migrações permite denotar que nos casamentos ocorridos em Itatuba muitas das mulheres certamente já viviam na localidade, restando questionar sua origem. Algumas já eram filhas de migrantes, como a própria fonte indica numa breve observação da naturalidade de seus pais, mas algumas outras não, o que permite inferir a possibilidade de sua origem ser indígena. Resta investigar, diante dessa informação, as composições matrimoniais desses possíveis arranjos, que certamente uniram muitos migrantes e indígenas. Esse raciocínio pode ser estendido aos outros livros de registro de casamento levantados durante a expedição que apresentam compleição bastante semelhante. A materialidade desses arrazoados pode ser cruzada com os relatos coletados através das entrevistas, que igualmente revelaram através do índice analítico “união” ou “casamento” possibilidades para o entendimento da história do Purus, principalmente no que tange as características dos “contatos”. Do ponto de vista histórico, esse é um eixo bastante significativo, pois ao analisarmos a composição social da população do rio, percebe-se que existiu (e continua existindo) um forte processo de associação entre pessoas de origens e culturas diversas, indígenas e não indígenas, em sua heterogeneidade, que foi acelerado desde o vertiginoso avanço das frentes pioneiras oitocentistas. Essa referência não pode ser obliterada, posto que, faz parte da historicidade do povo que vive no rio, devendo ser analisada respeitando sua complexidade. Um testemunho bastante interessante e que corrobora com a argumentação acima foi a do Sr. Feliciano Reis, filho de maranhenses, que viveu a maior parte de sua vida nos rio Piranha, pertencente à bacia do rio Tapauá.9 Hoje o Sr. Feliciano reside no município e trabalha no Hotel Aline, onde os membros da expedição ficaram hospedados. Desde criança acompanhava seu pai nos trabalhos na floresta, principalmente nos coleta

9

O rio Tapauá é afluente do Purus, sua foz localiza-se no curso acima da cidade de Tapauá.

29

da sorva e a castanha, característica das feições da economia após o forte declínio da borracha, após os anos 1940. Além disso, em seu relato existem várias pistas da relação de “contato” entre indígenas e migrantes, sendo o pai do Sr. Feliciano um interlocutor, responsável pela tentativa de arregimentar indígenas Iafi (etnia que hoje é associada aos Banawá) para o trabalho de coleta. Diante dessa empreitada, havia trocas culturais muito significativas. Primeiramente, os agentes “brancos” aproximavam-se oferecendo “rancho”, contendo desde alimentos até ferramentas de trabalho diversas (terçados, facas, etc). Ocasião muitas vezes atravessada por diversos conflitos, mas que segundo Sr. Feliciano, também guardava espaço para anuência por parte de alguns indígenas, que passaram paulatinamente a coletar os produtos das matas em troca dos ranchos. Configurava-se, assim, uma relação de trocas, entre mercadorias e produtos extrativos, cuja base tinha no secular sistema de aviamento seu eixo principal. Esse processo de trocas e arregimentação para o trabalho compreendia a presença de diversos sujeitos, inclusive, com o passar do tempo, os próprios indígenas, que também foram abrindo novas frentes para exploração, conseguindo fontes de

trabalhadores

(também

indígenas).

Era

uma

tentativa

de

“amansamento”, palavra que é utilizada pelo Sr. Feliciano para definir a incorporação de novos valores e costumes através da vivencia no mundo do trabalho, entendido como disciplinador, como meio de transformar os que eram chamados de “brabos” em “mansos”, semelhante ao processo que atingia os migrantes adventícios. Tudo leva a crer que a labuta em troca das mercadorias, a relação patronal, o aprendizado da língua do outro (tanto por parte dos “brancos” como pelo lado dos indígenas) os intercâmbios culturais diversos, tudo isso transformava de maneira decisiva os ritmos do cotidiano e do trabalho. Entretanto, tal cenário não deve ser concebido como uma via de mão única, pois não era só o “mundo do trabalho branco” do extrativismo que influía na vida dos diversos povos que já habitavam a floresta. Estes também tinham um papel ativo nessa interlocução cultural. Foi nesse sentido que o Sr. Feliciano narrou algumas de suas experiências, que podem exemplificar a atmosfera de vivido, configuradas em ricas memórias.

30

Uma em especial chamou atenção pela tom grave, quando Sr. Feliciano narrou à ocasião da perda de seu pai. Na hora da conversa, que ocorreu a noite, um acontecimento em especial acrescentou ainda mais ingredientes à entrevista, pois houve uma interrupção no fornecimento de energia elétrica. Começamos a conversa a claras, e logo em seguida ficamos as escuras. Nessa hora percebi que o Sr. Feliciano ficou mais desenvolto, articulado, pois ele era muito tímido, falando sempre baixo e pouco, aguardando nossas perguntas (na ocasião estavam presentes Angélica e Mario). A escuridão trouxe para suas palavras um timbre diferente, ele falava sem nos ver, sem divisar nossas presenças, somente as vozes, ou melhor, nessa ocasião em especial a única voz emitida é a do entrevistado, que narrou o episódio da morte de seu pai. A memória narrada se passa numa trilha na mata, quando o Sr. Feliciano, à época com seis anos de idade, acompanhava seu pai no trabalho. Segundo seu testemunho numa certa altura da caminhada, de surpresa, “na passagem de um pau”, camuflada entre as folhagens, estava uma cobra “surucucu pico de jaca”, que surpreendida pela presença dos passantes, mordeu a perna do pai do entrevistado. Os dois estavam muito distantes da base das trilhas, e sem conseguir caminhar por muito tempo, “arrastando-se”, o pai do Sr. Feliciano o pediu para que fosse a frente o mais rápido possível para pedir ajuda. Foi nessa ocasião que, muito assustado, o menino de seis anos se perdeu, passando seis dias vagando sozinho na floresta. O maior medo do menino, além de recear a morte do pai, foi expresso através dos bichos da mata, e não somente das possíveis onças, grupos de queixadas, ou serpentes, mas dos muitos entes encantados. O menino ouvia pios, rangidos, barulhos estranhos, dormia nas árvores e passava os dias caminhando tentando encontrar sua trilha, alimentando-se dos frutos da mata que conhecia e bebendo água. Temia muito encontrar o mapinguari, descrito como um gigante em forma humana que comia gente e que possuía uma pele praticamente impermeável a ataques (salvo por um ponto fraco, que aparecia quando ele abria a boca que fica à altura do umbigo - para emitir seus gritos, podendo ser atingido em cheio). Os traçados do desenho do “monstro” que povoava os medos do

31

Sr. Feliciano fazem parte de falas do mundo indígena, que atribuíam sentido a cada som estranho, a cada sombra movediça nos recantos da floresta. Durante o tempo em que passou perdido, o entrevistado não sabia o que se passava com o pai, que havia, com grandes dificuldades, conseguido chegar até o local habitado mais próximo. Infelizmente, após pedir socorro e chamar um grupo de pessoas para tentar localizar seu filho, o pai do Sr. Feliciano veio a falecer. Foram empreendidos vários dias de busca, onde estavam empregadas muitas pessoas, inclusive indígenas, que deixavam “mensagens” nos caminhos, ou gritavam chamando pela criança, mas seus sons eram confundidos com os emitidos pelo mapinguari, acarretando um efeito inverso ao esperado. O menino ao invés de seguir os sons se escondia receoso. E somente depois de muito tempo, combalido pelos vários dias de alimentação escassa, ele passou responder aos chamados e foi encontrado. Após esse fatídico acontecimento Sr. Feliciano passou a viver com o irmão mais velho e com a mãe (sobre ela não foram feitas referências de origem, se também era originária do Maranhão, ou não), que assumiram os encargos da sobrevivência da família. A faina extrativa continuou sendo a base do cotidiano da labuta, vivenciada não só pelos parentes, mas também por outros “brancos” e também por indígenas, que compartilhavam referenciais de sobrevivência e leituras de mundo. Sr. Feliciano, além de narrar o episódio da morte de seu pai, também falou sobre sua amizade com os indígenas (principalmente os que hoje se afirmam como Banawá). Ele explicou detalhes da divisão de suas tarefas com os “caboclos” (designação utilizada em seu relato quando fazia referência aos indígenas) e testemunhou ocasiões de encontro na mata com outros povos, com etnias “brabas”, quando estas tentavam fazer contatos diversos, buscando comunicar-se, fazendo perguntas, apontando caminhos, barganhando, empreendendo trocas de produtos, etc. Uma imagem muito distante do estereótipo do indígena arredio e esgueirado pelas matas. Portanto, é difícil falar num processo de “amansamento”, principalmente se este for entendido no singular, visto somente a partir de um lado, sem incluir a tentativa de comunicação dos costumes e códigos por parte dos indígenas, que experimentavam entrar em contato com os “brancos” talvez almejando transformar o “branco brabo”, que era “o estranho”, em

32

“manso”. O estudo do significado desses eventos pode abrir uma brecha para o entendimento da complexidade desses contatos, virando “de ponta cabeça” o que é tratado muitas vezes como consensual. Arrisco afirmar que tal relacionamento e troca de experiências teve grande transito nos mundos do

trabalho,

fronteiras.

Os

embora

seus

formatos

desdobramentos

desses

encontros

não

tenham

extrapolam

respeitado

os

conceitos

preestabelecidos. Certamente as categorias, “manso” e “brabo”, “conflito” e “aliança”, não dão conta de explicitar a complexidade dessas situações, principalmente se forem observadas a partir de viés rígido, tentando enquadrar comportamentos e experiências. Esses conceitos devem ser percebidos como problemas históricos, distantes das generalizações de uma intransigência teórica que tente moldar a vivência dos sujeitos. Ao contrário, o importante seria perseguirmos a fluidez da memória dos interlocutores em sua historicidade. Em Tapauá foram encontrados muitos personagens que reforçam a complexidade afirmada diante dessas dimensões históricas, que atropelam pressuposições complexidade,

generalizantes. podem-se

No

apontar

entanto,

mesmo

características

que

diante

de

tal

atravessam

as

trajetórias da maioria dos sujeitos não índios e índios, como as memórias de

suas

experiências

migratórias

e

de

seus

antepassados,

os

estranhamentos no contato com “outros”, onde figuram os desafios da alteridade e da sedimentação do mundo do trabalho amazônico. Esses são índices analíticos importantíssimos, na medida em que entram em questão as várias dimensões da territorialidade e suas mudanças no tempo, assim como as novas configurações das trocas culturais, com a chegada dos migrantes ante a presença dos povos indígenas (e destes com outros indígenas). Ao analisar esse quadro historicamente, deve-se levar em conta os dois lados desse cenário (seriam somente dois lados?), em sua pluralidade, atentando as mudanças e permanências estabelecidas desde o século XIX, período no qual se estabeleceu uma massificação das explorações do Purus. Portanto, é salutar enxergar as experiências relatadas e demais informações em sintonia com a atribuição de sentidos emprestada pela historicidade do processo de contato,

evitando

o

risco

de

um

danoso

isolamento

temporal

ou

33

presentismo. A memória, apesar de configurar-se como uma seleção de lembranças feita no presente, é embebida de vivências passadas que sempre remetem há outros tempos. Afinal, considera-se que o presente e o passado sempre andam de mãos dadas, mesmo que, por vezes, essa relação seja um tanto atribulada.

Canutama

Figura 3 – Cidade de Canutama. Foto: Alexandre Isidio.

A cidade de Canutama está situada numa área de várzea, apenas com pequenos pontos de terra firme. No século XIX foi um importante entreposto de exploração do Purus, base para incursões que buscavam gêneros na floresta. Foi local de “pouso” no percurso das incursões de Manoel Urbano da Encarnação, homem que tinha fortes ligações com o Estado à época da Província do Amazonas, como informante, prático de embarcações e Diretor de índios. Invariavelmente, a história de Canutama vem se confundindo com os processos de expansão da economia extrativa, destacando-se suas feições eminentemente econômicas, jungidas aos “feitos” dos homens de Estado. Temos uma proposta diferente. Cremos que é possível enxergar outros sujeitos, outras experiências históricas, outras culturas e modos de vida. Isto, sem excluir a produção historiográfica já estabelecida, ou melhor, usando-a como “janela” para contemplar novos vieses, outras versões do

34

processo. Assim também podem ser entendidas as fontes de natureza oficial, que apesar de sinalizarem para aspectos a primeira vista somente ligados ao nível do Estado, deixam entrever em suas linhas outros sujeitos, que muitas vezes não tiveram suas experiências registradas diretamente. Foram com essa intenção metodológica que se buscou os arquivos do Purus (não só os de Canutama), de modo a arriscar uma escrita em sintonia com demandas esgueiradas dos que não tem seus nomes registrados nos anais da História. Busca-se, portanto, os migrantes, os indígenas, os regatões, as rusgas cotidianas, os conflitos, os acordos, os espaços de entendimento e outras dimensões do político. Foi com esses indicativos que os arquivos e as falas dos entrevistados foram analisados. Chegando a Canutama, logo nos primeiros passos da pesquisa, tornouse perceptível que a cidade guardava mais fontes documentais (oficiais) do que Tapauá. Nas primeiras investidas descobrimos o Arquivo Municipal, sediado no prédio da Prefeitura, onde existe um volume bastante significativo de documentos. Foram listados documentos da Intendência e da Prefeitura (de anos diversos a partir de 1906), ofícios, circulares, folhas de pagamento, atas, receitas do município, impostos municipais e alvarás, regulamentos para o serviço público e registros de impostos, com periodicidades diversas, de maneira geral situada entre a partir final do século XIX adentrando no século XX. Esses fragmentos do passado têm sua produção

ligada

aos

governamentais,

que,

desígnios ao

do

contrário

poder, do

do

que

Estado, se

dos

poderia

olhares

considerar

apressadamente, não falam somente do palco decisório. Por exemplo, no ano de 1911, na mensagem dirigida à Intendência Municipal

de

Canutama,

existe

a

oficialização

de

uma

reclamação

relacionada aos locais de moradia da maior parte da população da cidade, feita pelo então Superintendente Coronel Theodoro dos Reis Botinelly. De acordo com o Coronel Botinelly, os munícipes não estavam a par dos interesses das leis, construindo suas casas em áreas não permitidas, como as áreas de várzea. Portanto, era urgente a definição de meios para equacionar o problema diante dos “abusos” da população, pois todos deveriam habitar a área de terra firme como rezava os desígnios legais.

35

Um ponto Srs. Intendentes que reclama a atenção dos poderes competentes e que já é tempo de tratar-se delle, é o cumprimento da lei n. 22 de 10 de outubro de 1891 que creou o Município de Canutama. Diz essa lei que a sede da Villa é na terra firme e que na várzea apenas haverão armazéns e o porto de embarque e desembarque. Ora, por um abuso, a população tem-se concentrado toda na várzea, deixando a terra firme em quase completo abandono. É do cumprimento da minha administração o convergir as minhas vistas para a terra firme, empregando todos os meios e esforços para que aquella lei seja cumprida. 10

Percebe-se diante da fala oficial um posicionamento contrário aos habitantes da cidade, que insistiam no “abuso” de construíam suas habitações nas áreas de várzeas. Acompanhando a tessitura da fonte, é importante destacar que no contexto da virada do século XIX e início do século XX havia uma preocupação generalizada dos poderes públicos com o ordenamento

urbano,

que

consistia

também

numa

tentativa

de

ordenamento social, desdobrando-se, desse modo, não somente nas ruas, mas também nos hábitos e na vida dos cidadãos. Havia uma tentativa de “reformar” os costumes, incutir hábitos burgueses, impondo padrões de sociabilidade trazidos do Velho Mundo. Ora, as moradias da várzea, com habitações cobertas de palha, distantes dos padrões de arruamento ou higienização, apresentavam-se inadequadas diante do modelo almejado pelo Superintende. Além disso, a terra firme, situada a uma distancia significativa das margens do Purus, talvez tornasse a presença desses habitantes “menos” incômoda, distantes dos olhares de quem contemplasse Canutama de sua orla, onde somente deveriam ser avistados somente armazéns e o porto.

10

Arquivo Municipal de Canutama. Livro de Registros de Decretos, Mensagens e

Resoluções da Superintendência (1909 – 1917) - Mensagem apresentada a Intendência Municipal de Canutama, em sua primeira reunião de 1911 pelo Superintendente Coronel Theodoro dos Reis Botinelly.

36

O

almejado

deslocamento

dos

habitantes

para

a

terra

firma

certamente não era desejável para muitos dos moradores da várzea, que muitas vezes, como até hoje acontece, retiravam seus sustentos desses locais, sintonizados ao regime de cheias e vazantes do Purus, pescando e plantando seus roçados. Esse cenário traduz uma atmosfera de tensão, que seguramente não era uma novidade no ano de 1911. Os hábitos herdados das populações indígenas, como as construções erigidas na várzea (como era de costume dos Paumari), ou mesmo o material utilizado na edificação das casas (principalmente dos mais pobres), que eram cobertas de palha, não entravam em acordo com os valores da administração pública de Canutama (e também da maioria dos Municípios). Ainda tratando do mesmo conjunto de fontes, mas com referência ao ano de 1904, é possível analisar atraves da mensagem do Superintendente Raymundo Carlos de Moraes, intenções bastante semelhantes às traçados pelo Coronel Botinelly em 1911. Dirigindo-se à Intendência Municipal, no que diz respeito ao item “Construções”, existe a intenção de proibir a construção de casas de palha na área da várzea, anuindo tais edificações somente na área de terra firme. Construções A lei d’esta Intendência de 1⁰ de novembro de 1904 prohibe a edificação e reedificação na rua da Instalação e na av. Botinelly, que não recebão cobertura com telhas de barro. Acho que essa lei deve ser ampliada e que a prohibição deve ser mais lacta (sic). Não se devem consentir mais construções de palha e pacheuba a não ser na terra firme. (...) Será mesmo conveniente marcar-se um prazo para que os proprietários de cazas na quellas (sic) condicções existentes na várzea as reformem ou mudem-se para terra firme. 11

11

Arquivo Municipal de Canutama. Livro de Registros de Decretos, Mensagens e

Resoluções da Superintendência (1909 – 1917) - Mensagem apresentada a Intendência Municipal de Canutama, em sua primeira reunião de 1909 pelo Superintendente Raymundo Carlos de Moraes.

37

Fica claro que existia um posicionamento contrário às edificações na área de várzea. Além disso, outro aspecto de destaque trata da orientação das construções das habitações, que não deveriam receber cobertura de palha, e sim de telhas de barro. Esse posicionamento atingia diretamente os que não tinham meio econômicos para adquirir telhas de barro, objeto de distinção,

e

que

simbolizava

um

modo

de

vida

ligado

a

padrões

arquitetônicos alheios a população local. A palha que era o material de uso costumeiro na cobertura dos tapiris, das casas de farinha, das habitações da maioria dos habitantes, não se afinava com o ideal de cidade que o Superintendente Raymundo Carlos de Moraes almejava. Observando o contexto desses arrazoados, é possível enxergar também uma preocupação com a transitoriedade das habitações de palha, que figuravam distantes de um padrão sedentário rígido, posto que seus moradores deslocavam-se paulatinamente construindo novas casas (em semelhança a muitos povos indígenas), dificultando o “papel” do Estado de fiscalização e cobrança de impostos. Apesar de não terem sido encontradas entre as fontes informações sobre a composição étnica da população de Canutama de 1911, não seria inócuo apontar a possibilidade da presença de indígenas nesse contingente de moradores atingidos pelas ordenações legais. Assim, é interessante analisar as ações do Superintendente em cruzamento com o plano maior das ações do Estado, que em sintonia com o avanço das frentes pioneiras pelo Purus desde meados do século XIX atingia de modo significativo o modo de vida das populações indígenas. Portanto, no plano urbano (assim como no plano das atividades rurais)12 havia um interesse em reformar os costumes, tentando disseminar um ideal de cidadão, que seria cumpridor de seus deveres, disciplinado, pagador de seus impostos. Esse plano ideal, seguramente, não era entendido, nem obedecido por todos. Diante dessa problemática, ainda tratando dos desígnios “legais”, foi encontrada no percurso da pesquisa uma tabela contendo informações

12

Contudo, com outras configurações, já que a presença do Estado era mais fluída nas

atividades empreendidas na floresta. Ou melhor, as relações de poder tinham mais peso diante dos mandos dos “senhores” donos dos locais de exploração.

38

sobre as cobranças de impostos para o ano de 1927, que pode ser verificado no livro de atas da Intendência Municipal de Canutama. Em tal documento estão contidas ainda algumas discussões sobre a composição urbana da época, nomeações de cargos, exonerações, definições do funcionamento do mercado público, folhas de pagamento, entre outros índices, que podem trazer a lume muitos e interessantes fragmentos do passado da cidade. No que tange a cobrança dos impostos, chama atenção a

variedade

de

tipos

de

taxação,

que

além

de

incidirem

nos

empreendimentos comerciais, como botequins, também tributam, por exemplo, pessoas empregadas na quebra de castanha, além de outras atividades. O documento foi elaborado na segunda reunião ordinária da legislatura do Presidente da Intendência Monteiro Pantoja, em 31 de outubro de 1927. Tabela 1 - Livro de Actas. Arquivo Municipal de Canutama. Livro de actas das sessões da Intendência Municipal de Canutama.

Segunda Reunião Ordinária da

Legislatura – Presidente Monteiro Pantoja, 31 de outubro de 1927.*

Registros Alvará de licença para casa comercial que, Tributo no

Município

vender

todos

os

gêneros

excepto bebidas alcoólicas, fumos, cigarros e tabaco, que tem sua tributação especial; Alvará

de

licença

para

vender

Primeira Classe

150$000

Segunda Classe

100$000

Terceira Classe

80$000

bebidas Tributo

100$000

Tributo

100$000

alcoólicas, fumos, cigarros e tabaco; Advogado diplomado;

Advogado não diplomado, por cada causa Tributo

50$000

que patrocinar; Botequim;

Tributo

100$000

Barbeiro e Cabeleireiro;

Tributo

30$000

Bilhar;

Tributo

10$000

Carpintaria;

Tributo

30$000

Dentista com consultório;

Tributo

100$000

Dentista sem consultório;

Tributo

50$000

39

Estaleiro de construção de embarcação de Tributo

80$000

madeira; Engenho de tracção animal ou a motor Tributo

200$000

fabricando cachaça e assucar (sic); Engenho

a

vapor

fabricando

cachaça

e Tributo

300$000

assucar; Joalheiro fixo ou ambulante; Licenças

para

jogos

lícitos

em

Tributo

50$000

festas Tributo

10$000

públicas; Licença para ter cão solto ou que transite Tributo

2$000

nas ruas da Villa; Marchante – talhador de gado vacum;

Tributo

50$000

Marchante – talhador de gado suíno, lavigno Tributo

20$000

(sic) ou caprino. Marceneiro com oficina

Tributo

Negociante ou comerciante que no Município Tributo

20$000 300$000

vender mercadorias em vapor ou lancha Ourives com officina

Tributo

50$000

Officina outra de qualquer arte

Tributo

20$000

Padaria

Tributo

30$000

Pessoa empregada na quebra de castanha

Tributo

20$000

Quitanda

Tributo

10$000

Em vapor

800$000

Em lancha

400$000

Regatão no Município

Tributo

Em lancha indo ao território 250$000 do Acre Em batelão

400$000

Em canoa

150$000

Obs. A palavra tributo figura como um grifo meu.

No conjunto do documento ainda constam as tabelas B, referente às taxações voltadas aos portos de lenha; C, referente aos tributos sobre o gado de corte e leiteiro e sobre o aluguel de animais; D, atinente aos

40

impostos do cemitério público; E, concernente aos valores cobrados para a aquisição de licenças para construção ou demolição de muros, averbações e transferências de terras; F, relativo a cobranças de “décimas” e foros urbanos e taxação sobre os preços de alugueis e G, atinente aos emolumentos da intendência municipal (cobranças por petições, certidões, averbações, etc). Uma mostra da variedade das cobranças feitas pela prefeitura, que tentava regular a vida urbana e seus mecanismos de funcionamento. Além da enumeração dos impostos, existe em anexo à fonte uma série de

observações

sobre

interdições,

portarias

sobre

os

horários

de

funcionamento dos estabelecimentos e observações sobre a regularidade de construções, produtos e serviços. Pode-se inferir, nesse sentido, que existia uma tentativa concreta de controle e disciplinarização de um largo conjunto de relações sociais estabelecidas no espaço urbano, composto atraves das taxações e ordenações estipuladas para as mais diversas atividades. Desta feita, a prefeitura de Canutama no final dos anos 1920 queria ter o controle e enviar suas cobranças de impostos para todos os citadinos, desde os donos de botequins e barbearias, passando pelos profissionais liberais, como dentistas e advogados, até os proprietários de cachorros vadios, pois todos deveriam obedecer às regras e contribuir com o erário público. Um aspecto interessante a ser observado, indo além da leitura das taxações acima esboçadas, consiste num exame dos diversos ramos de trabalho e sistemas produtivos, pois é possível entrever uma significativa variedade de atividades empreendidas pela população (ou pelo menos ter uma ideia das suas possibilidades). Canutama, olhando por esse lado, aparece como um cenário urbano com atividades e serviços bastante variados, com engenhos a vapor e a tração animal que fabricavam açúcar e cachaça,

estaleiros

para

construção

de

embarcações

de

madeira,

marchantes responsáveis pelo corte de distribuição de carne, coletores de castanha, além de quitandas, padarias, marcenarias, e até oficinas de ourivesaria. A variedade de serviços pode denotar a força dos fluxos econômicos da época, que por sua vez permitem vislumbrar algumas das características de uma sociedade de consumo monetarizada, que detinha ou mesmo buscava acompanhar os valores traçados no plano das grandes

41

aglomerações urbanas. Embora estejamos analisando a cidade no contexto de 1927, não seria inócuo inferir que tais facetas seja ainda eco do período áureo da borracha, quando o Purus, até a década de 1910, fora o maior produtor da bacia amazônica. Entretanto, nos idos da legislatura do Presidente Monteiro Pantoja não havia seguramente mais a força econômica de décadas anteriores, mas é importante não deixar de apontar certa efervescência

em

Canutama,

principalmente

no

que

diz

respeito

à

pluralidade do seu contexto urbano e de suas atividades econômicas. Por outro lado, tudo leva a crer que diante desse cenário multifacetado da economia alguns sujeitos eram empurrados para as “margens” do social, tendo suas casas de palha, seus hábitos locais de moradia, e certamente também suas atividades produtivas afetadas, comprometidas perante as novas demandas de impostos e demais regulações públicas. Pode-se considerar que o lócus do urbano trazia também desafios para muitos dos habitantes do Purus no início do século XX, desdobrando-se em desacordos e conflitos, em intervenções diretas nas mais diversas esferas do cotidiano. Os desdobramentos das frentes pioneiras incidiam diretamente nesse cenário. As cidades passavam a serem bases para as explorações, entrepostos

para

os

produtos

destinados

ao

comercio,

recebendo

rotineiramente fluxos de mercadorias e pessoas envolvidas na labuta. Esses movimentos ajudavam a compor muitos dos desafios de alteridade, firmados através dos encontros entre modos de vida diversos. A própria noção de urbanidade, definida através de códigos de conduta, cobrança de impostos e demais regras, deve ser posicionada diante desse quadro conflituoso da alteridade, pois havia intenções impositivas de intervenção na vivência dos outros, tentativas de adequação, entre outras medidas. Apesar de todos seus mecanismos de “controle”, nos idos dos anos 1920 ainda eram relativamente novas as experiências urbanas no rio, que somente foram ganhando fôlego no final do século XIX, quando já figuravam as cidades de Lábrea e Canutama, que mesmo recém-nascidas já contribuíam com o devassamento das matas, assistiam a chegada de migrantes, colaboravam como bases para abertura de novas fontes de exploração, participavam comercialmente do deslocamento de mercadorias e gêneros extrativos, etc. No entanto, apesar de todo esse aparato, é certo

42

que as cidades do Purus não eram centros aglutinadores de um significativo contingente populacional, e nem dos sistemas produtivos, se comparadas ao mundo rural (se é que havia uma fronteira bem definida entre o rural e o urbano). A maior parte dos habitantes continuava vivendo na floresta, ou melhor, nas localidades espalhadas pelas margens do rio que sediavam pontos de exploração. Essa dimensão, apesar de conter uma configuração diferente

da

urbana,

também

gerava

uma

série

de

problemáticas,

assentadas no avanço do sistema de aviamento e na entrada de muitos adventícios, trabalhadores que passavam a lidar com o sistema de aviamento e os demais códigos de sobrevivência das matas. Porém, esses homens e mulheres migrantes não eram os únicos que vivenciavam tal processo, posto que ao seu lado estivessemoutros que conheciam de maneira muito mais detida os rios e a floresta, mas que também eram afetados pelas empreitadas do extrativismo. Os povos indígenas dividiam com os migrantes, experiências nos mundos do trabalho na floresta, e desse interrelacionamento eram tecidas redes de sociabilidade, evidenciando tanto conflitos, quanto ocasiões de entendimento. A feição desses contatos foi sendo erigida através das dinâmicas do avanço do regime de trabalho extrativista, firmado em consonância com as relações do sistema de aviamento. É interessante notar que as várias facetas dessas relações ajudaram a atribuir sentidos aos papeis dos sujeitos da história do Purus. Como podem ser analisado atraves das memórias do Srs. Moacir e Sebastião (o primeiro morador de Tapauá e o segundo residente em Canutama), ambos indígenas da etnia Banawá com mais de 60 anos. Filhos de mãe cearense e pai indígena, eles vivenciaram os contornos da alteridade, guardando ricos relatos sobre suas trajetórias. De início é importante salientar um ponto de intercessão de memórias entre os irmãos, pois ambos narraram os percursos da mãe, Dona Diva, filha do “patrão” que aviava a família do avô índio dos Srs. Moacir e Sebastião. Segundo o relato, havia uma relação de aviamento firmada entre os índios e um patrão, na região do Piranhã, rio pertencente à bacia do Tapauá (que por sua vez é afluente do Purus). A família cearense tinha certa proximidade com os indígenas, empreendendo trocas de produtos

43

extrativos, como castanha, sorva, copaíba, por aviamentos, como café, açúcar, farinha e instrumentos de trabalho. A relação, segundo os interlocutores, acontecia sem grandes atribulações, inclusive porque a avó “branca” dos Banawá, esposa do patrão, que era conhecida como índia “Ceará” tinha uma proximidade ainda maior com os indígenas, pois dominava o idioma, costurava, cozinhava e trocava amabilidades com os habitantes da floresta. A Sra “Ceará” vivia com o marido e suas duas filhas pequenas, Iva e Diva, na sede das explorações, próximo ao armazém onde eram guardados os gêneros do aviamento. A mistura entre esses mundos, que em princípio parecia harmônica, entrou em choque de forma decisiva quando dois indígenas insatisfeitos com suas recompensas de trabalho, e desafiando a autoridade do Cacique (que não pregava, segundo os Srs. Moacir e Sebastião, o conflito com os patrões), atacaram a residência dos exploradores. A “Ceará” estava sozinha com suas duas filhas e foi morta na incursão, e as crianças foram levadas juntamente com o material pilhado do armazém pelos indígenas. No caminho de volta, uma das meninas, Iva, a mais nova, começou a chorar copiosamente e a relutar em continuar a jornada de fuga. Então, enquanto um dos índios foi procurar uma fonte de água para matar a sede do grupo, o

outro

“arpoou”

Iva,

matando-a,

sendo

resolutamente

reprovado

posteriormente pelo seu companheiro de viagem, que não permitiu que ele fizesse o mesmo com outra menina, Diva. Ao chegar à maloca, houve uma séria consternação ante do ocorrido, tendo em vista tanto a quebra das regras estipuladas pela liderança, quanto diante do temor das represálias que certamente ocorreriam em virtude da morte da esposa e da filha do patrão. Assim, ao tomar conhecimento do cenário de conflito que se avizinhava o Cacique não deu guarida aos salteadores, pelo contrário, puniu os dois indígenas com a morte. Mas, temendo maiores perigos, resolveu deslocar-se juntamente com todos os membros da comunidade para refugiar-se de possíveis conflitos, levando consigo Diva, a filha do antigo patrão. A comunidade indígena, após incorrer na fuga, situou-se próximo ao Igarapé

Banawá, a uma distância considerada segura de

possíveis

expedições em retaliação ao grupo. Nesse local Diva cresceu e constituiu

44

família, casando-se com um indígena, e dessa união nasceram Moacir e Sebastião. Diva, que faleceu no início dos anos 2000, permaneceu por toda vida com o grupo, educando seus filhos na cultura indígena, mas sem esquecer do mundo “branco”, nem obliterar sua trajetória, que foi passada oralmente para seus familiares. Várias versões desse relato são contadas por outros habitantes de Canutama, passando de geração para geração, inclusive por outros familiares de Diva, como sua neta Ana Banawá (filha do Sr. Sebastião), liderança indígena que vive na cidade. Percebem-se, diante dessas memórias, algumas das dimensões das experiências de contato, que envolvia um rol de relações multifacetado. Desde o século XIX, quando foi iniciada de modo mais incisivo a exploração econômica

na

bacia

do

Purus,

esse

cenário

foi

se

desenhando,

acrescentando outros atores e novas interações sociais. Não é possível, diante do exposto, pensar esses papeis e ocasiões de maneira estanque e rígida, principalmente quando levamos em conta os relatos dos Srs. Moacir e Sebastião, que tratam de memórias de conflitos, mas também de relações de proximidade, de situações de entendimento. Tais aspectos foram vislumbrados pelos interlocutores como fundamentais na seleção de suas lembranças, que também fazem parte de um processo de afirmação de identidade, tecida através de suas experiências. Certamente esses são apenas pequenos indícios da complexidade das relações dos habitantes do Purus em sua historicidade. Todavia, diante desses arrazoados alguns “varadouros” podem ser abertos nos debates sobre a temática em questão (a do contato) que muitas vezes é tratada a partir de uma ótica demasiadamente rígida, colocando, de modo compartimentado, indígenas de um lado, e os demais sujeitos, de outro. Nos mundos do trabalho do rio Purus, em suas florestas e cidades, em seus locais de exploração nas matas, barracões, armazéns e seringais, havia além de povos indígenas, muitas outras pessoas, que se deslocavam e que interagiam entre si (como pode ser verificado numa pesquisa

45

realizada13 em outras fontes que foram cruzadas às informações aqui trabalhadas). Por isso, essas categorias de sujeitos, mesmo sendo heterogêneas, não podem ser entendidas de modo separado. Esses atores ao longo do tempo dividiram/disputaram os mesmos espaços, muitas vezes entrando

em conflito, mas

também compartilhando

experiências de

trabalho, contraindo matrimônio, tecendo relações de parentesco, em suma, elaborando sociabilidades que passavam a permear seus modos de vida. Essas facetas são pouco exploradas, e se tornam inviáveis para a pesquisa se pensadas de modo estanque. É preciso entendê-las também em suas sincronias e diacronias, em seus intercruzamentos, situando o papel das pessoas que viveram o processo na pele, buscando entender suas experiências historicamente.

Lábrea A última cidade que a Expedição Purus visitou foi Lábrea, atualmente o município com a maior população do Purus. Sua história, semelhante às demais

urbes,

foi

atravessada

em

seus

alvores

por

incursões

de

exploradores da economia gumífera e por membros de expedições de reconhecimento encabeçadas pelo Estado e por viajantes estrangeiros. Os registros dessas viagens conformam a maior parte do que foi escrito até hoje sobre Lábrea. Nomes como o do Coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre (tido como fundador da cidade), assim como o de Coronel Luis da Silva Gomes (conhecido como Rei do Ituxi, por ter estalebecido nesse rio uma grande exploração) e o do Padre Francisco Leite Barbosa (primeiro sacerdote a se estabelecer na cidade), são os mais citados nas narrativas sobre o passado da localidade. Vê-se, portanto, que a documentação que trata da cidade, vide os nomes e posições dos sujeitos arrolados acima, têm sido orientada através

13

Essa reflexão faz parte do conjunto de problemas da minha pesquisa pessoal que está em

andamento, cujo projeto tem como título: Nos meandros da história do rio Purus: mundos do trabalho, migrações e fronteiras (1852-1877).

46

de grandes “vultos”, sobremaneira relacionadas a pessoas ligadas ao poder. Estes personagens são importantes para o entendimento da configuração dos acontecimentos, mas não deveriam figurar solitários. Esse quadro deve ser repensado. Existem muitos relatos sobre a opulência de Lábrea na época do surto gumífero, que falam em grandes fortunas, da construção da suntuosa Igreja matriz, cuja cúpula de metal fora importada de Hamburgo, entre outros empreendimentos. Mas, diante desses detalhes algumas questões ficam sem respostas, aliás, muitas problemáticas são emudecidas, juntamente com os outros sujeitos anônimos que participaram de um modo ou de outro em todos esses episódios. Urge, nesse sentido, repetir alguns dos questionamentos levantados por Berthold Brecht em suas “Perguntas de um trabalhador que lê”: Quem construiu Tebas, a cidade das sete portas? Nos livros estão nomes de reis; os reis carregaram pedras? E Babilônia, tantas vezes destruída, quem a reconstruía sempre? Em que casas da dourada Lima viviam aqueles que a edificaram? No dia em que a Muralha da China ficou pronta, para onde foram os pedreiros?A grande Roma está cheia de arcos-do-triunfo: quem os erigiu? Quem eram aqueles que foram vencidos pelos césares? Bizâncio, tão famosa, tinha somente palácios para seus moradores? Na legendária Atlântida, quando o mar a engoliu, os afogados continuaram a dar ordens a seus escravos. O jovem Alexandre conquistou a Índia. Sozinho? César ocupou a Gália. Não estava com ele nem mesmo um cozinheiro? Felipe da Espanha chorou quando sua frota naufragou. Foi o único a chorar?Frederico Segundo venceu a guerra dos sete anos. Quem partilhou da vitória?A cada página uma vitória. Quem preparava os banquetes comemorativos? A cada dez anos um grande homem. Quem pagava as despesas? Tantas informações.Tantas questões. 14

14

Disponível em http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1568771. Ultimo acesso:

15/05/2012

47

Brecht chama atenção para algumas pessoas para quem não são dirigidas loas, para os que não produziram material escrito sobre suas experiências (mas, que também viveram e fizeram sua história). As perguntas elencadas pelo teatrólogo e dramaturgo alemão são dirigidas aos historiadores, de modo a provocá-los a atravessar os discursos do poder, a examiná-los de modo mais detido, burlando e evitando as danosas homogeneizações de uma escrita permeada por heróis e acontecimentos monocausais. Tal desafio toma forma a partir da leitura das fontes, principalmente da documentação dita “primária”, em cuja superfície podem aparecer imagens inteiriças, como um “reflexo” diante do espelho, como se o passado fosse auto-evidente, uma imagem fiel. Resta ao historiador, diante das provocações de Brecht, quebrar esses espelhos, estilhaçá-los, de modo a desmontar a fonte, e contemplá-la em suas especificidades, juntando

cada

pedaço

quebrado,

mas

sem

incorrer

na

pretensão

inalcançável de reabilitar um passado tal como ocorreu. O reflexo, assim como o passado, não será mais o mesmo depois de estilhaçado o espelho, depois do exame de sua feição multifacetada. A riqueza desse exercício de quebra das fontes está na leitura de suas fissuras, no diálogo com os que não aparecem em sua superfície, que não figurariam numa imagem de um espelho inteiriço. Não é preciso para tanto descredibilizar por completo a produção historiográfica que se ocupou em citar apenas nomes e datas de modo linear, reproduzindo as tessituras de um passado comprometido com a conservação das imagens do poder. Um caminho interessante é utilizar essas referências sem reproduzir seu conteúdo uniformizador e retilíneo, mas através desses, enxergar outros caminhos para a análise das fontes. Existe ainda a possibilidade de empreender reflexões através da memória, examinada através das falas do presente, que guardam referências muitas vezes inexistentes na documentação oficial escrita. Esses dois caminhos de análise podem caminhar de modo independente, mas são grandemente enriquecidos quando cruzados, quando o historiador os põe em diálogo, possibilitando contrapô-los, mostrando suas fissuras e suas junções. Em Lábrea, assim como nas outras cidades, houve uma tentativa de tornar esse cruzamento possível. Foram buscados interlocutores que

48

contassem suas experiências, como o Sr. Zé Catuquina de 70 anos, filho de pais indígenas, mas que fora “criado” por um cearense seringueiro, trabalhando na maior parte de sua vida seguindo a profissão do seu tutor, assim como Dona Brígida, de 88 anos, neta de sujeitos emigrados no final do século XIX que trabalharam, segundo seus relatos, para o Coronel Labre nos primeiros tempos de Lábrea, ou ainda Dona Maria Júlia de 99 anos, que viera do Ceará com 14 anos acompanhando a família, e que falou com lucidez sobre a composição da cidade nas primeiras décadas do século XX, tratando do seu cotidiano de trabalhadora ao lado do marido, coletando castanha, borracha, pescando, e cuidando da família. Suas vidas não estão pormenorizadas em relatos de fontes oficiais, seus nomes não figuram entre no rol dos “grandes” de Lábrea, mas isto não implica na anulação da possibilidade de suas memórias ajudarem a pensar a história do Purus. Além dos relatos orais ao chegar ao município também foram buscados locais de pesquisa “oficiais”, como a prefeitura, o cartório eleitoral, a casa do bispo e o cartório judicial. Foram vistas muitas fontes, porém, salvo as eclesiásticas, guardadas em péssimas condições, amontoadas e sem nenhuma

organização.

Esse

quadro

é

muito

preocupante,

pois

foi

encontrada uma extensa lista de tipologias (principalmente no cartório judicial), onde constam Inventários, documentos do Juizado de Órfãos, processos diversos, atas de reuniões, dentre outros fragmentos do passado completamente desordenados, a maior parte centrada entre as ultimas décadas do século XIX e as primeiras do XX. Esse é um recorte “clássico”, fortalecido pelo apelo que o surto da borracha, ocorrido nesses tempos, sempre teve entre a historiografia amazônica preocupada em narrar sua faustosa ilusão. Para Lábrea, contudo, ficou claro que certamente não devem existir fontes anteriores a essa temporalidade, até porque a produção documental foi iniciada somente com a elevação da Vila no final do século XIX. Um grupo muito interessante entre os documentos levantados foi o eclesiástico, onde constam entre livros de tombo e livros de batizamento, os relatos do Padre Francisco Leite Barbosa. O religioso chegou a Lábrea em 1878, tendo sido recém-ordenado no seminário da prainha situado em Fortaleza. Começou seu sacerdócio ainda jovem no Purus, ante um

49

território que estranhava, com seus rios e florestas e sua população disseminada pelos locais de exploração e malocas indígenas. No início do século XX, quando já era conhecido e possuía bastante prestígio na cidade e na Igreja (nesses tempos ele já detinha o título de Monsenhor), o padre escreveu o que chamou de “Resumo Histórico da Paróchia”, contando sua trajetória e seus enfrentamentos diários, arrolando informações sobre casamentos e batizados, além de listar os beneméritos que doavam recursos para a Igreja. Nesse testemunho, Francisco Leite confidencia que nos idos de 1878, tempos de sua chegada, “era então a Lábrea uma feitoria de seringueiros, e um dos mais atrazados logares do rio Purus, não tendo barracão, nem logar especial onde podesse celebrar o Santo Sacrifício da missa”. 15 Sua preocupação nesses primeiros tempos consistia em sedimentar um local para as celebrações religiosas, buscando angariar com as elites locais recursos para construir um templo. Além disso, esteve por muitas vezes singrando o rio Purus e seus afluentes buscando os seus “parochianos”, fazendo suas desobrigas, ou seja, indo aos mais recônditos locais ministrar sacramentos, como batismos e casamentos. Os números desses trabalhos foram também arrolados como anexo em sua súmula sobre a história de Lábrea, discriminando os sacramentos, as datas e o sexo de seus catecúmenos. É possível vislumbrar através dos números a significativa atuação de Francisco Leite pelo rio, com um crescimento das atividades com o avançar dos anos. O padre foi tecendo seus espaços de atuação relacionando-se com os chamados “coronéis”, como Luís da Silva Gomes, o maior contribuinte nas doações que propiciaram a construção da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré em Lábrea, disponibilizando uma quantia de mais de dezessete contos de réis (uma pequena fortuna para a época) como consta no mesmo relatório de cunho histórico. É possível inferir, nesse sentido, que as preocupações do religioso estavam estreitamente ligadas com os desígnios do poder local.

15

Casa do bispo de Lábrea. Livro de Tombo da Freguesia de Nossa Senhora de Nazareh

da Lábrea – 1902/1909.

50

Essa reflexão torna-se ainda mais plausível com a leitura dos números das desobrigas, que aparecem listados em linear ascensão, uma mostra do alcance das pregações do padre que alcançavam lugares cada vez mais distantes. Não por acaso, nessa mesma época, é possível também ver um avanço paulatino dos empreendimentos dos “grandes homens”, que levavam adiante as explorações pelo Purus através do regime de trabalho com base no sistema de aviamento (que no final do século XIX já alcançava pela calha do rio Acre). Portanto, o crescimento da atuação do religioso pode ser entendido em sua relação com avanço do extrativismo, que tinha na figura de Francisco Leite um evangelizador, não só no sentido católico, mas também na acepção dos interesses de homens como Luis da Silva Gomes.

Tabela 2 - Notas dos baptisados e casamentos effectuados na freguesia de Lábrea, Estado do Amazonas nos anos de 1878 a 1908.

CASAMENTOS BAPTISADOS Anno Sexo masculino Sexo feminino Legítimos Ilegítimos

Total

1878

58

67

63

62

125

45

1879

110

195

201

104

305

53

1880

162

239

290

111

401

68

1881

197

187

274

170

384

89

1882

215

190

280

125

405

103

1883

236

221

263

184

457

104

1884

251

270

365

156

521

99

1885

237

321

490

168

658

145

1886

243

239

360

122

482

152

1887

277

378

501

154

655

90

1888

378

353

434

297

731

119

1889

377

341

504

194

698

130

51

1890

420

509

639

290

929

160

1891

374

513

304

283

887

135

1892

425

407

674

158

832

165

1893

377

441

304

114

818

129

1894

413

290

596

110

706

154

1895

375

474

694

155

849

172

1896

317

391

593

115

798

103

1897

466

536

498

204

1002

242

1898

479

460

604

285

889

182

1899

331

331

544

108

662

71

1900

504

547

997

54

1051

158

1901

680

501

974

157

1131

199

1902

490

571

970

81

1051

211

1903

480

559

889

150

1039

142

1904

403

311

587

127

714

147

1905

840

532

934

438

1372

107

1906

428

352

408

372

780

258

1907

798

398

804

392

1196

177

1908

350

391

521

190

711

68

Total

11721

11428

17499

5650

23149

4117

Ao analisar os números dos 31 anos de atuação do padre no Purus listados acima, percebe-se que no primeiro decênio foram feitos uma média de aproximadamente 439 batizados por ano, nos dez anos subsequentes a média sobe para 825 batizados anuais, e nos dez anos restantes a média dos

sacramentos

aproximadamente

ainda 988

alcança,

pessoas

sem

por

contar

ano.

No

com que

ano diz

de

1908,

respeito

aos

casamentos o grau de crescimento também é significativo, pois nos primeiros dez anos chegam a uma média anual de 94 uniões, no decênio seguinte sobem para uma média de 150 matrimônios a cada 12 meses, e nos últimos anos (também sem contar 1908) alcançam uma média por ano

52

de 165 uniões aproximadamente. Outro aspecto que chama atenção que é a quantificação dos números de ilegítimos (pessoas nascidas a partir de uniões não endossadas pelos ritos católicos), que alcançam em detrimento dos esforços do padre, ao final das mais de três décadas de sacerdócio, um total de quase 25% dos sujeitos no total. Desses números pode-se pensar pelo menos dois aspectos da historicidade do período. O primeiro dialoga com a ordem crescente dos números de batizados e casamentos, tendo relação (além do avanço do poderio e influencia de Francisco Leite) com a escalada igualmente ascendente do fluxo migratório de trabalhadores que se dirigiam para o Purus em todos os anos listado acima. Já o segundo aspecto a ser considerado está relacionado à significativa quantidade de batismos de filhos ilegítimos, que seguramente também tem ligação com o contingente de migrantes, mais especificamente em seus contatos com a população indígena, que não eram somente eram vivenciados em ocasiões de conflito, ou nos sentidos formais do cotidiano de trabalho. A questão da migração, nesse sentido, estava na ordem do dia naqueles tempos, tendo inclusive o próprio padre, na ocasião em que estava empreendendo a construção do primeiro templo de Lábrea, ido pessoalmente ao Ceará arregimentar trabalhadores, de modo a empregálos como pedreiros na edificação da igreja. Esse tipo de ação era um dos vetores que vinha impulsionando as travessias rumo ao amazonas, pois muitos outros sujeitos, a exemplo do religioso, faziam esse tipo de percurso. Tal empresa era dirigida grandemente para o Ceará porque os contratadores de mão-de-obra em sua grande maioria também eram cearenses (como o próprio Francisco Leite e muitos outros exploradores e seringalistas), que acionavam redes de contato, semeando ideias de possíveis melhorias entre seus patrícios. Eram, no final das contas e para todos

os

efeitos,

também

agentes

da

cadeia

de

aviamento,

que

necessitavam de trabalhadores em quantidade suficiente para multiplicar seus dividendos. O pároco de Lábrea também teve seu papel nessa empreitada, embora não diretamente ligado à empresa aviadora, como ele mesmo esboça em seu relato histórico sobre a cidade escrito no início século XX.

53

Em 1880, com o producto das esmolas e mais uma verba de quatro contos de réis, votada por lei provincial, fui ao Ceará d’onde trouxe vinte famílias, ao todo oitenta pessoas, entre os quaes os operários necessários para os trabalhos da matriz. (...) Ao pessoal trazido por mim do Ceará dei collocação e trabalho mandando fazer grandes derrubadas no perímetro da freguesia, que ainda estava coberta por matta virgem, montando olarias, oficinas de carpintaria e dando começo aos trabalhos da matriz, que com o auxílio de mais dezesseis contos de réis, dados pelo governo provincial e esmolas arrecadadas, foi concluída e inaugurada em 1882. 16

Esses “operários”, como se vê, tiveram um papel decisivo na constituição dos primeiros rastros da composição urbana de Lábrea, conformando uma parcela considerável da ainda pequena população da cidade. Contudo, apesar de figurarem como um contingente significativo, os migrantes não eram os únicos a habitarem a cidade, que também tinha outros sujeitos em sua composição populacional. Ao chegarem ao território amazônico os adventícios passaram a dividir espaço com os outros habitantes do Purus, em sua maioria povos indígenas, que não estavam no rol dos trabalhadores desejados por Francisco Leite (vide sua ação de busca de migrantes no Ceará). Esse encontro (que também pode ser entendido como desencontro) tinha variados desencadeamentos, sendo um deles provavelmente refletido na incidência significativa de filhos “ilegítimos”, como pode ser observado na tabela das desobrigas do padre, onde alcança 25% do total. Os rebentos dessas uniões eram batizados e descritos nos livros de registros na maioria das vezes apenas com o nome da mãe, constando um primeiro nome em língua portuguesa e um segundo alusivo a “tribo”, como pode ser lido nos registros dos livros de “batisamento” do padre17 (que também foram arrolados no percurso da expedição). Apesar de ministrar o

16

Idem

17

Esse tipo de prática remonta aos artifícios da catequese jesuítica levada a cabo por vários

séculos no período colonial.

54

sacramento também aos “ilegítimos”, é patente o tom de reprovação utilizado pelo religioso ao descrever as referidas práticas, que são relacionadas com muito mais ênfase aos costumes indígenas. Ao fazer alusão aos índios que viviam na floresta, principalmente aos que relutavam em aceitar a fé católica, Francisco Leite é bastante taxativo em relacioná-los a um ideário de barbárie e vadiagem. Para ele urgia uma ação mais firme de catequese dos indígenas, que poderia facilitar o trabalho de cristianização e defesa dos “maus” costumes. Essas intenções podem ser analisadas também a partir do relato de cunho histórico que o padre deixou registrado: Existem n’esse rio e em muitos de seus affluentes muitos índios rudes e pagãos, que precisão dos recursos da religião os quaes só poderão chegar até eles por intermédio de missionários, que os chamem e os aggremiem, afim de catechisal-os e instruil-os nos sãos princípios da fé christã. Em 1888 foi estabelecida uma missão no rio Ituxy, affluente do rio Purus, pertencente a esta paróchia, por Frei Jesualdo Macheti, superior dos franciscanos menores residentes naquela epocha em Manáos e dirigida por Frei Matheus, porém os resultados foram improfícuos por falta de recursos necessários a sua manutenção. 18

O trabalho de evangelização dos indígenas tinha um duplo objetivo. O primeiro vinculado a tarefa de arrebanhar almas para a fé cristã, e os segundo, que pode ser entendido como uma extensão do primeiro, de torná-los aptos a singrarem as águas da celebrada civilização e seus costumes. Era preciso, para tanto, fortalecer o trabalho de catequese, ao passo que os frutos dessa ação seriam colhidos à medida que os indígenas deixassem ou mesmo relegassem a um segundo plano seus referenciais culturais. Desta feita, seria mais simples torná-los aptos a um regime de trabalho em bases disciplinadas, congregando códigos e mensagens do mundo capitalista. Tendo em vista todos esses aspectos, não torna-se possível enxergar a relação de Francisco Leite com os “coronéis” através de

18

Idem

55

uma ótica de isenção de interesses. Tudo leva a crer que havia uma relação de proximidade e cumplicidade entre ambos. Entretanto, para o desapontamento geral, nem tudo saia como o planejado. Os indígenas não correspondiam às expectativas a contento. Havia muitos episódios de dissensões e conflitos, não só no Purus, mas em todo o território amazônico. Muitos não aceitando a condição servil diante do avanço sobre seus territórios e entraram em conflito com os objetivos gerais dos invasores, havendo muitas vezes luta direta, com grande número de mortos de ambos os lados da disputa. Nessas contendas muitos indígenas refugiavam-se em locais distantes dos seus originários, ganhando uma injusta alcunha de indolentes, que fugiam do trabalho. É possível afirmar que “os seringais invadiram as terras indígenas, e aos índios restou emigrar para o centro da mata ou vaguear de um lugar para outro. Esta nova situação fez com que fossem conhecidos como preguiçosos, malandros e mendigos, enfim, atrapalhando o progresso”. 19-20 Os

sentidos

desse

progresso

devem

ser

entendidos

em

seu

desencadeamento multiforme, distante da apregoada idéia de linearidade. Seu formato não deve ser entendido como generalizado e único, posto que seu significado, olhando para o passado, não servia para os “rudes e pagãos”. Sem esse entendimento, não é possível, através da analise das fontes, falar sobre aqueles que não entraram em sintonia com os adágios da mensagem progressista da dita civilização, como no caso dos povos indígenas, classificados por muitos como avessos aos seus valores. Contudo, empreender esse trabalho de observação das minúcias e sentidos do progresso não figura como uma tarefa fácil para o historiador. Por muito tempo houve a ideia, inclusive bastante arraigada entre os estudiosos das humanidades, que a historiografia acompanhava os sentidos da linearidade positiva da ideia de progresso, apagando de sua escrita, ou mesmo relegando a um plano secundário suas dissensões. Mas, ao contrário dessas prerrogativas, atualmente muitos historiadores tentam escrever uma

19

KROEMER, Gunter. Cuxiuara: O Purus dos indígenas - ensaio étnico-histórico e

etnográfico sobre os índios do médio Purus. São Paulo: Edições Loyola, 1985.p. 89. 20

CARDOSO, ibid. p. 119-120

56

historia a contrapelo, seguindo os arrazoados de Walter Benjamin, buscando os sentidos contrários, as características consideradas incomuns ou desviantes. Os significados do passado entendidos através dessa ótica também podem ser analisados através de uma reflexão de Benjamin sobre a pintura Ângelus Novus de Paul Klee, que retrata um anjo de olhos arregalados e asas abertas, vislumbrando algo, que seria o passado e sua fluidez irreparável. É diante desse quadro que tentamos escrever Historia. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido

para

o

acontecimentos,

passado. ele



Onde

uma

nós

vemos

catástrofe

uma

única,

cadeia

que

de

acumula

incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.21

CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente relatório não foi escrito como um relato uniforme. Ele foi tecido na tentativa de traduzir as experiências dissonantes da pesquisa. Aqui foram esboçados muitos indicativos de reflexão sem nenhuma pretensão conclusiva sobre os temas abordados. Na verdade, diante da grande quantidade de fontes coletadas na Expedição Purus, trata-se somente de um vôo rasante sobre a documentação e os relatos, uma piscadela fugidia. Ainda há muito trabalho a ser feito, principalmente no que diz respeito à inventariação e sumarização da documentação coletada. Uma empreitada necessária para facilitar o recurso à pesquisa, possibilitando um entendimento mais pormenorizado das fontes.

21

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de Historia: ensaios sobre literatura e

história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1994.

57

Na medida do possível a escrita desse relatório tentou parecer inteligível, mas hora ou outra, devido ao gosto por um antiacademicismo narrativo do seu autor, certamente houve desvios dos caminhos da norma (que não considero tão culta assim). Foram ensaiadas questões sobre historiografia e teoria da história, acopladas a análise das fontes e das vivências de pesquisa empreendida no campo. Tentou-se captar através desse exercício centelhas de vida, como muito bem aconselhou um dos maiores, Marc Bloch, em busca de sentir e farejar carne humana em meio aos papeis empoeirados. Entendo que o tempo deixa suas marcas de maneira bem mais profundas do que o tom amarelado dos documentos velhos. Considero que ele está impresso nos gestos, nos gritos e na mudez, no que é belo e no que é feio, no que é considerado vivo e no que é decretado como morto. O passado é presente, ou melhor, está sendo presente, pelo menos desde que o tempo e a História se encontraram, num rendez-vous tão íntimo que muitos confundem um com o outro. Portanto, ao pensar a história do Purus no geral, e de Tapauá, Canutama e Lábrea, em particular, não estive numa posição distanciada, pois semelhante à relação entre passado e presente, me “encontrei” com esses lugares, participei de suas historicidades, e ao mesmo tentei entendêlos. Esse foi um primeiro exercício, um primário ensaio sobre a leitura das fontes e da experiência de campo, que merecem uma atenção muito maior do que a que foi dada neste relatório. É preciso ainda esmiuçar muitas questões, refletir sobre suas conexões. Tenho uma queda pelos estudos dos mundos do trabalho, e por isso talvez essa categoria tenha aparecido por vezes em demasia. Outro ponto que considero importante, mas que pelo vicio do olhar também pode ter aparecido de modo repetitivo, trata das dimensões do contato entre os sujeitos envolvidos nesses mundos, que no caso do Purus, eram compostos por uma cartela de cores grandemente heterogênea. Gostaria de ter avançado mais sobre as fronteiras, ou melhor, de ter colocado em questões de modo mais enfático o relacionamento entre História e Antropologia, pois nutro por esses terrenos especial predileção. Falta ainda neste relatório um diagnóstico mais “fechado” sobre as fontes, um arrolamento minucioso de

58

tudo que foi pesquisado. Esse trabalho está sendo feito, mas infelizmente não foi contemplado aqui. Tentei na medida do possível cruzar fontes orais e escritas, que em minha opinião enriquecem de maneira significativa a construção do texto, atribuindo uma complexidade maior a tessitura da narrativa histórica, principalmente quando se busca se fazer entender, fugindo dos vazios “teoréticos” e “enroléticos”. Gostaria de agradecer as conversas, as bagunças, a cumplicidade, a atenção, ao carinho, a amizade, as discordâncias, aos debates acalorados, as experiências compartilhas com todos os membros da Expedição Purus, Alba, Angélica, Admilton, Ingrid, Mario e Thayná. Sem eles e elas nada teria tido o mesmo gosto. Sem a turma da Expedição eu não teria pensado a maior parte das questões elencadas aqui. Mas, os equívocos e fragilidades, que seguramente fazem parte do corpo deste relatório, são de minha inteira responsabilidade. Por fim, mas sem nenhum somenos, agradeço ao Gilton pelo apoio, pelas palavras francas de entusiasmo, e por ter ajudado a levar adiante a ideia da Expedição.

59

NARRATIVAS DO PURUS Admilton Freitas das Chagas Filho INTRODUÇÃO Seguimos o roteiro da viagem descrevendo no barco as impressões e relatando as características das cidades do médio Purus. Iniciando o desembarque da equipe em Tapauá, localizada na entrada do rio Ipixuna, e em seguida em Canutama, e por fim em Lábrea. Ao todo o período de viagem durou 42 dias. Visitamos várias instituições e casas de moradores com intuito de conversar com os mais variados grupos sociais possíveis, entre cearense e índios encontramos seringalistas, ex-prefeitos, seringueiros, comerciantes e muitos outros tipos sociais. Na cidade de Tapauá, há uma constante presença indígena atuante no movimento e falante da língua, mantendo laços de proximidade com a aldeia. Saindo de Tapauá após dois dias de viagem de barco, chegamos a Canutama situada a margem direita de quem sobe o rio Purus, terra baixa marcada por constantes alagações descritas pela população como algo corriqueiro, é parte integrante da identidade da cidade. Quanto aos povos indígenas parecem não apresentar vínculos tão próximos com as aldeias, com exceção dos índios Banawa que mantem um constante fluxo entre cidade/aldeia e aldeia/cidade. Lábrea é a maior cidade do Médio Purus, é cercada por extensas terras indígenas demarcadas e com uma área urbana excessivamente povoada por brancos, estando quase sempre os indígenas de passagem ou residindo, temporariamente,

em

áreas

menos

valorizadas

e

ocupando

cargos

subalternos de emprego informal. Há expectativa de um avanço social nas comunidades indígenas por meios de implementações de programas, como Piraraura e Pedagogia Indígenas, voltado para a formação de professores, buscando reverter o quadro atual de baixo acesso a educação que se encontram os povos indígenas.

60

A vida no barco: o avesso do tempo/espaço e a convivência íntima com o “outro estranho” A expedição Purus teve inicio no dia 07 de janeiro de 2012, com saída da cidade de Manaus no barco de recreio Vovô Osvaldo II, traçamos a principio o panorama de conhecer as pessoas comuns que viajavam para o Purus no período de férias e de sua ligação com as cidades de Tapauá, Canutama e Lábrea. Pelas conversas, descobrimos as diversas relações familiares que envolvem a rota Purus/Manaus, filhos que visitariam os pais, idosos que moravam há muito tempo em Manaus indo visitar os filhos, netos, irmãos e amigos, e que trabalharam a vida inteira no Purus na coleta de borracha, castanha, roçados, extração de madeira, pescando peixe, tartaruga, peixe boi e jacaré. A viagem perdurou três dias até a chegada em Tapauá, durante o percurso atravessamos o Solimões em sua longa extensão bastante povoada, em suas margens apresentavam comunidades e embarcações escolares, em comparação ao Purus às comunidades "ribeirinhas" são distantes umas das outras, e as terras indígenas demarcadas e conhecidas pela tripulação e passageiros como "terra vermelha", não apresentavam a “cara” dos povos indígenas, porque uma de suas características é habitar áreas de terras firme e/ou igarapés distante do rio Purus. Adentramos o rio Purus no domingo as 17h00 da tarde, localizado a margem esquerda do Solimões, avistamos alguns poucos flutuantes, sem dúvida o Purus se mostrou mais estreito e de muitas curvas. O capitão da embarcação manobrava com destreza cortando o rio em busca de pequenos atalhos se desviando das praias que concentrava bancos de areias, o que poderia encalhar ou segundo eles até mesmo virar a embarcação. Conversando com um passageiro, o Sr. Raimundo Jr. falava da vida em Manaus e de como estava disposto a recomeçar a vida em Canutama, tendo ajuda de parentes moradores da cidade, onde trabalharia com vendas de mercadorias trazidas de Manaus. Após quinze dias ao chegarmos a Canutama, ele já se encontravainstalado trabalhando na praça com a venda, entretenimento e também na distribuição de merenda das escolas públicas na zona rural.

61

Maria, cobradora de ônibus em Manaus levava o pai a Tapauá para ficar com a irmã, ele tinha sofrido um derrame e trabalhara a vida inteira no Purus, comentou sobre uma pequena propriedade de castanhal, empolgada porque a época coincidia com a coleta da castanha e esperava participar de alguma forma da atividade, e falava que aquele era o momento de encontrar velhos amigos que participavam todos os anos da coleta. O que nos deixa perceber que a coleta da castanha vai além dos valores econômicos, mas também como um espaço de sociabilidade entre as comunidades. Dona Luzia uma senhora que vinha de Manaus e que acabara de perder o filho de 30 anos, a morte segundo ela foi causada por hepatite e seguidas malárias malcuradas. Essa moradora de Lábrea contou do gosto pelo terreno no ramal do km 26, e descreveu o roçado destacando em sua fala a produção da "farinhada". Perguntei sobre o tucumã e ela afirmou que tinha bastante, e que plantou abacaxi mais "com o tempo o "bicho" (o abacaxi) fica pequeno a terra não é boa para esse tipo de plantação" ainda na conversa ela contou que não comercializa a produção, deixando a entender que era somente para subsistência da familia. Chegando às cidades ficou mais claro entender a agricultura familiar, os moradores em geral confirmaram a situação "não valorizam nossa produção, ninguém quer pagar o preço por causo que só querem dar migalha, tá todo mundo produzindo as merma coisas, então o produto fica desvalorizado, nem vale a pena a gente trabalhar pra vender” – um exemplo claro pode ser visto na produção da farinha, que é basicamente para estocar na casa das famílias para o consumo anual. Conheci Jaysse de aproximadamente 25 anos, que voltava de Manaus, após alguns meses de tratamento e exames feitos em um hospital particular, por conta da família, estava voltando para casa em busca de mais recursos financeiros para dar continuidade ao procedimento cirúrgico. O motivo das consultas seria o sangramento do seu seio esquerdo, após cinco anos saindo uma secreção que se transformou em sangramento, a jovem falou "achava que era normal não me preocupava depois as dores foram aumentando aí busquei um médico na capital indicado por uma amiga da família".

62

Depois teria de retornar a capital para dar continuidade ao tratamento, comentou que o médico a informou da probabilidade de passar por uma cirurgia de retirada do seio. Seu pai é um pequeno produtor rural do município de Canutama, dono de uma propriedade descrita por ela com muitas plantações, na qual a venda de hortifrútis garante parte do sustento da família, juntamente com a criação de animais, agora parte deste dinheiro arrecadado será destinada ao tratamento, o pai já havia vendido algumas cabeças de gado para manter a primeira parte do tratamento em Manaus. Conversei também com Dave, um vendedor representante de duas grandes empresas, a primeira de medicamentos e a segunda voltada para o ramo de motores, baterias e equipamentos náuticos. Como filho da terra e viajante constate conhece muito bem as estradas e rios que conectam o abastecimento das cidades do médio Purus, segundo ele os produtos abastecidos provêm de Manaus e Rondônia, passando por Humaitá e chegando aos municípios através de embarcações, por uma rota terrestre e de trechos hidroviários. Estas são as impressões resgatadas nas falas das pessoas que se deslocavam no barco subindo o Purus, as histórias individuais de pessoas comuns que aos poucos se cruzavam no cenário e no modo de ser da "gente" que iriamos encontrar nas cidades. O barco naquele momento era o primeiro contato com pessoas da região, os conhecedores da realidade local e que poderiam falar horas e horas da fauna, da flora, do uso e dos costumes tapauenses, canutamenses e lábreanos. Tapauá, a cidade de nordestinos que sobem, e de índios que descem o rio Purus A chegada em Tapauá

foi às 13hs; avistamos os flutuantes; o

encontro entre o Ipixuna de água preta e o Purus de água barrenta destacava na paisagem; a entrada do rio Ituxi apresentava o modo de vida da população branca e indígena, peculiaridades dentro de uma relação social imbricada e cercada de contextos que envolvem cada cidade: crianças brincavam e nadavam, adultos compravam gelo, outros trabalhavam na casa de farinha flutuante da prefeitura; nas entradas dos igarapés os pescadores estavam em canoas, ou melhor "rabetas" e malhadeiras. O barco atracou na fábrica de gelo e depois seguiu para o porto flutuante,

63

onde a equipe teve de se dividir pela primeira vez. Ficamos em Tapauá um grupo de quatro pessoas, Admilton, Alexandre, Angélica e Mario, enquanto outra parte da equipe seguiu viagem para Canutama: Alba, Ingrid e Thayná indo estudar o circuito da produção familiar da farinha. Ao atracarmos no porto flutuante encontramos o senhor Pedro “frentista”, que nos levou até o hotel, nos contou de sua farinhada, da quantidade de pessoas que trabalham com ele em sua propriedade, e que no outro dia subiria para o local procurando saber como estava sua produção, contou também que estava envolvido na coleta da castanha. Os dois eventos ocorrem ao mesmo tempo, a farinhada para muitos vai até a metade do mês de fevereiro, enquanto a coleta da castanha dura um pouco além, estendendo-se ao mês de março. Outro negociante forte nos negócios na coleta da castanha é conhecido como Louro, é um forte negociante de castanha do Abufari uma reserva de proteção permanente, onde está proibida a exploração dos recursos naturais, parece haver uma continua atividade econômica da castanha. O circuito envolve inúmeras famílias, algumas dezenas de ribeirinhos e indígenas identificados como parentes distantes, primos e compadres, assim o sistema de produção familiar atende a demanda de escala industrial, a coleta se faz diariamente e algumas famílias viajam para terras distantes de suas residências,montando acampamento e fixando-se no castanhal por todos os meses de coleta, retornando após o termino da temporada de extração da castanha. A relação dono do castanhal e coletores se mistura aos valores da amizade, em ambos os discursos patrão e empregado remetem sua função como a parte essencial para o andamento do negócio, e que se não o fizesse o outro não daria conta do trabalho. Na realidade o negocio da castanha monta toda uma engrenagem dos agentes envolvidos, e há uma dependência do conjunto envolvido para dar conta da cadeia extrativista. Juntam-se coletores, donos de propriedades e atravessadores – responsáveis pela venda da castanha no mercado – apontam a parte do seu trabalho como a mais importante para o funcionamento do negócio. Todo o sistema integra uma parte importante do circuito da coleta, compra e venda. As relações sociais e familiares são regidas pelo grau de parentesco

64

entre consanguíneos, pais e filhos e não consanguíneos cunhados, sogros, esposos e outros laços que determinam a castanha para além da mera atividade econômica. Em Tapauá ficou definido desenvolver a primeira parte da pesquisa no qual a proposta de campo era realizar o levantamento dos documentos oficiais resguardados em arquivos públicos dos cartórios, da igreja o CIMI – Conselho Indigenista Missionário, da prefeitura e secretarias de educação e saúde, em um segundo momento, com mesmo valor e importância. Ao conversar com os moradores antigos que vivenciaram os acontecimentos históricos, são capazes de dar respostas abertas as lacunas que os documentos históricos não dão conta de esclarecer, é importante ressaltar, que o encontro destas fontes possibilitará correlacionar à reconstrução histórica dos acontecimentos, os pontos entre documentos escritos e memorias se complementam e elucidam a história das cidades do médio Purus. Na prelazia da Igreja católica da cidade de Tapauá, conseguimos com frei Miguel alguns livros antigos e conhecemos o seminarista Robson e o radialista Marcos, no mesmo dia conhecemos Raimundo Nival um pároco que presta serviço à igreja. Essas pessoas nos encaminharam a conversar com muitos moradores e o próprio Nival nos concedeu uma entrevista contando sua vida de trabalho, também nos levou para conversar com o padrasto, a mãe e a avó, moradores que viveram grande parte de sua vida ou nasceram na região do Purus. A conversa não registrada com Frei Miguel narrou a história dos Jumas e como eles foram massacrados pela população Tapauense incitada por um grande proprietário de terras e político insatisfeito com o ataque dos jumas a seus empregados que invadiam constantemente a terra indígena. A população “encolerizada” por Daniel Albuquerque o promotor da cidade e prefeito, organizou um ataque armado com espingardas, matando homens, mulheres e crianças, sobrevivendo apenas dois velhos e duas crianças, deixando reprodução humana e sociocultural do povo Juma comprometida. Ana Clara responsável pelo cartório civil contou que o processo de autonomia da cidade de Tapauá que se tornou Comarca a partir de 1970, antes disso a comarca oficial era Canutama, a instalação do cartório só

65

consta no CNJ - Conselho Nacional de Justiça no ano de 1988. Portanto, poucos documentos estariam arquivados naquele cartório, mas informou que o grosso mesmo dos documentos estariam no arquivo público de Canutama. Fotografamos somente dois livros um de 1909 e outro de 1970/9 registro de casamento e imóveis. Marcos e Raimundo Nival nos conduziram a casa de Feitosa, de Raimundo Januário, de Regina Belmiro e de Normando padrasto de Raimundo Nival todos contaram muitas histórias do povo nordestino que migraram para viver no Purus. Os pais e a avós de Nival passaram o conhecimento do trabalho na região, a retirada de madeira, o corte de seringa, o caucho, a castanha e muitas outras atividades produtivas foram ensinadas e herdadas pela técnica familiar. Os nordestinos falam: as trajetórias de vida, andanças e anseios Raimundo Feitosa veio do Ceará com amigos em busca de trabalho, no decorrer da viagem poucos ficaram. Após dias longe de casa, ficava cada vez mais difícil e faltava emprego. Por intermédio de alguém conseguiu emprego na polícia militar do Amazonas o que garantiu a residência definitiva. Com o tempo foi transferido para o “interior” do Amazonas, município de Boca do Acre, anos depois chegou a Tapauá, onde constituiu família. A história desse cearense é como de muitas outras pessoas representante de um ciclo social de nordestinos na Amazônia, reproduzindo um sincretismo de festas, trabalhos, rezas, remédios e crenças que permeia o Médio Purus. Um andarilho nascido em Fortaleza, conta as andanças na época da ditadura militar e descreve o pai como um comunista contra o governo, morador da rua Parque Junior Bela Vista, serviu o exército em Itapipoca e quando deu baixa foi morar no Rio de Janeiro, trabalhou na Petrobras 1972/73/74

“aí deu saudade dos coroas – os pais” decidiu regressar ao

Ceará, trabalhou em uma empresa de calculadoras como vendedor.Certo dia juntando-se com três colegas na beira do bar, decidiram viajar para o Amazonas em busca de emprego, foram de ônibus até Belém, residindo na rodoviária até o dia de pegar o barco de saída a Manaus.

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Após três dias de viagem atracaram às duas horas da madrugada na escadaria dos remédios e subiram o barranco que seguia diretamente em direção à igreja. A experiência de barco foi diferente, chegando à cidade no ano de 1977, eles ouviram falar do bairro de Educandos, o local dos cearenses, conheceram um conterrâneo e foram vender redes nos bairros e pelo centro, o dinheiro mal dava para se alimentar comendo somente pão e mortadela, depois de um tempo já sozinho se mudou para o bairro da raiz. A primeira oportunidade de emprego surgiu em uma seleção na empresa Andrade Gutierrez na área de datilografia, a vaga era para trabalhar na Arábia e ganhar em dólar, mas não conseguiu e saiu pensando “o que é que eu vou fazer” saiu sem direção, próximo à bola da Suframa a pé, triste com as dificuldades de desemprego avistou na Avenida Tefé um caminhão com a placa de são Paulo decidiu conversar com o motorista e perguntou se poderia ir trabalhar como ajudante acertando a viagem para aquela semana. Um vizinho próximo da casa recebeu a informação de que a polícia estaria recrutando soldados, Raimundo foi ao comando geral atrás de informações e para grata surpresa falou com o comandante que estava procurando emprego. Em uma curta conversa recebeu a noticia “você já está na polícia, amanhã você compareça em Petrópolis no 1º batalhão”, chegando lá, chamaram Raimundo Feitosa, “será que eu sou da polícia mesmo, não porque a gente não acredita” entregaram a farda “aí eu já fiquei no quartel, casa, comida roupa lavada eu fiquei logo no quartel, depois de uma semana voltei ao quarto para buscar minhas coisas, passou quatro meses quando me formei fui lotado no aeroporto, em quase um ano de trabalho veio o dia D”. Multou um tenente do exército às dez horas, multou um capitão da aeronáutica e a tarde o carro do advogado Simonete, à noite o carro do coronel da Polícia Militar, o comandante geral. Devido o acontecimento no dia seguinte o major o transferiu para a Boca do Acre, no mesmo dia, pegou o fuzil e de ônibus pela BR 319, seguindo até Porto Velho, Rio Branco e Boca do Acre. Feitosa disse que os conflitos eram resolvidos a bala e que os estrangeiros eram bons de tiro, na cidade havia muitos índios Apurinã em busca de bebida alcoólica, mais que não eram de confusão, segundo ele os outros índios embriagados ficavam

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brabos e violentos pelo efeito da cachaça. Descontente com delegado que sempre dobrava seu turno de serviço retornou a Manaus se apresentando no comando geral. Informado que tinha vaga no município de Tapauá e sabendo que o prefeito ajudava com casa e rancho, ligou para Daniel Albuquerque que disponibilizou a vaga de um avião saindo no mesmo dia as 12h00 e chegando a Tapauá as 14h00. A pista relembra ele, era de barro batido no ano de 1979 e no dia dois de março Feitosa foi lotado em Tapauá. Conta que do aeroporto para o triangulo próximo de sua casa era um caminhozinho, e do triangulo da praça até a delegacia havia uma estrada de pedras, e que a energia era apagada as 23h00 e a cidade ficava em silencio. Algum tempo depois conheceu uma moça na missa diz “acertamos tudo e com oito meses de namoro a pedi em casamento, o pai consentiu casei com o paletó emprestado para dar sorte, meti logo um fiado, depois que casa o cara sai logo metendo fiado, aí essa casa apareceu à venda por 140,00 cruzeiros aí comecei a vida”. Uma transferência repentina o ano de 1980 para Santa Izabel do Rio Negro, onde passou apenas um mês, o motivo “escute o que aconteceu pra eu saí de lá um homem bêbado entrou na igreja e rasgou a roupa da irmã e eu prendi ele. “Passei um rádio pra Manaus comunicando o ocorrido, no dia seguinte chegou o comunicado pra eu soltar o cara, eu e o juiz pegamo o barco e fumo pra Manaus lá chagando o capitão me lotou na companhia de choque, trabalhei um bom tempo, aí à mulher chegou com o menino e fui pegar ela no centro ela ficou um tempo comigo e depois foi embora, falei com o comandante Câmara ele deu minha transferência para Tapauá”. “Quando cheguei aqui em 1979 não tinha índio, não tinha sim, vieram de Pauini, uns quatro ou cinco, não trabalhavam não, até hoje eles andam por aqui, vendendo as coisas da natureza, eles não tiveram o costume de plantar, tiram as coisas da natureza. Aqui tem Apurinã, o Paumari só tem no cuniuá, aqui não tem Paumari”. Em contra partida ao reconhecimento de Feitosa a cidade de Tapauá está repleta de famílias paumari ao descreve o modo de ser do índio como povo coletores dependentes do meio natural fornecedor por excelência dos recursos indígenas.

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Feitosa conta que um índio matou o rapaz que vendia as coisas – regatão – porque se negou a vender cachaça ao índio, isso ocorreu numa festa da comunidade do jacaré e diz indignando “mais não ficou preso não, agora ele mora aí pra dentro desse rio Ipixuna de água preta com uma família grande”. Feitosa detém informação do período que trabalhou na secretaria de educação e comenta sobre a zona rural e da relação da merenda escolar, conhece muito bem a quantidade de índios, relatando mais ou menos umas 22 “tribos” segundo ele “nunca vi um índio vender uma fruta, abacaxi, banana, uma plantação que você cultiva, ele só vende o que dá na natureza”. A sua fala expõe a ideia de que o índio ao terminar o ensino fundamental deixa de ser índio. Esta fala remonta à capacidade de adaptação e de movimento que fizeram dos nordestinos um povo bem sucedido na Amazônia. A trajetória deles firma uma identidade social inacabada, sempre em processo de reconstrução inserindo-se ao sentido cultural amazônico. Feitosa expressa o pensamento coletivo carregado dos valores de sua terra e arraigado aos costumes dos povos indígenas tornando-se um perfeito caboclo conhecedor da floresta e do rio Purus. O discurso incomum da população delineia quem pode ser e quem deixou de ser índio a partir dos valores do branco, o indígena ao partilhar do espaço urbano e usufruir dos mesmos direitos são tachados assim “rapaz não são índio não, esse povo quer é o dinheiro do governo” citando os povos indígenas como cheios de regalias e em outro instante a mesma pessoa diz “esses índios são mermo é um bando de preguiçoso não trabalha só sabe pedir, não plantam nada”. As afirmativas levantadas acima refletem uma sociedade permeada por valores do branco e a tradição indígena imbricadas no cotidiano e estabelecem regras de ralação social. A entrevista possibilitou entender como o indígena é descrito na fala do branco, uma parte nega à existência contestando os direitos do índio e em outra fala o reconhece pelo modo de vida tradicional e sua característica coletora da natureza.

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Raimundo Nival descendente de nordestinos e ‘filho’ do Purus Nasceu na comunidade Linda Vista, o pai faleceu e o avô o pegou para criar, começou a jornada de trabalho aos 07 anos “eu me lembro naquela época é muito triste a convivência pra hoje tá muito mais melhor um dia o vô me chamou e disse rapaz agora você vai trabalhar, aí ele colocou uma estrada pra mim de cinquenta tigela e lá eu aprendi muito com ele porque eu não conhecia quase nada”. Saindo de casa as sete, às vezes as cinco, seis da manhã e voltando a casa por volta de (11h00) onze horas o horário de fechamento do corte, retornando as duas horas no mesmo trilho para fazer a coleta “cortava seringueira, pra que pudesse tirar o leite dali pra gente se sustentar”. Raimundo Nival “essa foi uma experiência pra mim que considero muito importante, o corte eu via, ele me ensinava e eu via como nós fumo criado desde pequeno, se chamava parelha de estrada aí a gente rapava na árvore aquele pedaço e daí ele me deu uma faca enquanto eu fui ajudando e por ali pegando experiência muito rápido, e aprendia com ele aí depois nós usava, quando chegava difuma que era borracha enrolada no pau, não sei se vocês chegaram a ver, nu sei se vocês já deve ter conseguido já, chamava borracha, enrolava num pau e lá no pau a gente ia rodando jogando o leite em cima e em baixo no buiao, onde nós buntava caroço de urucuri que era fumaça, aquela fumaça, o leite ia secando e você rodando o pau e jogando leite em cima rodando até acabar o leite, era desse tamanho assim mais ou menos quase da grossura de um tambor com uns oitenta quilo, cem quilo e dalí quando o patrão passava na época era o Raimundo marques e Zé Marques “Lembro benzinho tinha nove anos dez anos a gente vendia pra que comprasse o alimento, fartura tinha muito, vamo supor, peixe, o quelônio que é o bicho de casco que nós chamamos aqui, pra nós tinha muito, isso ai ninguém dava conta nas praia, cê podia ir a noite, principalmente, a noite que formava tempo cê olhava sim chega ficava pretinho camarada, assim incima tudo desovando qualquer criança chegava via aquilo não fazia nem conta, isso pra mim foi uma experiência que hoje tenho o que 36 anos pra idade que eu tenho pra mim nu vô apagar nunca da memoria... essa pra mim foi a maior experiência de vida, sim ver como era aquilo ali porque no

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nosso caso nós trabalhava pro nosso pai que era meu pai de criação tudo que nós fazia era uma conta só, nós era oito numa casa

e era ele que

administrava tudo, nós muito pobre as vez ele dizia olha vamos trabalhar o mês todo”. O avô combinava no mês de outubro próximo ao final do ano período que o patrão passava e compraria uma muda roupa para cada um deles “aquilo pra nós era uma alegria aqueles calçãozinho, nossa ropia que nós tinha era duas três mudas de ropa só pra sair pras outras comunidades vizinhas porque nós era pobre num tinha, nosso rancho era ali contado mesmo, e ele sempre contava meu filho isso aqui foi que eu aprendi com meu pai e vocês cuido muito disso aqui, porque um dia isso aqui vai sumir vai se acabar e eu achava assim como que vai se acabar, e ele dizia vai se acabar vai diminuir isso ai foi uma experiência pra mim, não apagou da memoria não. Nival lembra a época que morou na Linda vista,há três horas do local chamado ponta do camaleão, “onde até hoje se eu for andar na estrada eu sei onde é, conheço as estradas, depois da ponta do camaleão fui pra insiada bem próxima daqui uma hora e meia essas foi as três localidade que a gente ficou bem próxima aqui do município e nós só vivia aqui, quando era final de mês nós via pra cá passava dois três dias na época a cidade era só mato, uma vez eu me perdi aqui hoje eu falando isso pro meu filho ele pensa que é brincadeira, eu me perdi porque eu lembro que era só uns caminhozinho, isso aqui era tudo palha mais eu tinha uma memoria – lembranças – isso pra mim é uma experiência, que do que eu vejo hoje não apaga nunca da memoria Raimundo conta que na sua época não tinha muito contato com os povos indígenas, a partir de então narra uma série de episódios de encontros e convivência com índios “nosso contato era muito pouco com indígena passava aquelas canoas que nós morava no camaleão e tinha uma localidade pro tauamirim e foi justamente aqui em Tapauá, teve alguns conflito e muitos deles foram embora mais ficaram alguns” é notório os indígenas residentes na cidade, construíram família e das seguintes divergências entre índios e brancos relatados nas histórias do avô “...não

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gostava de abrir muito pra gente porque naquela tempo era muito mais difícil eles tinham medo né...” Meu avô comentava com outros da mesma idade dele, mas pra nós crianças não comentavam, ele não gostava assim de comentar muito não, ele era muito assim cismado, até mesmo ele falava que tinha tido esse conflito, mas ele não explicava qual era as pessoas, porque ele tinha medo naquela época eles tinham medo... depois de grande não, não comentava muito não, sabemos que teve aqui em Tapauá na história, mais ele não comentava muito assim não...” Enquanto residia no lago camaleão relembra as passagens dos índios na direção do tauamirim, sempre trafegando o rio passavam remando, “durmiam lá em casa as vez, jantavam de noite” quase sempre batiam na porta da casa de Raimundo querendo um agasalho esperando o dia amanhecer, em sua fala Raimundo expressa o sentimento de acolhimento para com os viajantes moradores de outras comunidades, o vizinho que necessitasse de abrigo e alimentação, ou parando para descanso pela parte da noite ele diz “normal qualquer um, isso ai pra nós não tinha problema não”. Um costume típico amazônico abrigar os viajantes no caso do índio cansados viajando a “remo” às vezes cinco, seis, oito e dez pessoas, em uma canoa indígena, “pediam agasalho do meu avô, posso ficar aqui, não tem problema já jantaram, não mandava minha vó servir comida, ainda hoje tá viva, meu avô morreu, ela mora lá no açaí, ela tem umas memória boa porque eles vieram de cima da banda de cima, o jacaré fica aqui pra cima do Purus a gente se baseia muito por base da hora fica uma faixa três hora, três hora e quarenta, a boca do jacaré num quarenta” – voadeira de motor quarenta”. Raimundo recorda dos tempos de infância, principalmente, a fartura. O verão trabalhando na seringa, no inverno com madeira, a relação com o patrão pelo nome de o Edilson Freitas dono de embarcação fazia muitos negócios por todo o rio Purus, chegando a comunidades ribeirinhas, negociando a troca de borracha e pegava toda a produção da família de Raimundo por meio do aviamento de produtos e seguindo viagem,

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atualmente o barco se encontra naufragado próximo à fábrica de gelo a beira da cidade. O comércio girava em torno da borracha e madeira diz Raimundo “a gente fazia aquelas jangadas grande muito grande no meio do rio mais a borracha era muito assim, o mermo que ser hoje um salário numa capital hoje, quem tinha seringal porque os que nu cortavam eles arrendavam por muito dinheiro era o mermo que ter uma renda normal, se você plantasse uma vazante qualquer coisa, um roçado pra comer tirasse um leite tudo você tinha que pagar renda... que lá tinha o dono do lugar mermo que o camaleão, era dele do Henrique pra entrar lá, e o cara dissesse eu vou fazer uma casa e morar aqui, não tinha que primeiro falar com ele se ele autorizasse ainda tinha que pagar renda, essa renda era na época, a gente produzia numa base por dia doze frascos de leite cada, um litro só prum frasco e dava a parte do patrão”. A narrativa expõe a história de vida de um seringueiro que explica todo o processo de elaboração da borracha desde o corte e defumação do látex até o rolo da borracha pronta. As trocas com os patrões às formas de contratos de arrendamento de terra e o funcionamento da rede de aviamento se efetivaram entre patrões e trabalhadores.

Na sua fala

aparecem os povos indígenas descidos de terras altas ocupando extensas áreas em torno de Tapauá chocando-se com interesses dos grandes proprietários de terras, também se pode observar que o convívio entre índios e o cearense firmou novos pactos sociais. Família paumari e vivência entre dois mundos: brancos/índios cidade/aldeia Nascido na aldeia manissuã o Francisco apelidado de bida e na língua paumari banú que significa peixe piranha, afirma que as festas prologavam os dias de vida do índio. Descreve sua infância já em contato com os brancos e trabalhando na coleta da castanha, da seringa, cortando madeira, tirando óleos de copaíba, itauba, viróla, marupá e louro. Conta Francisco na mata utilizava a seringa para fazer boia bolando madeira da terra firme até o rio percorrendo grandes distâncias. Registra que muitos seringais eram dos índios paumari porque estavam na terra deles enfatizando sobre a mudança ocorrida desde a chegada do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio

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Ambiente

e

dos

Recursos

Naturais, “não

se

pode cortar madeira”

atualmente é o ICMBIO – instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade que instituíram as reservas proibindo a retirada da madeira. O Francisco explica “o índio não trabalha nessas coisas, somente, se for incentivado pelo de fora – o trabalho do índio é pesca e o roçado, mas quando chegava o patrão incentivando, o serviço dava conta de a gente sobreviver retirando um tantinho de dinheiro” “nós trabalha na agricultura aí trás para a cidade para vender e comprar as coisas necessárias para a aldeia, o rancho e o combustou”. Estas falas relatam a condição do índio, o modo de vida subsistente a natureza e de como se deu a modificação a partir da entrada do branco com o extrativismo lucrativo. Francisco conta “na aldeia o índio vivia sua tradição, festa, feitiço – arabani – o pajé era quem curava e fazia a festa – ele se lembra do tio “Nico” como um grande pajé. A época de festa os índios passavam dias na floresta tirando o punã – uma lapa de pau, rapava e queimava, depois de alguns dias estava pronto o rapé, partiam para a caçada e pescavam, este era, somente, o preparatório da festa que durava entre dois a quatro dias e noites, chamada de – xiguiné – hoje comemorada nas aldeias juntamente as festas dos santos católicos. Naqueles dias de festas não se coletava castanha Francisco paumari compara a festa como o festejo dos santos católicos atualmente, na comemoração acontecia “curação”, o pajé paumari chupava as pessoas fazendo cura, e distribuía comida a cada criança, após a alimentação elas estariam liberadas para fazer as refeições. O rito funcionava como modo de proteção, os avós diziam que era a proteção para que o espirito da criança não fosse levado pelo animal. Segundo Francisco na mesma época da borracha os índios praticavam suas tradições, quando a mulher se formava passando a ser moça, segue, na “aldeia do Palhal” o roteiro é assim, logo que se forma a moça diz à mãe que avisa o pai e o pai se reporta ao pajé, o responsável por colocar a menina na esteira a qual fica por um ano, onde ninguém pode vê-la, ao sair do curral é surrada sendo inserida novamente a sociedade adulta das mulheres podendo assumir compromisso de casamento.

74

O Paumari Francisco compara o modo de fazer farinha na época dos pais diferente dos dias de hoje, os antigos “machucavam” na mão a farinha que era levada ao fogo para cozimento. Antes do contato não se torrava a farinha, na gíria – língua indígena se chamava damadamarí – cozida no fogo com panela de barro e enrolada na folha ficava na forma de um pão, Francisco conta também que hoje em dia as crianças gostam da farrinha torrada não acostumam com modo antigo. Parte essencial da alimentação os índios comem os mais variados tipos de alimento a farinha, nos vinhos do açaí, do taperebá, com pupunha, melancia, tucumã e muitos outros pratos do dia-dia. Maria Vania fala da descriminação e de como isso inibiu o uso da língua e das tradições na cidade e de como foi difícil no início conviver com os brancos na escola, as crianças não queriam falar mais a língua porque as crianças da cidade “riam” delas. Apesar de todos os preconceitos eles ficaram e conquistaram espaço, afirma ela que os índios têm o direito de estar na cidade por atendimento à saúde, acesso a escola, e envolvidos no movimento indígena buscando cobrar do governo os direitos dos parentes que vivem na aldeia. Os paumari Roberto e Maria Vania são lideranças e participam das reuniões representando os paumari o que segundo eles só é possível residindo na cidade “porque é aqui que as coisas acontecem”. Roberto “nós estamos incentivado ao abandono de nossa cultura, na época antiga quando entraram os brancos” – frentes extrativistas – foram, primeiramente, negociando e a barganha convencia os índios a consumir roupas e outros gêneros trazidos pelos patrões que forçavam as pessoas a produzir para vender, hoje o problema da entrada de pessoas nas terras indígenas são constates movidos pela retirada de madeira e outros produtos nativos que atraem invasores as terras indígenas. Ameaçados e tendo de fiscalizar e proteger a terra porque o contingente de fiscalização e insuficiente para cobrir os extensos territórios. Roberto diz “tem branco que tem consciência e outros que invadem dando morte”, ele conta um caso da reserva a qual o branco tirou madeira sem a permissão dos índios e eles prenderam a madeira. Fala Roberto “na época dos nossos pais o feitiço era uma guerra, por exemplo, se o branco – patrão – fosse buscar algum objeto por falta de pagamento, causaria

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revolta e o índio se via obrigado a devolver, índio integraria não tendo como reagir, agiria com o feitiço colocando um bicho – no estomago do inimigo – um tracajá como muitos causos que aconteceram em nossa comunidade”. Assim se mostram dois planos a esfera das armas que os índios descrevem como insuficiente para resistir o conflito com os brancos e a guerra de feitiço que os índios utilizavam bastante e que trazia um equilíbrio no confronto. Os conflitos estão vivos na memoria, a pajelança e o feitiço mostraram-se

eficazes,

arma

bastante

utilizada

contra

os

brancos,

considerada uma forte proteção ou em muitos casos a única, a guerra de feitiço realizava-se no mundo espiritual e materializava-se na relação com o patrão explorador os índios sempre se utilizaram do feitiço na vida “interétnica” ou praticado internamente pelas famílias na disputa do poder da autoridade de cacique na aldeia. O pajé exerce a função de conduzir a vingança, é o ser dotado de capacidade, ou melhor, preparado para transitar entre os dois mundos, o espiritual e o material. Roberto conta que os pajés estão divididos em duas categorias, aqueles que servem para curar e outros para maltratar as pessoas. Maraza cacique mamori relembra o “ajuntamento” de seu povo aos paumari Maraza lembra “antigamente todos respeitava o tuxaua, quando ele falava “pega aquele cara ali e mata, os índios pegavam e matavam, quando agente era brabo mermo os brancos não podia morar na aldeia”. Maraza retoma a questão da discriminação que sofreram os índios, “agora há mistura de branco com índio” o que de certa forma possibilitou a inserção do índio a sociedade branca, ele explica como se deu o casamento do pai branco e a mãe índia mamori, e do fato do pai dela ser paumari e sua avó mamori. Segundo o cacique a relação de casamento com o branco e com outras etnias aconteceu devido aos contantes conflitos, onde os perdedores tinham as mulheres e filhos tomados e criados pelos rivais, quase sempre as mortes

eram

tão

grandes

que

alguns

povos

foram

considerados

exterminados. Novas formas de casamentos convencionadas na aldeia de Maraza que hoje carrega os traços destes acontecimentos: as etnias

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mamori e Deni descendentes de paumari constam em dados da FUNAI – Fundação Nacional de Apoio ao Índio e em outros registros bibliográficos os mamori aparecem extintos. A descida de sua família do alto cuniua se deu para o igarapé do mamori chegando ao moco. O cacique Maraza faz uma pequena correlação de parentesco começando pelo barrari, tio de sua mãe e irmão da sua avó e diz que os primos são camadeni. Maraza conta a história da reconfiguração do povo mamori juntando-se aos paumari; o casamento da avó se deu no momento de guerra contra os catukina ela já estava grávida. O motivo da barbárie segundo o cacique foi incentivado pelos brancos que invadiam a terra dos mamori e juntos com os catukina atacavam com armas de fogo os mamori. Na época o tuxaua era o marrecão morto em conflito tendo os irmãos Barrai, Macacari, Titicurari, Catarruri. Maraza conhece alguns primos descendentes destes tios avôs. E conta que hoje em dia a praia ficou conhecida como praia do marrecão em homenagem a morte do tuxaua que morreu defendendo o povo mamori dos Katukina, e enfatiza que os mamori tiveram perda maior tendo as mulheres de viver casadas com os Katukina ou fugindo para casar com outros povos indígenas ou brancos, no caso da avó, casada com paumari. Fala do cacique “os katukina tomaram a finada vovó, a batará e a abariranã a duas aceitaram”, mas vó de Maraza revoltada porque os katukina mataram o marido fugiu e se juntou com os paumari. Maraza diz que os mamori estão espalhados e misturados com os paumari, existindo alguns velhos mamori legítimos e conta do aprisionamento de índios pelos brancos “pego a dente de cachorro”, após o ataque catukina as crianças mamori fugiam para o mato e se escondiam na toca do pau os jovens índios Curari, nurru e outro maior que não se “adomava” com os brancos fugindo, constantemente, um dia em uma fuga atravessando o lago a nado o índio Katukina o perseguiu de canoa alcançando-o no meio do lago, o arpoo. Maraza fazendo referência de uma conversa com um primo remonta a história dos pais e avôs dizendo que o nome de seu povo é camadeni e segundo o sogro makiri chama-se abadeni, mamori significa matrinxã e foi um apelido dado pelas outras etnias. O relato revela diante as guerras

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construíram-se

novas

formas

de

casamentos

e

parentesco,

grupos

diferentes casaram-se pela estratégia de sobrevivência. Maraza explica “fumo atacado duas vez uma lá pra cima e outra no moco o pessoal correro e foro espatifado”, seguiram e se espalharam ninguém sabe, mas se for saber a história, os camadeni estão no mamoriá e outros se encontram no xeruã e o Valdeci falou, se tua mãe for subir mermo, nós samo parente”. As palavras de Maraza ditam um termo de auto-afirmação e deixa registrada: “essa

tribo

existe

mermo

o

povo

mamori”.

É

preciso

um

estudo

aprofundado para reconhecer as alianças e os níveis de parentescos que evolveram estes grupos indígenas no decorrer de duas a três gerações anteriores. Canutama a cidade de Manoel Urbano, Karipuna Maué e coronel Botinelly A história destes três personagens ocupa a cidade, os registros estão presentes na documentação e na memoria dos moradores que contam diversos “causos” dos desbravadores da terra na época dos coronéis de barrancos. Canutama era um ponto estratégico de parada após dias de viagem subindo o Purus e também dotada de extensos seringais e castanhais o que valorizava ainda mais a localidade. Segundo os moradores seu fundador Manuel Urbano era dono da terra viajante do Purus subia e descia o rio com os filhos deixando trabalhadores espalhados na região para a coleta da seringa. Contemporâneo à chegada de Manuel Urbano, o índio Karipuna Maués e Botinelly arrendaram terra e construíram a base de seus negócios residindo, definitivamente, em Canutama, enquanto Manuel Urbano esteve de passagem, como posseiro de outras localidades do baixo ao alto Purus não tinha uma parada fixa. A primeira impressão na cidade é de que não havia tantos indígenas quanto em Tapauá, parece que os índios não detinham vínculos com os parentes da aldeia. Eles contam que estavam amuito tempo sem manter contato com a aldeia, a maior parte dos índios idosos relata que nasceram e viveram na aldeia, saindo conforme as necessidades do trabalho e convívio com os patrões, enquanto os adultos entre 30 e 40 anos nascidos na cidade não conviveram com os parentes e contam que perderam vínculos com os “parentes dos pais” os índios aldeados.

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Fotografamos diversos documentos datados de (1900 a 1978) e encontramos algumas relíquias da segunda metade do século XIX, de (1870 e/ou 1890), os documentos de casamento servem de fonte para o entendimento das relações de parentesco que se efetivavam por interesses sociais e podem demonstrar as relações predominantes, por exemplo, casamentos entre índios, brancos e negros, ou quais famílias casavam-se entre si por enlaces políticos e econômicos. O registro de batismo abre a possibilidade de revelar apadrinhamento que se misturava aos negócios como forma de dominação e de amenizar os ânimos conflituosos entre patrão e trabalhadores. Essa prática envolveu os donos de embarcação, os proprietário terra de seringa e castanha, os negociantes de madeiras, todos aderiram o “compadrio” angariando uma rede de laços familiares afetivos que definia em muitos pontos a mão de obra disponível por fidelidade e gratidão de parentesco, assim o trabalho poderia ser realizado com êxito num universo escasso de trabalhadores. O registro de imóveis apresenta os donos das propriedades na área urbana e rural da cidade. Este documento dá um panorama geral da população e as atividades econômicas mais realizadas do período, a agricultura familiar, a pesca, o comércio, a hotelaria, os detentores do grande latifúndio. A leitura destes livros possibilita a compreensão de como se concentrava a população a partir das trocas, dos aviamentos e remonta as dependências externas da cidade aos produtos de fora. Karipuna Maué apresenta uma descendência indígena reconhecida pela nova cartografia social no processo de reconhecimento dos remanescentes indígenas do médio Purus, os registros públicos apontam cargos ocupados pelos Karipuna na prefeitura da cidade, atualmente encontra-se apenas uma família residente da área urbana e de parentesco com cearenses. Enquanto Manuel Urbano da Encarnação está presente na memoria dos moradores como o patrono da cidade, não consta registro do fundador Manuel Urbano e de seus filhos na documentação do arquivo público da cidade já que grande parte de sua vida esteve ativa nos meados do século XIX a partir da década de (40). O coronel Botinelly encontra-se registrado em muitos documentos, grande proprietário de seringais adjacentes à cidade, dono de imóveis na

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área urbana, muitos moradores conhecem-no como homem trabalhador e/ou violento, pai de muitos filhos requerentes da partilha aparecem no livro de registro solicitando a parte na herança. O coronel foi o mais presente na documentação histórica, desempenhando diversos cargos públicos, por um longo período fez parte da vida política de Canutama. Canutama detêm um cervo documental do cartório civil e judiciário, assim como os arquivos públicos municipais da saúde e documentação pessoal, um seringueiro aposentado como “soldado da borracha” é portador da carteira de trabalho oficial distribuída pelo governo federal entre os anos de (1940). As fotografias são acervos que documentam a história visual da cidade de Canutama sobre guarda de particulares. A

equipe

epidemiológicos

estava

responsável

registrados

pela

por

coletar

secretaria

de

os

possíveis

saúde

do

dados

município,

procurando viabilizar o acesso aos pesquisadores da FIOCRUZ para o estudo de endemias no médio Purus. Os casos mais comuns apresentados pela população

segundo

os

registros

são

a

tuberculose,

a

hepatite,

a

leishmaniose e acidentes com animais peçonhentos. A tabela demonstrativa da secretaria de saúde remete uma escala de trabalhadores e zonas, onde mais acontecem os casos – zona rural dispõe o maior índice de incidentes e pode revelar que tipos de trabalhadores são mais infectados ou os ataques mais recorrentes. Os casos de abandono são constantes devido às vitimas serem trabalhadores de áreas rurais distantes, tendo de tomar durante trinta dias o medicamento no posto de atendimento na cidade. Os pacientes abandonam o tratamento devido ao trabalho diário na roça ou a pesca, alegando que não podem deixar de alimentar a família ficando tanto tempo na cidade. No caso o doente do sexo masculino ou feminino exerce uma função fundamental no manejo “alimentar de subsistência” da família que necessita de cada braço para manter a comida em casa. Após os constantes abandonos o doente retorna ao tratamento devido ao agravamento da doença.

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Lista de documentos do arquivo público de Canutama 1909 – livro de registro de decretos, resoluções e mensagens do superintendente na ocasião e por um longo período da história de Canutama Theodoro dos Reis Botinelly elaborador do regulamento de serviço do mercado público, do arrendamento de seringal, outras obras públicas e construções vigentes entre os anos de 1904/07 a 1910, pelos registros documentais figura pertinente envolvida em negócios com a prefeitura em diversos documentos, este personagem está presente. 1911 – folha de pagamento da prefeitura quantidade de funcionários, valores

de

vencimento

distribuídos

os

seguintes

cargos:

secretario,

procurador, escriturário, fiscal, superintendente e os salários variavam sendo os valores mais altos entre 150,00 e 400,00 reis esse demonstrativo do corpo administrativo elucida diversas atividades econômicas que envolvia a cidade de Canutama no seu perímetro urbano e rural. 1911 – livro de demonstrativo das verbas da receita do orçamento vigente no 1º semestre e a classificação das secretarias por verbas arrecadadas e orçadas. Resumo do balancete apresentado pela procuradoria relativo ao 2º semestre dispondo dados da saúde Pública e estatísticos das inundações anuais. 1923 – Folha de pagamento de da Superintendência do município de Canutama. 1926 – a receita do município determina o valor oficial da borracha exportada, contando ainda a renda do seringal municipal, apresenta os alvarás e licenças. Consta também as despesas orçamentarias: subsídios dos intendentes e do prefeito, manutenção do posto de fiscalização e os gastos com profilaxia rural. 1927 – ata de reunião da superintendência municipal de Canutama aparece o nome de Lyrio Botinelly, as primeiras sessões marcaram as nomeações e encaminhamentos internos; votações e projetos de leis aprovados. 1928 – O livro de terras apropriadas da Prefeitura Municipal de Canutama, apresenta o termo conveniente das propriedades reconhecidas e produtivas, neste documento o lançamento dos contribuintes das terras apropriadas – indicativo de um dono ou proprietário eram extensas faixas

81

vinculadas

a

floresta

nativa

consideradas

propriedades

privadas

ou

particular – essas áreas variavam de 2,00 a 102.00 equitaries, na qual a segunda maior propriedade do município registrada no livro pertencia a Joaquim Freitas dos Santos Theodoro dos Reis Botinelly. 1932 – livro de imposto dispõe dos negócios circulantes da cidade e do meio rural demostrando os mais variados arrimes de vida encontrado pela população registrando-se o comercio de regatão forte agente atuante nas comunidades rurais aviando produtos de Manaus a credito em troca de borracha e outros produtos nativos pescado, agricultura, caça e madeira. Compra e vendas de terrenos, pagamento de sepultamento, pagamento de dividas ativas. 1932 – livro de cobrança de alvará e aferições de pesos e medidas, registro de pagamentos de terrenos baldios, localizados no espaço urbano – Renda do mercado público – serviço de agua – renda pecuária cobrança de divida ativa e outros. 1932 – livro de lançamento do imposto e alvará do ramo da indústria e do comércio este documento discorre sobre muitas localidades que potencialmente apresentam características de propriedades atuantes no ramo da economia gomífera: a primeira citada é o cafezal situado na terra firma, localizado a margem direita do Purus, mesmo não especificando as atividades comerciais o documento nos dá o nome da propriedade ou comunidade, o nome dos donos, a extensão das terras e as taxas dos impostos. 1939 – livro de contrato de arrendamento do seringal Havana da Prefeitura de Canutama. No ano de 1951 há um documento de indicação da Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, enviando ao município de Canutama um

protesto

enviando

perante

o

Ministério

da

Agricultura

contra

permanência do Sr. Feliberto Camargo na direção do Instituto Agronômico do Norte segundo o documento em virtude dos seus constantes atos de traição a Amazônia, dissidência – falta de cuidado, negligencia – pelos interesses econômicos da região. O ano de 1971 o livro registrava a prestação de contas Fundo de participação dos municípios no período o

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prefeito de Canutama seria Geraldo Monteiro da Silva que administrava o seringal Havana propriedade da prefeitura. 1963 – pasta de ofícios de recebidos pela prefeitura de Canutama. 1965 – lei orçamentaria Municipal orçou a despesa e estimou a receita para o exercício de 1966. Ainda no ano de 1970 encontramos a demonstração da receita global do exercício fundiário de prestação de contas do Fundo dos municípios ao TCU. Outro documento que registra a importância das atividades nos extrativistas da coleta da borracha foi o Projeto da Câmara municipal de Canutama – Projeto lei nº 6 do vereador Abelardo Jardim Maués, onde procuramos depreender do texto a essência do negócio. No artigo: 1. Ficou definido que cada seringueiro arrendatário teria de pagar (40,00) quarenta cruzeiros de imposto. 2. O agente descontaria o pagamento no ato do arrendamento de suas estradas. 3. Também estando sujeito ao imposto de (5,00) cinco por cada tartaruga comercializada. 4. Imposto de (5,00) cruzeiro por cada alqueire de farinha produzida e retirada para outro município. 5º Imposto de (20,00) cruzeiros para cada pescador considerado profissional e (100,00) cem cruzeiros para proprietário de feituria. 1968 – O relatório de contribuintes do município de Canutama destinando a prestação de contas a Secretaria da Fazenda estava a errata dos anos de 1968/69/70/71 registrada as rendas com os nomes de contribuintes em destaque consideramos os seguintes modelos vinculados a atividade produtiva de Canutama: 16 seringalistas ,11 comerciantes e sete ambulantes – este estereótipo se refere no documento como de motor, embarcações que transportavam passageiros e as especiarias extrativas. Ainda no ano de 1971 está registrado um fato de estrema relevância e que não havíamos encontrado noticias de tal ocorrência uma pasta com contratos de locação de um seringal pertencente a prefeitura e que comumente firma contratos de locação de estradas a seringueiros que individualmente solicitavam as parelhas de estradas a prefeitura, estando registrado no documento a forma de pagamento seria por meio de 60 kg. de borracha bruta dividido em duas parcelas com o pagamento de 50% em quinze dias de trabalho e o restante quinze dias depois. O contrato de locação detinha (9) nove clausulas que continha em anexo, o requerimento

83

do seringueiro escrito a mão ou datilografado perante a prefeitura. Cabe a nossa reflexão indagar, primeiramente, qual o procedimento no caso daqueles não alfabetizados? E quem eram as testemunhas? Apresentandose a partir daí uma serie de questões pertinentes ainda em procedimento de analise. A fala de Sebastião Banawa, trajetos e andanças de um povo em contato com os brancos Sua avó era branca, subindo o Purus de navio perdeu o marido por picada de cobra, então a viúva não quis mais subir ao Acre, decidiu ficar no Santo Antônio, onde ela namorou e se juntou com um homem branco. Foram residir no centro – terra firme. Havia dois “cabocos banawa” perversos mataram a família dela e levaram duas meninas, matando uma em viagem, chegando à aldeia confessaram ao avô de Sebastião o tuxaua retirou todo o grupo da aldeia entrando a mata sem deixar rastros, em suas palavras não quebrando mato e proibiram os índios assassinos de prosseguir com o grupo, segundo Sebastião ele sabia que os brancos iriam atrás para vingar a morte. A punição de pena de morte aplicada determinava que os condenados deveriam ficar e esperar as consequências, e assim aconteceu, a regra moral instituída na figura do cacique se fez valer, os índios descritos como perversos ficaram acatando a palavra do Cacique e consequentemente mortos. O cacique criou a menina e ela passou por todo o ritual banawa, ficando por um ano presa no curral e ao sair foi surrada assim incorporada ao mundo dos adultos. Com o tempo foi cortejada e o avô de Sebastião decidiu casa-la com o próprio filho. Sabastião banawa narra a fuga. Viajou a noite inteira sem paragem, o caboco subiu no galho do pau e ouviu o sapo, e então deduziu o igarapé está perto chegou ao local conhecido como banawa cheio de matrinxã. Conta também que antes no Apituã o pessoal – branco tinha medo deles. O tempo passou e o pai de Sebastião decidiu ser amansado pelo branco, um período que faltava tudo, não tinha ferramenta para brocar e a falta de roupa e alimento, a roça era pouca e não dava conta de sustentar o grupo. Os banawa vivem do recurso da terra, devido à escassez alimentar se deram

os

primeiros

contatos,

Sebastião

acompanhou

o

pai

em

84

determinados pontos da mata onde os brancos deixavam fósforos e terçados. Certo dia os índios escondidos observando os brancos, sem serem vistos, decidiram conversar aproximaram-se e conheceram os jamamadi amigos dos brancos e responsáveis por amansar os banawa que fecharam negócio. Como a terra indígena era muito distante decidiram vender a castanha sem precisar sair para transportar até a cidade. Dentro de uma negociação tensa, ambos os grupos se reconhecendo, os jamamadi convenceram os banawa que decidiram descer, dias depois Sebastiao foi para a cidade em busca de negociar castanha, fechando negócio com o rapaz que namorou sua irmã e Sebastião casou-se com uma moça branca de Canutama, após o casamento ficou um ano residindo na aldeia e como tinha muita malária, voltou para Canutama com a esposa grávida. As filhas cresciam e necessitavam da escola o que levou Sebastião a viver mais próximo a cidade. Ana Banawa complementa a fala do pai e conta o motivo do descimento da aldeia do pai tuxaua, por ser casado com uma mulher branca que não aceitava o confinamento e nem a surra que as filhas teriam de sofrer – rito de passagem realizado para a troca do sangue da menina. Ela tinha poderes maléficos podendo matar um homem pelo olhar, amarrando-a em um tronco de madeira os homens adultos com quatro cipós iriam surrala, a finalidade é o sangramento e a retirada do sangue significa a perda dos poderes maléficos agora a moça estaria apta a conviver com o grupo sem representar perigo. Ana falou do problema enfrentado pelo pai ao não deixa-las serem “peiadas” tiveram de sair da aldeia, o pai juntamente com o tio tiveram a autoridade questionadaperdendo a função de cacique, mas segundo ela o respeito de liderança continua com eles, o fator que influenciou a decisão de Sebastião foi à esposa branca não aderir aos costumes, nas palavras de Ana Banawa “era muita judiação”. Mesmo assim Ana Banawa ressalta a importância da tradição e afirma que a prática ainda acontece na aldeia Banawa, o período é sucedido por uma grande festa. O projeto nova cartografia social que se realizou na região do Médio Purus mapeando as terras indígenas e reconhecendo os povos indígenas apresentou uma inusitada questão dos banawa entre a geração de

85

Sebastião e a geração de seu pai, quando crianças foram registradas na certidão de batismo consta o nome jamamadi e no momento do reconhecimento da RANI documento de identidade indígena os filhos e netos não se reconheciam mais como jamamadi, pedindo para serem reconhecidos como povo Banawa. Este acontecimento revela a dinâmica da cultura e as mudanças ocorridas por três gerações no reconhecimento “indentitario” do grupo em um curto espaço de tempo. Ana Banawa conta que os coronéis donos dos seringais e castanhais dentro do igarapé do Quaru e Gessuã adentravam território indígena ocasionando conflitos, a entrada dos brancos se dá até os dias de hoje em busca da riqueza das terras dos índios. Após a demarcação da FUNAI, os castanhais e seringueiras ficaram dentro da terra indígena e os coronéis tiveram de sair, ela contou ainda que conhece a família dos Gomes donos de seringais e que tiveram um filho, prefeito de Canutama chamado coronel Gomes. O Forte Veneza, terra de seringal que os patrões brancos se consideram dono, agora fica dentro de uma RESEX – Reserva Extrativista, Ana afirma as pessoas estão sabendo que os brancos não são donos, e sim a terra é área indígena, cita a comunidade de santo Antônio do Apituã residência dos banawa e paumari como outro ponto em disputa. Segundo ela o movimento indígena está em luta pela demarcação da terra e os patrões devem reconhecer que não tem direito sobre a terra. João Cícero fala dos coronéis de barranco Os proprietários da terra mandavam na terra, quem escravizava o índio e o cearense eram os coronéis, muito dos refugiados do nordeste, vinham em busca de abundancia e riqueza, na chegada encontrava um ambiente diferente, e tendo enormes dificuldades de adaptação teriam de trabalhar para os coronéis, segundo João Cícero nada poderia ser tirado da propriedade do patrão sem autorização, pescado, caça e frutas. O poder de domínio era hegemônico, citando o nome do grande coronel Botinelly, visto como um grande reprodutor dono de prestígio, servido de todo tipo de honraria, inclusive

os seringueiros entregavam a própria filha para

engravidar do coronel, o laço era visto como honra.

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Cicero descreve algumas propriedades e os nomes dos donos o Coronel Luiz Gomes no são Luiz do Cassianã, no Sepatini o coronel Cesar, no sebastopol tinha outro coronel, Meteripuá o mais perverso coronel Ambarino temido pelos seus capangas os guarda costas, quando o freguês estava reclamando não aceitando o jugo o coronel dava o bilhete dele – mandava matar – a desculpa era que a cobra comeu ou o jacaré pegou, isso funcionava como explicação para o sumiço de pessoas, João Cícero lembra ainda da época da eleição o velho Pedro Noronha e seus trabalhadores trazidos do rio grande do norte a terra natal, seu filho Vicente Noronha dizia “aqui tem oitenta eleitores (80) são oitenta votos para o candidato que nós queremos, e ai deles que não votem para os nossos candidatos”. Raimundo Gomes cearense seringalista Nascido no seringal forte Veneza herdou e comprou a propriedade dos irmãos que não gostavam do negócio da borracha preferiram levar a vida na cidade de Manaus. Conta sua experiência como seringalista e de como a defumação de borracha passou pelo processo de mudança até o sistema da borracha prensada, afirma que a crise retirou a grande maioria das pessoas do seringal. No trabalho com o pai aprendeu marcar cada seringueiro tinha um número para o controle de qualidade, porque os seringueiros colocavam impurezas na borracha aumentando o peso da borracha, quando isso acontecia à empresa J. leite trazia de volta a borracha e “nós ficávamos no prejuízo então dava a conta do seringueiro”. Essa atitude era servia para não dar mau exemplo aos outros. Ainda hoje Raimundo atua no negócio o principal freguês é a prefeitura fornecendo para o IDAM – Raimundo conta que atualmente tem uma empresa de beneficiamento de borracha no Iranduba. Conhecedor da história do seringal Havana administrado pela prefeitura, e de como funcionava o pagamento dos contratos e da atuação dosficais responsáveis por não deixar acontecer corte indevido que mata a seringueira. O contrato estabelecia

que

o

seringueiro

pagaria

a

renda

em

cima

de

uma

porcentagem em torno de 20% para a prefeitura manter os funcionários. O seringal da família de Raimundo Gomes fica a quatro praias da cidade de Canutama, e diz que hoje em dia ninguém quer mais colher

87

seringa. A família Gomes era também aviadores, Raimundo conta que os principais fregueses do avô e do pai eram os indígenas coletores de sova e seringa, trocando produtos por borracha, para conquistar a confiança deles o avô passava uma temporada no meio dos índios. Raimundo Gomes comprou a parte de todos os outros herdeiros, a propriedade tem título definitivo e hoje fica dentro da reserva demarcada e só quem pode coletar na área são os moradores. A produção de borracha no seringal dos Gomes girava em torno de 20 e 30 toneladas Raimundo contou que os barcos já atracavam em Canutama lotados de borracha e de como o sistema borracha prensada foi implantado há uns 20 anos. Raimundo relembra a variedade de seus produtos; seringa, castanha, madeira sempre envolvido em diversos negócios para manter o lucro. Hoje o peixe aparece na fala de Raimundo como um produto bastante atrativo ao comércio, mas que há uma dispendiosa engenharia de transporte pelo rio mucuim até chegar à estrada, onde os caminhões embarcam o peixe para Rondônia. Raimundo Gomes conta que na sua gestão de prefeito implantou reserva que melhoraram a vida dos moradores locais, e proporcionará o crescimento da região, a reserva do jamanduá é modelo criada no ano de 1997, hoje tem uma safra de mais de mil tartaruguinhas, pirarucu, tambaqui e outros pescados, existem três flutuantes funcionando como posto

de

fiscalização

havendo

uma

política

de

manejo

visando

à

conservação das espécies. Canutama é um município que depende essencialmente do transporte fluvial por não ter saída pela BR, os lagos, os igarapés e riozinhos – pequenos rios – são a fonte da subsistência daqueles que vivem no Purus. Marcelino Apurinã: feirante, agricultor e cacique na cidade de Lábrea A terra indígena Caititu fica situada na BR-230, Lábrea/Humaitá, a entrada se dá pela fazenda Ernesto de Almeida, curiosamente, essa é entrada mais próxima das comunidades indígenas. Uma segunda opção é o rio Ituxi que dá acesso aos lagos e igarapés e ligam as comunidades distribuídas numa área bastante extensa, a maior parte da atividade produtiva dos indígenas é a agricultura e o extrativismo, depende do

88

escoamento da produçãopela estrada, rios, lagos e igarapés alternando no decorrer do ano devido a cheia e vazante dos rios. A liderança da comunidade Nova Esperança é Marcelino Apurinã, pessoa muito bem articulada, possui um ponto de venda na feira da cidade vendendo produtos cultivados por sua comunidade; o principal produto é a farinha de mandioca, piquiá, goma de tapioca, açaí e babaçu. Os muitos anos de feira fez de Marcelino uma referência, muito procurado pelas demais comunidades para vender a produção que sobra por falta de conhecimento, os indígenas que encontram dificuldade nas vendas o procuram como intermediário. A entrada de Marcelino como intermediário é acordada pelo sistema de meia, comprando dos demais produtores indígenas revende os produtos responsabilizando-se pela qualidade do produto, dizendo “ajudo os coitados que não tem para quem vender” com experiência o agricultor Marcelino quebrou a presença do intermediário de suas vendas, ele é o próprio negociante e se tornou intermediário dos “parentes” índios que não tem a mesma habilidade do negocio na cidade. Presenciei a compra de três latões de goma de tapioca os dois garotos chegando do quilometro 26 carregando numa moto os galões. Marcelino logo perguntou se a goma estava misturada com água afirmando que a goma rocha mesmo sendo gostosa perderia seu valor porque as pessoas da cidade não gostam muito dessa cor, os garotos responderam que sim estava conservada da forma que Marcelino aprovava. Descansaram, jogaram bola, conversaram tomaram pinga e quase duas horas depois foram pesar a goma, Marcelino pegou sua balança manual pendurou no esteio da casa e pesou os latões, adiantando quarenta reais deixando para pagar o restante no apurado dizendo “levaram meus últimos quarenta reais mais vou ajudar e ver o que faço vieram lá do (26) vinte seis – quilometro – e não tem venda, ninguém quer, eu fico pra ver se ajudo” o sistema é de meia e sustenta os interessados na venda, as relações

de

dependências

são

mutuas

entre

os

indígenas

daquela

comunidade. Marcelino tem boa credibilidade na cidade, na feira as pessoas o procuram bastante atrás de produtos de boa qualidade, ao fechar com um

89

parceiro a “meia” é ele quem avalia a qualidade e logo diz qual nível se encaixa o produto, se é de primeira, segunda ou terceira qualidade e diz que vai vender conforme o produto se encaixe. O trajeto ocupado por Marcelino atuante como feirante e pequeno agricultor. Marcelino Apurinã conta sua história e como foi difícil à saída da aldeia segundo ele “faltava preparo”, idas e vindas marcam as tentativas de se estabelecer na cidade, ao todo foram três tentativas. Em todas as colocações que ele trabalhou colocou roçado um costume ensinado pelo pai, um momento extremo narrado por ele foi estar desempregado na cidade, com fome, a esposa e o filho pediam para voltar ao centro – aldeia indígena – Marcelino aponta uma das dificuldades de se viver na cidade é querer manter o mesmo estilo de vida da aldeia. Passando por estas dificuldades foi até um proprietário e pediu um pedaço de terra para plantar, concedido o espaço resolveu chamar a terra de “nova esperança” que depois se chamou “novo Paraiso” porque hoje disfrutam aos benefícios da terra. Conversando com sua esposa decidiu pedir emprego ao gaúcho próximo ao seu roçado, em suas palavras havia apenas brocado a terra – fase de derrubar, queimar e abrir o roçado. Meses

depois

chegou

um

garimpeiro

experiente,

sabedor

que

Marcelino possuía conhecimento da mata, estava atrás de uma cassiterita encontrada há 28 anos por um parceiro que ficou doente retornando e deixando a descoberta para tráz. O patrão gaúcho não queria que Marcelino saísse, mas o dono da fazenda, o prefeito autorizou a viagem de Marcelino, como forma de retaliação o gaúcho cortou o salário que só foi pago o primeiro mês a mulher de Marcelino, ao chegar de viagem ele decidiu não trabalhar mais com o gaúcho e o prefeito. Desempregado mudou-se para a terra, a roça estava pronta na época em que os técnicos do IDAM – Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas veio observar a comunidade, chegando a orientarem que Marcelino fizesse coloral do urucum, mesmo sem preparo – projeto de treinamento – e nem os mecanismos adequados deu andamento a produção. O primeiro financiamento pelo BEA – Banco do Estado do Amazonas o valor de 1.600,00 reais não deu certo porque o

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alqueire da farinha estava avaliado 25 cruzeiro por alqueiro saindo 50 cruzeiro a saca plantaram esperando a renda para quitar o empréstimo. No outro ano quando desmancharam dez alqueires de farinha, não encontraram venda, não tinha comprador porque o preço da farinha caiu consideravelmente a 5,00 cruzeiro o alqueire. A falta de informação e planejamento anual derrubou o negocio e por não saber negociar com o banco caiu inadimplente, chegando à dívida a doze mil reais (12,00 mil) ficando doze anos sem poder fazer empréstimo, na ocasião o promotor chegou a requerer alguns bens da comunidade como forma de pagamento da dívida. O novo financiamento feito pela esposa para compra do forno, segundo Marcelino o valor do financiamento não é ineficaz, o crédito precisa ser aumentado, o valor pretendido seria de 10,00 mil, voltado exclusivamente para o plantio da mandioca porque o governo não tem a flexibilidade de ver uma plantação diversificada como a indígena que cultiva milho, macaxeira, mandioca e outros cultivos simultaneamente,descontente Marcelino lamenta “agente não trabalha só com mandioca, minha propriedade tem tucumã, babaçu, tem que ser levado em consideração o que eu têio na terra, eu trabalho com muita coisas”. A lógica indígena de plantio é incrivelmente extensa, não se planta apenas um tipo, mas vários o roçado é diferente da agricultura do branco. Os técnicos da FUNAI – Fundação Nacional de Apoio ao Índio, recomendaram a Marcelino não trabalhar com septícida alertando sobre os riscos e a desvalorização da propriedade. Uma roçadeira é aguardada pela comunidade que enfrenta a resistência governamental de liberação de um motosserra. Para resolução de tais empasses Marcelino solicita a visita periódica de fiscais em cada comunidade avaliando, a exemplo a madeira, especificaria aqueles que derrubam a madeira e as comunidades que utilizam a ferramenta somente no manejo do roçado. Para Marcelino o ideal é trabalhar com reflorestamento “temos que produzir e vender para comprar a comida, pois na terra indígena não tem um rio de grande porte ou igarapé que sustente a comunidade com peixe e a caça que é pouca”, Marcelino em suas palavras não deseja derrubar mais árvores, juntou os jovens da comunidade para reflorestar o pasto da

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extensão de 60 a 80 equitaries e enfatiza nas comunidade a dificuldade de recurso é muito grande. Ainda em Lábrea fomos convidados pela FOCIMP – Federação das organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus a participar de uma reunião que aconteceria com os paumari moradores do rio Ituxi na comunidade do Araçá, o assunto seria a divergência entre os indígenas sobre a retirada ilegal de madeira das terras indígenas e os eventuais roubos de castanha que estavam acontecendo nas terras do (Bit - apelido) um vizinho branco morador antigo que tem parte da extrema do terreno fazendo extrema com a terra indígena. Estavam presentes na reunião as comunidades do Araçá, de ilha verde, sicibú, tacuapé, a reunião foi dirigida pelo cacique Raimundo Lopes, João Baiano da FUNAI, e o coordenador executivo da FOCIMP Zé Bajaga, o objetivo era trazer propostas e encaminhamentos para a resolução do problema no intuito de evitar possíveis conflitos nas comunidades. Uma breve avalição dos indígenas apontou como causa de conflitos na área a entrada das frentes extrativistas – madeireiras invadindo diretamente as terras indígenas, ou incentivando a entrada de posseiros. Uma causa em comum marcou a discussão da reunião, o problema principal segundo os indígenas, estava acontecendo devido aos próprios parentes – índios – que não moravam mais na terra indígena. Residentes na cidade de Lábrea formaram laços familiares com brancos e adentram a terra indígena, somente, para usufruir a riqueza no período de coleta ou para caçar e pescar, trazendo consigo os parentes brancos retiram e vendem a madeira sem o consentimento das lideranças locais. Zé Bajaga falou das necessidades do Purus como um todo e afirmou que há necessidade de se fazer aliança com forças institucionais de âmbito nacional, reivindicando políticas territoriais direcionadas ao Purus. Para isso, as comunidades devem permanecer unidas visando organizar projetos de melhorias aos povos indígenas porque se isso não acontecer as conquistas das lideranças do passado estarão comprometidas, Bajaga aponta o caminho dizendo que a juventude deve ser preparada e questiona os parentes por haver tantos problemas internos, o que fragiliza o movimento indígena.

92

Bajaga fala da intenção de divulgar os povos indígenas do Purus e compara as outras partes da Amazônia, citando o caso dos tukano do alto Rio Negro, formados pelos padres, mesmo com toda a violência e punição, conquistaram

os

ensinamentos

do

branco.

Enquanto

no

Purus

os

missionários não passam o conhecimento da escola, apenas aprendem a cultura do índio, não dando nada em troca. O objetivo do movimento indígena é organizar com autonomia participativa as políticas direcionas em assembleias, seminários e reuniões em conjunto com governo Federal programas sociais de acordo com a realidade do Purus. Para Zé Bajaga divulgar o Purus trará muitos benefícios, ajuda médica, relata a conquista da CASAI – Casa de Saúde indígena, criada para atender os índios de forma diferenciada com uma melhor logística, visitando as aldeias e com uma base de atendimento e internação no perímetro urbano, a partir de então a proposta é de avançar e conquistar cada vez mais os programas, de nível nacional, implantados no Purus, eventualmente, proporcionará o bem estar social aos povos indígenas. João Batista conhecido como – baiano – agradeceu o convite do cacique

Raimundo

paumari

solicitante

da

reunião

motivado

pelos

recorrentes fatos ocorridos na terra indígena. Segundo João baiano os problemas internos devem ser resolvidos pela liderança porque a equipe técnica responsável de organização e gestão da terra deve atuar a partir de um prévio levantamento feito e solicitado pela liderança da comunidade apontando as reais necessidades dos paumari do Ituxi. Baiano informou que o governo Federal direciona os projetos conforme a FUNAI recomenda, e esta atende a demanda dos pedidos do movimento indígena, e enfatizou que no caso da terra demarcada entregue aos índios é responsabilidade deles administrar. A quantidade de pessoal do governo é insuficiente para a realização dos trabalhos de fiscalização e aplicação de projetos. Para João Baiano recai sobre os indígenas realizar a guarda do patrimônio já que a terra é sua riqueza. Existe um sentimento de insegurança, os índios paumari estão em menor grupo que os brancos exploradores de madeira da terra indígena, as pessoas relatam as forma de intimidação e ameaças de morte que vem sofrendo pelos madeireiros armados. O cacique Raimundo diz “estão

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zombando e mentindo usando meu nome” os madeireiros invasores espalham rumores pelas comunidades indígenas de que tem autorização do cacique para entrar e retirarem a madeira. O termino da reunião foi registrado o encaminhamento da comunidade diante a FOCIMP e FUNAI referente à questão da retira ilegal da madeira e a solicitação de possíveis projetos para a comunidade, ficou acordado a liderança organizar a próxima reunião articulando a participação das lideranças que não estiveram presentes naquele momento. Desta forma cada comunidade estaria representada, encaminhando questões especificas de suas necessidades proporcionando assim a participação de todos ou a maioria sobre as decisões políticas da terra indígena dos paumari do Ituxi. CONSIDERAÇÕES FINAIS O

período

em

campo

ascendeu

à

interação

necessária

par

descobrirmos a dimensão humana e territorial do médio Purus, mesmo que limitada pelo tempo, a tentativa é apreender as características das cidades visitadas e de percebemos como elas produzem sua falas e são capazes de reproduzir a própria narrativa histórica. Ouvimos as pessoas, olhar os espaços e escrevemos nossas impressões. A etnografia permeia assim todo trabalho de campo, os registros do caderno e nas reuniões diárias do grupo compartilhando ideias sobre as conversas com os entrevistados, as fotografias e os vídeos também revelam esta perspectiva do contato direto e da observação participante. A partir da coleta de documentos que remontam parte da história do Purus procuramos criar um banco de dados a serem disponibilizados no NEAI: o material recolhido no acervo público das cidades de Tapauá e Canutama com oito livros raros da segunda metade do século XIX (187098); o período de 1900 apresentou uma quantidade expressiva de material, recolhemos uma grande quantidade do arquivo público da prefeitura e do cartório civil. Lábrea é a cidade com a maior quantidade de documentos públicos. Em Lábrea tivemos acesso ao acervo de livros dos irmãos marista inclusive de

fotografias.

Infelizmente,

não

houve

tempo

suficiente

para

a

digitalização, uma vez que ficamos dependendo de uma autorização

94

institucional para fotografarmos os documentos do arquivo público. Fica a sugestão de uma possibilidade de aquisição dos documentos, e também do acervo público - dependendo do grau de sua importância a vida útil estimada pode ser de dez (10) a cinquenta (50) anos aproximadamente, com o risco de incineração por determinações legais da justiça. O material das entrevistas está em processo de transcrição, as estórias daqueles que viveram os acontecimentos, ou por meio da memória contadas por seus pais e avós. Reproduzido pela oralidade o conhecimento se estende para as gerações de filhos e netos. Assim o costume indígena ou caboclo conserva seus modos de crenças, rezas, festas, formas de caçar e pescar, conduzindo a relação do homem com o meio ambiente e suas espécies nativas extraídas seja para venda ou subsistência familiar. Para

a

análise

dos

documentos

procuraremos

confrontar

as

informações teóricas com a realidade social pensando em articular a composição dos dados estatísticos e verificando similitudes e autonomias de produção desenvolvidas pelas múltiplas sociedades do Médio Purus dotadas de características singulares entrelaçadas por redes sociais muito próximas. Portanto os documentos, as bibliografias e as etnografias produzidas sobre o Purus formam um conjunto de fontes que devem ser reunidas para um aprofundamento analítico. A antropologia parte da subjetividade da nossa linha de pesquisa, procura investigar a cosmologia indígena, para tal realização é de suma importância à releitura de documentos oficias complementares a etnografia dos povos do médio Purus, buscando evidenciar certos temas e assuntos. Com os objetivos previamente estabelecidos de cruzar dados quantitativos contidos em acervo documental histórico, contidos nos livros de casamento, de óbitos, de imóveis, alvarás e reuni-los aos dados qualitativos por meio de entrevistas utilizando o recurso da história oral. Passa ainda por elaboração uma apresentação iconográfica das imagens registradas no percurso da viagem, um recurso que antropologia utiliza mostrando percepções humanas reveladoras do meio social, relações de parentesco, expressão corporal, sociabilidades incomuns, nem sempre perceptíveis na escrita ou na oralidade. Esperamos que este relatório seja o início de uma série maior de produção acadêmica da Expedição Purus 2012.

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O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA, MÉDIO PURUS (PARTE I) Alba Garcia INTRODUCCIÓN El objetivo de la presente investigación fue estudiar los sistemas productivos de la región del Medio Purús, en concreto, se estudió en detalle el proceso de elaboración de la farinha de mandioca, en la localidad de Canutama. El estudio que elaboramos fue abordado desde un punto de vista multidisciplinar donde confluyen varios campos del saber científico para tener, de este modo, una perspectiva más amplia del tema, y por tanto, un conocimiento más rico de la realidad que venimos estudiando, esperando, que favorezca de esta forma, no sólo la definición y problematización del objeto de estudio sino también el planteamiento, desarrollo, resultados y conclusiones de la presente investigación. Este equipo multidisciplinar abordó por tanto aspectos de diferente naturaleza de manera conjunta, de tal forma que aunque cada cual supiéramos exactamente en qué aspectos debíamos centrar nuestra investigación, de manera constante y diaria contrastábamos las nuevas informaciones que descubríamos y las conclusiones a las que nos hacían llegar. Esto, para mí, fue clave en la investigación, tanto a nivel individual como conjunta, ya que de este modo entre todos ayudábamos a complementar nuestras investigaciones individuales y nos ayudaba a tener en cuenta ciertos criterios y aspectos de otras áreas que estarían influenciando directamente la nuestra. Prácticamente todos los compañeros teníamos claro que nuestra investigación formaba parte de una mayor y era imprescindible tanto el trabajo individual como el trabajo en equipo para sacar conclusiones que tuvieran una perspectiva lo más amplia y rica posible. Fue éste carácter de ayuda mutua, de complementariedad y de compañerismo durante el tiempo que duró la investigación el que, sin ninguna duda, creo que hizo posibles los resultados finales de nuestras investigaciones.

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Carácterísticas del contexto donde se realizó la investigación A continuación describiremos brevemente las características del contexto en el que realizamos la investigación que resultan relevantes para la siguiente pesquisa.

El lugar donde se realizó la investigación por

aproximadamente un mes es una localidad pequeña localizada en el Médio Purús llamada Canutama, al sur oeste de Manaus. Esta comunidad está formada

por

grandes

familias,

la

gran

mayoría

de

agricultores

y

recolectores, por tanto, existe muy poco comercio. Me llamó la atención que en la ciudad no hay ningún mercado y en las tiendas de ultramarinos escaseaban las frutas y verduras. Las personas que tienen huertas, plantan para su propio autoconsumo. Solamente en ocasiones excepcionales se puede llegar a vender el excedente, pero éste, en tal caso, es muy poco representativo en volumen, y esto siempre acontece dentro de la ciudad para familiares o vecinos. En el municipio de Canutama y los alrededores, donde se encuentran las áreas de cultivo, existe tan sólo una pequeña área de tierra firme y el resto se inunda, lo que se viene denominando várzea. Las áreas de cultivo, por tanto se hayan distribuidas, por tanto, en esta pequeña porción de tierra firme y en la zona de várzea. Éste último terreno se ve afectado, por tanto, por la dinámica del flujo de las aguas, con todas las consecuencias que esto tiene. Por tanto, es ese factor hídrico el principal criterio que tienen en cuenta los agricultores de Canutama tanto a la hora de escoger los productos hortícolas se van a plantar como en la elección de cuándo van a ser plantados, y por tanto recolectados, para asegurar la alimentación familiar de forma satisfactoria y estable durante todas las estaciones del año. Dentro de la cosmovisión de los agricultores de Canutama, en la percepción del tiempo se tiene mucho en cuenta este aspecto sobre los tiempos que necesita cada especie vegetal desde su plantación hasta su colecta pasando por la fase de desarrollo y maduración de las diferentes especies vegetales que se plantaron en los rozados. Es importante resaltar que normalmente siempre, los agricultores de Canutama recolectan tanto las especies que ellos/ellas mismos/as cultivaron como las que recolectan

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en el mato. Este hecho lo constatábamos cada día en expresiones como “casi al mismo tiempo que la mandioca está llegando el açaí”, “después del açaí viene la melancía” y declaraciones parecidas. Importancia de la mandioca con respecto a las otras especies vegetales en la cosmovisión canutamense Durante la investigación, encontramos entre la mandioca y el resto de los productos vegetales tanto plantados como recolectados una relación desigual en cuanto a la importancia simbólica que tiene para los habitantes de Canutama. La mandioca es la “estrella” de los rozados. El número y cantidad de especies vegetales cultivados en los rozados de las diferentes personas puede ser variable pero lo que es imprescindible es la presencia de la mandioca en todos los rozados de todos los plantadores. Nunca se encontró durante el trabajo en el campo personas que tuvieran plantaciones de diferentes productos sin plantar mandioca; en cambio muchos eran los casos en los que la única planta cultivada era la mandioca. La elección de las variedades de manivas de mandioca que se van a plantar, también está tomada en base a una representación simbólica de las mismas. Hay grandes diferencias entre los diferentes tipos de especies de mandioca, hay unas que rinden más que otras, otras que requieren mucho más trabajo para obtener la misma cantidad de farinha, otras que dan farinha más “bonita” etc.22 Los agricultores tienen en sus rozados una relativamente diversa variedad de manivas de mandioca, no se limitan a plantar solamente una especie. A diferencia de lo que se podría intuir, no necesariamente se planta un número mayor de las manivas. (Para más detalle consultar el relatorio de Thayná que lo explica al detalle ya que éste fue su objeto de estudio) Los productos que se pueden plantan además de la mandioca son varios, entre los más comunes podríamos citar: el feijao de praia, la

22

Farinha bonita, desde el punto de vista de los habitantes de Canutama, es una farinha sin

granos demasiado grandes, sin palha y de color amarelo-mustarda, incidiendo notablemente en esta última característica

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macaxeira, la melancia, el milho, el jirimú etc. Al ser una zona de várzea-o de Praia- donde se plantan estos productos, tanto la elección de los productos que van a ser plantados (y la variedad) como el tiempo de plantarlos y recogerlos, va a estar determinado por dos cosas: la dinámica de las aguas (el periodo de crecida y seca del río) y el tiempo empleado en el trabajo de la mandioca para obtener la preciada farinha. Es importante estudiar la importancia de la farinha de mandioca, por la importancia y valor que tiene tanto a nivel nutritivo, como a nivel simbólico dentro de esta sociedad determinada y las implicaciones antropológicas que tiene el proceso de elaboración de la farinha desde el punto de vista de la cosmovisión nativa, en este caso concreto, para los moradores de Canutama. Para estudiar este hecho, el enfoque clave es, principalmente, el antropológico, pero se ha pretendido combinar este con el estudio de algunos aspectos ecológicos y biológicos, siempre desde una mirada antropológica, para tener una visión de esta realidad más completa. Proceso de la elaboración de la farinha Cuando cogemos los granos amarillos de la farinha de mandioca con nuestras manos debemos tener en mente que son el resultado de un largo y trabajoso proceso con varias etapas que describiremos a continuación. Utilizaremos las mismas palabras que los agricultores de Canutama utilizan para definir las diferentes etapas: 1. Plantar. Se realiza en el mes de junio/ julio, dependiendo de la especie de mandioca y del área donde se plante (varcea alta, varcea baja, terra firme…. Thayná en su relatorio contempla con detalle esto. 2. Capinar. Consiste en quitar las hierbas que crecen en el terreno donde está plantada la mandioca y que pueden dificultar el crecimiento de esta. Normalmente se hace un par de veces o las que ellos crean necesarias. 3. Arrancar e decotar. Consiste en cortar primero las manivas para que después el proceso de arrancar la raíz requiera menos esfuerzo. Una vez

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sacado el tubérculo de la tierra, se quitan los terrones de tierra con el cuchillo y se cortan los extremos del tubérculo.

Figura 4 – Decote de las manivas. Foto: Alba Garcia.

4. Botar de molho. Una vez obtenidos los tubérculos se les deja a remojo por dos días en un charco, lago o barreño cerca del roçado y de la casa de farinha para que la mandioca tire su veneno. Al cabo de dos días las mujeres y los niños/as vuelven al lago o charco y recogen los tubérculos con las manos y les retiran la cáscara.

Figura 5 – Tubérculos en remojo. Foto: Alba Garcia.

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5. Prensar. Esta masa formada por la mandioca ya blanda después de haber estado en el agua, se lleva a la casa de farinha, se coloca en una especie de molde o plancha y después se coloca en un mecanismo diseñado especialmente para escurrir la masa. Se deja durante algunas horas hasta que la mayor parte del agua esté eliminada. Normalmente se deja escurriendo al final de la tarde al terminar la jornada para tenerla lista al día siguiente a primera hora y poder continuar con el proceso aprovechando bien el tiempo.

Figura 6 – Prensa de la masa de la mandioca. Foto: Alba Garcia.

6. Penerar. Se hace grandes peneras hechas manualmente con cipó del mato o compradas de metal. Se va añadiendo la masa de la mandioca poco a poco en la penera y las mujeres y los niños la mueven a lo largo y ancho de la penera para quitarle los nudos, hebras y partes duras de la mandioca, obteniendo así una masa libre de toda impureza (o puba como ellos lo llaman).

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Figura 7 – Família penerando farinha. Foto: Alba Garcia.

7. Torrrar. Es el último paso y el más costoso. Poco a poco se va echando la masa de la penera al horno debidamente caliente e hidratado con aceite de girasol o soja en su justa medida. Son los varones quienes se encargan de mover con un remo de canoa sin descanso la farinha en la superficie del horno. Al principio es removerla y al final se tiene que levantar la farinha con el remo y dejarla caer desde una altura de unos 40cm para que el viento se lleve las pajitas que los filamentos de la mandioca formaron. Es importante no parar porque la farinha se quemaría. Como es un proceso que requiere mucho esfuerzo, los varones se van turnando y combinan un rato de trabajo y otro de descanso.

Figura 8 – Varones torrando la farinha. Foto: Alba Garcia.

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Articulación y funcionamiento de las unidades productivas para la obtención de la farinha de mandioca Desde el punto de vista de los habitantes de Canutama, el tener farinha en la mesa y en casa en el almuerzo y en la cena por toda la temporada, es como tener aseguradas las comidas en la mesa para toda la familia por los próximos meses. A partir de la observación directa de varias familias e de la organización de las mismas en la producción de la farinha, se dedujeron ciertas conclusiones que a continuación explicaremos con detalle sobre el padrón inconsciente que los individuos siguen en la organización del sistema productivo, mediante el cual, se va organizando esa unidad productiva para la obtención y garantía de ese producto tan importante y tan básico, del cual ningún miembro puede carecer en ningún momento del año. Aclaremos en este punto que entendemos como “unidad productiva” aquella organización específica de la fuerza de trabajo dentro de la unidad familiar que se estructura y organiza de un modo concreto, no aleatorio ni improvisado, formada exclusivamente con la finalidad de elaborar y asegurar la farinha de mandioca para todas las personas que componen esa unidad familiar. A continuación explicaremos con rigurosamente los detalles del patrón que rige esta organización, cómo funciona, quiénes son sus integrantes, sus características, forma de articulación etc. Estudiando

y

comparando

genealogías

de

diferentes

familias

y

relacionándolas con los sistemas productivos familiares que se producen dentro de las mismas percibimos una línea común de organización de esa fuerza de trabajo en sus respectivas unidades familiar. Lo que antes parecía una organización anárquica o espontánea resultó ser una elaboradísima y estratégica trama, resultado de un complejo conjunto de “decisiones” inconscientes por parte de los objetos de estudio guiadas por “su sentido común” (sentido común propio y específico de los plantadores de Canutama). Precisamente, la presente investigación desveló ese “sentido común” particular y esa lógica concreta que subyace a la formación, organización y articulación específica de las unidades familiares de los agricultores de

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Canutama que da lugar a la formación de esas unidades productivas que organizan y optimizan la fuerza de trabajo que tiene la unidad familiar Básicamente, este sistema productivo de la farinha de mandioca se estructura en torno de la unidad familiar de pertenencia. Se puede decir, que la unidad familiar se organiza de una forma específica que funciona como una unidad productiva perfectamente organizada que permite integrar a todas las personas pertenecientes a la misma, en cualquiera que sea la circunstancia personal en la que se encuentren (por muy adversa que esta sea), de tal forma que nadie quede fuera de ella. Esto permite así, para todos ellos y ellas, tener asegurando durante todo el año, este producto primordial en la alimentación, tanto a nivel nutritivo como simbólico como es la farinha de mandioca. A continuación vamos a explicar minuciosamente la hipótesis que dedujimos tras la observación de campo. Cabe decir aquí, que estos resultados procedentes de la investigación sobre una unidad familiar concreta de referencia que es la familia de Seu Chicó y Angélica (por tanto, la unidad productiva de Seu Chicó y Angélica y las unidades productivas que se formaron dentro de la familia tanto de Seu Chicó como de su esposa Angélica). Posteriormente, el resultado de este análisis, se comparó con la articulación de otras unidades familiares y productivas diferentes y se planteó

una

hipótesis

de

formación,

organización,

articulación

y

funcionamiento de las unidades familiares y productivas ante diferentes circunstancias. Esta hipótesis se corroboraba en todos los casos que escogimos para la comparativa, confirmando,

de este modo, la hipótesis

planteada. Se escogió la unidad productiva de la familia de Seu Chicó como referente debido a su disposición e interés para ayudarnos con la investigación, a su la facilidad de palabra y capacidad de reflexión y de relacionar diferentes cosas que tiene Seu Chicó. De ahí se decidió que, ya que el entramado del sistema está creado por relaciones de parentesco y afinidad, él sería el conector perfecto que nos presentara al resto de la familia y amigos implicados, debido a su don de gentes y el amor que todo el mundo le profesa.

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Se analizó también, por extensión, la familia de su esposa, Angélica, que es una familia grande donde se observaron diferentes casos que nos interesaba abordar y contemplar en la investigación, como por ejemplo casos de viudez masculina y femenina, divorcio etc. En primer lugar y antes de pasar a la explicación detallada es importante hacer una aclaración. Durante la presente investigación, vamos a diferenciar dos diferentes tipos de unidad para el análisis de esta situación; por un lado tenemos la unidad familiar y por otro la unidad productiva. Ambas unidades están íntimamente relacionadas y el segundo es producto de la organización de un modo determinado de la primera. La farinha tiene un papel primordial a nivel simbólico e alimenticio en la vida de las personas de la comunidad.

Esta relación queda clara la

siguiente declaración de una anciana del lugar “en la mesa puede faltar arroz, puede faltar feijao, pero nunca puede faltar farinha”. En términos alimenticios, es la principal fuente de hidratos de carbono en la dieta de la mayor parte de los habitantes de Canutama. A

un

nivel

más

simbólico,

para

todas

las

personas,

independientemente de su situación económico social, la farinha es un producto alimenticio que tiene un valor privilegiado en el imaginario colectivo. En las familias de renta más baja, generalmente las principales comidas consisten en un pedazo de pescado acompañado por la preciada farinha. Las familias que se lo pueden permitir, alternan el pescado con carne (pollo u otro tipo de carne como de buey o vaca…) y finalmente, las familias de rentas más altas comen cualquier producto pero siempre acompañado por farinha, en mayor o menor medida. Como ya hemos explicado con anterioridad, en la cosmovisión del agricultor Canutamense, su propio tiempo vital es vivido acorde a los diferentes ciclos de las plantaciones y recolectas de los diferentes productos; así tenemos el tiempo de la farinha e macaxeira por un lado, el del feijao de praia, el del milho, y otros que se recolectan directamente del mato sin haber necesidad de plantarlos como son el cupuaçú, el açaí, la goiaba, la pupunha, la banana…

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Pero para organizar este esquema temporal de obtención de los alimentos, se tiene muy en cuenta el tiempo que se ocupa en “la farinhada” y acorde con eso, se van programando y organizando las anteriores y posteriores siembras y actividades de recolecta. En las huertas pueden variar los productos que se plantan excepto la mandioca que es una constante en todos ellos. Es decir, puede que haya melancia o no, se puede plantar más macaxeira, menos, o incluso nada, puede que planten feijao o no… pero, con toda certeza, la mandioca es un vegetal que no va a faltar nunca en ninguna huerta, inclusive en muchos casos es la única cosa que se planta. Por causa de esta importancia que se le da a este elemento en la alimentación y en las propias estructuras sociales y familiares implicadas y desplegadas en la producción de

la farinha se decidió estudiar cómo

funciona este fenómeno, cuál es la lógica interna en la organización familiar para dar como resultado ese complejo sistema productivo y este sistema de relaciones estratégicas entre las unidades productivas tan efectivo y estratégicamente planeado aunque de manera inconsciente. La mandioca, en general, y todo lo relacionado con ella, tanto el producto de la misma, la farinha, como todo el proceso generado a su alrededor para su elaboración, es de vital importancia no sólo a nivel simbólico, sino también desde el punto de vista de toda la estructura social y familiar que se moviliza y articula en el proceso, y todas las representaciones colectivas que se tienen en torno al mismo. De la unidad familiar a la unidad productiva. Proceso de formación y organización Como hemos explicado con anterioridad, Canutama es una población pequeña formada principalmente por agricultores, y estos agricultores, generalmente suelen tener familias grandes.Teniendo en cuenta que la norma es que las familias sean grandes la unidad productiva se establece del siguiente modo: (adoptando el criterio “nativo” consideraremos como “grandes” aquellas familias que tienen más de tres hijos o hijas). Para explicar nuestra hipótesis de la formación de la unidad productiva nos basaremos en el caso de una familia nuclear formada por un hombre y una mujer y los hijos varones y hembras producto de la misma.

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Pueden existir varios casos: Mientras los hijos varones son jóvenes; esto es, si todavía no han tenido hijos o ya se casaron y tienen pocos hijos (menos de tres). Para abreviar usaremos la secuencia “JV” cuando hagamos referencia a este término: hijos varones solteros o casados con pocos hijos que trabajan en la propia unidad de producción familiar junto a sus padres. En esta situación, estos “JV” continúan en su propia unidad de producción de origen junto con sus padres y además, los que están casados, incorporarán a su esposa a su propia unidad productiva. Como vemos, en este sistema son los varones los que se quedan en la unidad productiva de origen y además incorporan nuevos miembros para dar continuidad a la misma y son las mujeres las que salen. La esposa de “JV” sale de su sistema productivo original que formaba con su propia familia para pasar a formar parte de la unidad productiva del marido y esto sólo ocurre después del matrimonio o la el concubinato. Cuando “JV” van creciendo y a medida que van teniendo sus propios hijos, siempre que su familia sea pequeña –esposa y hasta tres hijospueden seguir trabajando y obteniendo farinha de su unidad de producción de pertenencia. Ahora, a medida que la familia de este “JV” va creciendo y ya se tienen más de tres hijos o los que se tienen se van haciendo mayores, en esta situación, este “JV” tiene que conseguir un roçado propio y formar otra unidad productiva independiente formada por él, su esposa, sus hijos y sus ayudantes, en el caso de que los hubiera. En el caso de las hijas jóvenes mujeres continuarán trabajando en la misma unidad productiva de sus padres y ganando exclusivamente farinha de ésta siempre y cuando sean: solteras, separadas o abandonadas por su marido (en estos casos no importa que tenga hijos o no, si los tiene, viven con ella y son lo suficientemente mayores como para ser de ayuda en el proceso, se incorporarán también a la unidad productiva materna). En caso contrario, si las hijas están casadas y con varios hijos (el caso más habitual), como ya se ha explicado, la hija será incorporada entonces a unidad de producción de la familia del marido (en el caso de tener pocos hijos –menos de 3-) o en el caso de que hayan tenido más hijos y formen, por tanto, una familia grande, adquirirán tierra y formarán una nueva

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unidad de producción formada por ella, su marido, sus hijos y sus ayudantes en el caso de que los necesitase. Debido a la fortaleza de las relaciones familiares en este contexto, especialmente de las mujeres con su familia consanguínea, esta hija nunca se desvinculará por completo de la unidad productiva de sus padres y de vez en cuando cooperará por el bien de su unidad familiar de procedencia (bajo la forma de unidad de producción) en el trabajo de uno u otro modo (a través de trabajo físico, préstamo de material, haciendo la comida para todos en la casa de farinha…). Si la relación con su marido termina, la mujer tiene varias opciones: puede salir de la unidad productiva del marido (tanto si se formó una nueva como si se trabajaba en la unidad productiva de los padres del marido) y volver a la unidad de producción de origen junto a sus propios padres y hermanos en las condiciones anteriormente explicadas, o bien ayudar a algún hermano (normalmente separado, soltero o de familia pequeña) o a alguna hermana (suele ser el caso según lo observado debido básicamente a la fortaleza de los vínculos femeninos en este contexto) para obtener farinha. Si por decisiones personales, esta hembra separada de su marido, no quiere implicarse de forma tan directa y completa a las unidades productivas

formadas

por

los

miembros

de

su

familia

nuclear,

tambiénpuede tener un empleo asalariado en otro lugar y trabajar esporádicamente en las roças de sus padres o hermanos/as, como se ha explicado, para ganar la farinha. En el caso de que la hija esté enferma, los padres o hermanos le fornecerán a ella y a sus hijos, en caso de que los tenga. En el caso de los hijos varones que formaron su propia unidad de producción y por ciertas circunstancias esta se vio quebrada, se observaron varias alternativas: -continuar con su propia unidad de producción y vender el excedente. Al ser poca fuerza de trabajo seguramente va a necesitar ayudantes, normalmente suelen ser familiares, amigos o conocidos, (en este orden).

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- volver a la unidad de producción de origen. La farinha se reparte entre los miembros de la unidad de producción y entre los propios miembros de la familia, asegurando de ese modo que ninguno quede sin la farinha básica que va a necesitar durante el resto del año. Lo que se acaba de explicar es la estructura básica de la unidad de producción y cómo y en qué circunstancias se van creando otras nuevas. Pero también puede ocurrir el siguiente caso: unidades de producción en las que trabajan las hijas casadas, y el marido de estas hijas y hasta los hijos de este matrimonio trabajando en la unidad de producción de los padres de ella. Esto ocurre cuando: - Los padres del marido no plantan (por tanto no es posible incorporarse a la unidad de producción formada por la familia del marido como sería lo razonable según la hipótesis plantea) - El marido tiene otro trabajo alternativo como empleado de la prefeitura, profesor,

pedrero etc que le imposibilite por tiempo material

tener un rozado propio. Entonces la mujer en este caso, se mantiene o vuelve a su unidad productiva de origen para asegurar la farinha para su familia y el marido ayudará esporádicamente cuando sus obligaciones laborales se lo permitan. En este caso particular de que el marido tenga un empleo remunerado estable según la hipótesis que acabamos de plantear era de esperar que, teóricamente, la mujer se incorporase a la unidad de producción de los padres del marido. Pero en este caso no es así. Para explicar esta situación tenemos que tener en cuenta el carácter social de este proceso, desde que se cortan las manivas de mandioca hasta que se almacena la dorada farinha en sacos. Por tanto, la explicación la debemos buscar precisamente ahí, en los vínculos familiares especialmente fuertes que las mujeres agricultoras canutamenses mantienen con su familia consanguínea. De ahí que, ya que el marido no está implicado en el proceso productivo por tener otras obligaciones laborales, estas mujeres quieran pasar todo este tiempo empleado en la obtención de la farinha y realizar todo este proceso y esas actividades con sus familiares directos en lugar de incorporarse a la unidad de producción de los padres del marido, en el caso de que fuera posible.

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Porque no sólo se hace farinha sino que se trabaja de un modo totalmente social. En definitiva, este proceso productivo en general, y el espacio tanto físico como simbólico proporcionado en la casa de farinha todo un conjunto de importantes consecuencias personales y sociales. Estrategias adaptativas de las unidades productivas para garantizar la producción en situaciones extremas Se observó en el campo un tipo de estrategia específica que consiste en la alianza de varias unidades productivas de tal forma que, todas ellas, a través de la ayuda mutua, obtengan al final del proceso su parte de farinha en situaciones límites donde la cosecha corre peligro. Para este tipo de formaciones de estas características específicas utilizaremos el concepto de “grupo corporativo”. Esta alianzas son imprescindibles dadas las características de las unidades productivas que las forman ya que son formadas en periodos de máxima necesidad y urgencia, sin las cuales la obtención de la tan deseada farinha no es posible para ninguna de ellas. Tales acuerdos son realizados cuando es importante trabajar a un ritmo rápido para aprovechar la mayor parte de mandioca posible debido, normalmente, a una inminente inundación del rozado plantado en la várzea, producida por fuertes lluvias y consecuentemente, una rápida crecida del río. Las unidades productivas que se alían formando este grupo corporativo se caracterizan por estar formadas por pocos miembros. Por “pocos miembros” entendemos: un matrimonio formado por un hombre y una mujer y los hijos de estos en igual número o menor a tres y/u otros parientes de alto grado de proximidad de parentesco. Los casos más típicos de estas unidades productivas aliadas son las constituidas por: hermanos casados, divorciados o solteros con pocos hijos, hermanas solteras o divorciadas (con o sin hijos) o casadas que no formaron una nueva unidad productiva por tener pocos hijos o porque su marido tenía otro trabajo que le impedía tener una roça. cuñados que no formaron una nueva unidad productiva por no tener hijos o tener pocos y sus padres o hermanos no tenían rozado propio, de tal

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forma que le es imposible incorporarse a unidades productivas de parientes pertenecientes a su propia familia nuclear. Además

de

ser

unidades

productivas

pequeñas,

otra

de

las

características es que estos miembros que las componen están ligados entre sí por vínculos próximos de parentesco. Además, al tener sus rozados adyacentes pueden compartir la misma casa de farinha. Esto,posibilita que puedan establecerse más fácilmente relaciones de ayuda, intercambio e inclusive alianzas y ciertos vínculos especiales de colaboración y ayuda entre todos para que, por medio de la colaboración de todos los miembros del grupo corporativo trabajando por un bien común, se consiga el beneficio para a todos ellos en términos de obtención de la farinha a partir del aprovechamiento de toda o la mayor parte de la mandioca de la roça. Sin la existencia de este tipo de alianzas, todas las unidades productivas saldrían perjudicadas. Apropiándome de las palabras del famoso mosquetero, se podría decir que en este caso es una especie de “uno para todos y todos para uno”. Estas pequeñas unidades productivas se alían funcionando como si fuera una sola, trabajando todas las personas de todas las universidades productivas para multiplicar la fuerza de trabajo y realizar el trabajo en un menor tiempo. En primer lugar se trabaja en los roçados que tiene más peligro de inundarse para pasar posteriormente al resto. Sólamente gracias a esta estrategia de compromiso y ayuda recíproca de todas las unidades productivas se obtienen resultados que benefician a todos los miembros en momentos inesperados y dramáticos donde está en riesgo para todas las unidades productivas la posibilidad de recoger a tiempo toda la mandioca que se plantó y torrarla, para obtener la tan preciada farinha. Ilustremos este planteamiento teórico con un caso práctico. Pongamos por ejemplo el caso de la familia de Dona María de Fátima. El grupo corporativo formado en torno a ella está formado por las siguientes unidades productivas: María de Fátima, su esposo Augusto (Chiquiño) y su hermano, Joao Batista.

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Raimundo Nonato (hijo de Maria de Fátima), su esposa Luciclene, sus tres hijos (dos varones y una mujer) y un ayudante, Dinio, también pariente. Josemar (hijo de María de Fátima), su esposa y dos ayudantes: su primo

Totó

(hijo

de

Joao

Batista)

el

hermano

de

su

esposa

y

ocasionalmente el hermano de su esposa que normalmente trabaja en la roça de los padres. Antonio de Jesús (hijo de María de Fátima), su esposa Francisca, su único hijo Neném y un ayudante. Ese ayudante normalmente era el padrino de Neném pero este año comenzó a trabajar en un puesto remunerado mensualmente y ahora es la esposa de este padrino quien ayuda a Antonio de Jesús (madre viuda que trabaja con la tía). Forma de repartir la farinha La cantidad de farinha obtenida dependerá del trabajo que se haya realizado en la unidad de producción. Si la unidad productiva que va a repartir es la familiar y tiene que repartir entre los hijos varones (y puede que alguna hembra en las condiciones que hemos explicado más arriba) se repartirá en función de las necesidades de cada familia, porque normalmente se trabaja por igual. En el caso de que se tenga que hacer el pago a ayudantes varones, la forma más popular es hacerlo mediante “meia” es decir, a partes iguales, mitad y mitad. Y se hace “meia” aunque el ayudante solo trabaje en la torrada dejando el resto de los pasos a cargo de el y la cabeza de familia. Éste último paso, el de torrar la farinha se considera el que requiere más esfuerzo físico. También debemos poner en relevancia que aunque algunos de los hijos o hijas estén viviendo fuera de Canutama, los padres o los hermanos varones integrantes de la unidad productiva familiar de referencia les fornecerán de farinha (se constató este hecho especialmente en mujeres. Eran varias las madres, los padres o hermanos que decían que mandaban farinha a sus hijas que vivían en Manaus, a su hermana que vivía en Lábrea etc.

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En el caso de las ayudantes que sean mujeres, lo normal es que no se obtenga “meia”, sino que se establezca un acuerdo previo de un determinado número de alqueros23 por el trabajo realizado. Las mujeres ayudantes suelen obtener menos farinha que los ayudantes varones al final del proceso ya que se considera que el trabajo que hacen no es tan pesado, tiene un valor social menor y, por tanto, está peor pagado. Existen también otros casos, pero menos representativos, que se paga a los ayudantes con dinero. Esto ocurre cuando el ayudante en cuestión no precisa farinha por estar fornecido por otro lado. Este era el caso por ejemplo de “el Pelao”, un sobrino de Dude. “El Pelao” vivía actualmente con su abuela, la madre de Dude, porque la madre de “el Pelao”, hermana de Dude, nunca se había hecho cargo de él. Como los padres de Dude tienen rozado propio y el “Pelao” tiene garantizada la farinha en la mesa, “el Pelao” trabaja en la unidad de producción de la abuela ya que vive en la casa de ésta y come y bebe (como ellos decían) allí, y además, ayuda a su tío Dude del que recibe dinero como pago. Aspectos simbólicos entorno al proceso productivo A continuación pasaremos a explicar todo el entramado simbólico existente alrededor del proceso productivo de la farinha. Conviene aclarar que se entiende este espacio simbólico como un espacio abierto y flexible, en constante reconstrucción y resignificación que va tomando nuevas formas y valores nuevos con el paso del tiempo y de las circunstancias sociales, lo consideramos un proceso dinámico en lugar de algo fijo y cerrado. En primer lugar, hablaremos de la importancia de tener rozado propio. Esto está referido a los varones especialmente. Las personas que configuran la sociedad que venimos estudiando atribuyen un valor muy positivo a los varones que tienen un rozado propio en las circunstancias de que se tenga una familia de más de tres hijos o hijas. Socialmente se espera eso de un varón en dichas circunstancias. Como ya hemos explicado,

23

1 alquero = 40 litros de farinha

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desde el punto de vista de los agricultores canutamenses se considera el hecho de tener farinha en casa una garantía del cuidado y el bienestar alimentario de la familia; por tanto el varón que asegura esto para los suyos, tiene la aprobación social de buen padre y cabeza de familia. El caso contrario no está muy bien visto en este contexto. Este varón del que

socialmente se espera que, por sus circunstancias personales

tuviera rozado y no lo tiene, no obtiene la aprobación de su sociedad y se le atribuyen calificativos bien despectivos como vago, irresponsable o se piensa que no cuida bien de su familia. Todo ello es resultado del valor simbólico que tiene en esta sociedad que estudiamos la farinha de mandioca unido al hecho de que en este contexto es el varón es el cabeza de familia y está bajo su responsabilidad abastecer a su familia de comida suficiente con la que alimentarse y de algo de dinero para comprar los productos imprescindibles para llevar una vida sin grandes carencias. La casa de farinha como espacio físico y simbólico

Figura 9 – Una casa de farinha. Foto: Alba Garcia.

La casa de farinha es un lugar de trabajo y también es la extensión del espacio privado, es un espacio público y también privado. Es el lugar de trabajo pero también es el lugar donde toda la familia se reúne y conversa. El proceso de producción de la farinha es el espacio simbólico que posibilita

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las trocas entre los familiares, las relaciones de ayuda, de solidaridad, de cooperación, de intercambio de cosas de diferente naturaleza, de trueque… en fin, es un lugar de encuentro donde se fortalecen (todavía más) las relaciones familiares y los vínculos de proximidad con otras personas procedentes de otras unidades de producción sean procedentes tanto de dentro como de fuera de unidad familiar. Por tanto, podemos decir que en torno de esta actividad productiva y gracias a ella se establecen vínculos y relaciones que crean y favorecen un clima de cooperación y solidaridad en la comunidad donde el ambiente es hostil debido a las difíciles condiciones de vida y la vulnerabilidad de las personas en este ambiente con condiciones ambientales tan duras. La casa de farinha, por tanto, no es solamente es un lugar de trabajo sino también un lugar de encuentro, de diálogo, de diversión, de intercambio de fortalecimiento y consolidación de relaciones. Ahí las personas se reúnen diariamente en tanto dura la época de la farinhada y se prepara gran cantidad de comida para todos para comer, beber, se ríe... Por tanto, podemos decir que la casa de farinha es un espacio tanto público como privado al mismo tiempo. Los familiares directos como hijos, hermanos e inclusive losamigos cercanos… suelen hacer todo lo posible para conseguir tener los rozados cerca físicamente los unos de los otros y poder compartir la casa de farinha o ayudarse más facilmente, y lo cierto es que según se observó en el campo ocurre que casi siempre se consiguen pegando unos con los otros. La sincronización entre dos unidades productivas en los diferentes pasos del el proceso de productivo, posibilita que pueda compartirse ese mismo espacio de trabajo simultáneamente entre ambas unidades. El esquema sería el siguiente: Por un lado tenemos una unidad productiva que está arrancando las manivas

de

mandioca

y

poniendo

de

molho

(esto

va

a

durar

aproximadamente 3 dias). A partir deese mismo día los individuos de la otra unidad productiva pueden tirar masa, prensar y penerar y usar la casa de farinha para torrar durante esos tres días en el que la otra unidad productiva no va a precisar de ella y viceversa.

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Todo esto es posible gracias a una coordinación adecuada y exacta de las actividades de ambas unidades. Normalmente la casa de farinha es compartida por familiares que tienen los rozados próximos aunque puede acontecer que se comparta con amigos de rozados próximos. También puede darse el caso de que familiares o amigos que no vayan a utilizar por ese año la casa de farinha la presten sin pedir nada a cambio. Cuando en la casa de farinha trabajan varias unidad pertenecientes a la misma familia, la propia unidad familiar va a ocuparse de adoptar diferentes estrategias para así adaptar las diferentes unidades productivas dentro de ella para así garantizar que todos los miembros y sus respectivas familias queden abastecidos. En muchas ocasiones para conseguirlo, se necesita de los intercambios y colaboración de otros familiares y amigos para completar el proceso y obtener así la cantidad de farinha necesaria para abastecer a todos los miembros y pagar a los ayudantes, en caso de que los hubiera. Casi siempre las unidades productivas en algún momento del proceso necesitan de ayuda extra. Esta ayuda puede tener dos formas: una más formal, permanente o estable que se materializaría en la contratación de ayudantes para torrar o arrancar. Y la otra es otro tipo de ayudas en las que no hay ningún tipo de retribución pactada de modo explícito, pero que son muy importantes ya que favorecen la buena relación entre ellos y fortalecen y crean lazos afectivos. Puede considerarse como tipo “favores” que se hacen. Con frecuencia las personas de diferentes unidades productivas van a necesitar este tipo de ayudas que serán proporcionadas básicamente por familiares y amigos. A lo largo de la presente investigación queda reflejada en todos los puntos la importancia que tienen en este contexto los vínculos familiares y sociales. Tener una amplia y fortalecida red de parientes y amigos asegura, como hemos visto, el éxito productivo de la unidad familiar en la obtención de la farinha como en otros muchos aspectos de la vida en los que se pueda precisar de algún tipo de “favor”, ya que como se ha observado en el campo, en esta sociedad se producen muy frecuentemente este tipo de

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intercambios sin pedir nada a cambio pero de los que se espera una reciprocidad cuando en otra ocasión se precisare. Este hecho de la importancia de tener muchos parientes se constata cuando nos enteramos que, a después de casarse una pareja (o irse a vivir juntos), la persona pasa a adquirir como propios los parientes de su pareja, tanto próximos como lejanos. Es decir, que para la esposa, por ejemplo, la hermana del marido de su cuñada pasaría a ser considerada una parienta próxima como una cuñada o como una prima. Y la hija de ésta parienta pasaría a ser como su sobrina. De este modo, y teniendo en cuenta que en este contexto que venimos estudiando las familias son muy grandes, el matrimonio es el mecanismo que posibilita ese aumento exponencial del número de parientes y con ello el número de ayudas que pueden ser dadas y recibidas. Por tanto queda reflejado en el presente trabajo, el funcionamiento sumamente colectivo de esta sociedad de agricultores canutamenses en todos los aspectos de su vida y, en concreto, de la actividad productiva que venimos analizando: la producción de farinha de mandioca. En este contexto, no sería posible éxito de dicha actividad productiva sin la ayuda, intercambios y diferentes formaciones estratégicas como ya hemos visto, con otras personas que suelen ser parientes. Este último aspecto al mismo tiempo, revela que esta sociedad además de funcionar de una forma muy colectiva, lo cual favorece positivamente a todos sus integrantes, su garantía de éxito asegurado, en prácticamente en cualquier aspecto de la vida, se basa en tener muchos vínculos familiares fuertes y estables.

117

O SISTEMA DE PRODUÇÃO DA FARINHA EM CANUTAMA, MÉDIO PURUS (PARTE II) Thayná Ferraz da Cunha INTRODUÇÃO O presente estudo teve como objetivo investigar como se organizam os sistemas de cultivo e beneficiamento da mandioca, focando-se assim em descrever

e

analisar

os

aspectos

sociais,

cognitivos

e

simbólicos

relacionados ao complexo de produção da farinha na cidade de Canutama, localizada no sudoeste do Amazonas, às margens do rio Purus. Para alcançar os objetivos propostos, a equipe lançou mão de certos procedimentos metodológicos como leituras gerais acerca da região do Médio Purus e também sobre o tema proposto, realização de trabalho de campo

(observação

participante),

utilização

de

caderno

de

campo,

gravador, filmadoras e máquinas fotográficas e elaboração de etnografias temáticas, croquis e genealogias. Desde o início do trabalho de campo, a equipe guiou suas observações a partir de certos elementos-chaves que viriam a ter inúmeros desdobramentos ao longo de sua duração: critérios de identificação das variedades da espécie, técnicas de beneficiamento adotadas, calendário da produção e organização/mobilização dos grupos sociais em torno da produção de farinha. Além disso, tentamos também descrever e compreender os conhecimentos nativos sobre o ambiente de cultivo e as formas de diferenciação entre mandioca e macaxeira entre os agricultores de Canutama. O trabalho de campo na cidade de Canutama foi realizado em trinta dias, entre os dias 11 de janeiro e 11 de fevereiro de 2012. Optamos (Ingrid, Alba e eu) por realizar apenas a descrição na cidade de Canutama, onde a rede de relações tecidas a partir do processamento de mandioca e sua descrição técnica já pareciam por demais complexas. Assim que chegamos, fomos recebidas no porto por Leandro, um funcionário do IDAM que havíamos contactado previamente, justamente por ser a única referência que possuíamos na cidade. Após alocarmos nossas coisas no alojamento, fomos realizar uma visita inicial as áreas de cultivo próximas à cidade (chamada de Baixa Grande). Nesse dia, conhecemos e

118

conversamos com alguns agricultores que nos receberam muito bem em suas casas de farinha. No fim dessa mesma tarde, enquanto estávamos andando perdidas em uma parte da cidade mais afastada do Centro, encontramos por acaso a primeira família que havíamos conhecido durante a visita inicial daquele dia: a família de seu Chicó, composta por ele, sua esposa Angélica e seus cinco filhos. Convidaram-nos para entrar e ficamos conversando por horas com eles, com quem tivemos grande empatia. Como no dia seguinte não iriam trabalhar na roça, nos convidaram para apresentar uma área mais afastada da cidade onde há uma grande quantidade de agricultores de Canutama plantando: a área da Beira do Seringueiro. A partir desse passeio, nosso envolvimento com a família foi se fazendo

diariamente

enquanto

íamos

acompanhando

essa

unidade

produtiva fazendo sua farinha. Esse tempo que nos dedicamos a isso foi essencial não apenas pelas amizades que íamos construindo entre nós da equipe que cada vez compartilhava informações e construía mais analises, mas também com a família com quem convivíamos fundamentais no estudo não só como observados, mas também como aqueles que muitas vezes construíam esquemas de compreensão que iam de acordo com aquilo que sabiam que observávamos. O tempo em que nos focamos na convivência com essa única família exclusivamente - mais por opção deles do que por alguma escolha nossa – foi de inestimável importância por três principais aspectos: 1. participando da produção de farinha deles íamos aos poucos ganhando familiaridade com as categorias nativas, posto que eles tivessem paciência e generosidade para nos explicar aquilo que perguntávamos ou que não entendíamos; 2. conforme éramos apresentadas a diferentes agricultores íamos ganhando confiança aos poucos e, sem precisar de nenhum tipo de aproximação forçada, fomos construindo nossa rede de relações próprias que, baseadas nessa aproximação, nos afastaram do universo de desconfiança dentro do qual nos estávamos sendo classificadas como as ‘mulheres do IBAMA’ ou as ‘mulheres do governo’; 3. foi a partir dessa família que percebemos que era a partir da unidade familiar que todo o sistema produtivo de farinha se organizava.

119

A partir dessa última percepção, ajustamos o foco de nossa pesquisa para, a partir dessa família extensa inicial, descobrir as dinâmicas sociais de diversas outras ligadas a ela por parentesco. Como a maioria dos parentes da família da esposa de seu Chicó – Angélica - morava na mesma rua, traçamos a genealogia a partir das tias de Angélica, chamando atenção para perguntas como: quem planta junto com quem? Quem ajuda quem? Quem compartilha casa de farinha? Quem recebe farinha? Além disso, começamos também a dividir a equipe, de maneira que cada um costumava acompanhar etapas de preparo da farinha com diferentes unidades produtivas, realizando comparações e diferenciando os espaços. Nesse sentido, estar familiarizado com algumas categorias nativas básicas foi de extrema importância, a fim de potencializar as observações em um tempo mais reduzido. A partir disso, conseguimos observar alguns padrões de organização social que foram de fundamental importância para o prosseguimento da pesquisa. Passada a euforia a descoberta, as observações começaram a se repetir e, a partir disso, optamos por nos aprofundar em outros temas que tinham surgido mais recentemente e que não tinham sido minunciosamente descritos e analisados, como interação entre agricultores que plantam em diferentes ecossistemas: terra firme e várzea. Após esse esboço sobre o desenvolvimento do trabalho de campo, fazse necessário traçar um breve panorama a respeito da cidade de Canutama a fim de que se coloque claro que a área de cultivo e a dinâmica social aqui descrita e analisada é apenas uma dentre as diversas outras nas quais se inserem os moradores dessa cidade. Com uma população de aproximadamente 8.181habitantes, a cidade de Canutama é formada principalmente por agricultores, funcionários públicos e alguns comerciantes. Donos de pequenas vendas no centro da cidade, os comerciantes são aqueles que, além de trazerem ou encomendarem mercadorias de polos urbanos como Manaus, Porto Velho, Cruzeiro do Sul e Lábrea, compram farinha e castanha de alguns moradores de Canutama para vender para empresas ou outros compradores nesses polos urbanos maiores. Muitos dos comerciantes são aqueles considerados como os mais ricos da cidade e são justamente eles os donos dos barcos recreios que

120

realizam a rota Manaus- Canutama-Lábrea e também aqueles que possuem fazendas com criação de gado. A maior porcentagem da população de Canutama, contudo, é formada por agricultores assalariados. A maioria desses plantadores é também pescador durante certas épocas do ano e alguns também são coletores de açaí e castanha. Embora alguns também extraiam seringa, essa atividade se mostra pouco expressiva em Canutama: embora essa matéria-prima atualmente

apresente

certa

valorização,

apenas

alguns

dos

antigos

seringueiros voltaram a trabalhar com essa atividade, enquanto a maioria dos jovens e adultos habitantes de Canutama não possui nenhum tipo de interesse nela. No

que

diz

respeito

à

agricultura,

os

moradores

cultivam

principalmente mandioca (mandioca-brava), macaxeira (mandioca-mansa), milho, jerimum, batata-doce, maxixe, feijão (apenas nas chamadas praias) e banana (ver calendário agrícola). Dentre esses cultivos, destaca-se a importância da mandioca, cujo calendário agrícola e beneficiamento desencadeiam uma profunda mobilização de grupos familiares a fim de abastecer todos os seus membros com farinha, produto este último de alta importância alimentícia e simbólica para os agricultores canutamenses. Os mesmos produzem farinha principalmente para o consumo de sua unidade produtiva (aspectos que serão

abordados

em outros

tópicos

desse

relatório), podendo ocorrer um eventual comércio caso seja requerido por alguém. Contudo, a comercialização é muito incipiente e ocorre geralmente em nível local (entre vizinhos ou, em alguns casos, com comerciantes próximos), visto que não há mercados ou feiras onde a produção possa ser vendida em maior escala, nem cooperativa de agricultores que organize a distribuição dessa farinha para polos urbanos maiores. A renda dos agricultores usada na compra de outros gêneros alimentícios se baseia em benefícios sociais concedidos pelo governo federal, como Bolsa Família e, para a maioria que também é pescador, Bolsa Pescador (para que não haja pesca durante a época reprodutiva de algumas espécies de peixe, de novembro a março).

121

As principais áreas de cultivo relacionadas diretamente com a dinâmica da cidade de Canutama e seus moradores estão localizadas em dois ecossistemas distintos dentro do bioma amazônico: várzea e terra firme. Enquanto o primeiro corresponde à faixa de terras marginais aos rios de águas brancas (ricos em minerais e matéria orgânica) que compõe uma planície aluvial de grande largura sujeita a inundações sazonais, onde se forma um sistema complexo de canais, lagos e ilhas com vegetação adaptada à dinâmica de cheia e vazante dos rios (SIOLI, 1951) O segundo corresponde ao ecossistema mais extenso dentre aqueles do bioma amazônico, apresentando terras com relevo mais alto e, portanto, não afetadas por alagamento, com vegetação mais densa e escura que mantem maior umidade no ambiente. Para além das particularidades em relação à formação e composição do solo, distribuição e características da fitofisionomia, ciclagem de nutrientes e fluxo de energia, essas duas ordens de paisagem constituemse também como áreas onde os sistemas produtivos e as formas de organização social em torno deles se deram de maneira muito distinta. Tentaremos, a partir desse momento, apresentar as diferentes áreas de cultivo em que os agricultores moradores de Canutama cultivam e como costumam separa-las em seu discurso. É importante ressaltar que essa exposição irá se focar justamente na dinâmica dos cultivos empreendidas por grupos familiares agricultores que moram em Canutama, o que muitas vezes está para além da área urbana. O trânsito constante entre área urbana (cidade de Canutama) e área rural do município de Canutama faz dos mesmos um verdadeiro continuum, de maneira que determinados períodos do ano são passados em diferentes espaços, mas a residência na cidade sempre é mantida. Essa apresentação servirá também para fornecer informações um pouco mais detalhadas sobre aspectos do cultivo na terra firme, ambiente sobre o qual não iremos nos debruçar nesse trabalho. Logo em seguida, portanto, nos aprofundaremos nos sistemas produtivos e relações sociais que acontecem no ambiente de várzea, especificamente na área chamada de Baixa Grande, na qual se realizou grande parte do trabalho de campo e, portanto, sobre o qual tentaremos descrever com mais precisão e riqueza

122

de detalhes. Por fim, serão apresentadas as relações que se tecem entre agricultores de terra firme e várzea e como as plantas estão envolvidas nessas redes.

Figura 10 - Croqui de uma área de produção de farinha. Autora: Thayná Ferraz da Cunha.

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Tabela 3 – Calendário agrícola. Autora: Thayná Ferraz da Cunha.

Plantio

Jan

Fev

Mar

Abril

Maio

Junho

Julho

Agosto

Setembro

Outubro

Novembro

Dezembro

______

______

_____

______

_____

Mandioca

Milho

Milho

Milho

Milho

Banana

_______

Macaxeira

Feijão-de-

Banana

praia (época da pesca)

Batata-doce

(época da pesca)

Jerimum Maxixe Milho Feijão-de-praia Capinagem

Colheita

______

______

Mandioca

Mandioca

Maxixe

Macaxeira

Batata-

_____

_____

______

______

_____

Banana

_____

Mandioca

Mandioca

Mandioca

Mandioca

Mandioca

Mandioca

Macaxeira

Macaxeira

Macaxeira

Macaxeira

Macaxeira

Macaxeira

Feijão-de-praia

Feijão-de-praia

Milho

Milho

Maxixe

Maxixe

Maxixe

Maxixe

Maxixe

Milho

Milho

Milho

Milho

Maxixe

Feijão-de-praia

Macaxeira

Jerimum

Batata-

doce

doce

124

Terra firme Muitos agricultores de terra firme possuem duas habitações: uma na terra firme e outra na cidade de Canutama. Os roçados na terra firme da maior parte moradores de Canutama se localizam ao longo do rio Mucuim. Costumam passar por volta de quinze dias na terra firme e sete em suas residências em Canutama. As esposas, em geral, permanecem morando na cidade ao longo do ano inteiro, só indo para a terra firme durante os meses de janeiro e fevereiro, época das férias escolares dos filhos. Algumas também

costumam

ir

por

vezes

para

ajudar

na

capinagem

e,

principalmente, no plantio. O homem, portanto, costuma trabalhar na terra firme sozinho, acompanhado de algum filho, irmão, cunhado ou de algum ajudante que more próximo ao roçado. As etapas da roçagem e derrubada ocorrem em maio ou junho, a queima acontece em agosto e, em setembro, realizam o plantio. A primeira capina é realizada em janeiro e acontece depois disso de três em três meses. Durante a época que fazem farinha, o que pode acontecer em qualquer momento do ano, mas em geral ocorre entre maio e novembro, apenas os homens trabalham. Quando estão sozinhos, muitas vezes contratam um ajudante que mora próximo ao seu roçado na terra firme. Durante o inverno (janeiro, fevereiro, março, abril, maio), os agricultores de terra firme produzem farinha em pequena escala apenas para consumo próprio. Em meados de maio, antes de começar a época de verão (junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e meados de dezembro), dão início ao beneficiamento da farinha para que possam aproveitar e transportar a farinha de barco até a cidade. Os agricultores produzem farinha em grande quantidade a fim de comercializa-las em Canutama. Embora prefiram vender sua produção para amigos que vão até suas casas e compram litros avulsos - os quais costumam pagar um preço mais elevado porque reconhecem o esforço empreendido na produção e no transporte - por vezes acabam tendo que negociar com comerciantes dos mercadinhos da cidade, os quais acabam pagando pouco pela farinha ou a trocando por gêneros alimentícios (rancho) pedidos pelo agricultor – levam esse rancho para suas casas localizadas em áreas rurais que são curiosamente chamadas de centro.

125

Transportam desde 15 alqueiros de farinha até 30 sacos de lona. É importante chamar atenção para o fato de que a farinhada, em geral, é programada para ser realizada na época em que o estoque de farinha dos agricultores da várzea já está baixo, isto é, costumam aguardar até “falhar a farinhada deles” para trazer então seus produtos para venda, que terão seus preços elevados ao dobro. A variedade de mandioca majoritariamente utilizada na produção de farinha é chamada de samauma, havendo outros que plantam também janauaca, orana, cubiçada, jabuti, pirarucu. Em geral, os agricultores de terra firme não gostam de plantar variedades de mandioca que tenham tempo de maturação de seis meses, pois caso ultrapasse esse tempo a plantação o tubérculo estraga e o agricultor acaba tendo grande prejuízo. Em geral, estão habituados com variedades de terra firme que não apreciam ter épocas certas para serem arrancadas. Segundo muitos deles, preferem variedades de ano ou mais, pois com elas podem “fazer uma farinha mais descansada”. Os poucos preparam farinha de variedades de seis meses, como a ituqui e flecha, costumam preparar apenas o suficiente para consumo próprio e não para venda. Nesse caso, ao plantar separam essas variedades em áreas mais baixas do terreno para arrancarem mais rápido, enquanto aquelas com tempo de maturação maior plantam em locais mais altos para arrancar os tubérculos apenas quando quiserem fazer farinha para vender. Em muitos casos também os agricultores plantam variedades de seis meses (adaptadas à várzea) apenas para manter as sementes (fragmentos para reprodução vegetativa), pois apreciam sua farinha resultante, embora não tenham o costume de prepara-la com frequência. Quando são confrontados com a comparação entre o cultivo na terra firme e na várzea, os agricultores de terra firme afirmam preferir a terra firme por não estar sujeita a inundações da cheia do rio (nessas condições a mandioca apodrece), por não terem pressa em processar a farinha, por não precisarem realizar plantios todos os anos (fazem apenas um único replantio na mesma área) e por poderem plantar árvores frutíferas no roçado. Contudo, ressalvam que a capinagem na terra firme é mais penosa, pois a quantidade de espécies gramíneas aumenta rapidamente do primeiro

126

ano de plantio para o segundo, sendo necessárias praticamente capinas mensais. Uma parte dos agricultores de terra firme planta variedade de mandioca adaptadas à várzea apenas para vender seus fragmentos propagativos (sementes) para os plantadores da várzea. Chegam a trazer para cidade até 70 feixes (cada um possui de 40 a 50 varas de mandioca). Os principais cultivares plantados é olho verde e mantegueira amarela, sendo também encontrados os tipos: flecha, ituqui, baixota. Escolhem principalmente os dois primeiros por acharem que mantegueira amarela e olho verde apodrecem menos em solo úmido. Tanto talo encarnado, quanto mineva, socó e mantegueira preta são plantadas por poucos deles, pois acham, por exemplo, talo encarnado é dura para arrancar do solo e com muita fibra.Esse tipo de interação entre os agricultores desses dois ambientes será descrito com maiores detalhes nos últimos tópicos desse relatório.

Os

agricultores

afirmam

que

as

variedades

de

mandioca

adaptadas à terra firme possuem raízes tuberosas mais grossas que as de várzea, além de serem mais saborosas e menos aguadas. As de terra firme também possuema casca da batata de mandioca mais grossa, massa mais fina e amarela e a farinha menos avermelhada. Outra diferença percebida nas de terra firme é a coloração mais escura, tanto das partes aéreas da planta (caule e folhas), quanto da casca do tubérculo, admitindo essa diferença à “força da terra”. Em relação ao cultivo de macaxeira, a maioria prefere plantar principalmente macaxeira-juriti porque ela engrossa mais que as outras. O plantio é feito em pequena escala, apenas para consumo. Alguns, no entanto, vendem sacos de macaxeira para lanchonetes e comércios da cidade, realizando grandes plantios da mesma.

Alguns plantam também

macaxeira-pão, pois amadurece mais rápido que as demais, embora também apodreça mais rápido, pois tem tempo de maturação de seis meses. Não produzem farinha seca de macaxeira. Em relação ao solo, os agricultores dizem que terra firme possui uma composição com maior teor de areia do que argila, mas justamente por isso a percolação é mais rápida e o solo tem alto potencial de drenagem, por isso os tubérculos não apodrecem facilmente com a umidade. Por outro

127

lado, o solo também é mais quente, o que não é muito vantajoso. As áreas que possuem composição mais misturada do teor de areia com argila costumam ser melhores para o plantio de mandioca. Para além da maioria dos agricultores de terra firme que possuem seus roçados no rio Mucuim, alguns possuem suas áreas de cultivo na ilha de terra firme localizada na própria cidade de Canutama, área localizada ao lado do clube aéreo da cidade e conhecida pelos moradores como “banda da terra firme”, a única parte da cidade que não alaga durante inundações intensas. São poucos os que plantam nesses locais, pois além da prefeitura retira dai barro avermelhado para aterrar suas principais obras, existe também aí o depósito de lixo da cidade, restringindo muito a área onde se é possível plantar. Os que ali plantam, portanto, possuem terreno pequeno apenas com a função de manter as sementes de mandioca e macaxeira que plantam em maior escala em suas roças localizadas no ambiente de várzea. Contam que não realizam a retirada da batata de mandioca, apenas cortam as partes aéreas da planta para que ela volte a se desenvolver. Isso pode ser realizado por três anos seguidos sem ocorrer o esgotamento do solo, pois “sem tirar a batata, não puxa muito da terra”. Passados esses três anos, a pessoa deve retirar a batata do solo e realizar um primeiro replantio. Passados mais três anos, deve-se então preparar outro roçado. Disse que possuía apenas variedades de mandioca de várzea: olho verde, talo encarnado, flecha amarela, socó e mantegueira-preta; e uma variedade de macaxeira de várzea chamada de macaxeira-pão. Também plantam algumas árvores frutíferas, aproveitando que o terreno não alaga. Possuem também, logo na área paralela ao roçado de terra firme, um roçado de banana e milho localizado num ambiente de várzea. Além desses dois grupos de terra firme que tem seus agricultores ligados a Canutama, existe ainda uma terceira, localizada próxima à beira do lago da Padaria (ver mapa), onde a maior parte dos roçados são também para manutenção de semente de mandioca e macaxeira e também para cultivo de banana, ingá e outras frutíferas.

128

Várzea Praia As áreas de cultivo de várzea que se localizam na beira do rio Purus são conhecidas pelos moradores de Canutama como praia. Trata-se da área de cultivo localizada na cidade de Canutama que possui cultivo mais antigo, sendo encontradas até três gerações de uma família que plantam em uma mesma praia. Os terrenos pertencem à marinha brasileira, sendo permitido utiliza-los para plantio. Um agricultor pode fazer o tamanho de roça que bem entender desde que não ultrapasse o limite do plantador ao lado. As roças são separadas por tornos, pedaços de madeira colocados em suas duas extremidades. Assim como a área da Beira do Seringueiro, nas praias o inicio do beneficiamento da mandioca também tem que começar cedo, o que também é facilitado pelo fato de existir muita água disponível para colocar a mandioca de molho. É possível, portanto, encontrar agricultores colhendo a mandioca com apenas cinco meses, mas a maior parte prefere esperar até janeiro para que as raízes tuberosas engrossem mais. Essa espera, porém, implica na realização de um processamento da mandioca mais intenso e acelerado desde do princípio, tendo em vista que são as primeiras áreas de várzea a serem atingidas pela inundação do rio Purus. Os agricultores que cultivam nessa área, portanto, acabam tendo que fazer uma dita “farinha mais ligeira”. Na época que a alagação começa a se intensificar, entre o final do mês de janeiro e inicio de fevereiro, os plantadores costumam dizer que estão “aperrados” e frases como “ou a gente faz ou o rio faz pela gente” e “a gente espera pelo rio, mas ele não espera pela gente” se tornam

corriqueiras

entre

os

agricultores.

Nessa

fase

ocorre

uma

intensificação expressiva das interações e ajudas mútuas não só entre parentes, como entre amigos que moram próximo. Não é raro encontrar dois amigos torrando junto, cada um com um remo, mexendo a farinha no forno. Cada dia beneficiam a farinha de um e assim todo processo é agilizado, sem que ninguém tenha sua colheita prejudicada.

129

Figura 11 - Casa de Farinha e depósito na beira do rio Purus. Foto: Thayná Ferraz da Cunha

Segundo os agricultores das praias, nas faixas de terra marginais ao rio de águas brancas, cada inundação da várzea permite que o fluxo do rio mude o relevo do terreno. Isto é, após cada alagação anual do rio Purus, a área alta, chamada de lombo, onde estão depositados um grande nível de sedimentos (chamado de aterro ou adubo) cresce para frente. Atrás do novo lombo que surgiu existia antes um barranco, que acaba se desfazendo ou quebrando com a nova alagação, tornando-se assim uma área um pouco mais baixa, com menos sedimento/aterro acumulado do que antes. Conforme os anos vão passando, esses antigos lombos vão assim ficando cada vez mais para trás, sendo esses locais utilizados para o plantio de arroz, jirimum (abóbora), melancia e milho. Nesses locais há um maior crescimento de espécies de gramínea, como capim-de-burro. Além disso, neles nasce também à espécie embaúba e, por isso, dão o nome do local de embauzal.

Conforme vai ficando para trás e também mais baixo, com o

passar do tempo esses antigos lombos irão virar áreas de chavascal, constantemente alagadas, mudando também sua distribuição de espécies vegetais. Atrás dessas áreas de chavascal e, conforme a faixa de terra vai se afastando mais da margem fluvial, o terreno torna-se grutião (área baixa e área alta), onde existe apenas mata.

Os agricultores contam que essa

dinâmica de mudança na deposição de sedimentos durante as cheias é esperada todo o ano e, por isso, calculam o local onde irão realizar o próximo cultivo de acordo com aquilo que irá aparecer durante a época de vazante: “A natureza é perfeita: faz e desfaz”.

130

O plantio realizado em julho na areia branca mais próxima a margem do rio é o de feijão-de-praia, que inclui diversas variedades como feijão barrigudinho; branco/leite; vermelho, manteguinha, curujinha, arrombahomem, cujas sementes são guardadas de um ano para o outro em garrafas pets bem fechadas. A capinagem do feijão-de-praia é realizada nos meses de julho e agosto e, sua colheita, em outubro. Os agricultores da praia afirmam que é bom de plantar na areia branca porque alaga todo ano, o que acaba esfriando a terra, mas no verão não é possível plantar nela praticamente nenhum cultivo, pois a areia fica muito quente e, como possui alta capacidade de drenagem, não retém umidade, fazendo com que as plantas morram ressecadas. Já o plantio de mandioca é realizado em junho, na chamada terra de lombo ou na parte de seu entre-vão com uma área baixa. Essa faixa que fica atrás da areia branca e possui temporariamente um relevo mais elevado pela deposição de sedimentos que ocorreu ao fim da última cheia. A composição do solo nessas faixas, segundo os agricultores, é de areia e barro misturados, sendo predominante a presença de barro conforme o relevo da terra aumenta. Essa composição dos lombos é considerada boa para que tubérculos da mandioca se desenvolvam mais, mas é maior também a dificuldade de arranca-los. Já nas áreas de entre-vão, como a composição do solo é formada por um teor proporcionalmente maior de areia que de barro, acaba sendo mais frouxo e a colheita, mais fácil. Passado o plantio nessas áreas, a primeira capinagem ocorre em julho, ocorrendo duas vezes ao longo desse mês. Nos meses de agosto e setembro a roça já está grande e não precisa mais de capina. No final de dezembro iniciam a farinhada, durando o mês de janeiro e inicio de fevereiro. Os agricultores mais novos costumam cultivar as variedades de mandioca chamadasmantegueira amarela, flecha amarela, olho verde. Já os mais velhos, que plantam na região há muito tempo e cujos pais também plantaram no mesmo local, costumam plantar apenas mantegueira-preta.

131

Área do Seringueiro (composta pela área de cultivo da Beira do Lago do Seringueiro e área da Baixa Grande) A macro-área do Seringueiro é um complexo que engloba duas outras áreas menores localizadas próximas uma da outra, mas que podem ser diferenciadas

pela

distância

espacial,

relevo,

nível

de

inundação,

proximidade com a cidade, práticas agrícolas, momento inicial e duração do beneficiamento da farinha e até mesmo por sua composição social. Essas dois espaços menores podem ser chamados de área da Beira do Lago do Seringueiro e área da Baixa Grande. Enquanto as praias do rio Purus já são utilizadas para o cultivo há muito tempo, o

plantio

naquilo

que

chamamos

de

macro-área do

Seringueiro é bastante recente. Há quatorze anos alguns fragmentos de vegetação foram derrubados nas proximidades da beira do lago do Seringueiro (ver croqui) para a plantação de arroz e milho. Contudo, essa iniciativa nunca se concretizou e as áreas ficaram desocupadas, de maneira que alguns moradores de Canutama começaram a utilizá-la para plantar principalmente mandioca e macaxeira para próprio consumo. Passados cerca de dois anos do inicio do plantio, nesse espaço, alguns dos agricultores que lá plantavam resolveram tentar transferir sua área de cultivo para uma mais próxima da cidade, vindo a plantar então na chamada Baixa Grande. No inicio, a maior parte dos agricultores da Praia e da Beira do lago do Seringueiro não acreditava que o solo daquela área iria ser próspero para o cultivo e, por isso, apenas poucos agricultores tomaram a atitude de mudar o local de cultivo. Porém, conforme a produtividade dos mesmos foi se mostrando alta, além de outros tantos realizarem essa transferência, muitos moradores da cidade começaram a plantar também. Segundo os próprios agricultores, estimam que atualmente cerca de 80% da população da cidade de Canutama plante, produzindo sua própria farinha. Tentaremos então

apresentar

as

duas

áreas

englobadas

pela

macro-área

do

Seringueiro: Beira do lago do Seringueiro e Baixa Grande. Será sobre a segunda, contudo, que iremos nos debruçar ao longo dos próximos tópicos desse relatório.

132

A Beira do Lago do Seringueiro é considerada área rural do município de Canutama. O terreno localizado em uma das margens do lago do Seringueiro é uma área bastante baixa, que alaga fundo. Do outro lado da margem, existe uma parte que alaga raso (onde estão as roças) e uma parte alta (várzea alta), onde se localizam as casas de farinha (que raramente alagam). Essas áreas de cultivo na várzea (chamada de vazante) que estão justamente na beira do lago Seringueiro tem seu nível de água acrescido durante a época cheia por conta do enchimento do igarapé que o liga a um lago muito maior, chamado Itapá (este sim possui conexão com o rio Purus através do igarapé do Sacado, sendo através dele que se dá a entrada do fluxo de água). É justamente essa área, portanto, uma das primeiras a sofrer inundações provenientes da cheia do rio Purus e também uma das que tem o nível de alagação mais profundo. Quem possui roça aí, logicamente são os primeiros a começar a dita farinhada. Como possuem uma parte de seu terreno localizados num ambiente de várzea com relevo mais alto, nessa área da Beira do Seringueiro se encontram as casas de farinha mais equipadas de recursos e equipamentos, como telha de alumínio e uma espécie de homogeneizador da massa. Os donos, em geral, são funcionários públicos da cidade, isto é, diferenciadas pelos demais agricultores como pessoa ‘que tem renda’, tendo assim recurso para investir na produção de uma farinha mais trabalhada, que em geral é comercializada. Nesses meses de janeiro, esses funcionários públicos que aí possuem roça costumam pedir suas férias e levam consigo toda a família para morar nessa área durante todo o processo de produção de farinha. Há nessa área alta, portanto, pequenas casas de madeira onde a família passa todo o mês de janeiro e que, posteriormente, servirão de depósito para a farinha. Ao final do processo voltam para Canutama, mas deixam a produção naqueles depósitos e, quando os terrenos estão amplamente alagados, realizam o transporte até a residência em Canutama. Como possuem um lago próximo de água corrente, podem retirar a goma da mandioca quando bem entendem. Além disso, o lago lhes permite colocar a mandioca de molho, podendo assim começar o processamento de mandioca mais cedo que os agricultores da área da Baixa Grande.

São, portanto, os primeiros a

133

terminar a farinhada e, muitas vezes, emprestam suas casas de farinha para amigos, vizinhos ou parentes agricultores da Baixa Grande terminarem de torrar sua farinha, tendo em vista que as suas próprias acabam sendo alagadas.

Figura 12 - Beira do Lago do Seringueiro. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

É

importante

ressaltar

que,

embora

a

composição

social

dos

agricultores dessa área seja majoritariamente formada por funcionários públicos, existem diversas pessoas aí que fogem a regra e se dedicam integralmente a agricultura e a pesca. Voltando a seguir a dinâmica das águas durante a cheia do Purus, após a cheia do lago do Seringueiro, essa água começa gradualmente a encher o chamado igarapé da Baixa Grande, o qual conecta justamente as áreas da Beira do Lago do Seringueiro e Baixa Grande. Quando então esse igarapé começa a transbordar se diz então que “o rio represou”, isto é, começou a inundar o terreno. O terreno da área da Baixa Grande, partindo desse igarapé até o centro da cidade de Canutama, apresenta crescimento de

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relevo e, portanto, vai sendo alagado gradualmente tanto pela inundação do igarapé quanto pelo acúmulo das chuvas principalmente nas áreas mais rebaixadas da área. É justamente o que se passa com o sistema produtivo dessa área da Baixa Grande que iremos, nos próximos tópicos, tentar descrever e analisar a partir não só da dinâmica ecológica, mas também dos mecanismos sociais dinamizados por essa forma de produzir. Organização do Sistema Produtivo na Várzea: a área da Baixa Grande A área da Baixa Grande, localizada próxima ao centro de Canutama, é um vasto terreno pertencente ao Estado, onde se é permitido que qualquer morador de Canutama cultive o tamanho de terra que desejar para consumo de sua unidade familiar. Considerando que a maior parte da população de Canutama planta e que as proximidades da cidade são áreas valorizadas para isso, pode-se encontrar no local uma extensa quantidade de plantações que, aos olhos de qualquer visitante, parecem indistinguíveis limites entre elas. Contudo, nessa grande faixa de terra existem inúmeros agricultores que sabem precisamente onde começa e onde termina suas áreas de cultivo. Cada uma dessas áreas de cultivo, como se encontram no ambiente de várzea, é chamada de vazante pelos agricultores. Cada vazante é delimitada pelo início da vazante do vizinho, sendo separadas por uma extrema, isto é, pedaços de tronco queimados fincados em linha no terreno (“na cidade, uma parede não divide a casa? Pois é... aqui é a extrema que divide a roça”). Cada vazante, portanto, possui quatro extremas, visto que faz fronteira com quatro outras vazantes. As extremas, contudo, apenas são colocadas para separar áreas de cultivo de vizinhos que não sejam parentes ou amigos próximos. Caso o sejam, as delimitações são feitas apenas por acordos verbais no qual separam as vazantes por características físicas do terreno como árvores ou relevo e até mesmo por afastamento das linhas de plantio. Um espaço que ainda não tenha sido plantado, depois que passa pelas etapas de roçagem (extração das plantas de menor porte, como as herbáceas) e derrubada (retirada das espécies arbóreas) e, posteriormente, pela queima, coivara e plantio no ano seguinte, passa a ter um determinado dono, pois todos sabem que o agricultor começou ali um cultivo. Portanto, a

135

propriedade do espaço não se dá no nível burocrático, mas é legitimada socialmente através do trabalho que determinada pessoa teve ao retirar toda sua vegetação e queima-la.

Por isso, uma terra usada pode ser

anunciada no rádio e vendida de um dono para outro através de um contrato oral, no qual o proprietário irá calcular o preço da vazante de acordo com seus dias de trabalho para prepará-la. Caso o proprietário tenha a intenção de algum dia ainda utilizar aquela área, pode também negocia-la temporariamente por algum tipo de troca, como, por exemplo, três sacos de farinha do que foi produzido anualmente naquela terra. Muitos dos agricultores, contudo, apenas estabelece esse tipo de negociação com parentes, posto que outros por vezes repassem a terra para outras pessoas e quebram o acordo anterior. Esses parentes podem plantar na área sob a condição de não o repassarem a ninguém quando não queiram mais plantar nele, devolvendo-o automaticamente a seu antigo dono. A outra possibilidade é o dono não repassar aquela terra a ninguém, abandoná-la por alguns anos, deixando que vire capoeira. Mesmo não sendo utilizada, ninguém plantará na área, pois todos sabem quem é o dono que já plantou ali, sendo então preciso comprar do mesmo ou recebela de doação. A maior parte dos agricultores possui uma vazante sendo usada e outra abandonada. As terras mais valorizadas e cobiçadas para compra são aquelas que estão mais próximas da cidade, tendo em vista que essa disponibilidade já está muito restrita atualmente. A distância da vazante até a residência do plantador na cidade de Canutama configura-se, portanto, como um fator muito importante na escolha da área de cultivo, tendo em vista que o transporte da farinha até a residência é algo considerado trabalhoso. O tempo de utilização de uma mesma roça varia muito, podendo atingir mais de doze anos consecutivos. Durante esse tempo, quando alguma parte da vazante - terreno em que plantam a roça de mandioca – começa a não apresentar boa safra de mandioca, são realizadas estratégias para que aquele espaço continue sendo incorporado ao plantio, como por exemplo, a introdução de variedades de mandioca que estejam mais adaptadas a solos mais utilizados ou empobrecidos; transferência de variedades para outras partes do terreno ou até mesmo a realização de

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pequenas expansões do terreno para plantio (onde plantam macaxeira e variedades de mandioca que crescem bem em terra nova). Quando, contudo, a produtividade da roça se mantem baixa, os agricultores abandonam a área, deixando que a mesma permaneça dois ou três anos sem nenhum tipo de plantio, passando para o estágio sucessional de capoeira, quando estão podem ou não retomar as atividades na mesma. Durante esses anos, o agricultor procura uma área para sua nova roça que esteja relativamente próxima da antiga, visando assim utilizar a mesma casa de farinha. Caso não haja terreno disponível para preparar uma área de plantio (vazante) ou até mesmo comprá-la, o agricultor terá que desfazer-se de sua casa de farinha anterior, levando todos os componentes e instrumentos nela contidos para assim construir uma mais próxima da nova roça. É importante ressaltar que esse deslocamento da casa de farinha implica em um distanciamento entre o local onde a farinha é produzida e onde a mesma é armazenada (residência na cidade), tornando assim o transporte

da

produção

mais

trabalhoso.

Por

esse

motivo,

alguns

agricultores preferem manter a casa de farinha próxima à residência e transportar a massa de mandioca até ela, onde todo o processo de beneficiamento ocorre. O plantio de mandioca e macaxeira é realizado tanto por homens quanto por mulheres durante os meses de junho, julho e agosto. Embora a vazante (época em que a água do rio começa a reduzir o nível e o solo aparece) ocorra principalmente no mês de maio, a maior parte agricultores de Canutama prefere realizar o plantio nos próximos meses, visto que durante essa época a terra já está mais enxuta, de maneira a garantir que o pedaço de maniva plantado (pau) não apodreça (“fique pubo”) em meio a solo úmido e também que o enraizamento do plantio seja satisfatório. Além disso, procuram plantar durante o período de lua nova ou crescente, a fim de que assim a roça prospere mais. O trabalho da capina é tarefa predominantemente masculina e, em geral, ocorre pela primeira vez, de acordo com o calendário agrícola, após vinte dias do plantio (no mês de julho) e, em geral, uma vez ao mês em agosto, setembro, outubro, novembro, totalizando cerca de cinco capinas anuais. Contudo, passado o primeiro mês de plantio as plantas cultivadas já

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se apresentam suficientemente crescidas a ponto de diminuir a entrada de luz solar nos estratos vegetais inferiores e controlando, dessa forma, as espécies de gramíneas que ocupavam o terreno. Deve-se ter em vista, contudo, que os agricultores diferenciam áreas onde o crescimento de mato (gramíneas) é maior de acordo com a altura do relevo. Isto é: segundo eles, em áreas que alagam menos (15-30 centímetros) existe maior desenvolvimento de espécies gramíneas, exigindo assim que o trabalho de capinagem ocorra mais vezes. Esse tipo de comparação entre alturas do relevo é relacional, podendo ser realizado entre espaços dentro da própria área de cultivo (área baixa: “baixa” e área alta: “lombo”) ou entre diferentes regiões de plantio (“Baixa Grande” e “Beira do lago do Seringueiro”). Durante as primeiras chuvas do mês de janeiro, as primeiras áreas de cultivo a serem alagadas são as chamadas baixas, espaços da várzea característicos por seu relevo mais rebaixado para onde a água escorre das áreas mais altas – os chamados lombos. Como o solo do local é composto principalmente

por

argila

(barro)

misturada

com

uma

determinada

proporção de areia, a tendência da água é se acumular em tais locais, posto que a argila possui baixa permeabilidade. Segundo os agricultores, caso emposse água na plantação de mandioca e se passe dia ensolarado, os tubérculos já apodrecem (“ficam pubos”) e pode-se perceber isso vendo a própria parte aérea da planta, posto que suas folhas murcham rapidamente. Por essa razão, os agricultores plantam nessas áreas baixas apenas variedades que possam ser retiradas da terra mais rapidamente, isto é, que tenham amadurecimento mais rápido. Esses espaços cultiváveis de baixo relevo são caracterizados pelos agricultores como áreas mais prósperas e mais facilmente manipuláveis, tendo em vista que o aterro/adubo se acumula aí em maior espessura (3 a 4 centímetros) por conta do maior tempo de duração e altura que a água do rio atinge. O solo aí, considerado mais frouxo, possui uma camada primeira de terra preta (mistura de areia, barro e matéria orgânica proveniente da cheia) e uma segunda da chamada tabatinga (mistura de argila e areia, estando o primeiro em maior proporção). Devido a sua composição, nesse solo se torna, portanto, menos trabalhoso arrancar a mandioca. Por outro

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lado, nas áreas cultiváveis mais altas do terreno o depósito de aterro é menor (1 a 2 cm), sendo o solo, portanto, composto majoritariamente por argila misturada com uma pequena proporção de areia – chamado de tabatinga. Por ser mais endurecido e menos poroso, arrancar os tubérculos desse solo configura-se uma tarefa muito mais árdua. Em algumas áreas altas que alagam mais, contudo, pode-se encontrar o chamado solo areiusco, formado por argila misturada com uma proporção maior de areia. A colheita, processo conhecido pelos agricultores de Canutama como arrancada,

constitui-se

como

tarefa

predominantemente

masculina.

Contudo, as mulheres que o fazem, geralmente constituintes de unidade de produção

pequena

(as

unidades

de

produção

serão

abordadas

posteriormente), são vistas socialmente com admiração, tanto pelos homens quanto pelas mulheres. A colheita da roça de mandioca é realizada ao longo de todo mês de janeiro e fevereiro, podendo em alguns casos prolongar-se até março. Nessa região chamada Baixa Grande, localizada bem próxima do centro da cidade, a colheita só tem início quando as áreas baixas do terreno já estão parcialmente alagadas com as primeiras chuvas do mês de janeiro. A quantidade de tubérculos arrancados do solo naquilo que chamam de arrancada tem como padrão de medição sacos de lona e é, sobretudo, altamente variável, vindo a depender geralmente da quantidade de mão de obra masculina disponível na unidade de produção, da velocidade em que os terrenos estão se alagando com a cheia do rio Purus, da necessidade do agricultor de dedicar seu tempo em outra atividade (como a pesca ou coleta de castanha), da quantidade de farinha que o grupo quer estocar e, principalmente, do interesse e ritmo que cada unidade de produção escolhe para si, levando em consideração aí todo processo de interação social desencadeado durante as diferentes etapas de beneficiamento. Em dias de colheita, os homens de uma unidade produtiva saem de suas respectivas residências na cidade de Canutama por volta das cinco e meia da manhã a fim de evitar o excesso de sol durante a atividade, mas deixam, em alguns casos, tanto as mulheres quanto as crianças dormindo mais algumas horas para que depois se direcionem até a respectiva roça. Durante as primeiras arrancadas, os homens costumam escolher apenas

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uma variedade de mandioca para arrancar do solo por dia, tendo em vista que a mistura de variedades na farinha em geral não é apreciada (deve-se ter em vista, contudo, que à medida que a área de cultivo vai se alagando com a cheia do rio, as últimas colheitas vão sendo feitas mais rapidamente e, portanto, a mistura de variedades se torna corriqueira). Os homens cortam com um terçado o tronco da maniva (parte aérea da mandioca), descartando-as nas extremidades da roça logo em seguida. Puxando o restante final de tronco que permaneceu ligado a raiz, arrancam os tubérculos do solo e, utilizando outra vez o terçado, os separam e retiram de cada um deles o excesso de barro e as extremidades (etapa esta chamada de decotagem), a fim de amoleçam mais rapidamente quando colocados de molho na água para fermentação. Às vezes, quando está muito difícil de arrancar a mandioca, utilizam uma madeira que chamam de eleva para auxiliar na extração das raízes tuberosas. Enquanto alguns homens do grupo retiram essas raízes do solo e as amontoam em um canto, as mulheres ou outros homens decotam, cortando e limpando superficialmente cada batata de mandioca. No mesmo dia, depois de acumulado certa quantidade, os homens colocam os tubérculos em um saco que é carregado até a área baixa do terreno, alagada desde as primeiras chuvas. Essa área baixa constitui-se, portanto, como o depósito em que as mandiocas são colocadas de molho para fermentação durante dois até quatro dias (tempo que irá depender do volume de chuvas, isto é, quanto mais chuva, menos quente se torna a água do depósito e, portanto, mais dias são necessários para fermentação).

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Figura 13 – Retirada das partes aéreas e decotagem das manivas. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

Decotagem: Nos

depósitos, também chamados

de

baixas, enquanto

alguns

agricultores costumam colocar os tubérculos de molho dentro do próprio saco, outros os depositam dentro de caixas/balsas de madeira, canoas velha, lonas de plástico ou no chamado paiol (cercado de palha). Deve-se ter em vista que uma área de baixa pode ser utilizada por qualquer unidade produtiva que tenha roça próxima, entretanto os instrumentos onde a mandioca é colocada pertencem apenas a quem a construiu, o que não exclui, contudo, a possibilidade de empréstimos, doações e trocas. A essa

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etapa de deixar a mandioca fermentando dá-se o nome de demolhagem, que ocorre necessariamente no mesmo dia da colheita (arrancada).

Figura 14 - Demolhagem nas áreas baixas. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

Durante a média de três dias nos quais a mandioca deve fermentar, ou “ficar de molho”, os agricultores podem descansar, dedicar-se a outras atividades ou até mesmo trabalhar em outras unidades de produção. Ademais, são esses dias de intervalo no beneficiamento da mandioca que

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permite o chamado revezamento de casa de farinha - local este de beneficiamento

da

mandioca,

incluindo

nessa

categoria

todos

seus

instrumentos constituintes. Ou seja: acordos (que serão posteriormente detalhados ao longo deste relatório) entre unidades produtivas que funcionam na medida em que, enquanto um grupo espera o amolecimento dos tubérculos, o outro utiliza a casa de farinha para torrar sua própria massa de mandioca. É importante ressaltar, contudo, que conforme a água da cheia do rio Purus vai alagando as áreas de cultivo (chamadas de vazantes), a tendência é a produção de farinha se acelerar para que não haja perda de mandioca e, dessa forma, tais intervalos de tempo citados acima acabam sendo suprimidos pelos próprios agricultores. Nessa fase realizam colheitas de muita mandioca e, consequentemente, a rotatividade de entrada e saída do estágio de fermentação é muito grande, restringindo assim o compartilhamento de casa de farinha apenas a parcerias estáveis ou até mesmo parcialmente estáveis (as quais serão explicadas no tópico “Casa de Farinha”). Passado o intervalo de dias necessários para o inicio do processo fermentativo, a mandioca já escurecida e amolecida pela absorção de água torna-se facilmente destacável de sua casca. Nesses dias, homens e mulheres saem da residência por volta das 7 horas, levando as crianças quando o terreno não está excessivamente enlameado após as chuvas, e direcionam-se até a casa de farinha da unidade produtiva. Lá, sabendo que no mesmo dia irão retirar a mandioca d’água e torrar farinha, vão preparados para almoçar e ir embora apenas por volta da 17 horas. Logo de manhã, mulheres e crianças, todos sentados em suportes de madeira, retiram a mandioca do depósito em que se encontrava, passando água nas extremidades de cada raiz tuberosa a fim de retirar a camada escurecida decorrente da fermentação e de facilitar também a separação entre massa e casca. A casca é descartada na própria água acumulada na área baixa, servindo também para atrair peixes que tentarão capturar com auxilio de malhadeira para almoçar durante o dia intenso de torragem da farinha. A massa de mandioca fermentada, ainda encharcada de água, é chamada de massa puba, categoria esta última bastante recorrente entre os agricultores da cidade de Canutama que designa, na maior parte das vezes, algo já

143

apodrecido. A massa puba é então acumulada em cima de algum suporte até que um dos homens venha amassá-la e coloca-la em um balde para realizar o transporte até a casa de farinha, em geral construída próxima da área baixa alagada de depósito. Quando lá, é colocada aos montes em uma caixa de madeira conhecida como gareira, local onde será mais uma vez amassada e sofrerá uma primeira triagem das fibras (os chamados paus ou crueira) que na massa se encontram. Neste local permanecerá até ser introduzida na prensa. Algumas variedades de mandioca precisam ter sua massa torrada no mesmo dia em que é tirada da água, caso contrário o processo de fermentação pode prosseguir e a farinha tornar-se escura (arroxeada) e amarga (amaruja). Outros cultivares, por outro lado, é justamente o contrário, sendo então necessário deixar suas massas puba acumulado na caixa/gareira desde o final da tarde do dia anterior até a manhã do dia seguinte, quando pode então passar para a prensa de madeira. É esse um dos motivos importantes pelos quais a maior parte dos agricultores prefere separar, no momento da colheita e beneficiamento, as variedades de mandioca.

Figura 15 - Retirando as mandiocas d’água. Foto: Thayná Ferraz da Cunha

144

Figura 16 - Massa puba na gareira. Foto: Thayná Ferraz da Cunha

A

etapa

seguinte

é

justamente

a

prensagem,

tarefa

predominantemente masculina. Cada casa de farinha deve possuir uma prensa de alavanca, constituída por madeiras nobres como maçaranduba, piranheira, entaúba trazidas pelo próprio dono da casa de farinha, membros de sua unidade produtiva ou parceiros de casa de farinha e talhada por algum serrilheiro conhecido. Durante o processo, enquanto o homem levanta a alavanca da prensa, as crianças vão enchendo um balde pequeno, chamado de tambor, até que possa ser levado para uma rede porosa conhecida como estopa, onde a massa puba é depositada, passando a ser sustentada pela montagem de um gradiamento formado por varas de pedaços longos de madeira que impedem que ela caia para os lados quando prensada. A quantidade de massa envolvida por essa rede/estopa passa então a ser chamada de estopa, correspondendo assim a um tambor pequeno. Cada duas estopas são colocadas, após serem peneiradas, no forno, correspondendo assim a uma fornada. Portanto, caso o agricultor possua dois fornos, por exemplo, colocarão em sua prensa quatro estopas verticalmente posicionadas para serem espremidas. Depois de colocada a quantidade desejada, o homem em geral ajudado em parte pelas crianças que estão aprendendo, coloca uma espécie de tampa e alguns pesos como troncos de madeira para permitir que a pressão se coloque adequadamente sobre a massa. Prende, em seguida, a corda no chamado burinete e puxando para trás a alavanca, espreme grande parte da umidade que havia

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na massa e gera a chamada manipuera, líquido leitoso de cheiro forte com alto teor de ácido cianídrico. A corda é apertada inicialmente com três voltas, deixando 20 minutos para que parte da água escorra, dando espaço para que se dê mais uma volta, deixando dessa vez de 15 a 20 minutos, momento em que se dá faz a última para secar bastante. Não se deve, contudo, ultrapassar essa quantidade de voltas na corda durante a prensagem, visto que uma massa resultante muito seca é mais suscetível a queimar durante a torragem, ao que os agricultores chamam de “tostar o pó”. Feito isso, retira-se as duas primeiras estopas, levando-as em direção a chamada caixa para peneirar (divida em duas partes, sendo que em cada uma delas cabem duas estopas de massa prensada).

Figura 17 – Prensagem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

Nesse momento se dá mais uma etapa do processo de beneficiamento, esta majoritariamente feminina, recebendo a colaboração das crianças. Durante essa fase de peneiração, na medida em que algumas das crianças vão manualmente amolgando a massa, as mulheres vão peneirando, acumulando assim a massa peneirada na segunda parte da caixa de madeira. A malha da peneira utilizada definirá a granulometria da farinha,

146

mas em geral um balde de massa rendem dois baldes após ter sido peneirada. Enquanto as mulheres se dedicam a essa atividade e a de preparar o almoço para o grupo, os homens vão limpando o forno (chapa de ferro sustentada por um suporte de barro montado anualmente), colocando óleo e retirando a massa puba peneirada com o auxilio de uma cuia ou balde pequeno (chamado de tambor) e, em intervalos de dez minutos, colocam um balde em cada forno, de maneira a completarem três baldes (lembrando que cada estopa equivale, depois de peneirada, a um balde e meio). Ou seja: uma fornada é o equivalente a três pequenos baldes e são realizadas simultaneamente, de acordo com o número de fornos que existe na casa de farinha. Todo tipo de fibra ou massa que ficou retida na peneira é chamada pelos agricultores de crueira e, após passar por breve processo de torragem, é utilizada como ração para animais como porcos, patos, galinhas e cachorros.

Figura 18 – Peneiragem. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

147

O veneno da mandioca, para os agricultores de Canutama, está intimamente associado ao cheiro da massa. Segundo eles, após a etapa da prensagem e a liberação do líquido chamado de manipuera, o cheiro se torna bem menos acentuado, mas apenas quando a massa passa pela fase da torragem, entrando em contato com o calor do fogo, que o odor do veneno realmente cessa e eles sabem que aquele produto pode então ser consumido. A última etapa do processamento da mandioca é justamente aquilo que chamam dão o nome de torragem. Essa tarefa, essencialmente masculina, é um trabalho bastante árduo e delicado, sendo bastante valorizado socialmente. Um torrador que prepara o que chamam de “uma farinha bonita” tem prestigio e costuma orgulhar-se de sua própria produção, mostrando e oferecendo um punhado da mesma para aqueles que falam sobre o assunto. Durante a torragem, a farinha é mexida e sacudida por mais de uma hora e, quem realiza o preparo deve estar muito atento ao que chamam de “posição de fogo”, isto é, a administração da quantidade de lenha que deve ser colocado para o processo. Caso haja fogo em excesso, a massa seca demais e, em questão de minutos, os pequenos grãos da massa se agregam em uma única pelota, impedindo assim que seu interior seja torrado adequadamente. No caso oposto, em que o fogo está baixo demais, a farinha acaba ficando branca, não adquirindo assim a qualidade amarelada pretendida e valorizada pelo agricultor. Para evitar o erro, muitos torradores costumam manter um balde com água próximo ao fogo, a fim de assim manejarem sua intensidade. Além da importância da habilidade do torrador no processo, outros importantes fatores para que uma farinha seja bem torrada é tanto o estágio de maturação em que a mandioca é colhida, quanto o tempo decorrido desde que foi retirada d’água, isto é, o nível de fermentação em que a mesma se encontra. Isto é: caso uma variedade de mandioca que possua tempo de maturação de seis meses for colhida com apenas quatro ou cinco meses, a farinha acabará apresentando aquilo que chamam de pó, isto é, ficará excessivamente fina. Além disso, no caso de certas variedades de mandioca, se a massa puba for retirada d’água e não for torrada no mesmo dia, fermentará em excesso e sua farinha apresentará gosto azedo.

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A maior parte dos agricultores deixa sua produção armazenada em sacos de lona embaixo de suas casas de farinha, localizadas na região mais alta do terreno. Segundo os padrões de medição local, um saco de lona é equivalente a dois alqueiros, considerando que um alqueiro é 40 litros. Um saco é também o resultado de três fornadas de farinha produzidas. Os agricultores costumam realizar o transporte dos sacos de farinha quando grande parte do terreno já está alagada, facilitando assim deslocar a produção até a residência na cidade através de canoa. Chegando à residência, a farinha é armazenada em tinas grandes, chamadas de tambor, onde cabem cinco alqueiros (isto é: duas sacas e meia). Nesse recipiente a produção pode ficar guardada até o próximo ano, caso haja quantidade suficiente. Na época logo após a produção, estação chamada de inverno devido a grande quantidade de chuvas, a fartura de farinha é muito grande, pois a maior parte da população planta mandioca. Nessa época, portanto, a venda é muito restrita e, quando ocorre, os preços são muito baixos (cerca de 40 reais por um saco). Já na estação de estiagem, chamada de verão, configura-se como uma época em que a produção armazenada já foi em grande parte consumida, ocorrendo com isso mais vendas e preços valorizados (um saco pode chegar a custar 120 reais). Segundo os próprios agricultores, é justamente pela necessidade de armazenar a maior quantidade de farinha possível - para que não haja falta ao longo do ano – que o tipo de beneficiamento da mandioca entre os moradores de Canutama deve ser rápido e em abundância. De acordo com eles, oficinas para produção de uma farinha dita de maior qualidade, chamada de “toco mole” foram realizadas entre os agricultores, porém afirmam que esse tipo de beneficiamento - no qual a mandioca é descascada, cevada e colocada de molho – não se aplicaria a várzea, posto que o tempo de beneficiamento é inadequado para um armazenamento de grande quantidade de farinha. Além disso, a questão da qualidade da farinha, no caso dos agricultores canutamenses, está focada principalmente no gradiente de coloração de sua produção: quanto mais intenso o amarelo da farinha, mais apreciada ela é. Depois que a área de cultivo está alagada, os agricultores fazem visitas relativamente frequentes ao local, empurrando constantemente

149

todos os restos das partes aéreas da mandioca colhida anteriormente para a beira do terreno, chamada de aceiro. Posteriormente, quando houver a vazante do rio e o terreno estiver enxuto, esses restos vegetais são queimados e, em tais locais, os agricultores plantam milho. Além da farinha, grande parte dos agricultores também costuma utilizar a mandioca para obter sua goma e, posteriormente, utiliza-la para preparar tapiocas, por exemplo. No entanto, a obtenção de goma não se trata de uma prioridade, diferente da farinha, sendo realizada apenas quando conseguem tempo em meio a intensificação da cheia anual. Esse processo é apenas realizado justamente no final da “época de farinhada”, em meados de fevereiro, momento em que a cheia do rio Purus já atingiu seus terrenos e, portanto, a água contida em suas áreas baixas deixa de ser água parada e passa a ser água corrente, isto é, limpa o suficiente para preparar a massa bem branca. Além da farinha d’água e da obtenção da goma, a mandioca pode também ser utilizada para produção de bolos (da massa puba) e farinha seca, esta ultima costuma ter sua produção restrita a apenas aquelas pessoas que não podem alimentar-se da farinha d’água por se encontrarem com algum tipo de doença, inflamação ou até com problemas digestivos. De acordo com os agricultores, a farinha seca é considerada uma farinha mais suave, que não absorve água e, por isso, não causa enchimento no estômago. Não é produzida em grande escala, pois dizem que torrá-la é muito demorado e é preciso muita paciência, uma vez que a intensidade do fogo deve ser baixa, caso contrário seus grãos se aglomeram e a farinha embola.

Variedades de Mandioca e Macaxeiras Mandioca Os agricultores de Canutama listaram 11 variedades de mandioca e três de macaxeira adaptadas ao ambiente de várzea. A identificação das variedades se apoia principalmente em critérios como: a cor, tamanho e espessura do tubérculo; tempo de maturação e resistência no solo; arquitetura e características das partes aéreas; quantidade de fibras (crueira) em sua massa; coloração e rendimento da farinha após a

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torragem (variedades rendosas são aquelas que a farinha não diminui muito de tamanho depois que seca no forno, isto é, “não quebra muito no forno, não diminui na farinha, é rendosa”); quantidade de goma (inversamente proporcional à quantidade de manipuera, “quanto mais goma, mais rendosa e mais saborosa fica a farinha”, porém é mais trabalhosa de torrar porque é mais úmida, mais pesada, tem que ser muito mexida no forno, senão os grãos se aglomeram); tempo de resistência ao alagamento do terreno. Segundo os agricultores, as variedades de mandioca cujo tempo de maturação é por volta de um ano ou mais são reconhecidas como tubérculos que fornecem uma farinha mais saborosa. Reconhecem que são poucas as variedades adaptadas ao ambiente de várzea por conta dos poucos meses (em torno de seis) que o tubérculo tem para se desenvolver no solo. Quando, por vezes, plantam algum cultivar adaptado à terra firme, isto é, com tempo de maturação de um ano ou mais, os tubérculos chegam a crescer, porém sua grossura é menor e a qualidade e coloração da farinha são, respectivamente, menos saborosa e menos amarela. Segundo os agricultores, as variedades mineva, mantegueira amarela, camarão, ituqui, mantegueira preta, flecha amarela e socó são aquelas que fornecem farinha mais amarela, mas caso não encontrem sementes delas (as mais difíceis de encontrar são camarão e mineva), plantam outras. As variedades que fornecem mais goma são olho verde, mantegueira preta, samauma (terra firme) e orana (terra firme). Os agricultores mais jovens costumam variar constantemente as variedades plantadas, introduzindo sempre variedades que não haviam plantado antes a fim de experimentálas. No entanto, certas variedades como olho verde, mantegueira amarela, talo encarnado e ituqui são aquelas plantadas pela maior parte dos agricultores que cultivam na grande área chamada de Seringueiro, a qual inclui a Baixa Grande e a Beira do Lago do Seringueiro. Macaxeira A maioria dos agricultores planta macaxeira em pouca quantidade, visto que é apenas para consumo próprio e possui caráter complementar na dieta da população canutamense. Segundo eles, as pessoas apenas plantam macaxeira em maior quantidade quando pretendem vender o tubérculo em

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sacos para lanchonete e comerciante da cidade ou então vender seus subprodutos, posto que a mesma seja utilizada para o preparo de bolos, salgados, farofas, carinas ou é consumida apenas cozida ou frita. Os agricultores não tem o costume de preparar farinha de macaxeira, afirmando que sua torragem é muito demorada por conta do cuidado com o excesso de fogo (em um dia, conseguem obter apenas duas fornadas) e, além disso, dizem que a farinha seca da macaxeira possui coloração muito esbranquiçada e o gosto muito adocicado, características essas não apreciadas em uma farinha. Alguns, no entanto, fazem esse processamento ou destinada ao consumo de pessoas com problemas no estômago, ou para consumi-la acompanhada de açaí – este último consumido em abundância na cidade de Canutama – ou ainda para complementar a nutrição dos filhos pequenos. O plantio da macaxeira é realizado um mês antes da mandioca, em maio, visto que seus tubérculos demoram mais para se desenvolver. Além disso, os agricultores em geral plantam a macaxeira em uma área de solo novo e afastada da mandioca, caso contrário ela pode amargar. Sua colheita também nunca é feita em concomitância com a de mandioca, ocorrendo antes (desde meados de outubro até dezembro) ou depois (de meados de fevereiro até março) da época da mesma, posto que o beneficiamento da mandioca é um complexo de atividades que consome praticamente todo o tempo dos agricultores. Isto é: durante certa época, a prioridade é a produção da farinha de mandioca, alimento principal da população de Canutama que deverá ser estocado durante o ano inteiro. A colheita e preparo da macaxeira então apareceria nesse momento como atividade secundária, visto que tem caráter mais complementar na dieta dos agricultores (“só fazemos bolo quando não estamos ocupados”). A macaxeira depois de colhida em geral passa pelo mesma etapa de decotagem que a mandioca, é lavada na área baixa do terreno e depois transportada até a residência na cidade, onde então é descascada, lavada com água limpa e aí pode ou ser colocada de molho por um dia (como sua casca é mais fina que a mandioca, se passar desse tempo na água poderá aguar), levada para a prensa da casa de farinha, posta para secar e depois ser armazenada enquanto massa (Carina) ou então pode ser ralada

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manualmente, coada com uma tela para que sua goma seja descartada, temperada sua massa, levada para casa de farinha e assada no forno envolto por folhas de bananeira (bolo). A macaxeira não costuma ser armazenada, pois ela rapidamente fermenta e adquire coloração arroxeada, porém algumas pessoas chegam a congelá-la.

Figura 19 – Macaxeira sendo lavada na área baixa; macaxeiras assadas no forno. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

Um aspecto interessante relacionado à macaxeira é que, embora sua importância na dieta dos moradores de Canutama seja secundária, a maior parte agricultores evita ao máximo a perda dos feixes, chamados por eles sementes, os quais serão utilizados no próximo plantio. Para isso, costumam encanteirar tais feixes nos quintais de casa ou podem ainda mantê-los em áreas de várzea alta, as quais raramente são alagadas. Em contrapartida, não veem nenhum problema em perder os feixes de mandioca,

visto

que

os

mesmos

podem

ser

facilmente

obtidos

posteriormente com os agricultores da terra firme. Iremos, contudo, abordar o tema da obtenção e manutenção de sementes de mandioca e macaxeira mais adiante.

153

Casa de Farinha Em geral, todos aquelas pessoas que plantam, devem ter casa de farinha, visto que é algo valorizado socialmente. Em diversos casos, contudo, isso não acontece. Alguns podem ainda não ter condições financeiras (caso queira colocar alumínio no teto), outros não possuem uma unidade produtiva suficientemente grande para ajudar na construção da casa, outros não tem interesse (visto que a construção implica em processos bastante trabalhosos e demorados) e outros ainda preferem simplesmente compartilhar casa de farinha pelo processo de interação e ajuda mútua que nela ocorre. É importante salientar que todos esses motivos podem ser simultâneos e, somados, corroboram para os diversos casos de compartilhamento de casa de farinha que citaremos a seguir. O primeiro caso se trata de uma parceria estável que se dá geralmente entre familiares (pais e filhos; irmãos; genro e sogro; cunhados) ou entre amigos muito próximos. A casa de farinha, nesse caso, pode ser resultado de uma construção em conjunto ou então pode pertencer a uma das partes, mas receber colaborações através de ajudas na sua manutenção. Além dessas colaborações, em tais parcerias de longo prazo cada um dos parceiros de casa de farinha costuma realizar o embarriamento (preparo de um suporte de barro) de seu próprio forno (ou até de um forno emprestado), embora todo o resto do material incluído na casa de farinha seja revezado entre os parceiros. O estabelecimento de um novo forno na casa de farinha é vantajoso para ambas às partes visto que, através do revezamento nos dias de “torragem” (ver BENEFICIAMENTO DA MANDIOCA), aumenta-se a quantidade de farinha produzida por dia, algo essencial quando as vazantes começam a alagar rapidamente pelas chuvas. É importante ter em vista, portanto, que essa inclusão de mais um forno por parte do parceiro permite que ambos tenham os mesmos direitos de utilizar a casa de farinha, realizando para isso um acordo prévio de revezamento que deve ser mantido durante toda época da farinha (farinhada). Em geral, tais acordos estáveis são estabelecidos com antecedência a farinhada e, caso dêem certo e seja de interesse de ambos, podem se manter por anos. Tais parcerias estáveis podem ou não se desenvolver para a formação de grupos coorporativos (explicação!). Além

154

disso, a potencialidade para compartilhamento de casa de farinha com parentes ou amigos próximos é um dos fatores que influencia no momento de escolher a localização de sua própria vazante. O segundo caso se trata, em geral, de acordos eventuais, parcialmente estáveis, mas de curta duração. Geralmente o combinado se dá entre conhecidos, amigos ou parentes em função de alguma razão recente, como uma parceria que foi rompida durante a última farinhada, constituindo-se assim como uma espécie de suporte momentâneo até que pessoa se estabeleça outra vez (através de outra parceria ou de construção de sua própria casa de farinha). O novo ‘parceiro eventual’ geralmente faz o suporte de barro (embarriamento) de seu próprio forno na casa de farinha do dono. Caso não o faça, por não possuir forno ou disposição para construir seu suporte (embarriá-lo), subentende-se que ficará dependente da disponibilidade do dono de farinha, isto é, o dono da casa de farinha terá prioridade em sua utilização. Isto é, aquele que utiliza eventualmente a casa de farinha fica sujeito a não poder usá-la quando o alagamento da roça do dono esteja sendo intenso, visto que o mesmo precisará torrar farinha praticamente todos os dias. Nesses casos em que o parceiro eventual não tem seu próprio forno, a tendência é que realizem o beneficiamento de sua colheita num período anterior ao que o dono da casa de farinha a utilizará. É importante ressaltar que os acordos eventuais têm uma tendência a se estabilizar caso o parceiro possua seu próprio forno e a parceria dê certo naquele ano (o que envolve o cumprimento de certas regras reciprocidade entre os parceiros, como deixar a casa de farinha limpa após o uso, ajudar a carregar palha para manutenção de seu teto, emprestar forno nos dias que não está utilizando, realizar acordo para revezamento de materiais e dias de “torragem”). Esses acordos eventuais estão intimamente relacionados ao terceiro caso de compartilhamento de casa de farinha, no qual existe uma espécie de constância de acordos não fixos. Isto é, alguns agricultores que possuem roça e não tem casa de farinha própria preferem realizar todos os anos acordos imediatos (em contraposição aos previamente combinados, como os do primeiro caso apresentado), eventuais e de curta duração. Tais agricultores, em geral, não possuem forno nem contribuem com algum tipo

155

de ajuda para o proprietário da casa de farinha. É justamente por isso que o local de beneficiamento de sua colheita não será estável, dependendo assim de sua afinidade com o dono da casa de farinha (em geral parentes ou vizinhos de casa na cidade), da disponibilidade de uso dessa casa, da proximidade da mesma com sua roça e até mesmo dependente do nível de alagamento em que a água se encontra. Embora essa forma de acordo não seja estável como a parceria, existe uma espécie de rota pré-estabelecida de casas de farinha que tais agricultores procuram, solicitam e, quando possível, percorrem para produção de sua farinha. São justamente essas rotas, formadas por um conjunto de acordos eventuais com pequena duração, que caracterizam esse terceiro tipo de compartilhamento de casa de farinha. Subentende-se, no acordo, que devem levar sua própria lenha. Em geral, quando as pessoas são conhecidas ou parentas, os donos da casa de farinha não costumam cobrar pela utilização de seu forno. Caso não sejam, costumam cobrar de dois a três alqueiros de farinha em troca da utilização do forno por três a sete dias. É importante salientar, contudo, que esse tipo de compartilhamento é percebido de maneira negativa pelos demais agricultores da cidade de Canutama. É esperado socialmente que uma pessoa que possua roça e família grande vise construir uma casa de farinha própria ou, se ainda não possuir condições para tal, estabeleça um acordo constante e estável com um parceiro. Tomemos para ilustrar esse terceiro tipo, o caso de um marido, sua esposa e três filhos que possuem vazante na chamada ‘beira do lago do Seringueiro’ e realizam, logo no início da época da farinha, o beneficiamento da mandioca na casa de farinha dos pais da esposa. Conforme o lago vai subindo e as roças alagando, os pais da esposa precisam fazer a farinha muito rapidamente, utilizando a casa todos os dias, não tendo assim disponibilidade para que a mulher e seu esposo usem. Por isso, procuram nessa semana o irmão da esposa, perguntando se poderiam usar sua casa de farinha no próximo dia. Vendo que o cunhado não terá sua casa disponível e tendo sido facilitado o acesso de canoa por conta da cheia do terreno, o esposo vai solicitar casas de farinha de seus amigos ou conhecidos (em geral vizinhos da própria cidade de Canutama) que se localizam numa área mais distante de sua roça, chamada ‘Baixa Grande’.

156

Como esse local enche mais tardiamente que a beira do lago do Seringueiro (onde possuem roça), as casas de farinha aí localizadas ainda não estão sendo utilizadas com tanta intensidade, visto que seus proprietários ainda não estão “aperreados com a cheia”.

Perguntando com um dia de

antecedência para os donos que lá se encontram, conseguem então o aval dos mesmos para que beneficiem lá sua massa de mandioca, realizando o transporte através de canoa. Em geral, as pessoas que possuem roça próxima a cidade, constroem a casa de farinha na parte alta próxima a baixa onde depositam a caixa com a mandioca, pois nesse local não precisam carregar a massa por uma distancia grande. Outras pessoas, possuindo roça distante, preferem colocar a casa de farinha perto da cidade para não precisar carregar a farinha por uma distância grande. Isto é, preferem carregar a massa por distancia mais longa (da baixa de seu terreno até a casa de farinha próxima da cidade). Quando os pais tem uma vazante grande e possuem filhos que estão começando a constituir uma família (com apenas um filho ainda), dividem a área, ficando com um parte e dando as outras para cada filho varão. Alguns pais ajudam seus filhos homens a comprar algum pequeno terreno próximo aos seus, para que compartilhem a mesma casa de farinha. Contudo, quando o terreno não é grande os filhos podem continuar a trabalhar na vazante dos pais até terem filhos suficientes para constituir uma unidade produtiva e fazer sua própria vazante. A maior parte dos filhos procura fazer suas vazantes próxima a dos pais para poderem compartilhar casa de farinha e tudo que a atividade dentro dela representa. Caso não haja terreno próximo, fazem distante mesmo e podem construir sua própria casa de farinha ou realizar acordo com conhecidos que torrem próximo. -As casas de farinha que se localizam em áreas de várzea alta possuem plantações de árvores frutíferas, variedades de pimenta e hortas com temperos a fim de temperar o peixe do almoço. - Uma casa de farinha pode ser vendida junto com a roça, custando cerca de 1.500 reais. - Espaço de interação: “Aqui, se tiver com cara feia vai embora... aqui é alegria, grito, brincadeira... um lugar de alegria”.

157

Aquisição das sementes pelos agricultores da várzea Um aspecto importante relacionado ao plantio na várzea em Canutama é a obtenção das chamadas sementes de mandioca, isto é, fragmentos das partes aéreas da planta que são utilizados para sua propagação vegetativa. Como suas áreas de cultivo estão sujeitas a mudanças sazonais na dinâmica das águas, não é possível manter as sementes de um ano para o outro em tais locais. Para obter essas sementes, portanto, as alternativas são: Comprar dos agricultores que possuem roça nas áreas de terra firme do rio Mucuim, localizado relativamente próximo de Canutama (colocar mapa); Manter um pequeno cultivo na várzea alta (área com relevo um pouco mais elevado que raramente alaga) ou na ilha de terra firme próxima à cidade para assim guardar suas sementes de mandioca e macaxeira; Encanteirar seus feixes de maniva nos quintais da residência ou próximo à casa de farinha. Ambos os locais, contudo, estão sujeitos a alagações e, caso a mesma seja intensa, os agricultores irão recorrer aos vendedores da terra firme ou, por vezes, aos da várzea alta para obtenção de suas sementes. No primeiro caso, quando tratamos da venda de sementes por agricultores do ambiente de terra firme, existem duas formas básicas em que isso pode ocorrer. A primeira delas se dá através de encomendas realizadas com antecedência (entre os meses de janeiro e fevereiro) aos agricultores da terra firme. Durante esses meses, justamente os mesmos em que ocorre a época da farinhada, quem plantou na várzea já sabe quais os resultados de sua produção e, portanto, pode decidir que variedades de mandioca continuarão plantando. Cada agricultor da várzea possui sua própria rede de agricultores de terra firme que irá acionar quando precisar de sementes e, como entre eles se estabelece uma relação de confiança, os da terra firme irão conferir se sua cota de encomendas ainda não se esgotou. Caso não possa se comprometer com o agricultor da várzea durante aquele ano, irá adverti-lo com bastante antecedência para que não corra o risco de não obter feixes e, além disso, recomendará alguém de confiança com quem possa comprar os feixes naquele ano. É importante chamar atenção que não são todos que fazem esse tipo de negociação,

158

posto que, além do transporte dos feixes ser bastante trabalhoso, suas áreas de roçado na terra firme estão localizadas distantes da cidade de Canutama, sendo assim necessário gastar muito com gasolina para o barco. As sementes são então trazidas durante o mês de maio, final da época cheia do rio Purus, quando os agricultores de terra firma ainda podem realizar a maior parte do trajeto de seus roçados até a cidade de barco. São trazidas com eles as sementes agrupadas nos chamados feixes que contem, cada um, cerca de 30 a 40 varas de maniva, custando um valor que dependerá da grossura do feixe, em geral oscilando a cada ano entre 15 a 20 reais. Alguns avisam por telefone quando estão chegando à cidade e realizam a entrega no pequeno porto da cidade, enquanto os que possuem residência na cidade entregam nos próximos dias em que lá ficarão. Além da compra, também é possível para os agricultores da várzea adquirir essas sementes por meio de trocas com os agricultores da terra firme, em geral negociando semanas de trabalho com capinagem ou derrubada nos roçados de terra firme. Outra forma de troca ocorre quando os agricultores de terra firme perdem suas sementes de algum cultivar específico, trocando com os de várzea pelos tipos que os últimos desejarem. Os principais cultivares comprados com agricultores da terra firme é olho verde e mantegueira amarela, sendo também encontrada flecha, ituqui, baixota. Em geral, optam por sempre cultivar os dois primeiros por acharem que mantegueira amarela e olho verde apodrecem menos em solo úmido. Tanto talo encarnado, quanto mineva, socó e mantegueira preta são plantados por poucos deles, pois acham, por exemplo, talo encarnada dura para arrancar do solo e com muita fibra. É importante diferenciar mais uma vez aqui as variedades adaptadas a terra firme (cujo tempo de maturação ultrapassa 12 meses e pode chegar a três anos) daquelas propícias para a várzea (tempo de maturação entre 5 a 6 meses). Os agricultores de terra firme que costumam vender feixes de mandioca cultivam tanto os tipos próprios à terra firme – como, por exemplo, samauma, janauaca, orana, flechinha, jabuti – para com eles prepararem a farinha para consumo e venda, quanto também variedades de várzea, destinadas apenas a venda dos feixes de mandioca. Por vezes, contudo, cultivares próprios da terra firme vem entrelaçado por engano em

159

meio aos feixes vendidos aos agricultores da várzea, que acabam plantando-os para que não haja nenhum tipo de perda. Procuram plantar essa variedade sempre em solos que tenham menos teor de argila em sua composição e proporcionalmente mais areia, de maneira que seja mais frouxa e permita o melhor desenvolvimento de suas raízes tuberosas. Deve-se atentar para o fato de que esse tipo de obtenção de sementes é o que ocorre majoritariamente na cidade de Canutama, de maneira que a maior parte das variedades que é plantada pelos agricultores da várzea de certa forma é determinada por aqueles da terra firme. Isto é, a terra firme e os critérios de seleção de seus agricultores tem uma espécie de controle sobre o banco fitogenético daquilo que poderá ser plantado na várzea. Conversando com alguns agricultores de terra firme percebi que eles costumam plantar as variedades que acreditam que os moradores da várzea gostam mais, por pedirem mais, como por exemplo, olho verde e mantegueira amarela. Essas duas variedades são realmente as mais encontradas nas áreas de cultivo da várzea. Uma informação interessante é a de que, se por um lado há grande oferta de sementes de mandioca em Canutama, por outro não há praticamente nenhum tipo de comercialização de sementes de macaxeira. O fato é que praticamente todos os agricultores de várzea guardam suas sementes em áreas de várzea alta ou encanteiradas nos quintais ou proximidades de casa de farinha. Há uma espécie de cuidado especial para que essa semente não seja perdida e, caso isso porventura aconteça, sua obtenção em geral ocorre por meio de doações de parentes que morem próximo. Não há como afirmar o motivo pelo qual isso acontece, isto é, se as pessoas dão tanta importância para manutenção dessas sementes por conta da baixa oferta por parte dos agricultores de terra firme ou se é justamente o inverso: aqueles da terra firme não trazem por não ocorrer esse tipo de demanda. O fato é de que a quantidade de varas de macaxeira mantidas por cada agricultor é tão pequena que não atinge a escala comercial, pairando apenas no universo dos consanguíneos que moram próximo. Veja a informação abaixo dada por um dos agricultores da várzea:

160

É raro as pessoas perderem, pois é muita preocupação correr atrás de semente de macaxeira, porque tem gente que não gosta de vender e quando encomenda não traz... acham que é pouco para trazer de tão longe, aí preferem trazer o que dá para vender mais (Dude).

O segundo caso que enumeramos anteriormente diz respeito a agricultores da várzea ou da praia (beira do Purus) que mantém, além de suas roças, outro pequeno espaço de cultivo. Nessas áreas de várzea alta ou aquelas de terra firme que se localizam na própria cidade de Canutama são mantidas não só variedades de mandioca e macaxeira, mas também uma ampla diversidade de espécies como maxixe, quiabo, limoeiro, azeitona, goiabeira, bananeira, mangueira, urucuzeiro, açaí, urucurizeiro, milho, pupunha, coco, biribá, cana, cajueiro, ingazeiro, mamão.

Os

agricultores costumam visitar com frequência a área para ver o estado da plantação e se alguém mexeu em algo. Alguns costumam chamar as plantas que cultivam na várzea alta de “bens de raiz”, isto é, uma espécie de patrimônio para vida toda que garante no caso da prefeitura de Canutama precisar da área, que seja pago um valor por cada uma das árvores, considerando que oferecem alimentação e renda para seu proprietário ao longo de toda sua vida e de seus herdeiros. Em geral, os donos dos roçados (chamam de roçado quando se localiza no ambiente de várzea e terra firme) realizam no final da época cheia do rio Purus, em meados de maio, a escolha das varas de mandioca que irão plantar no próximo mês em suas vazantes. Selecionam, em geral, um feixe (cerca de 50 varas) de plantas que possuam caules mais finos - por serem mais fáceis de juntar no feixe e de plantar- e compridos – pois poderão render mais quando forem cortados em pedaços. Realizam um corte em cada um desses caules para verificar se possuem bastante seiva, também chamado de leite por conta de sua coloração esbranquiçada. As plantas de mandioca possuem apenas suas partes aéreas extraídas, enquanto seus tubérculos em geral não são colhidos por três principais motivos: a várzea alta em geral se localiza distante da casa de farinha; os tubérculos que crescem nesse ambiente não apresentam crescimento satisfatório devido ao pouco nível de adubo depositado; não realizando sua extração mantem-se aqueles nutrientes no ambiente, postergando assim o esgotamento dos

161

mesmos no solo e permitindo mais anos de cultivo no mesmo local. É importante diferenciar aqui alguns tubérculos da macaxeira são retirados, escolhendo apenas as plantas de tronco mais grosso para isso. O transporte das sementes até a residência, tanto as de mandioca quanto as de macaxeira, é realizado de barco, diminuindo o esforço empreendido, e as varas são encanteiradas no quintal até que sejam plantadas em junho. Alguns dos agricultores que possuem roçado na ilha de terra firme de Canutama ou na várzea alta também realizam a venda de sementes de mandioca, mas em uma escala muito menor do que os vendedores de terra firme que possuem roçados mais distantes. Em geral, vendem apenas para conhecidos ou amigos vizinhos, enquanto para parentes costumam dar. Nessa doação, as pessoas que devem ir até o roçado buscar as sementes e, em geral, como forma de retribuição, o que recebe a maniva costuma capinar o roçado daquele que realizou a doação. Mesmo que seja raro, a várzea alta por vezes é alagada em épocas que a cheia do rio Purus é muito intensa. Contudo, como esses locais possuem relevo mais alto e alagação neles é rasa (atingindo cerca de 15 cm), pode-se ainda assim retirar a mandioca ou a macaxeira sem que a mesma estrague. Sua extração, no entanto, deve ser feita antes que a água da cheia baixe caso contrário à planta seca. Em alguns casos, quando a alagação é maior, o plantio é perdido e torna-se necessário obter as sementes por meio de compra com pessoas da terra firme ou de doações por parte de parentes. No terceiro caso mencionado, os plantadores mantem suas sementes de mandioca e macaxeira no quintal de sua própria residência na cidade ou, no caso na mandioca, nas proximidades da casa de farinha. Ao final de cada colheita, encanteiram cerca de sete feixes (lembrando que cada feixe é formado por 40 a 50 varas) das plantas mais prósperas, finas e com mais seiva para serem mantidas até o próximo plantio. Tomam particular cuidado para não realizar o transporte de sementes leves e secas, isto é, com pouca seiva, visto que esta é de fundamental importância no desenvolvimento das raízes tuberosas. Depois do transporte, a tarefa de manutenção das sementes em geral é feminina. As varas são escoradas em um fio de barbante amarrado em diversas madeiras espalhadas pelo quintal e, assim

162

encanteiradas, são realizadas podas nas folhas que começam a nascer dos nós do caule, deixando que apenas os apicais se desenvolvam. Dessa forma, segundo os agricultores, evitam que a seiva se divida e perca sua força. Contudo, afirmam que ainda realizando um manejo constante, as manivas encanteiradas sempre acabam por perder um pouco de sua seiva e algumas delas chegam a ficar muito secas, leves, com o “miolo tufado”. Por isso costumam encanteirar uma quantidade maior do que aquela que realmente precisarão durante o plantio.

Figura 20 – Estacas de mandioca. Foto: Thayná Ferraz da Cunha.

Quando chega a época de plantio, os agricultores escolhem justamente as varas mais pesadas, cortando sua extremidade para verificarem a quantidade de seiva nela. Aquelas com pouca são enterradas no próprio local para ver se a seiva se renova. Caso renove, entre oito a dez dias, utilizam apenas a parte da vara mais próxima ao chão. No momento do

163

plantio, as varas são cortadas em pedaços com três nós. Caso haja pouca vara para utilizarem, enterram dois pedaços provenientes das que tem pouca seiva em uma única cova, aumentando assim as chances de sucesso. Embora seja uma alternativa bastante utilizada, sobretudo para manter sementes de macaxeira, a maior parte dos agricultores não aprecia varas de mandioca que tenham sido encanteirados, dizendo que a plantam perde sua seiva (leite) e nasce com menos vigor quando replantada do que aquelas

que

foram

tiradas

recentemente

da

roça.

Além

disso,

o

encanteiramento de mandioca costuma apenas ser realizado quando a cheia do rio não é demasiada intensa, pois nessas condições os agricultores possuem tempo suficiente para empreender essa tarefa. A macaxeira, por outro lado, é uma prioridade e deve ser encanteirada, algo facilitado pelo fato de serem poucas varas necessárias, tornando assim o trabalho muito mais fácil e rápido.

164

ROÇADOS E MANDIOCAS JAMAMADI Ingrid Daiane Pedrosa de Souza INTRODUÇÃO Parte do grupo que ficou na cidade de Canutama (Thayná, Alba e eu) deu início ao estudo sobre o evento conhecido como farinhada. A pesquisa, vinculada ao projeto “Sistemas Produtivos no Médio Purus Indígena” do IBP, coordenado pelo Prof. Gilton Mendes, objetivava o acompanhamento dos agricultores de várzea do município, investigando prioritariamente os aspectos sociais e simbólicos por detrás da atividade produtiva. Este primeiro momento serviu como uma espécie de “pré-campo”, uma vez que me possibilitou estar na região do Purus, conhecendo uma área de roçados24, acompanhando um grupo de agricultores que fazem desta sua principal atividade; compreendendo, entre outras coisas, a dinâmica das relações entre nordestinos e indígenas, impressa na história destes grupos. Esta última parte, de modo mais específico, de suma importância para compreensão dos reflexos do extrativismo na história social dos coletivos indígenas e não indígenas da região. Meu retorno a Lábrea Informada que o professor Gilton não poderia ir para Lábrea, fui por ele instruída a entrar em contato com os professores do curso de pedagogia indígena da UEA que haviam sido vinculados ao projeto sobre os sistemas produtivos do IBP. A intenção era saber como estavam sendo conduzidos os levantamentos e as pesquisas nas comunidades Jarawara, Paumari, Apurinã e Jamamadi, onde os mesmos davam aulas, bem como realizar reuniões de orientação ao grupo. Nesse sentido, tanto auxiliaria no andamento dos trabalhos,

24

quanto

tomaria

conhecimento

do

material

referente

aos

Embora os roçados que conheci no município de Canutama sejam do tipo “vazante”, ou

seja, “roça de mês”, enquanto que nos Jamamadi as roças são de terra firme, roçados de ano, a experiência de estudo trouxe grandes contribuições quando na pesquisa com os Jamamadi.

165

Jamamadi, de modo a me situar do atual contexto agrícola do grupo, uma prévia do que encontraria durante o trabalho de campo. Nesta ocasião conheci a professora Apurinã Lucilene, que também fazia parte do grupo de professores do projeto e era responsável por dar aulas nas comunidades Jamamadi. Durante os encontros, a mesma disponibilizou quatro desenhos de alunos seus produzidos já de acordo com a proposta e objetivos do projeto. A partir de diálogos durante as aulas, havia sido elaborado um modelo de “calendário dos roçados” orientando a produção dos desenhos, os quais findaram sendo entregues à professora como parte das atividades de uma das disciplinas por ela ministrada. Além deste material, Lucilene trouxe ainda algumas informações iniciais - baseadas em um questionário, uma espécie de “roteiro” que havia sido elaborado e entregue pelo próprio professor Gilton - sobre o cultivo de roçados e a produção de farinha entre o grupo. A mesma havia realizado um pequeno levantamento na Comunidade São Francisco, bem como, em uma casa de farinha localizada próxima ao Igarapé Preto, pertencente ao cacique Bada. De acordo a professora, no São Francisco vivem cerca de trinta e quatro famílias, somando o total de 175 pessoas. Dos cultivos de mandioca citados em seu levantamento constavam as espécies “Samaúma, Mineve e Joaquim Grande”, as quais são descritas25 da seguinte forma:

25

Em nenhum momento do levantamento Lucilene explica como foi feito o levantamento, se

baseado nas suas observações ou na fala dos próprios Jamamadi.

166

MANDIOCAS LEVANTADAS Espécies de Mandioca26

Descrição Possui folha verde, talo roxo. O tubérculo tem a casa preta e massa branca. O caule é branco (?).

Samaúma

Ela a espécie “aguenta” até três anos. Seu pé é alto e “galhado” e rende farinha branca. Toda verde, caule amarelo, roxo. Não é muito alta. Aguenta cerca de dois anos. Possui massa

Mineve

amarela e rende uma farinha de cor “bem amarelinha”. Dura aproximadamente dois anos, sendo que com onze meses já é possível fazer farinha desta espécie de mandioca (confirmar). Sua planta é alta, folha verde, caule cinzento, talo verde,

Joaquim Grande

batata “esbranquiçada”. Rende uma farinha que não é nem muito branca e nem muito amarela. Tabela 4 - Mandiocas levantadas no São Francisco.

Além das espécies de mandioca mencionadas, a professora conta que os Jamamadi do São Francisco cultivam ainda milho, batata, ariar, cará, banana, abacaxi, cana, caju, tingui, arroz e macaxeira (mandioca mansa). Quanto à produção de farinha, Lucilene descreve algumas etapas do processo. Conta que primeiro arrancam o tubérculo, decotam, carregam e colocam

de

molho.

Com

aproximadamente

três

dias,

retiram-no

transferindo para cima da palha da bananeira braba. Para prensar, utilizam o tipiti, que é preso na forquilha de uma árvore e com o auxilio de uma vara fina (de aproximadamente dois metros e meio), presa na raiz da árvore,

26

Não sei se estes nomes foram grafados corretamente e nem os nomes científicos de cada

uma das espécies citadas. Muito menos saberia informar os nomes correspondentes na língua Jamamadi.

167

espremem a massa. Acontece que “aterram” e engancham o tipiti tanto na parte superior quanto inferior e, em seguida, a mulher senta em uma das extremidades da vara de modo a fazer o peso necessário para que a água escorra. O processo é repetido algumas vezes até que a massa enxugue por completo. De acordo com o levantamento de Lucilene esta é a única atividade onde apenas as mulheres participam, conforme o esquema abaixo:

Tabela 5 – Divisão de atividades agrícolas por gênero.

DIVISÃO DE ATIVIDADES AGRÍCOLAS POR GÊNERO Homens

Mulheres

Homens e Mulheres - Coivara; - Ir atrás das manivas (?);

- Broca; - Espremer a massa - Derrubada;

(tipiti).

- Plantar (Cavar covas e pôr as manivas); - Limpar; - Arrancar;

- Queima.

- Decotar ou cortar; - Carregar; - Peneirar; - Torrar.

Após terem escorrido a massa, ela é levada até a casa de farinha onde já pode ser torrada. Quando não é possível torrar no mesmo dia, pode-se optar ainda por realizar a atividade no dia seguinte. Dando continuidade ao processo de produção da farinha, partem a lenha e fazem o fogo, de modo que após a massa ter sido peneirada e o forno estar bem quente a jogam dentro. Enquanto um mexe o outro vai

168

jogando. No começo mexem com movimentos mais devagar, pois ainda estão escaldando a massa. Depois, mexem com mais força até “secar a farinha”. Segundo a professora, o tempo máximo que levam mexendo até que se tenha uma fornada é de uma hora. Na casa de farinha visitada, Lucilene registrou alguns dos materiais utilizados no processo, entre os quais menciona: três tipitis, uma peneira, uma caixa de peneirar massa, um forno, uma cuia para botar a massa no formo, um remo para mexer, paneiro para carregar a mandioca, um pedaço de pano molhado de óleo para passar no forno e um pano seco para puxar o pó de farinha que fica quando a retiram do forno. A chegada à TI Jarawara/Jamamadi/Kanamati Embora estivesse ansiosa após a espera pelo retorno de André, tive que conter minhas expectativas por mais um dia. Isso porque iniciei a viagem de campo conhecendo primeiro a aldeia “Casa Nova”, também situada

na

TI

Jarawara/Jamamadi/Kanamati,

mas

pertencente

aos

Jarawara. Neste local estava previsto ocorrer um campeonato de futebol que contaria com presença de vários Jamamadi e ribeirinhos. André por algumas vezes durante o trajeto havia mencionado seu interesse em ir até lá para assistir e participar do campeonato, contudo, fiquei bastante receosa que isso pudesse atrasar minha entrada, prejudicar no sentindo de limitar meu tempo de trabalho, minha estadia nas comunidades Jamamadi. O comentário sobre o evento aumentava à medida que os demais Jarawara que estavam no bote conosco – e desceriam em um ponto próximo de onde ocorreria o campeonato – também aguardavam minha decisão para seguirem direto até o local. Apesar de expressar seu interesse, André procurou todo tempo me deixar bastante a vontade para decidir, dizendo sempre que a gasolina era minha e eu diria o que faríamos. “O que Daiane decidir”. Sempre

gostei

de

futebol,

fiquei

interessada,

todavia,

estava

preocupada em manter o foco, imaginando que após André encontrar parentes e amigos, poderia dispersar do ponto final da viagem. Assim, após

169

conversar com o agente sobre a proximidade das aldeias Jamamadi27 e dele me garantir que logo pela manhã estaríamos no porto de uma delas - a aldeia “Buritirana” do cacique Gasparino -, findei aceitando a proposta. Logo que chegamos ao porto Jarawara, tratei de guardar minhas coisas em uma casa localizada próximo a margem, para seguir a caminhada até o local onde ocorreriam as partidas de futebol. Os Jarawara me ajudaram a guardar e trancar a casa, alertando para o fato de muitos poderem mexer no material que eu levava, não havendo controle com tantas

pessoas

(indígenas

e

ribeirinhos)

de

diferentes

lugares.

Aconselharam-me a escrever em letras garrafais “OPAN” e “FUNAI” no garrafão de gasolina e no rancho deixado.

Figura 21 - Cobrança de Pênaltis, aldeia “Casa Nova” dos Jarawara. Foto: Ingrid Daiane.

Chegando lá, assisti a umas partidas, enquanto observava o local e as pessoas, conhecia alguns Jarawara e era também por eles observada. À tarde, sem comer nada, cansada, adormeci. Cochilava deitada no chão de uma das casas altas, de madeira, ao redor do campo, apoiando a cabeça na rede que havia levado.

27

Jarawara e Jamamadi dividem a mesma T.I., em uma área extensa onde os Jamamadi

detém maior parte.

170

Não demorou e um Jamamadi chamado Vane (ou Vande, como muitos brancos o chamam), da aldeia São Francisco, se ofereceu para ajudar, atando minha rede, me acomodando no local. Sempre atencioso e preocupado em saber se estava tudo certo, foi a ele que reclamei/exclamei de fome, enquanto ele ria de mim. Na frente da casa onde estávamos, haviam mulheres Jamamadi sentadas com seus filhos, expectadoras atentas das partidas.

Figura 22 - Campo de Futebol visto da casa onde estava (I e II Jamamadi sentados na “varanda)”, III (campo onde jogavam futebol). Foto: Ingrid Daiane.

Ir até lá assistir o campeonato, me fez perceber (e depois, através do campo junto aos Jamamadi, confirmar), entre outras coisas, o quanto os grupos indígenas da região também são afeitos ao futebol. Lá estavam presentes vários Jamamadi, homens, mulheres, adultos, jovens e crianças, de diferentes aldeias, participando e/ou assistindo. Mas, era Vane quem de todos os presentes redobrava as atenções e dispensava cuidados. Dentre os Jarawara que conheci, estava um jovem cacique que se aproximou de mim para conversar. Ele tentou apresentar-me sua esposa, que era branca, mas sorrimos e nos cumprimentamos, pois, já nos

171

conhecíamos de Lábrea, de uma das vezes que visitei a casa do cacique Bada, localizada no Bairro da Fonte.28 Entre outras coisas, o cacique Jarawara falou sobre uma antropóloga que havia feito um trabalho sobre o grupo. Referia-se a Fabiana Maizza, cuja dissertação eu havia dado importante atenção pelas proximidades históricas e culturais entre o grupo por ela pesquisado e os Jamamadi desta pesquisa. O cacique comentou que havia sido ajudante dela na pesquisa e lamentava que a mesma nunca mais tivesse mandado notícias ou aparecido para visitá-los. De acordo com ele, a antropóloga havia sido muito bem tratada, que não a deixavam carregar nada, sempre dispostos a ajudar no que fosse preciso. Ansiava cada vez mais saber como seria recebida pelos Jamamadi. À noite, acordei e percebi que estava cercada de pessoas que não conhecia. Eram os donos da casa onde havia ficado. Falei rapidamente com dois homens e logo André chegou, me direcionando para a escola da comunidade, onde eu dormiria. Já completamente escuro, desci em direção ao igarapé da comunidade, onde tomei banho ao lado de algumas mulheres Jarawara que ali se encontravam. Em seguida, após organizar minhas coisas e me instalar na escola, segui com Vane e André para enfim comer algo. Nas casas do outro lado do campo acontecia uma festa em comemoração ao aniversário de alguns Jarawara. Havia bastante comida e muita gente reunida conversando e sem dar muita atenção ao fato de eu não ser dali. Os Jarawara são bastante animados, gostam de festa. Observá-los me fazia imaginar todo tempo os Jamamadi, como seria estar com eles. Apesar de ter deixado meu rancho no porto, não precisei mais me preocupar com comida, pois na ocasião da festa era farta e composta por todo tipo de carne de caça. Dentre as opções, experimentei porco do mato,

28

O Bairro da Fonte é bastante conhecido por sua forte presença indígena. O local é

bastante procurado por grupos indígenas tanto para fixar moradia quanto para comprar casas onde permanecem durante sua estadia na cidade - como no caso de Seu Bada. O líder Jamamadi havia comprado a casa há pouco tempo em um local cercado de vizinhos Jarawara.

172

com farinha e bastante arroz. O gosto é diferente, mas ao mesmo tempo referenciável. Gostei bastante, mais ainda pela fome que sentia. Senti-me bem acolhida e pelo fato de não me cercarem todo tempo, de não ser o centro das atenções (claramente a “de fora”, diferente), tive tranquilidade em estar ali, conversando com naturalidade com as pessoas sentadas próximas a mim. De modo especial, atenta a meus novos amigos Jamamadi. Depois do jantar, fomos até uma casa onde muitos Jarawara se aglomeravam para assistir em um canal de TV a cabo um evento de luta do tipo telecatch, impressionando-se com cada cena, que era por eles comentada com grande excitação. Nos intervalos, mudavam de canal para uma partida de futebol onde Neymar findava sendo o centro das conversas. Em seguida, dando continuidade as comemorações, houve um culto evangélico curto, onde cantaram parabéns para os aniversariantes e repartiram o bolo. Várias mulheres saíram distribuindo, em bacias enormes, fatias de bolo feito de uma massa bem pesada, além de pipoca, sucos e refrigerantes, de modo que a etiqueta de aceitar o que me era oferecido já não poderia mais ser seguida fisiologicamente, o que causava risos em Vane que recordava do comentário de fome feito por mim horas antes.

Figura 23 - Aniversariantes na festa Jarawara. Foto: Ingrid Daiane.

173

Uma banda formada pelos próprios Jarawara começou a tocar músicas animadas no estilo “forró gospel”, com letras entoadas na língua nativa. Não demorou e logo casais se formaram. Vane comentou que os Jarawara gostavam muito de festa e que agora que eram crentes dançavam ao som de hinos da igreja, o que era mal visto pelos Jamamadi, cristãos mais conservadores.

Figura 24 – A banda arrumando os instrumentos. Foto: Ingrid Daiane.

A música continuou durante a noite toda, mas cansada e sonolenta fui para escola organizar as ultimas coisas, pensando no dia cheio que teria. De manhã

cedo,

enquanto

quase

todos

dormiam,

conforme

havíamos

combinado, seguimos viagem. Aldeia Carapanazal A caminho da Aldeia Carapanazal comecei a ficar preocupada, não apenas com as histórias de cobras que haviam contado, mas com meu condicionamento para a viagem mais longa. Estava extremamente cansada pelas noites corridas, mal dormidas, pelas manhãs nas aldeias que começavam mais cedo do que eu estava habituada, e mesmo pela mudança de locais, deslocamentos que havia feitos nos últimos dias. A caminhada mal havia iniciado e já estava cansada, desejando chegar logo ao destino final. Na cidade sempre caminhei com certa rapidez e por caminhos longos, principalmente quando tinha um objetivo: passadas longas e precisas, sem

174

perder o ritmo. Mesmo quando me falaram das distâncias e longas caminhadas que me aguardavam nos Jamamadi (principalmente no verão) em momento algum desanimei, sempre encarando com muita tranquilidade. Contudo, a partir da experiência de campo, pude perceber que andar por entre varadouros era completamente diferente do que eu fazia na cidade, outra referência. Tenho certa tendência a ser desastrada: tropeço e caio sem tanta dificuldade e não sem frequência. Andar na mata potencializou consideravelmente isso. Lamentei não ter seguido minha meta (pensada justamente por conta do campo) de fazer caminhadas frequentes durante os últimos meses, enquanto ainda estava na cidade. Vontade não faltou, mas a correria dos preparativos para a viagem realmente dificultou por o plano em prática. Meu condicionamento definitivamente não era dos melhores, mas segui

firme,

mesmo

carregando

comigo

uma

mochila

pesando

aproximadamente 15 kg (e aumentando consideravelmente a cada passo), que só reiterava o cansaço e preocupação com a viagem mais longa, rumo ao São Francisco. Quando já estávamos bem próximos à comunidade, avistei uma grande área queimada, repleta de troncos caídos, por onde um menino Jamamadi caminhava.

Figura 25 - Varadouro próximo à comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane.

175

Mais adiante, vi um senhor de boné caminhando por entre os troncos, cuidando do roçado que ali crescia. O homem, que tinha cabelos e bigode branco, era Chico Inácio, filho do primeiro cacique dos Jamamadi, irmão de criação de Bada e o garoto que havíamos visto primeiro, era seu neto. Muito sorridente e conversador, Chico Inácio é um dos Jamamadi mais velhos29, conhecedor de inúmeras histórias que foram, ao longo da minha curta estadia no local, gentilmente compartilhadas. Vane e eu nos aproximamos do local onde ele estava e, nesse primeiro momento, conversamos rapidamente a respeito do roçado que orgulhosamente exibia.

Figura 26 - Chico Inácio em um de seus roçados, Comunidade Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane.

Como parecia estar relativamente claro para os Jamamadi que meu interesse estava de modo especial voltado para seus cultivos - desde a cidade comentávamos -, durante as conversas o tema parecia algumas

29

Isso se não for de fato o mais velho. Reza a lenda (disseminada em conversas

descontraídas pelos membros de instituições) que seu Chico é muito velho, mais do que se imagina, um centenário. A brincadeira é sustentada pelo fato do próprio Chico Inácio afirmar ter criado o cacique Bada Jamamadi, que já é um senhor velho.

176

vezes fluir com certa tranquilidade.30 Por vezes durante o trabalho de campo31 eles mesmos iniciavam o assunto, chegando até a avisar-me quando determinada pessoa estaria indo ao roçado ou torrando farinha. Mesmo quando Vane não tomava a frente, explicando meu interesse em saber mais a respeito da agricultura que exerciam - dizendo repetidamente a todos que estava me acompanhando e ajudando a fazer trabalho [de campo] -, eles mesmos findavam percebendo a partir do andamento que tomava boa parte das conversas. Assim, mesmo cansada da caminhada, estava definitivamente animada em conhecer o roçado de Chico Inácio, o primeiro que eu visitava. Mais ainda por ele parecer disposto a conversar. Com Vane iniciando as perguntas (ciente do meu interesse), aproveitei a oportunidade para, com mais naturalidade, também dialogar com o Jamamadi, que sorridente nos respondia. Durante a curta conversa, Chico Inácio mencionou as variedades de mandioca cultivadas: Cobiçada, Flecha Amarela, Janauacá e Mareão, mostrando-me as que estavam mais próximas. Além das roças de mandioca, ele possui outros cultivos como os de milho, cana, caju e abacaxi, sendo descrito por Vane como proprietário de vistosos roçados. Sem nos estender, cansados, seguimos caminhada. Não demorou e logo adentramos a comunidade Carapanazal, onde alguns Jamamadi já almoçavam. Vane de imediato anuncia: “Terra boa Carapanazal... Tem muita planta”. Mal pude conhecer naquele momento o local, descansei um pouco, coloquei meu rancho e mochila em uma das casas e tratei de comer algo. Recorreria naturalmente ao meu rancho para fazer a refeição não fosse o gosto deles pelos enlatados. Vane me abordou comentando que algumas mulheres queriam saber quanto à lata de sardinha havia me custado, pois queriam comprá-la de mim. Embora soubesse que absolutamente tudo era por eles negociado (favores, serviços, alimentos, artesanatos, etc.),

30

Com exceção apenas das limitações e problemas de comunicação decorrentes de minha

falta de compreensão da língua. 31

Aqui faço referência ao trabalho realizado no São Francisco, onde fiquei por mais tempo.

177

expliquei que eu não poderia vender, e, mesmo tendo pouca, daria para que dividissem. Não sabia como seria quando meu rancho estivesse chegando ao fim, mas naquele momento não gostaria de iniciar (muito menos ter) uma relação com eles nesses moldes. Esperava, ao contrário, algo semelhante ao que Vane vinha construindo comigo: certamente eu saberia recompensar tamanha dedicação e cooperação para comigo e com a pesquisa e ele sabia disso. Chegou a sugerir sutilmente interesse em alguns objetos meus, demonstrando curiosidade e admiração. Compreendendo algumas das nuances por detrás de sua aparente despretensão, mencionei que daria um presente especial pela ajuda, a faca que ele tanto tinha gostado. Feliz, por onde passávamos ele comentava “quando minha amiga Daiane for embora vai me dar faca dela!”. Isso parecia valer bem mais do que qualquer dinheiro que eu pudesse dar pela ajuda, era uma dádiva que nos ligaria mesmo após minha saída. Confiante de que seria a melhor decisão naquele momento, cedi um dos enlatados, a (desejada) sardinha. Peguei outra e com ajuda de uma mulher, preparei meu almoço, comi uma parte e dividi o restante com Vane e os demais. Não demorou a me retornarem um prato com caldo e matrinxã fresquinha, o melhor almoço que eu poderia ter! Satisfeita - com o almoço e a reciprocidade manifesta-, planejava minha tarde quando Vane procurou-me para avisar que seguiríamos para São Francisco naquele mesmo dia. Tentei durante o dia anterior persuadi-lo a continuar nas comunidades, mas ele parecia determinado a seguir viagem. Ainda cansada, vi no céu cinza a chance de permanecer no local. Avisei que o clima parecia anunciar que iria chover e alguns Jamamadi que estavam próximos concordaram. O céu de fato estava fechado, nublado e Vane findou concordando em permanecer no local por mais uma noite, avisando de antemão que logo pela manhã a viagem continuaria. Não choveu e, ao contrário, tivemos um produtivo dia de trabalho.32 Dando início as atividades daquele dia, resolvi partir do levantamento do

32

Uma das coisas engraçadas e inusitadas do meu trabalho de campo foi a expectativa e

cobrança que cercava minhas atividades. Quando não saia para fazer levantamento do parentesco ou para ir ao roçado Vane estranhava e perguntava se naquele dia eu não iria

178

parentesco, adotando a mesma estratégia utilizada no Buritirana, ou seja, a partir das casas e seus respectivos proprietários/moradores. Notei que o local, apesar de um pouco maior que o Buritirana, estava um tanto deserto, “desfalcado”. Só não estava mais vazio pelo fato de pessoas de outras comunidades estarem no local, “passando dias” – o que inclusive, no começo, dificultou um pouco o levantamento.

Figura 27 - Vane chegando à comunidade Carapanzal. Foto: Ingrid Daiane.

Ocorre que, justamente durante minha estadia na T.I, vários homens desta e de outras comunidades haviam partido para os “centros”, pois o calendário coincidia com o período de extração do óleo de copaíba. Entre eles Dino, filho solteiro do seu Gasparino, do Buritirana, José, um dos filhos de seu Chico Inácio e o cacique Ricardo, estes últimos, ambos do Carapanazal. Partindo em grupos de aproximadamente 15 homens, costumam levar com eles algumas mulheres que, apesar de não retirarem copaíba, são essenciais para o desempenho da atividade. Segundo disseram-me, elas auxiliam seus parceiros dando suporte, entre outras coisas, cozinhando e lavando roupas. Geralmente o grupo abriga-se nas casas temporárias, construídas com este intuito, onde ficam apenas quando estão de passagem pelo local,

trabalhar, não entendendo que o simples fato de estar com eles conversando ou compartilhando uma refeição fazia parte do “trabalho”.

179

empregados nas atividades de extração. De acordo com seu Chico, embora não haja manutenção das casas, as mesmas não são destruídas após o término da extração, permanecendo justamente para quando precisem retornar; até que se “acabe sozinha”, não resistindo ao tempo. Conforme explicam, “cai porque é no mato”. Assim, implicâncias

levando deste

em

consideração

momento

específico

o

calendário no

trabalho

do de

grupo

e

as

campo33,

o

levantamento das casas e dos respectivos moradores foi feito, de modo que a distribuição das casas no Carapanazal pode ser visualizada no quadro abaixo. Tabela 6 - Distribuição das casas Jamamadi - aldeia Carapanazal.

Distribuição de Casas – Comunidade Carapanazal Casa 1. Pode ser vista logo que se adentra a comunidade. A mesma pertence ao cacique Ricardo e sua família nuclear. No local são realizados cultos e também a tradução da bíblia. Casa 2. Localizada ao lado da primeira casa, é onde vive Seu Chico Inácio e os filhos Salgado e José, bem como sua nora Cleonice. Casa 3. Embora a casa pertença ao cacique Ricardo, ele não mora mais no local. Pelo que me foi dito, qualquer pessoa de passagem pela aldeia pode abrigar-se lá. Casa 4. Pertence a Abadia, filho do cacique Gasparino. Lá ele mora com sua esposa Cléia e seus três filhos.

33

Por certo tais ausências influenciaram no resultado das informações e levantamentos

realizados durante esta primeira entrada. Exemplificando um destes aspectos, cito o fato de não estarem torrando no Carapanazal durante este período. Segundo Vane, haviam torrado na semana anterior e como neste momento estão no centro, apenas retomariam a atividade quando voltassem à comunidade.

180

Casa 5. No local vive Nilton (irmão do cacique Moacir, do São Francisco) com sua esposa Nadime e os filhos solteiros. Lá eles recebem ainda (por vezes durante meses) a visita da filha Eulina com o marido Raimundo e o filho do casal. Eles ficam na casa de Nilton, pois possuem casa apenas no Pauzinho. Casa 6. Pertence a Marildo, filho de Nilton e Nadime. Ele vive no local com a esposa Rubina e os três filhos do casal. Casa 7. Pertence a outro filho de Nilton, Isaac, que é casado com Rita (filha de Gasparino), que moram ainda com seus dois filhos. Possuem casa nas aldeias Buritirana (onde os conheci) e Carapanazal. Casa 8. Lá vive Elton (filho de Gasparino) e Melista (filha de Nilton) com os três filhos do casal.

Quanto aos moradores de cada uma das casas, optei por incluí-los no esquema de parentesco (nos moldes clássicos da antropologia), imaginando que deste modo poderia, futuramente, traçar as genealogias e análises de modo mais satisfatório. Contudo, para organização no presente relatório, decidi fazer algumas pequenas adaptações34, para uma melhor leitura do material. Deste modo, dividi por cores os respectivos familiares incluídos no levantamento mais “genérico”, de maneira que de vermelho constam as pessoas que moram na casa, de azul aqueles que costumam ficar “de passagem” (geralmente os filhos casados, seus respectivos cônjuges, com ou sem filhos); verde para aqueles que possuem casa em outros locais (“moram lá e aqui”) e cinza para membros da família nuclear falecidos. Conforme encontrei o local, segue a descrição abaixo, seguida do esquema de parentesco: Casa 1: Durante minha visita na comunidade, a casa 1 do cacique Ricardo estava sob os cuidados de Socorro (esposa de Dentista), uma Jamamadi do São Francisco de passagem pelo local. Ricardo, que é casado

34

Semelhantes ao esquema acima, referente ao Buritirana, que destacava de vermelho o

ego.

181

com Maura (filha de Chico Inácio), como mencionado acima, estava para o centro.

Chico nácio

Ricardo

Eduardo

Jairo

Maura

Ketinha Kátia ?

?

?

Casa 2: Já a casa 2, no dia de minha visita, abrigava apenas seu Chico Inácio, estando o restante dos moradores no centro, extraindo copaíba inclusive a esposa de José, Cleonice, que fora auxiliar o marido (o casal não tem filhos). Seu Chico Inácio foi casado com Tamará, irmã do cacique Gasparino. Pelo que me foi dito ela faleceu em um acidente que ocorreu quando Tamará alcoolizada alagou a canoa onde estava, juntamente com uma criança, um dos filhos do casal. Chico Inácio

Tamará

_ + = +

Cleonice José Salgado

França

Maura

Casa 3: Já na casa 3, também pertencente ao cacique Ricardo, estava Carlo (cunhado do cacique Moacir), um Jamamadi do São Francisco, passando uns dias. Segundo me foi dito, geralmente quem fica no local é

182

Barriga (Bahika), que naquele momento era mais um dos que estavam no centro, juntamente com a esposa Raimunda (Bonoidiha). Casa 4: Na casa 4, por sua vez, o que me chamou atenção foi o fato de estar um casal sem aparentes vínculos diretos com demais membros da comunidade, o que abre para a possibilidade do mesmo existir e ter, contudo, passado desapercebido durante o levantamento, ou o contexto ser de alguma outra motivação até então desconhecida. Embora Abadia seja sobrinho da falecida esposa de Chico Inácio (Tamará) e de dois irmãos seus (Rita e Elton) morarem no local, nem ele e nem sua esposa possui pai e/ou mãe na comunidade, o que os difere dos demais. Como mencionado anteriormente, o casal e os filhos estavam, na ocasião de minha visita, na cidade de Lábrea, onde Abadia participava das aulas do Pirayawara. Assim, quando visitei o local, era Margarida, uma Jamamadi do São Francisco, quem estava passando uns dias. Próximo a casa, notei uma casinha “anexa” que funciona como cozinha, padrão que se revelará bastante comum em comunidades maiores como São Franscico e Pauzinho. Gasparino

Morena ?

Creia

Abadia

?

Neuza

?

Casa 5: O local, que abriga a família nuclear de Nilton (Bokakari) e Nadime, esporadicamente recebe ainda o casal Eulina e Raimundo, com a filha Soeki, que permanece no local durante semanas e até meses. Eulina é uma das filhas de Nilton e possui casa somente no Pauzinho.

183

Nilton

Nadi Raimundo

me

Mari

Isa

Fran

ldo

ac

ça

Sáli

Iv

Melist

o

an

a

Euli na

Sam

Sili

ia

a

Casa 6: Já na casa 6 vive mais um dos filhos de

Eulina

Soeki

Nilton, Marildo,

juntamente com sua esposa Rubina (sobrinha de Vane) e os três filhos do casal. Nadim

Deca

e Noca

Nilto

Vane

n

Rubina

Marildo

Nira

?

Gabriel

Casa 7: A casa 7 da comunidade Carapanazal pertence a Isaac (filho de Nilton) e Rita (filha do cacique Gasparino). O casal e seus filhos possuem ainda

outra

casa,

listada

anteriormente,

localizada

na

comunidade

Buritirana, onde revezam a estadia.

184

Gasparino

Morena

Nilton

Nadime

Rita

Isaac

Brenda

João

Casa 8: A ultima casa listada pertence a Elton (filho do cacique Gasparino) e a Melista (filha de Nilton), que moram no local com seus três filhos.

Gasparino

More na

Elton

Nilton

Nadim e

Melista

A partir do levantamento realizado, podemos notar que a comunidade é formada, basicamente, por membros de duas famílias principais, a de Chico Inácio e a de Nilton. Esta segunda, por sua vez, além de mais representativa aparece diretamente relacionada com outra família, a do cacique do Buritirana, Gasparino Jamamadi. Foram identificados dois casos de casamento estabelecido entre os filhos de Gasparino e Nilton, de modo que em ambos os casos optaram por construir – somente ou também residência no Carapanazal.

185

Além das casas onde o grupo vive, a paisagem da aldeia é composta ainda por uma casa de farinha, localizada próxima à cozinha de Abadia. O local, compartilhado por membros da comunidade, estava com aspectos visíveis de recente (e frequente) utilização, muito embora durante todo o dia em que estive no local ninguém tenha torrado farinha. De acordo com Vane, apesar de utilizarem a casa com certa frequência, nem mesmo haviam arrancado e colocado de molho a mandioca, o que provavelmente ocorreria apenas quando parte do grupo retornasse dos centros.

Figura 28 - Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane.

Pude notar que o local é composto, entre outras coisas, por uma prensa onde espremem a massa fermentada (mandioca-puba). De acordo com Vane, o desempenho da atividade no equipamento fica a cargo dos homens enquanto que as mulheres recorrem ao tipiti, ainda bastante utilizado, para auxiliar na mesma tarefa, já que a prensa é pequena e não cabe muita massa. Mais adiante, em outras comunidades, findei notando que, quando o local não possui casa de farinha com prensa, apenas as mulheres

186

espremem a massa no tipiti, não cabendo, portanto, em ambos os casos, sua utilização pelos homens.35

Figura 29 - Prensa, localizada na Casa de Farinha do Carapanazal. Foto: Ingrid Daiane.

Vane comenta que mesmo quando eles estão espremendo, as mulheres também estão presentes, sempre ajudando. Seja tirando a mandioca de molho ou carregando a massa, as mulheres tem grande participação durante todo o processo de produção da farinha. Sobre esta divisão de tarefas, Vane explica que tanto os homens quanto as mulheres podem arrancar e cortar (decotar) a mandioca, contudo, quando é necessário carregar (transportar) grandes quantidades, é o homem que finda sendo responsável. As mulheres carregam quantidades menores, “mais maneiro, mulher força pouca”. Cabe, por sua vez, a elas retirarem a mandioca que fica de molho - no caso do Carapanazal, no porto da comunidade -, de modo que, após terem espremido a massa, retirando o suco, elas seguem peneirando. Os homens cuidam da lenha utilizada para aquecer os fornos, todavia, na ausência

35

Muito embora o tipiti seja uma das únicas “cestarias” que os homens produzem. De

acordo com os relatos, apenas as mulheres fazem os cestos comercializados pelo grupo chegaram a rir quando perguntei se os homens também sabiam fazer, respondendo que era coisa de mulher -, contudo, seu Bada contou-me que os homens confeccionam o espremedor artesanal. O artefato não é voltado para fins comerciais, mas para uso interno do grupo.

187

deles, elas também se encarregam desta etapa.36 Ao fim do processo, ambos podem participar, torrando a farinha. Durante o diálogo na casa de farinha, Vane lista ainda algumas “tribos de mandioca37”, espécies cultivadas pelos Jamamadi, entre as quais cita: Cobiçada, Janauacá, Flecha amarela (“do branco... Jamamadi chama fowa sauwa”), Samaúma e Mereão, que segundo ele, rende farinha amarela. Sem mencionar as variedades, comenta ainda que cultivam macaxeira (mandioca mansa), que chamam na língua de cuiu. A partir da casa de farinha, Vane segue apontando ainda uns pés de caju, mamão e pupunha que cercam a comunidade, além de mostrar a embaúba e a planta a partir da qual produzem flechas. Esse aqui mesmo fazer flecha, né? (...) pra flechar alguma coisa, flechar peixe, flechar bicho, né? (...) fazer um ponta dele mesmo aí... fazer um ponta dele mesmo bem fina e coloca também um veneno do mato (...), mas isso quem saber só velho mesmo (...) agora nós não tamo fazendo mais não, ninguém aprende não, só velho. 38

Mais adiante, Vane exibe uns pés de tucumã e explica que também é “planta mesmo”, todavia, faz clara distinção entre estas e as demais árvores frutíferas cultivadas ao redor da comunidade; esclarecendo que,

36

Embora Vane tenha explicado assim, cheguei a ver no São Francisco uma mulher (nova,

por volta dos 25 anos) que sozinha transportava a lenha (um tronco de árvore enorme e pesado) para uma das casas de farinha, mesmo havendo muitos homens presentes no local. 37

A expressão “tribo” utilizada por Vane para se referir aos diferentes tipos de mandioca

cultivada pelo grupo chamou bastante atenção. A curiosa forma de se referir surpreendeume desde que foi mencionada pela primeira vez, durante uma conversa informal, ainda no Buritirana. A partir daí o vi recorrer algumas vezes a analogia durante novas conversas, sem conseguir – por hora - obter mais informações que me levassem a grandes conclusões de cunho perspectivista, muito embora de imediato tenha me ocorrido como possibilidade analítica. Deixei em aberto. 38 De acordo com informações extraídas do relato do cacique Bada Jamamadi para a Cartilha

do Plano de Vida do Médio Purus (2011), antigamente, na ausência de ferramentas como “ferro, machado, terçado, era usado dente de anta para fazer flecha, na etnia Jamamadi. Para flechar tinha que fazer a ponta do dente da anta, assim trabalhava o velho Jamamadi”.

188

diferente das outras, esta primeira nasce no mato. Ainda sobre o fruto, o Jamamadi comenta que na manhã seguinte passaríamos por uma área de capoeira que antigamente era uma grande região de roçado, mencionando haver no local bastante árvore de tucumã. O lugar datado por Vane da “época dos nossos avós, dos nossos tios”, abrange uma região bastante rica em árvores frutíferas, porém, “do mato” (como

eles

dizem),

tendo

ocorrido

no

local

à

sucessão

ecológica

secundária39, tornando o local mais enriquecido.

39 A sucessão do tipo secundária ocorre em um determinado ambiente a partir de certas

“perturbações”. No caso mencionado, por tratar-se de uma área de roçados, compreende-se que a “perturbação” está diretamente relacionada à interação do homem com o ambiente através, por exemplo, do corte de árvores, queimadas e dos cultivos empreendidos no local.

189

ETNOGRAFIA E SISTEMAS PRODUTIVOS DOS PAUMARI DO RIO TAPAUÁ Angélica Maia Vieira INTRODUÇÃO Tudo começou em dezembro de 2011, quando o NEAI, motivado pelo interesse comum acerca dos estudos e pesquisas que se tem sobre os povos que habitam o rio Purus, organizou uma viagem para a região com a proposta

de

contemplar

alguns

dos

objetivos

dos

projetos

que

desenvolvíamos no âmbito do NEAI, bem como as pesquisas de mestrado que eu e Ingrid Daiane, que estuda os Jamamadi Ocidentais, realizamos dentro do PPGAS/UFAM. E foi assim que eu, juntamente com outros seis colegas, parti rumo ao rio Purus na então chamada Expedição Purus-2012: 150 anos depois. Assim, em 07 de Janeiro de 2012, ao entardecer do sábado, no barco “Vovô Osvaldo II”, partimos rumo ao Purus. Três dias se passaram; e eu, na companhia de Alexandre, Admilton e Mario, descemos na cidade de Tapauá, na terça-feira (dia 10/01/2012), com a proposta de realizar alguns estudos etnográficos na cidade, bem como conhecer os Paumari que ali moravam. O restante da equipe – Alba Garcia, Ingrid Daiane e Thayná Ferraz, seguiram viagem por mais dois dias até a cidade de Canutama. Deste modo, a Expedição Purus foi concebida coletivamente a partir de um viés interdisciplinar composta pelas experiências de pesquisa de várias pessoas, que comungavam a mesma expectativa: conhecer a região do Purus. Cada pesquisador ficou responsável por uma temática, cujo objetivo era montar um panorama tanto histórico, quanto produtivo e social da região por onde passaríamos. Eu, por sua vez, realizei minha pesquisa nas Terras Indígenas Paumari do Lago Manissuã e Paricá, localizadas logo acima da foz do rio Tapauá, cujo objetivo era analisar a relação dos Paumari com o universo aquático, de modo a seguir as evidências dos registros históricos do século XIX do estilo de vida dos Paumari bem como as formas pelas quais estes índios tecem relações com o seu ambiente fluvial. A partir disso, pretendo refletir se a relação estabelecida com o ambiente aquático se

190

traduz como a “relação preferencial” de sociabilidade entre os Paumari e os demais seres que habitam o cosmo e/ou o mundo subaquático dos seres não humanos. Notas sobre a Leishmaniose no Município de Tapauá Um dos objetivos da viagem “Expedição Purus” era o de compreender e etnografar o ciclo anual das atividades produtivas que os povos indígenas que habitam a região do Purus e suas adjacências exerciam durante os meses em que estavam realizando as atividades de campo, bem como o de apreender informações das demais atividades realizadas no decorrer dos meses, tendo assim um panorama do calendário de atividades executadas durante o ano todo. A preocupação em compreender os processos produtivos está associada ao aparecimento da Leishmaniose após uns meses de execução das atividades cotidianas – coleta de castanha, caça, abertura de roçado. Em meio a este objetivo comum, buscamos os órgãos de saúde para conversarmos sobre os casos que sucedem na região acerca desta doença e de como é diagnósticada e quais as formas de tratamento que os órgãos de saúde dispõem para os indígenas. No entanto, não tivemos respostas positivas e nem dados acerca da doença e dos processos de contaminação, a não ser o acesso há um caso de óbito por Leishmaniose e de um possível caso de contaminação por Leishmania em uma senhora da Etnia Mamori. Ao saber deste caso em particular, procuramos conhecer esta senhora e buscar informações que nos mostrasse alguma ligação entre a doença e as atividades por ela desenvolvida bem como de sua percepção em relação à doença. Esta senhora se chama Leontina. Fomos até a casa de Dona Leontina, filha de uma índia Mamori com um índio Paumari. Apresentamos-nos, explicamos nossa pesquisa e expressamos nossa “curiosidade” sobre a ferida braba. Começamos a conversar; e ao longo da conversa Dona Leontina nos disse que a possível ferida braba lhe apareceu no mesmo dia em que ela recusou um pedido de casamento vindo de um pajé do Lago Marahã. A mesma chegou a dizer que esses pajés são fortes e tem muito poder, e por não aceitar o pedido de casamento, o então pajé lhe lançou um

191

feitiço que se transformou na ferida que acomete seu rosto há mais três anos. Contudo, não há nenhum diagnóstico que confirme a ferida como um caso de Leishmaniose, embora a CASAI apresente-a como um dos casos registrados da doença na região. Assim como Dona Leontina, tivemos a informação de que um jovem rapaz havia falecido em função da Leishmaniose, uma vez que a doença estava muito avançada no paciente e já havia corroído parte de sua cavidade nasal. Não há nenhuma estrutura no Município que dê conta do diagnóstico da doença, uma vez que a instituição carece de médicos, de recursos financeiros e principalmente de profissionais capacitados para este tipo de análise. Cabe registrar que o Município de Tapauá concentra um grande número de populações indígenas, seja ao redor do município como também no rio que corre a frente da cidade (Ipixuna). À frente da cidade há inúmeras casas flutuantes, quase todas elas são habitadas pelos índios Paumari que migraram das terras indígenas Paumari do Lago Manissuã, Paricá e Cuniuá, localizadas na foz do rio Tapauá, com o objetivo de buscarem melhores condições de vida, educação para seus filhos e atendimento médico. Das pessoas que conhecemos e que conversamos tomamos conhecimento de que todas elas têm roçados em áreas de várzea e algumas possuem pequenas áreas de terra firme, onde plantam pupunha, banana pacovã e outras variedades de frutas. A pesca é praticada no decorrer do dia, dependendo muito de quem vai pescar. No entanto, a pesca acontece, geralmente, quando toda a família vai para o roçado colher parte da produção que está “madura” enquanto que o pai ou um dos filhos lança a rede de pesca nas proximidades do roçado da família.

FOZ DE TAPAUÁ: ADENTRANDO O UNIVERSO PAUMARI Breve caracterização dos Paumari Pertencentes à família linguística Arawá, os índios Paumari habitam atualmente a região do Médio rio Purus, ao sul do Estado do Amazonas. Ocupam áreas geográficas distantes uma das outras, entre elas, as áreas do rio Ituxi e lago Marahã, localizados nas proximidades do município de Lábrea e as áreas dos lagos Manissuã, Paricá e Cuniuá, localizados pouco acima da foz do rio Tapauá (BONILLA, 2005, pg.1).

192

Figura 30 - Mapa de Localização das Terras Indígenas Paumari. Fonte: Instituto Socioambiental - ISA

Os Paumari têm por principal atividade a pesca de peixes e quelônios, seu ciclo econômico está marcado pela mobilidade de seus grupos locais e seus deslocamentos entre as diversas zonas de exploração (terra firme, várzea, praias e castanhais). A pesca é praticada nos rios, igarapés e lagos da bacia do Médio Purus e constitui-se como atividade fundamental na economia de autosustento Paumari. Além do peixe, a preferência por quelônios - da qual chamam de "bichos de casco" - tem especial destaque nos hábitos alimentares deste povo (SCHRÖDER, 2002, p. 2). A preferência por estes animais é, também, apontada por quase toda a documentação histórica. O geógrafo Willian Chandless ([1864]1949), chega a observá-los em mais de sessenta canoas descendo rio abaixo a procura de tartarugas. Segundo o autor, em cada uma delas ia uma mulher a remar e um homem em pé, na proa do barco, só na expectativa de encontrar o referido quelônio. Já Ehrenreich (1905), descreve que entre os índios da Amazônia Ocidental, os Paumari e os Aruanas se destacam por uma particularidade: são índios que levam uma vida de puros pescadores que se

193

alimentam principalmente de tartarugas e jacarés, morando em balsas que acompanham o fluxo do rio. É preciso ressaltar que a pesca é a atividade mais descrita nos relatos dos viajantes, sendo que pouco se sabe a respeito da exploração da terra firme pelos Paumari. No entanto, alguns viajantes chegam a narrar o uso da terra firme para o cultivo de pequenas hortas e leguminosas. Embora, haja essas informações, são de comum acordo, nos escritos dos viajantes, informações que narram o não cultivo de mandioca por parte dos Paumari, que estes índios não são dados à agricultura, antes, preparavam farinha de uma leguminosa e de um tubérculo. Porém, para Schröder (op.cit.) e Pohl (1998), os Paumari praticam a “agricultura” tanto nas áreas de várzea quanto nas áreas terra firme, estando a mandioca entre as principais espécies cultivada nos roçados. É importante ressaltar que estas afirmações baseiam-se nos dados coletados durante a expedição dos biólogos norte-americanos Ghillean Prance, David Campbell e Bruce Nelson à região do rio Purus. Esta expedição revelou uma situação contrária àquela apresentada pelos viajantes no século XIX, porquanto os biólogos descobriram diversas variedades de mandioca nas roças Paumari - mais de quatorze –, logo, tal “achado” incidiu como uma surpresa para os que estavam na expedição, pois não se esperava encontrar tantas variedades de mandiocas em meio a um povo que é considerado aquático, nômade e não dado à agricultura. Deste modo, ambos os autores assinalam que os Paumari praticam agricultura na várzea e/ou na terra firme e além de serem agricultores, são também

cultivadores

de

diversas

fruteiras,

leguminosas

e

plantas

medicinais. Coletam diversas frutas silvestres que lhes servem tanto para seu consumo quanto para matéria-prima (principalmente cipós e enviras). Essas matérias-primas são utilizadas na construção de casas, cestos, embarcações e na confecção de objetos diversos. Por sua vez, os Paumari são conhecidos por sua orientação aquática, que se manifesta nos hábitats tradicionalmente preferidos: várzeas, rios e lagos. São denominados por Kroemer (1985) como índios fluviais; Labre (1872) como verdadeiros canoeiros; Steere (1949) como índios ribeirinhos, hábeis nadadores e barqueiros, vivendo quase que exclusivamente de

194

peixes e tartarugas; ou como acrescenta Cunha (1960) habilíssimos fabricantes

de

ubás

e

incomparáveis

remadores;

ou

como

conclui

Associação Comercial do Amazonas (1893): (...) exímios remeiros, nadadores e pescadores, capazes de pegar peixes e jacarés, com as mãos, após um mergulho. (...) Os Paumari foram os criadores das casas flutuantes da Amazônia, construídas nos lagos, sobre jangadas ou balsas (...) (1893, p.33 - 38).

Spix e Martius (1817/1820) relatam que os Paumari costumavam fugir das brumosas e úmidas espessuras mudando-se para o próprio rio, estabelecendo-se sobre a madeira flutuante que se aglomerava nas enseadas em enormes pilhas, oferecendo uma base vacilante para suas humildes choupanas. E acrescentam os autores: “(...) Deve-se procurar sua origem na sua vida quase anfíbia (...)” (op.cit, p.187). “Eles não abandonam as águas pela terra e passam pouco tempo em terra durante a estação chuvosa", escreve Silva Coutinho (1862, p.68). Eles, diz o etnológo americano Joseph Steere (1949 [1873], p.365), “permanecem sempre às margens dos rios e lagos em habitações flutuantes, sem se internarem na floresta”. Já o etnólogo alemão Ehrenreich (1948, [1888] p.96), arrisca-se a dizer que “os Paumari são representantes modernos da idade palafítica” e, são descritos por Euclides da Cunha (1960, [1904] p.81) (...) “em enormes malocas flutuantes, numa permanente viagem, ancorando ao acaso nas praias e barreiras”. Já o cearense e Coronel Antônio Rodrigues Pereira Labre, que fundou a cidade de Lábrea na localidade denominada Terra Firme do Amaciary, sítio pertencente aos índios Paumari, os descreve nos seguintes termos: (...) as suas cabanas são feitas nos lagos em jangadas ou balsas, pelo que suas habitações são flutuantes. São destros remadores, entregando-se ao trabalho do mar; são verdadeiros canoeiros. (...) são os selvagens mais conhecidos por não arredarem-se das margens dos rios e lagos (...). (LABRE, 1872, p. 27)

Deste modo, os Paumari continuam sendo apresentados como índios fluviais que habitam/habitavam excepcionalmente as ilhas e lagos do Médio rio Purus. Entregam-se integralmente à prática pesqueira e à caça de

195

tartarugas. Steere (idem) reconhece-os, também, como moradores de aldeias de caráter permanente nos lagos e rios da região puruense. E os expõe neste contexto: (...) Entre as tribus do Purus, os Paumari são os mais conhecidos. São

principalmente

barqueiros,

vivendo

índios quase

ribeirinhos, que

hábeis

exclusivamente

nadadores

e

de

e

peixes

tartarugas. (STEERE, 1949, p.364)

Além disto, um relatório técnico da Fundação Nacional do Índio FUNAI (S/D) assinala que a particularidade deste grupo é a sua afinidade com as águas; cuja origem é intrínseca à vida quase anfíbia que este povo possui. De igual modo, Bonilla (2005:07) ressalta que o que se “sobressai da literatura é o componente aquático da vida dos Paumari”. Deste modo, feita esta breve apresentação dos Paumari, faço uma descrição do contexto vivido na aldeia e de algumas das atividades que pude acompanhar no período de 16 dias nas Terras Indígenas Paumari do Lago Manissuã e Paricá. O contexto da Aldeia No dia 23 de Janeiro de 2012, cheguei a Terra Indígena Paumari do Lago Manissuã. Fui recebida por Sara Paumari, esposa do Professor Germano Cassiano Paumari. No momento em que cheguei à aldeia, Germano encontrava-se “internado” na mata com seus dois filhos, pois estavam quebrando castanha no “ponto” que pertence à família Cassiano Paumari. Passei dezesseis dias nas terras indígenas Paumari; viajei por algumas comunidades e conheci diversas pessoas e inúmeras crianças. O tempo na aldeia foram os melhores, bons momentos estão registrados na memória e no coração, pois esta gente, de tenra simplicidade e carisma, ensinaram-me muitas coisas e cuidaram de mim como se cuida de um filho, de um parente próximo. Visitei as roças, as casas de farinhas, fui para as estradas de castanha e conheci um pouco de cada um. Aprendi a fazer açaí; colhi frutas e macaxeiras, acompanhei uma pesca de peixe-boi e aprendi um dos exercícios mais significativos para os Paumari: observar o ambiente que nos cerca e se concentrar na atividade a ser executada. Coletei

196

castanha com duas jovens moças da comunidade Abaquadi, da Terra indígena Abaquadi, que conjeturavam pagar o regatão de quem haviam comprado roupas e alguns gêneros alimentícios. Registrei tudo o que podia, aprendi, ou melhor, tentei soletrar algumas palavras na língua Pamoari bem como tentei responder, também em Pamoari, as perguntas que eles me faziam. Tudo era motivo de risos e brincadeiras, mas em meio a tantos risos e brincadeiras, fui adentrando no cotidiano Paumari e com eles aprendendo muitas lições de vida. Ouvi histórias sobre os antigos Paumari, sobre a fabricação dos balaios e do picapau que confeccionava a canoa. Perguntei sobre os “outros”, sobre quem eram os Mamori e os Juberi, de como estes se diferenciavam dos Paumari e de como eles “desapareceram” ao longo dos anos. As inúmeras informações eram intensamente guardadas em minha memória para que depois eu as registrasse no caderno de campo. Toda a familiaridade que fomos conquistando durante os dias, nos permitia e nos possibilitava adentrar ainda mais no cotidiano das famílias, de suas brigas internas, das grandes disputas e nos demais contextos que durante os dias iam surgindo. Depois

de

sentir

a

familiaridade

e

a

confiança

que

tínhamos

conquistado, passei a fazer o recenseamento das famílias, a etnografar a aldeia, a entender as relações com outrem e com os próprios parentes. Com isto, apresento o levantamento básico que fiz na aldeia e demonstro por meio de tabelas o senso demográfico que realizei no período em que estive com eles e entre eles. Vejamos a tabela a seguir:

197

Tabela 7 - Levantamento demográfico das aldeias. Fonte: Vieira, 2012.

TI

Manissuã

Paricá

Cuniuá

Aldeia

Nº de

Nº de

Ambiente de

Pessoas

Famílias

moradia

Sete Bocas

10

3

Flutuante

Centro

27

6

Terra firme

Bacia

#########

#########

#########

Abaquadi

25

5

Terra firme

Terra Nova

#########

#########

Terra firme

Xila

#########

#########

#########

Açaí

#########

#########

#########

A tabela acima assinala o número de pessoas residentes nas aldeias, onde moram, se é em terra firme ou em flutuantes, bem como as respectivas comunidades a que pertencem cada família. Os campos em que consta o símbolo jogo da velha representam as comunidades que eu não visitei e de onde não obtive informação sobre seus moradores, tipo de moradia etc. O que podemos extrair deste levantamento é que boa parte da aldeia é formada por indivíduos mais jovens, sem muitos anciões. Outro indicativo que me chamou a atenção foi a constante migração dos Paumari para o município de Tapauá, onde a maior justificativa é a busca por melhores condições de vida e educação. Os Paumari que ainda residem na aldeia relataram-me que muitos Paumari estão se mudando e indo habitar em outras regiões e que as causas para tanta mudanças são diversas e há casos de índios Paumari morando no Rio Negro, Porto Velho, Tapauá e até mesmo em vilas bem próximas as aldeias. Eu lhes perguntei sobre os

198

motivos das migrações, e obtive a mesma resposta que recebi dos Paumari que conheci no município de Tapauá: educação de qualidade para os filhos, saúde e melhores condições de vida. Portanto, os que permanecem na aldeia são geralmente os jovens, adultos e são poucos os anciões que existem. Durante as conversas e registros das famílias da aldeia, Sara mencionou-me a saída dos rapazes Paumari para o mundo dos brancos, ou seja, quando o menino alcança certa idade – não me foi relatado à idade em que os meninos costumam sair de suas casas, mas neste caso a idade não é determinante e pode variar de rapaz para rapaz -, o garoto sai do seio de sua família e vai trabalhar para um regatão por tempo indeterminado ou até que ele sinta a vontade para regressar para a aldeia e se casar com alguém de seu meio ou pode até mesmo se casar com a filha de algum regatão. Sobre isto, Sara contou-me que seu filho trabalha para um regatão de Manaus e que o Irmão do “Preto”, liderança da aldeia Xila, tem um irmão casado com a filha de um regatão e que ele faz um preço “mais acessível” para os demais Paumari. Sobre esta informação, os Paumari relataram-me que este ato se configura como uma “espécie” de saída para conhecer o mundo do outro, ter acesso ao mundo dos bens, aprender o português e a comercializar, assim como os regatões comercializam com os outros. Portanto, é comum ver um jovem sair de sua casa e ir trabalhar para um barqueiro de Manaus, porto velho e outros lugares. Tipo de Moradia Os Paumari constroem suas moradias em lugares situados nas proximidades das margens do rio, de preferência nas praias fluviais, ilhas de terra firme, nas várzeas e áreas que não alagam; localizadas na interface entre as planícies fluviais alagáveis e a terra firme, denominadas na região de "pé da terra firme" (ver relatório da OPAN, 2009). De

acordo

com

alguns

estudos

realizados

pelo

PPTAL,

os

assentamentos permanentes na terra firme é um fenômeno recente, pois os Paumari são um povo nômade, que vive a perambular nas áreas fluviais. Referências do século XIX apontam a existência de oito a quinze casas flutuantes em cada aldeia, com uma ou duas famílias em cada uma delas.

199

Outras habitações menores são utilizadas na época da seca e, em muitos casos elas ficaram despercebidas, trata-se dos ranchos simples de folha de palmeira, de forma semicircular que eram fincadas nas praias fluviais dos Purus. No

entanto, na atualidade,

os

"flutuantes" concebem um tipo

minoritário de habitação paumari. No Manissuã presenciei cerca de seis flutuantes, sendo que em alguns casos, os donos desses flutuantes possuem também uma casa na terra firme. Assim, a maioria dos Paumari mora pelo menos uma parte do ano em casas do tipo regional, enquanto que alguns preferem os flutuantes e/ou passam o ano dividindo os dois tipos de habitação. As casas mais comuns são sobre as palafitas, seguindo o estilo regional

de

habitação.

As

residências

podem

ter

um

ou

mais

compartimentos. Suas paredes são forradas de palha e em alguns casos são cobertas de palhas trançadas ou de alumínio. Esta moradia é a preferida na época da cheia, pois facilita o trabalho nos roçados e permite um deslocamento adequado dos produtos das roças bem como no auxílio na fabricação de farinha. Os atuais "flutuantes", por sua vez, são balsas com o mesmo tipo de casa, porém sem palafitas; estando apenas ancoradas em grandes trocos de árvores. Por causa das grossas toras que as sustentam, são de difícil remoção e permanecem amarrados por longas temporadas na beira de lagos, acompanhando somente as mudanças dos níveis de água. No entanto, esse tipo de moradia pode ser removido, dependendo muito do anseio de seu dono, que muitas vezes deseja mudar-se para outro lugar ou ir para a outra margem do rio. Ademais, morar em um flutuante não impede os Paumari de exercerem suas atividades em terra firme. Vejamos a seguir uma tabela demonstrativa dos tipos de habitação e da tipologia de construção dessas moradias:

200

Tabela 8 - Distribuição espacial e habitação dos Paumari. Fonte: Vieira, 2012.

TI

Aldeia

Casa

Casa de

Flutuante

terra firme

Tipologia da Construção

Estrutura Sete Bocas

4

Nenhuma

de

madeira

com

cobertura

de

alumínio

e,

flutuante

todo

coberto

de

folha palha.

Manissuã

Estrutura Centro

Nenhum

5

de

madeira

com

cobertura de palha e algumas com cobertura de alumínio

Bacia

####

1

####

Estrutura Abaquadi

Nenhuma

5

Paricá

de

madeira

cobertura de palha e algumas com cobertura de folha de alumínio.

Estrutura Terra Nova

Nenhuma

6

de

madeira

com

cobertura de palha e algumas com cobertura de folha de alumínio.

Cuniuá

com

Xila

####

####

####

Açaí

####

####

####

O conjunto da aldeia Paumari é construído por essas paisagens – casas de terra firme e flutuantes que seguem um modelo regional. Um caso a ser registrado é que esta configuração social está – ao que me parece – associada às disputas políticas que existem no interior do grupo. No caso da aldeia Manissuã, foi-me relatado que todos se concentravam na terra firme e que depois de algumas “brigas” e “desentendimentos” com a liderança da aldeia, Germano e Sara, juntamente com seus filhos, se mudaram para a

201

entrada do lago Sete Bocas e com eles se mudaram o Sr. Luiz e D. Laurinda, liderança da aldeia. Há algumas versões sobre a mudança desta família, alguns afirmam que o Sr. Luiz está velho demais para ser um “líder”, que não tem mais forças para lutar pelos ideais do povo e que sua filha Sara, esposa de Germano, saiu da aldeia por conta dos conflitos que envolviam seus pais. Assim, toda a família que habita o lago Sete Bocas é formada pela Família de Germano, Luiz e Gerson. Os Mamori e Juberi No proceder do campo, deparei-me com uma curiosidade que percorria toda a minha trajetória de pesquisa bibliográfica com os Paumari, que em muitos contextos pareciam estar difundidos em outros grupos ou que desapareceram completamente no decorrer dos processos em que eram submetidos. Neste sentido, os registros históricos apontam, para além do Paumari, outros três grupos – os Mamory, Arawá e Jubery - como subgrupos que formavam o antigo grupo dos Purupurus, sendo que os Paumari representam hoje, o único subgrupo remanescente do período de colonização e ocupação do rio Purus, após o avanço da civilização branca na região. Sobre os Arawá nada se sabe e não obtive sequer informações sobre a possível existência desse grupo nas áreas que circunvizinham o rio Tapauá. No entanto, sobre os Mamory e Jubery, muito se ouviu falar! Foi surpreendente perceber a maneira como eles eram descritos e de como aos poucos

iam

“surgindo”

remanescentes

destas

tribos

até

então

“desaparecidas”. A primeira figura a aparecer foi os Mamory, na pessoa de Dona Leontina, que foi logo se autodenominando índia Mamory, nos descrevendo, principalmente, que as pessoas dessa tribo formavam família apenas com os índios Paumari, sendo considerado casamento preferencial entre ambos os grupos. Os filhos, fruto desse casamento, pertenceriam à nação Paumari. De

acordo

com

a

descrição

de

algumas

pessoas

com

quem

conversamos, foi-nos dito que os Mamory são oriundos do rio Cuniuá, habitando, antigamente, o mesmo lugar onde os Deni habitam na atualidade. Este relato se vê confirmado não só na fala dos habitantes que

202

tiveram contatos com os indígenas, como também pela fala de seu Maquiri, índio Deni que conhecemos na aldeia Bela Vista, localizado na Ponta do Evaristo, no rio Tapauá. Conforme seu Maquiri, os Deni são os Mamori, pois eles eram assim chamados pelo fato de habitarem as intermediações do lago Mamori. Deste modo, os Mamory aparecem como um grupo que mantinham alianças

matrimoniais

com

os

Paumari

e

que

ainda

hoje

existem

remanescentes Mamory entre os Paumari e Catuquina. Vale Lembrar também, que Kroemer relata que os Mamory eram perseguidos pelos Catuquina, sendo obrigados a se embrenharem pela mata e realizarem casamento com outros povos, realizando uma miscigenação. Sobre este fato, contou-me o senhor Ademazinho Katuquina, habitante da Terra Indígena Paumari do Lago Manissuã, que os Mamori foram exterminados por sua tribo por conta de conflitos entre ambos e que esses conflitos recebiam toda a motivação dos “patrões seringalistas” que forneciam munições para as expedições de guerra entre eles. Assim, ele diz que os Mamori foram mortos nas imediações do riozinho, e que havia um Mamori muito conhecido naquela região que se chamava Marrecão. As informações não paravam, eram inúmeras as descrições e apontamentos que se faziam sobre o suposto desaparecimento dessas tribos, contudo, ao conversar sobre isto na aldeia, outra surpresa aparece, pois esses grupos aparecem com muita força na ascendência dos Paumari que habitam a região do rio Tapauá. Eles contavam-me que os Paumari entendem a língua dos Mamori e que elas são bem parecidas, e que provavelmente, a língua Mamori seja a mesma língua que os Deni falam, pois eles justificavam que tanto os Deni quanto os Paumari tem muitas semelhanças gramaticais. Sobre os Juberi, não se sabe muita coisa, mas o que me contavam com muita frequência era que os índios que faziam parte desta tribo eram ágeis guerreiros e muito bravos com os demais índios e com os próprios de sua família. Uma das pessoas com quem eu conversava, chegou a dizer que os Juberi amarravam seus filhos no tronco de uma árvore, caso ele não parasse de chorar, pois eles deveriam ser valentes, caso contrário, a onça os comeria. Na aldeia, também apareceu alguns remanescente de Jubery,

203

entre eles, tive a oportunidade de conhecer seu Agostinho Cassiano, que mora no lago do Tamanduá, que se encontra fora do perímetro da TI, mas eles lutam para que esta área seja demarcada como território indígena, pois conta ele, que o lago do tamanduá é um uma antiga morada dos índios Jubery, e lá estão vão corpos de seus descendentes, como também agrupa uma das áreas de castanhais mais importantes para os Paumari. Ainda que a pesquisa apresente poucos dados sobre esta questão, os Paumari, por sua vez, eram bem enfáticos sobre as características desses grupos, sobre suas descendências e as diferenças internas que existem entre os descendentes destes grupos quando comparados aos Paumari. Germano, filho de seu Agostinho e Dona Odete, filha de Mamori, não soube dizer a que grupo ele pertencia, entretanto, ressaltou que ele é Paumari porque todos os são, mas que ele, quando comparado a uma Paumari, exibe uma característica completamente distinta daquela que os Paumari apresentam quando são filhos gerados a partir de dois Paumari “puros”. Assim, ele ressaltava as diferenças existentes na estatura dos Paumari, Mamori e Jubery, o formato do corpo e do rosto como marcadores de diferenças entre esses grupos. Neste sentido, todos aqueles que estão de fora (nós) os chamam de Paumari, mas aqueles que estão lá dentro (eles) sabem muito bem discernir quem descende de Paumari, quem descende dos Juberi ou Mamori e tais diferenças não são apenas ponderadas, mas são constatadas a partir das diferenças corporais, da estatura de cada um e da história oral que cada um carrega. No entanto, Bonilla (2005), que atuou entre os Paumari do Lago Marahã e rio Ituxi, em seu trabalho etnográfico sobre os subgrupos Paumari, assinala que o grupo mencionado não têm configurações sociais do tipo madiha e que talvez os paumari não apresentem uma organização sociológica que possa ser configurada como subgrupo. Assim, a autora voga que mesmo não tendo grupos nomeados e localizados, os Paumari tendem a organizar, no plano cosmológico, os seres, animais e objetos como subgrupos nomeados que se comparam a organização social do tipo madiha. Sobre este evento, Bonilla há de dizer que os Paumari tendem a um “perspectivismo generalizado”, onde a “socialidade potencial dos seres é

204

projetada na totalidade do cosmos, coincidindo, portanto, ao que foi chamado de subgrupos madiha”. Assim propõe a autora: (...)

É interessante pensar o perspectivismo generalizado dos

Paumari em relação à questão dos subgrupos arauá (que também foram chamados de clãs), pois aqui, a socialidade potencial é projetada

na

totalidade

do

cosmos

e

coincide,

ao

menos

lingüisticamente, com o que foi chamado de subgrupos madiha (conforme o modelo e o termo kulina). Os Paumari não apresentam hoje

em dia configurações

sociológicas do

tipo

madiha. Os

subgrupos localizados, nomeados e idealmente endógamos não existem enquanto tais. Os grupos locais são unidades idealmente endógamas, mas não são associadas a nomes de animais ou plantas e são conhecidas por seus nomes próprios (...). Aqui é como se a configuração madiha tivesse sido projetada no cosmos incluindo, então, as relações entre os Paumari como um todo e todos os outros seres potencialmente sociais. Os ‘subgrupos’ coincidem, então, com as espécies ou subespécies vegetais e animais, ou mesmo com os objetos, com os quais os Paumari têm de se relacionar no cotidiano (Bonilla 2005: 50 – grifos meus).

Porém, pensar esse cenário entre os Paumari do rio Tapauá é um tanto complexo e paradoxo, pois para eles, tanto os Mamori quanto os Jubery são grupos presentes em suas histórias de vida, possuem assentos simbólicos bem delimitados nas mediações da TI – antigos cemitérios, antigos castanhais e lugares de moradias. Portanto, partindo desses apontamentos, realizamos um levantamento genealógico de algumas famílias, partindo do pressuposto de que esses grupos habitavam aquela área e que juntamente com os Paumari, estabeleciam diversas alianças.

205 Figura 31 – Genealogia de algumas famílias Paumari.

ATIVIDADES ECONÔMICAS E EXTRATIVISTAS Agricultura A agricultura é praticada tanto na várzea quanto na terra firme, sendo a

mandioca

a

principal

planta

cultivada.

As

informações,

ainda

generalizadas consideram as principais espécies agrícolas nas roças: macaxeira, mandioca, banana, cará, cana, ananá, abacaxi, batata, cupuaçu, castanha. Também coletam uma série de frutas silvestres e cipós e enviras para a construção de casas, embarcações e a fabricação de diversos objetos. Caça Entre os Paumari, a caça configura-se como uma atividade secundária que é exercida apenas em casos particulares e ou em momentos de grandes festejos. Diferentemente do que acontece com a pesca, atividade primordial deste povo, a caça acaba sendo um exercício para as “empreitadas” que são montadas no período de grandes festejos – aniversários, dia do índio, campeonato entre as comunidades indígenas com as comunidades da foz de Tapauá; jogo de futebol etc. – ou quando vão para os acampamentos de castanhas e por lá topam com alguma caça, mas geralmente o grupo que vai para os castanhais tende a levar gêneros alimentícios (arroz, sardinha, conserva de boi, farinha, etc.) para acompanhar o peixe que há de ser pescado nas proximidades do castanhal. É importante registrar que alguns Paumari, principalmente os da aldeia Manissuã (área de terra firme), criam alguns porcos do mato em pequenos cercados com o objetivo de comercializá-los com os demais habitantes da aldeia ou troca-los por gêneros alimentícios com os comerciantes que moram na vila localizada na Foz do Rio Tapauá. Este processo, ao menos é o que aparentemente podemos deduzir, acarreta uma possível eliminação do ato de caçar na floresta, uma vez que se têm alguns pontos de comercialização de caça pelos próprios índios ou por uma família de “brancos” que ocupam uma área de terra firme dentro das localizações da Terra Indígena Paumari. Deste modo, a caça acontece somente em

206

alguns casos, dependendo muito da ocasião e da atividade exercida pelos Paumari. Pesca Esta é a principal atividade de subsistência do grupo. São sempre realizadas nos rios, igarapés, lagos e lagoas que cercam a região. Em alguns casos, os Paumari tendem a pescar nas proximidades de suas casas, como pude notar no dia em que observava o casal de lideranças Snr. Luiz e D. Laurinda. Ambos pescavam próximo a sua casa, apenas com uma vara e uma linha amarrada sobre ela. Pegaram algumas piranhas pretas, pois buscavam apenas alimentos para si mesmos, já que seu filho e sua nora estavam viajando. Os Paumari são conhecedores de diferentes técnicas de pesca, sendo os peixes, precisamente, o principal alimento na sua dieta cotidiana. Em alguns momentos, me foi relatado que muitos Paumari costumam pescar com a ajuda da “malhadeira” e que esta foi um presente dos brancos, facilitando em muito a execução da atividade. Há também quem goste de pescar apenas com arco e flecha, mas sendo esta uma técnica cansativa e que requer paciência, principalmente na época da cheia, quando os peixes estão espalhados ao longo do rio e não mais concentrados nos canais ou lagos da região. Coleta de Castanha É no início do mês de Dezembro que a coleta de castanha se torna a principal atividade exercida pelas Comunidades Paumari do rio Tapauá. No contexto das aldeias, diferentemente do que foi observado entre os Paumari e demais pessoas no município de Tapauá, a castanha se configura como o “elemento” de negociação entre o patrão e o empregado, regatões e comerciantes, entre sogros e genros; filhos e pais etc. A castanha não compõe o rol dos hábitos alimentares dos Paumari, sendo apenas usada como meio de troca e como forma de pagamento das dívidas adquiridas com os regatões. Assim, a castanha é dada ao patrão como forma de pagamento de uma dívida anterior que ao ser saldado abre-lhes o precedente para uma nova dívida. Logo, este cenário está associado à

207

permanência do sistema de aviamento, fenômeno que perdurou por longos anos na região Amazônica. Para saldar a dívida, como também para adquirir novos bens, produtos industrializados, os Paumari passam a compor “expedições esporádicas” nos castanhais que estão localizados há algumas horas ou dias da aldeia. Do recenseamento que realizei na aldeia, registramos que quase todas as famílias possuem dois pontos de castanhas, muitos deles localizados no mesmo lugar (rio, lago) e alguns tem pontos de castanhas em diversos lugares distintos (rio, lago). Há também aqueles que não possuem castanhal, pois não são oriundos da região do Tapauá, mas da região do Marahã ou Ituxi, localizados na proximidade de Lábrea. Estes, por sua vez, são “emprestados” aos sogros, tios ou a qualquer outro Paumari que necessite de mão de obra na quebra de castanha.

O resultado deste

“empréstimo” pode ser pago por meio de uma saca de castanha ou o numero de latas que o “emprestado” conseguir quebrar. Todavia, isso pode variar, ficando a cargo da negociação que há de se estabelecer com o indivíduo que necessita de ajuda na quebra de castanha. Nas expedições de quebra de castanha, é comum ir um grupo de homens da mesma família e/ou aquele está sendo “emprestado” para o serviço. Geralmente, são os pais com seus respectivos filhos ou cunhados que seguem para os castanhais, onde irão limpar as estradas, montar acampamento, amontoar os ouriços para depois quebrá-los e ensaca-los. De acordo com Germano Cassiano Paumari, dependendo do período (mês) as expedições podem durar mais de um mês ou duas semanas na floresta. O fator determinante do período de acampamento nos castanhais está associado à produtividade das árvores, a queda dos ouriços e o mês em que a coleta há de acontecer. Notas sobre Leishmaniose nos Paumari do Rio Tapauá Paralelamente a atividade de campo sobre o peixe-boi, buscou-se obter o mínimo de informações sobre a tão chamada “ferida braba” (Leishmaniose), as formas de contágio, tratamento e até mesmo as percepções dos Paumari em relação à doença em questão. Pelo que conseguimos registrar, há indicativos de dois casos de ferida braba entre os

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indivíduos que habitavam a aldeia Manissuã e um caso na aldeia Paricá. Um dos casos registrados no Manissuã foi tratado pela CASAI de Lábrea, onde o indígena passou mais de dois meses, tratando a ferida que acometia parte de sua perna. Ao ser questionado sobre a possível contaminação, o mesmo nos respondeu que a ferida apareceu logo após uma picada de carrapato que sucedeu em sua passagem pela floresta. Os outros dois casos (Manissuã e Paricá) foram tratados na própria aldeia com o sumo da casca de capurana e ambos atestavam que foram picados por carrapatos. É importante registrar que os Paumari criam porcos e cachorros, este último, em muitos casos, é o companheiro na hora das caçadas, nos passeios na floresta e principalmente na coleta de castanha, pois ele “pode latir e assustar a onça” – informações de um indígena da aldeia Paricá.

209

ETNOGRAFIA DA QUEBRA DA CASTANHA JUNTO AOS PAUMARI DO RIO TAPAUÁ: PRIMEIRAS IDEIAS E APROXIMAÇÕES Mario Rique Fernandes INTRODUÇÃO Foi com friozinho na barriga que eu recebi, no fim de novembro de 2011,

o

convite

do

professor

Gilton

Mendes

para

participar

da

carinhosamente chamada “Expedição Purus 2012: 150 anos depois”. Tratava-se para mim, há apenas dois anos morando no Norte, da primeira oportunidade de experenciar o que eu considero uma “Amazônia profunda”. Não havia ainda tido a experiência única de viajar dias nesses grandes barcos-recreio apinhados de gente e mercadorias – apelidados de “gaiolões” - que nos remetiam aos porões dessas embarcações no século XIX descritas por Ferreira de Castro. Também nunca havia entrado e permanecido durante dias em uma terra indígena, compartilhando o cotidiano com índios; enfim, não somente para mim, mas para todos da equipe, esta foi uma experiência amazônica por excelência. A região do Médio rio Purus é um lugar fascinante e um excelente campo de pesquisas para as mais diversas áreas, considerando a riqueza de temas que abarca em termos históricos, sociais, culturais e biológicos - só para citar alguns. E aqui gostaria de compartilhar um paradoxo purulesco (e amazônico de forma geral), no qual me vi enredado ao longo da viagem: o lugar é lindo e tem um campo de pesquisa imenso, mas é longe demais, de difícil acesso e isolado de tudo. E talvez seja justamente por ser longe demais e isolado de tudo que o lugar seja lindo e ótimo para pesquisas. Como resolver essa contradição? Trazer esse campo pra perto, torná-lo mais acessível, seria afastar seus mistérios e quem sabe acabar com sua beleza, mas por outro lado, seria justo aceitar deixar o lugar e as pessoas que ali vivem à margem da história e do desenvolvimento do País? Não sei se tenho uma resposta, mas prefiro deixar a questão em aberto. A possibilidade de conhecer esses rincões do Brasil foi ao mesmo tempo um privilégio e um exercício de desapego e de entrega. Privilégio por compartilhar histórias de vida e a vida de pessoas que habitam esse lugar

210

esquecido e distante, o que exigiu um trabalho de desapego - pela distancia e pelo isolamento - do meu ego-centrismo (ou quem sabe do meu etnocentrismo). A entrega foi ocaminho para lidar com o medo do desconhecido e de amor a tanta beleza, diversidade e vida pulsante neste mundo de florestas, águas, pessoas e bichos. Mas para quem ama viagens, todos os percalços e imprevistos que passamos, servem para poder contar história depois. A vida é feita de momentos e esta expedição certamente marcou a vida de todos que participaram dela. Quem sabe um dia, contaremos para nossos filhos e netos, “memórias de árvores, de água, de luz e menino”. Fui convidado para participar da expedição com a incumbência de acompanhar a quebra da castanha a partir de uma perspectiva etnográfica. A ideia foi fazer uma primeira aproximação com essa realidade na região e investigar a economia da castanha entre os indígenas. Ficou decidido que eu então acompanhasse a Angélica em seu trabalho de campo de mestrado com os Paumari que vivem próximos da foz do rio Tapauá - afluente de águas

pretas

do

rio

Purus

-,

assessorando-a

e

aproveitando

para

acompanhar o extrativismo indígena da castanha. A proposta inicial, um tanto ousada para uma primeira ida à região, foi investigar os conceitos Paumari a respeito da castanha e como se dá o seu processo de produção e distribuição, partindo-se do pressuposto da existência de uma trama de relações sociais e simbólicas em torno desta atividade - com raízes históricas profundas -, tecidas pelas unidades sociais e os esquemas cosmológicos ali operantes. Entretanto, ainda que com esse objetivo em pauta, parti nessa viagem sem muita pretensão além de estabelecer primeiros contatos, ideias e impressões a respeito do objeto de pesquisa, pensando em um possível projeto de doutorado num futuro talvez não muito distante. O que de certa forma foi bom, porque possibilitou que eu me relacionasse com as pessoas do lugar e com os Paumari como um ser humano “comum”, sem aquela pressão em coletar dados que todo pesquisador tem em campo, o que me deixou bastante a vontade e permitiu estabelecer boas relações.

211

O

presente

relatório

constitui

assim

um

primeiro

esforço

de

sistematização das informações e impressões recolhidas durante esta viagem, cujos resultados e discussão são ainda bem preliminares. Métodos utilizados A ideia de fazer uma etnografia daquebra da castanha foi algo um tanto desafiadora.40 A ideia inicial foi considerar as práticas sociais em volta da castanha como um fato social de longa duração, nesse sentido, seguindo a proposta metodológica de Durkheim, considerando-a como “coisa”, ou seja, como realidade fenomênica externa, que é dada, que se impõe à observação.41 Para tanto, a proposta foi usar o aporte metodológico próprio da antropologia, que parte da premissa de uma longa familiaridade, desde dentro, no dia-a-dia do grupo observado, a qual se dá o nome de observação participante. A ideia inicial para descrever o trabalho com a castanha de uma maneira interessante foi utilizar conceitos weberianos como os de ação e relação social.42 Tais conceitos serviram-me como instrumentos teórico-

40

Atrás de respostas à pergunta “o que é etnografia?”, encontrei uma perspectiva

interessante feita pelo antropólogo Luiz Fernando Duarte, a qual me inspirou ao longo desta viagem. Diz ele que o objeto da etnografia é o sentido ou o significado da experiência humana no mundo – as relações sociais, instituições, sistemas de valores e crenças, linguagens, etc. – a partir de uma imersão nessas unidades de significação em estudo – conhecida

como

observação

participante

(Disponível

em:

www.cienciahoje.uol.com.br/colunas/sentidos-do-mundo). 41

Durckheim, Emile. (2007). As regras do método sociológico. 3. ed. São Paulo: Martins

Fontes. 42

Weber dizia que toda conduta humana é dotada de sentido, isto é, de uma justificativa

subjetivamente elaborada. Cada indivíduo age em relação a outros, levado por motivos que resultam da influência da tradição, dos interesses racionais e/ou da emotividade. O motivo que transparece na ação social - que pode ser expresso pelo sujeito ou estar implícito em sua conduta - permite ao observador desvendar o seu sentido, que é sempre social na medida em que cada indivíduo age levando em conta a resposta ou a reação de outros indivíduos. Por outro lado, Weber distingue a ação da relação social. Para que se estabeleça uma relação social é preciso que o sentido da ação seja compartilhado. Ver em: Weber, Max. (1994). Economia e Sociedade. 3. ed. Brasília, UnB.

212

metodológicos para interpretar em campo os possíveis sentidos das ações dos indivíduos que trabalham com a castanha. Isso facilitou que eu olhasse e interpretasse os sentidos por trás das ações e relações sociais em torno da castanha, buscando entrever “aquilo que está sob a casca das coisas”. Todavia, creio não ter ido muito longe, tendo em vista que a ideia também era entender os conceitos e as categorias nativas a respeito da castanha,

isto

é,

o

lugar

desta

árvore

no

conjunto

das

crenças,

conhecimentos, práticas, do pensamento, das instituições de parentesco, etc. em outras palavras, o lugar da castanha na totalidade da cultura Paumari. O desenrolar do campo No total, meu tempo de permanência no “campo” durou 36 dias, contando do dia em que saímos do porto de Manaus ao dia da minha chegada ao mesmo porto (que não coincidiu com o restante da equipe). Considerando o campo a viagem como um todo, nesse período foram cerca de dez dias viajando em barco, onze dias na cidade de Tapauá e dezesseis dias em terras Paumari. Ter ido ao Purus nesses barcos-recreio – ao invés de avião - foi importante, pois nessas viagens temos oportunidade de conhecer pessoas que vivem na região – cada qual ali no barco exercendo um tipo de ação e relação social -, com tempo de sobra para ouvir suas histórias, sonhos, anseios, problemas, conhecimentos, sabedorias, enfim, o barco nos serviu como o início da imersão na “unidade de significação em estudo”. Foi possível, assim, começar um exercício etnográfico no próprio barco. Além disso, viajando assim temos contato direto com o ambiente, com o grande rio e a floresta, as condições do tempo, o vento, a chuva, o sol, o céu, as estrelas. Quando partimos no fim da tarde de sábado, no barco-recreio “Vovô Osvaldo II”, no dia 07 de janeiro de 2012, nossa equipe contava com sete pessoas – eu, Alexandre, Admilton, Alba, Thainá, Angélica e Ingrid – que ao longo da viagem foi se dividindo. Eu, Angélica, Alexandre e Admilton,

213

descemos na cidade de Tapauá, na terça-feira (dia 10). O restante da equipe, contando só com as meninas, continuaram a viagem por mais dois dias até a cidade de Canutama. O período de viagem juntos, foi dividido entre confraternizações e reuniões. Filmamos e fotografamos o momento da entrada na foz do rio Purus, no final da tarde de domingo, um marco importante da viagem, sabendo que entrávamos a partir dali dentro da unidade geográfica de estudo. Os imprevistos da viagem fizeram com que demorássemos mais que o previsto na cidade de Tapauá, pois a ideia era ficar, eu e Angélica, apenas uns cinco dias na cidade para tentar aproveitar o máximo de tempo nas Terras Indígenas. Porém, problemas de atraso no depósito de dinheiro para dar continuidade à viagem, junto com a falta de regularidade de barcos subindo o rio, fez com que ficássemos onze dias em Tapauá. Entretanto, o campo na cidade foi também bastante interessante. Durante esses dias, foi possível conhecer e entrevistar uma série de personagens que compõem a paisagem humana do Purus. Estabelecemos contato com Apurinãs e Paumaris que vivem e trabalham na cidade; fizemos bons contatos com funcionários (muitos indígenas) da FUNAI e da Casa de Saúde do Índio (CASAI); foi possível fazer longas e interessantes entrevistas com ex-seringueiros descendentes de nordestinos; foi possível conversar com os principais atravessadores e comerciantes de castanha e compreender um pouco a lógica subjacente dessa atividade na região; foi possível também acompanhar todo o processo de produção de farinha de mandioca acompanhando uma família, inclusive visitar sua roça, etc. Enfim, nesses dias construímos uma rede de relações sociais – com direito a dádivas e contradádivas -, e muito ainda ficou por se fazer, dada a diversidade de pessoas interessantes que de uma forma ou outra fazem parte do tema da expedição e das nossas pesquisas, mas que ficaram ainda por se conhecer ou se conhecer melhor. A primeira entrada em território Paumari foi outro marco importante da viagem. Saímos da cidade de Tapauá em direção à Vila da Foz do rio Tapauá (o rio tem o mesmo nome do município), no sábado, dia 21 de janeiro, ao meio dia, e chegamos ao vilarejo ribeirinho no fim da tarde do dia seguinte (domingo, 22 de janeiro). Vale ressaltar que dessa vez

214

pegamos o barco “Comandante Maia” muito mais apinhado de gente e abarrotado de mercadorias do que o “Vovô Osvaldo II”, uma vez que embarcamos no “meio do caminho” - o barco vinha de Manaus rumo à Boca do Acre. Na foz do rio Tapauá deu-se a separação total da equipe; a partir dali, Alexandre e Admilton continuariam a viagem rumo a Canutama, eu e Angélica, continuaríamos agora pelo rio Tapauá. Como já era quase noite não permitindo que fossemos direto para a TI - aceitamos o convite de Edelson (um morador da Vila), para pousar na casa de Dona Ardete (sua irmã), comerciante e evangélica. Nessa noite escura de domingo demos ainda uma “volta” na vila, que estava “agitada”; dia de missa na igreja evangélica; jovens sentados nas bancadas das casas de madeira e crianças correndo à meia luz pela rua principal; homens jogando sinuca nos bares ao som de brega; tomamos coca-cola e sorvete. A segunda-feira amanheceu com “rompante de chuva”; durante a manhã conseguimos uma pessoa para nos levar à casa do seu Germano – um professor Paumari, que seria nosso anfitrião nos primeiros dias no Manissuã. Mas só conseguimos sair da vila depois do almoço, - na verdade, depois que a chuva amenizou, mas não sem antes ter encontrado com seu Nilson, agente de saúde Paumari, que havia trazido seu Ademarzinho – um Katukina que mora no Manissuã - ao posto de saúde, picado de cobra no dia anterior atrás de sua casa. A sensação de entrar pela primeira vez em uma TI daquele porte foi emocionante. Enquanto íamos subindo o rio Tapauá, naquela tarde nublada e branca, a floresta verde-escura da terra firme, com enormes castanheiras sobressaindo-se, formava uma muralha gigante ao longo do rio, impondo um ar de mistério e respeito; ao mesmo tempo vinha uma sensação de a cada segundo estar me afastando do meu mundo, indo para mundos outros, para o desconhecido. Quando entramos em um igapó para fazer um furo (atalho dentro da floresta alagada) a emoção transbordou. Era tanta beleza e mistério naquele ambiente que meus olhos se encheram d’água. Quando chegamos ao flutuante do Germano – num local do Lago manissuã chamado de “Sete Bocas” -, recebemos as “boas vindas” de um “jacarétronco” logo atrás da casa, que nos avistou e mergulhou pro-fundo nas águas.

215

Ao desembarcarmos não encontramos ninguém no casa-flutuante; após alguns minutos avistamos a esposa do nosso anfitrião - Sara e suas duas filhas (Kamelícia e Klícia) –, remando na canoa tranquilamente vindo nos receber. Germano e os seus dois filhos tinham ido de manhã ao castanhal quebrar castanha, de onde voltariam somente dias depois. Começava ali nossa entrada no mundo dos Paumari.

O TEMPO NA CIDADE O que eu chamo de “campo na cidade” foi o tempo despendido na cidade de Tapauá, que no total foram de onze dias. Embora tenha durado mais que o previsto, o campo na cidade, como mencionado anteriormente, serviu como período de adaptação e inserção no contexto sociológico da região. Faço a seguir um breve relato sobre as primeiras ideias e impressões a respeito do nosso trabalho na cidade e de nossas relações com os moradores e trabalhadores do lugar. A cidade de Tapauá A ocupação urbana de Tapauá distribui-se entre áreas de terra firme e áreas de várzea. Parte da cidade situa-se ao longo da foz do rio Ipixuna, com várias casas e comércios flutuantes, formando literalmente um “bairro aquático”. A escadaria do porto onde desembarcamos indica a terra firme na qual boa parte da cidade se assenta. No entanto, essa parte da cidade em terra firme apresenta um relevo bastante descontínuo, com muitas ladeiras, ruas estreitas e casas de palafita. Como a maioria das cidades do interior do Amazonas, o que move a economia de Tapauá é o setor de comércio (formal e informal) e de serviços. Caminhando pelas ruas, é comum observar residências e ao lado uma pequena

venda

de

roupa,

de

bebida,

produtos

eletrônicos

e

eletrodomésticos, pequenos mercadinhos, peixarias, etc. sugerindo que muita gente transforma parte de suas casas em um tipo de comércio. A maioria das casas é feita inteiramente de madeira. Como as frentes das casas e vendas nas ruas principais dão direto para calçada (raras são as casas com muro), há muita sociabilidade (e pouca privacidade) nas ruas e nas esquinas e um intenso trânsito de motos. Como quase não há calçadas,

216

as pessoas andam praticamente no meio da rua sendo desviadas pelas motos. O centro fica na parte mais alta da cidade, com a Igreja Matriz, uma praça e uma pequena orla com vista para o encontro das águas do rio Purus - de água branca – com o rio Ipixuna – de água preta -, proporcionando um espetáculo tão belo quanto o famoso “encontro das águas” em Manaus; alguns bares, comércio e serviços (correios e banco). Na Praça da Matriz é o local onde os jovens costumam se encontrar a noite e onde são realizadas as festas e os eventos públicos da cidade. 43 O sistema de comunicação é limitado, sendo a Vivo a única operadora celular que funciona - durante a nossa permanência a Vivo literalmente saiu do ar - “morreu” - deixando seus usuários sem contato com o mundo exterior durante três ou quatro dias (só quem tinha telefonia fixa podia se comunicar). Quanto aos serviços de internet, não havia uma única lanhouse na cidade funcionando, sendo que a única forma de ter acesso à rede era ou nas instituições públicas (ICMBio, Casai e Funasa) ou nas escolas municipais. Por outro lado, a televisão está presente em praticamente todas as casas e a globo é onipresente. A cidade é abastecida de energia por uma termelétrica. O município tem sérios problemas com a questão política local. Desde a última eleição, dois prefeitos, tanto o da situação como o da oposição que havia tomado posse com a saída do primeiro -, foram afastados, sendo que um foi preso por ter relações com o tráfico, e o próprio presidente da câmara (o atual gestor na época) estava sendo investigado. Essa disputa política mobiliza boa parte da população, uma vez que a prefeitura acaba servindo como “cabide de empregos” – um funcionário chegou a relatar que a prefeitura estava empregando mais de mil pessoas -, o que mostra como esse embate entre grupos políticos locais constitui um forte agente

43

De acordo com Censo do IBGE de 2010, a população total do município de Tapauá era de

19.077 moradores, sendo 10.618 pessoas vivendo no “meio urbano” e 8.449 no meio rural (Disponível em: www.ibge.gov.br). Um indicador interessante apresentado no Censo é que do total de moradores, aproximadamente 90% se disseram naturais do próprio município, o que vai ao encontro dessas minhas observações e impressões na cidade, cujo padrão de sociabilidade deve guardar característica arraigadas na região.

217

mobilizador entre os moradores, já que muitas pessoas e famílias dependem desses empregos para sobreviver. Apesar de termos sido bem recebidos em todas as instituições que visitamos, tivemos que tomar muito cuidado com essa questão política, buscando se esquivar ou não se envolver quando o assunto aparecesse, para evitar que “portas fossem fechadas”. “Índios urbanos” O aumento de indígenas vivendo nas cidades do Médio Purus (Tapauá, Canutama e Lábrea) é um fato marcante que vem se estabelecendo no panorama socioambiental da região ao longo dos últimos anos (Aparício, 2011). Pesquisas recentes mostram como as cidades hoje passaram a estar inseridas no itinerário e na cosmologia desses povos (Oiara), porém, esse é um tema que precisaria ser mais bem explorado em todas as suas nuances. Por trabalharmos em torno dessa temática, tivemos a oportunidade de entrar em contato com vários indígenas – funcionários da Casai e da FUNAI, entre outros (Apurinã, Deni e Paumari) -, que por motivos diversos vivem na cidade. Antes de comentar a minha experiência com esses indivíduos, é preciso ressaltar que logo quando chegamos se tornou perceptível na fala da população certo rancor (ou preconceito?) em relação aos índios, considerados hoje como agentes de direitos e regalias especiais. Há de fato uma diferenciação na cidade entre quem é índio e quem não é, porém, essa diferença acontece hoje não tanto pelas diferenças culturais, mas sim pelo status jurídico de “ser índio”, o que de certa forma acaba contribuindo (às avessas) a desentendimentos entre a população não índia (a maioria) com os indígenas que vivem e passam pela cidade. Um bom exemplo disso é a queixa feita pelos índios - em uma reunião com agentes de governo sobre saúde indígena - no atendimento que recebem dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Os índios alegam que os médicos do SUS tem resistência em atendê-los, porque eles já possuem cobertura da Casa de Saúde Indígena (Casai), que é o órgão de atendimento à saúde do indígena. O problema é que a Casai não tem estrutura para tratar problemas mais graves e acaba mandando o índio para o SUS, que chega no hospital já com a resistência dos médicos e

218

enfermeiros, seja pelo motivo alegado, seja porque também “índio chega sujo, descalço, suado, fede, etc.”. Foi interessante observar nesse sentido - numa oportunidade de acompanhar um grupo de índios voltando a pé para casa após essa reunião sobre saúde indígena - como a cidade parece constituir um ambiente “estranho” para os mais velhos. Percebe-se claramente a falta de jeito e a agonia deles em atravessar uma rua, o medo que sentem das motos, o andar lento, os olhares - o ver e o não ver e o não ser visto. Fiquei pensando de como o ambiente está dentro - “estruturalmente” - das pessoas, como o índio, acostumado a andar na mata e nos rios, caminha na/pela cidade. Mais interessante ainda foi verificar que todos eles moravam no “beiradão” ou o que eu considero o “bairro aquático” da cidade - fenômeno mais perceptível entre os Paumari, famosos por sua forte relação com os ambientes aquáticos que, sem exceção, todos moravam em flutuantes. Fica a questão: o que é ser um índio urbano no Purus? Conversa com um Paumari Seu Jorge e sua família foram os primeiros Paumari que tive contato durante a viagem e a primeira impressão foi muito boa. Visitei-o em sua casa, um flutuante de madeira no rio Ipixuna, numa tarde ensolarada, junto com a Angélica e o seu Orlando - agente de saúde da Casai. Seu Jorge tem um problema sério de hérnia na coluna que quando entra em crise deixa-o praticamente paralisado, tendo de ficar deitado o tempo todo em uma rede; embora seus olhos tenham brilhado ao falar da sua terra, o problema na coluna foi uma das causas dele ir morar na cidade, junto com o desejo dos filhos de estudar na cidade, já que consideram a escola na aldeia muito fraca – segundo eles as crianças terminam a 4° série sem saber ler nem escrever. Seu Jorge e sua esposa - dona Leontina - são da aldeia do Lago Manissuã; ele é filho de seu Luis, o cacique, e irmão de seu Nilson, agente de saúde e uma das jovens lideranças da aldeia. Seu Jorge me contou que sua família teve um papel protagonista na criação da TI dos Paumari e no projeto de “manejo” da OPAN. Em sua fala articulada e esclarecida ele se mostrou um defensor da causa da “sustentabilidade” em suas terras, introduzindo a problemática em torno do

219

projeto de manejo dos lagos, pois nem todas as famílias são adeptas da proposta em se fazer a despesca, ou seja, deixar de pescar pirarucu em um lago por certo tempo (geralmente um período de três anos). A questão parece nem tanto ser falta de paciência ou “visão” ou talvez necessidade, mas sim as relações de parentesco e de compadrio estabelecidas com os pescadores de fora, não índios, que arrendam os lagos em troca de rancho e mercadoria. Entre os Paumari é muito comum que os jovens saiam das aldeias para trabalhar durante alguns anos em barcos de pesca, depois voltam e se casam. Essa relação com o branco é sempre de subordinação. Antigamente costumava-se sair para trabalhar nos seringais, na coleta castanha ou de sorva; hoje é nos barcos peixeiros. O próprio Jorge trabalhou durante anos num barco desses, aprendendo a língua, o modo de ser, os valores dos brancos, etc. Sem dúvida sua experiência nesses barcos, tanto positiva quanto negativa, contribuiu para seu protagonismo na comunidade frente às

relações

com

os

agentes

externos

que

atuam

em

prol

da

“sustentabilidade” na região. Nossa conversa durou mais ou menos quarenta minutos, mas foi importante por ver que se trata de um povo receptivo e que vive numa terra especial. Entrevista com um ex-seringueiro que quase virou Pajé44 Seu Eladio é filho de um paraibano de Catolé do Rocha, mais um dentre tantos descendentes de nordestinos que vivem no Purus. Porém, a história

de

seu

Eládio

é

bastante

representativa

do

processo

de

“caboclização” dos nordestinos que vieram à Amazonia nos dois ciclos da borracha que devassaram a região em meados dos séculos XIX e XX. Conhecemos-nos rapidamente por acaso em meio a conversas informais no porto. Ele me foi apresentado como um ex-seringueiro que conhecia tudo sobre a região. Quem o vê na rua – senhor de meia idade, franzino, usando óculos, de bermuda e chinelo - não imagina a riqueza da “micro-história” do Purus que existe ali dentro. Na ocasião, conversamos rapidamente e

44

Entrevista gravada em 15 de janeiro de 2012.

220

marcamos uma conversa no hotel para o dia seguinte pela manhã. Ele não compareceu na hora marcada; quando dava como perdida a nossa entrevista, ele apareceu no fim da tarde, meio tímido, se desculpando por faltar de manhã. Como tínhamos nos conhecido rapidamente no dia anterior, aquele caboclo ainda era um mistério; de certa forma foi uma aposta que eu tinha feito em marcar a nossa conversa, a entrevista podia ser uma “furada”, sem muitas novidades, etc. Mas bastaram dez minutos para que o homem começasse a crescer e ganhar confiança e quando nos demos conta (eu e Alexandre) ele já estava narrando histórias de índios, pajés, feitiços, bichos, rios, viagens... Sempre intercaladas com um “trago” de rapé. Seu Eládio é o caso típico do homem sertanejo que se transformou em caboclo na Amazônia. Nascido num seringal do Purus, aos oito anos passou a conviver com os Apurinã e aos dezoito anos por pouco não se casa com uma índia na aldeia e vira aprendiz de pajé, mas preferiu ir embora e servir o exército. Seu Eladio é um bom exemplo do caboclo que herdou o conhecimento indígena sobre a floresta, as crenças, o imaginário, as técnicas, etc. e até mesmo o saber narrar estórias, os gestos, os tons, envolvendo os ouvintes como se estivéssemos à beira de uma fogueira. Por trás daquele pequeno homem uma grande história e uma pequena história amazônica. Ao longo de mais de duas horas de conversa, sem parar de falar, ele apresentou uma memória fora do comum e um grande conhecedor dos povos indígenas do Purus (fala Apurinã fluente e um pouco de três outras línguas). Histórias ocorridas nos seringais, encontros com os Suruahá no meio da floresta, onças, cobras e muitas outras coisas. A história de seu Eládio é um exemplo de que a história do Purus não se resume à guerra, confrontos armados, violência, etnocídios, etc. Houve também espaços de entendimento e integração no encontro entre os dois mundos. A “ferida braba”: notas em relação à Leishmaniose Durante

os

dias

passados

em

Tapauá,

questões

interessantes

apareceram sobre a leishmaniose - o que não quer dizer que as dúvidas acabaram ou que chegamos perto de compreender o fenômeno da doença na região. Antes de tudo é preciso destacar a precariedade do sistema de

221

diagnóstico e de compilação de dados (registros) oficiais no município. Logo no primeiro dia fomos à Funasa e só havia dados referentes à malária. No discurso do coordenador e dos funcionários de saúde, a leishmaniose não é um problema de saúde pública na região. De acordo com um funcionário da Casai o maior problema de doença entre os índios é a tuberculose, a hepatite B e A e a hanseníase (essa mais entre os Deni). Na fala dos coordenadores parece que a leishmaniose nem existe, mas ela existe sim, embora não epidêmica. A ocorrência da doença foi-nos revelado logo no primeiro dia por um funcionário da Casai, ao falar do caso da dona Leontina (que depois viríamos descobrir que era a sogra de seu Jorge), que apresentava uma ferida no olho bastante suspeita. Fomos à casa desta senhora e ela nos contou como a doença apareceu: há mais ou menos três anos ela foi pegar água perto de casa e “espocou” uma bola de sangue pequena e que depois foi crescendo; os sintomas relatados são pele escura ao redor da ferida (como se tivesse tomado uma pancada e ficado roxo) e forte quentura no corpo - não apresentava sinais de leishmaniose tegumentar na boca nem no nariz. Os médicos do município não sabiam se era leishmaniose. Ela esperava na ocasião uma oportunidade para ir a Manaus fazer os exames. Talvez o maior problema sobre essa doença seja a precariedade nos diagnósticos dentro do município, seja por falta de capacitação dos agentes de saúde, seja pela precariedade de equipamentos para realizar exames. Segundo relatos de moradores, os diagnósticos costumam generalizar as doenças (um mal-estar na barriga, dizem que é “dor de barriga”, por exemplo), quando na verdade poderia ser um problema mais sério. Posteriormente alguns Apurinãs me mostraram cicatrizes em suas pernas e costas, a que chamavam de “ferida brava”. Segundo eles as feridas se originaram pela picada de carrapato (um carrapato que dá em anta) e não de mosquito. Os sintomas foram os mesmos em todos os casos relatados: forma-se uma bola de sangue que depois de “espocar” abre uma ferida que vai se aprofundando e necrosando a pele. Os dois informantes foram medicados em Lábrea, o que indica haver algum tipo de diagnóstico na região. Em todos os casos relatados não houve proliferação da ferida. Resumindo:

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casos de leishmaniose existem na região, porém não podemos saber em que nível, devido à falta de informações oficiais e de confusões a níveis conceituais, uma vez que para os índios e moradores em geral parece tratar-se apenas de uma “ferida brava”. Notas sobre a farinha de mandioca em Tapauá O mês de janeiro é marcado por uma intensa movimentação em torno da produção de farinha. Bastava ir até a beira do rio Ipixuna e ver o intenso movimento de canoas e pessoas indo e vindo, trazendo a mandioca colhida nas “vazantes” para serem transformadas em farinha nas “oficinas”. Pude acompanhar a família de seu Francisco durante alguns dias produzindo farinha em sua propriedade na beira do rio Ipixuna. Nessa oportunidade foi possível entender um pouco as ações e relações sociais em torno dessa planta, registrar o processo de produção da farinha, visitar sua roça de vazante e de terra firme. O intenso movimento em torno da mandioca é comandado pelo ritmo da cheia do rio, pois se deve fazer a colheita antes que as águas do Ipixuna e do Purus cubram os roçados nas várzeas – “vazantes” - e a produção se perca. É uma corrida contra o tempo das águas. A produção de farinha dá muito trabalho, desde o plantio da mandioca, o cuidado com a roça, até a colheita, e depois todo o processo de transformá-la em farinha. A colheita nas vazantes vai sendo feita conforme a farinha vai sendo produzida. O trabalho é feito em regime familiar e de compadrio. Famílias inteiras se mobilizam para a produção nessa época, inclusive os jovens e as crianças, que neste período estão em férias. A torração da farinha nas oficinas (barracões onde estão armazenados os fornos de torrar) constitui assim um espaço de sociabilidade familiar, onde se reúne cunhados, genros, sogros, noras, filhos e netos, etc. em torno de um objetivo comum. A produção é praticamente toda voltada para o autoconsumo. Cada família se arranja do jeito que pode durante a safra; se alguém está doente ou adoece, vai o compadre, algum familiar ou o vizinho ajudar a colher, descascar, torrar, etc. tudo porque senão perde-se a produção.

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Contando com a paciência de seu Francisco foi possível entender um pouco mais como funciona o processo de produção da farinha:

O plantio de “vazante” - mandioca plantada nas várzeas - começa no final do mês de julho, contudo, o ciclo inicia quando a maniva (semente) da vazante é colhida na roça de terra firme em maio/junho, para depois ser plantada nas várzeas - nesse sentido, a roça de terra firme funciona como um tipo de banco de semente da mandioca plantada nas várzeas. Entretanto, existe variedades da terra firme e variedades da vazante. Diz seu Francisco que a da vazante é uma variedade mais “ligeira” chamada “socó”, que dura apenas sete meses pra ficar madura justamente no período em que o rio começa a encher - depois disso, não presta mais, fica “desgostosa”, “aguada”, nas palavras dele. A qualidade de mandioca da terra firme é conhecida como “cobiçada”, que aguenta de um a dois anos na terra. Como o próprio nome sugere, trata-se de uma variedade que produz uma farinha mais gostosa – amarelada - devido ao maior tempo de maturação na terra. É comum misturar as duas variedades - a da terra firme e a da vazante – na mesma farinhada. A mandioca colhida na vazante é colocada de molho – em canoas submersas na beira do rio - por cerca de três dias, processo esse chamado “pubar a farinha”. A mandioca pubada fica com uma consistência mole, permitindo que seja descascada facilmente com as mãos – trabalho que é feito dentro do rio – formando uma massa pastosa branca. Já a variedade da terra firme não é pubada; ela é “decotada” – isto é, descascada - tal como foi tirada da terra, e depois ela é “sevada” - triturada - num “sevador” – um tipo de rolo dentado movido por uma correia movimentada por um motor - formando uma massa pastosa e mais amarelada que a massa de puba. As duas massas são então misturadas e depois vão para a prensa de madeira – construída artesanalmente -, pra que a água escorra da massa. Começa aí processo de secagem da mandioca. Cerca de três horas na prensa, a massa seca, mas ainda úmida, é peneirada em uma peneira feita de palha e daí está pronta para ir ao forno pra ser torrada. Torrar significa a última etapa do processo de secagem da massa da farinha; uma fornada precisa de duas demãos para farinha ficar totalmente seca, levando na base de 1h a 1h30 de duração – 30 minutos a primeira

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demão e 1h a segunda. A farinha no forno tem que ser mexida constantemente para não queimar e às vezes é lançada ao ar para que o vapor se desfaça dela com mais facilidade. Uma safra de farinha dessas pode render de 20 a 30 sacas por família. A farinha é armazenada em tambores, podendo durar mais de um ano.

Notas sobre o esquema da castanha em Tapauá A castanha, o peixe e a farinha constituem os principais produtos que movimentam a economia de Tapauá. No entanto, ao contrário do peixe e da farinha em que boa parte da produção é consumida dentro do município, a castanha, apesar de seus valores nutricionais, praticamente é toda voltada ao mercado externo. É claro que existe um mercado interno, mas este é irrelevante. De acordo com as estimativas de um comerciante, praticamente 99% da castanha coletada dentro do município é exportada. Nesse sentido, o valor de receita que fica no município deve ser pífio se comparado à receita que é obtida na ponta final da cadeia produtiva. A economia da castanha dentro do município se resume ao extrativismo puro e simples, praticamente sem nenhuma forma de beneficiamento. Durante o período que estivemos na cidade foi possível entrevistar dois grandes atravessadores, o que possibilitou ter uma ideia mais apurada sobre como funciona o esquema da castanha na região. Buscando não perder de vista informações importantes dessas entrevistas, peço licença para colocá-las na íntegra, como estão nas minhas anotações do caderno de campo - com algumas alterações:

Primeira entrevista Hoje entrevistei um grande atravessador de castanha da cidade, seu Avilon, que mora num flutuante próximo ao terminal portuário. Senhor de meia idade, branco e de personalidade forte; disseram-me no porto que não era muito receptivo, mas me recebeu bem, foi solícito e atencioso; porém, não deixou gravar a nossa conversa. Pareceu ser uma pessoa amigável, mas sempre com um pé atrás... Desconfiado. No início da conversa, chegou um seu cumpadre, seu Francisco Braga Tavares, homem com seus 70 anos, nascido na região, em uma comunidade um pouco mais acima do rio Purus. Filho de seringueiro

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cearense, seu Francisco logo se mostrou um ótimo informante, bem humorado e atencioso na nossa conversa, demonstrando uma postura sincera, prestativa, respeitosa e amigável. Mostrou-se um informante com informações valiosas sobre a vida no passado na região; se apresentou como proprietário de terras no rio Ipixuna, onde passou boa parte da infância (a outra, o inicio, onde nasceu, foi numa comunidade ribeirinha no Purus, chamada Recreio São Domingos), e onde criou seus 14 filhos, hoje todos adultos (só dois moram em Tapauá), quase todos “doutores”; trabalhou com castanha, herdou do seu pai um castanhal no Ipixuna com cerca de 150 hectares (1.500 metros de frente por 3.000 metros de fundo). Seu Francisco mostrou-se profundamente aberto pra falar da sua vida, ao contrário de seu Avilon, aberto pra falar só do seu trabalho com castanha. Enfim, a conversa foi interessante, começou com seu Avilon, de maneira bem objetiva, falando sobre a economia da castanha e depois com a chegada e a participação de seu Francisco, a conversa enveredou pra outros rumos, interessantes também, pois ajudou a compreender um pouco mais sobre o contexto histórico na região. A não permissão de gravar nossa conversa por parte de seu Avilon é compreensível, em parte por ter sido nosso primeiro contato, de não nos conhecermos, por ter eu chegado sozinho me apresentando; talvez sua desconfiança deve-se ao seu trabalho de comerciante, embora essa desconfiança tenha reverberado na minha própria desconfiança em relação a ele, como agente explorador dos trabalhadores. Seria este o receio dele? Qual será que foi a visão dele em relação ao meu papel ali? Um defensor das pessoas com quem ele trabalha/explora? Interessante foi que no dia eu usava uma camiseta do Governo Federal sobre a Política Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (que eu ganhei num evento em Brasília), e que seu Avilon reparou e até perguntou o que era; tive que explicar. ~ Depois dessa tentativa de contextualizar a entrevista, das minhas impressões, vamos agora direto ao assunto da nossa pauta castanheira com seu Avilon e seu Francisco. Ressalta-se antes de tudo, a impossibilidade de não ter tido a permissão de gravar

a

conversa, principalmente para

poder

pegar

o

vocabulário próprio de seu Francisco contando sobre sua vida; vocabulário de caboclo; palavras que não se encontram nos dicionários. Minha pergunta a seu Avilon, abrindo a nossa conversa, foi direta, objetiva e aberta: “Seu Avilon, qual é o esquema da castanha aqui em Tapauá?” Vamos à resposta:

226

- A safra da castanha é de janeiro a maio, no período do inverno. Em 2011 ele comprou de 800 a 1000 “medidas”. A medida é equivalente ao hecto e corresponde a uma saca de castanha (com casca) com cinco latas, o que equivale a 100 litros (cada lata de castanha tem 20 litros). Seu Avilon diz que em Tapauá a medida está custando entre R$ 100 e R$ 110. Seu Francisco lembrou que antigamente as medidas eram calculadas em caixas (que eles chamam de “barrica”) de sabão ou de querosene. - A maior parte da castanha produzida na região é exportada pra Manaus ou Belém onde estão instaladas as fabricas de beneficiamento. Hoje a maior parte da produção vai pra Belém e de lá pra São Paulo. Manaus tinha duas fábricas, a IBESABA e a SIEX, das quais só resta a ultima (?). Eles comentaram sobre um grande comprador de castanha no Purus, o Dário Pantoja, que é de Belém, e que entra no Purus com uma grande embarcação comprando castanha dos comerciantes e atravessadores – também encomenda castanha que é levada nos barcos-recreios. Diz ele que o seu “patrão” tem fabrica de beneficiamento em Belém. Diz que no Pará tem muita usina (citou Oriximiná e Óbidos). Seu patrão vende por R$ 450 uma caixa com 30 quilos de castanha beneficiada. Explicou por cima como é o processo de beneficiamento da castanha nas fábricas: descasca - lava- leva pra estufa – leva ao forno. Ele ressaltou que a castanha é torrada para inviabilizar seu plantio; disse que a Malásia hoje é a maior produtora mundial de castanha, levada do Brasil, assim como fizeram com a seringueira (?). Em Lábrea há uma cooperativa e uma grande fábrica de beneficiamento de castanha. Parece que a prefeitura compra a castanha com dinheiro do Governo Federal. Perguntei a eles se não seria legal uma fabrica em Tapauá, claro que sim, ele confirmou que; e disse que o Eduardo Braga até chegou a prometer ao prefeito, mas ficou só na promessa. - Seu Avilon também falou que no rio Ipixuna antigamente se produzia muita castanha. Da boca do rio até a metade era pertencente a um proprietário – Rissa dos Santos, o “Turco” – e da metade do rio pra cima era de um tal Mario Martim. Essa é uma informação importante e que gera algumas dúvidas: resta checar a sua veracidade e ver se eram proprietários mesmo ou se tinham o monopólio do comércio (já que um deles era Turco!). De toda forma, sugere que o esquema da castanha segue o mesmo sistema da borracha, a relação entre proprietários, donos do meio de produção, neste caso, a terra, e de outro

lado,

trabalhadores

(seringueiros/castanheiros).

Mas



dois

proprietários? Seu Avilon cita um livro que conta a historia de Tapauá e que lá tem uma foto que ilustra embarcações comprando castanha em frente ao

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terminal portuário. Diz ele, que as embarcações iam e vinham de Manaus e Belém, num ir e vir constante. Isso tudo demonstra a importância de se fazer um levantamento histórico detalhado da região, no intuito de compreender a situação atual. - Seu Avilon só compra a castanha produzida no rio Ipixuna, sua “freguesia” é toda de lá. Diferente do Abufari, em que o castanhal pertence a uma empresa (trataremos disso depois), ele compra a castanha dos próprios produtores (donos da terra?), parece que de castanhais pequenos. Ele confirmou – meio desconfiado, reticente - o esquema de aviamento que ele pratica: avia mercadoria, como açúcar, café, bolacha, leite, etc. e instrumentos de trabalho, como botas, terçado, etc. ele não compra do castanhal do Abufari, o maior da região, porque diz lá ser muito caro a castanha por ela ser graúda - “três castanhas dá um palmo”. Mas o fato é que quem manda no comércio da castanha do Abufari é o Louro, muito amigo dele, segundo ele. Ninguém do Abufari faz negócio se não passa pelo Louro (veremos o porquê disso depois). Diz ele que gente da Malásia comprou as terras do Abufari (veremos isso depois, na entrevista com o Louro). Quando perguntei sobre o fato de os castanhais estarem dentro de uma Reserva Biológica, ele disse que o Governo permite a coleta dentro da área, desde que não corte a árvore, mas que também tem castanhal fora da reserva. No Abufari são duas comunidades, São Sebastião e Fazenda. ~ - Pela conversa com seu Francisco, a economia por essas bandas funcionava antigamente com base na castanha e na seringa. A fala do seu Francisco sugere que a seringa não era muito produtiva na região do Médio Purus, pelo menos não tanto quanto no Alto. Pelo menos no tempo dele e do seu pai, as atividades anuais dividiam-se entre a seringa (no verão) e a coleta de castanha (no inverno). Também havia é claro comercialização das “drogas do sertão”: pele, couros, caça e peixe - muito peixe - bichos de casco, peixe-boi e por aí vai. Diz ele que da década de 50 pra frente, quando a seringa ficou cara (?), trocou-se a borracha no verão pela exploração de peixes e caça – além da madeira (?); mas a castanha de toda forma continuou. Fica a pergunta se a exploração de castanha acompanhou o período da borracha logo no início ou se ela veio depois. Quanto tempo tem a economia de castanha na região? Outra questão interessante é quanto à territorialidade que existe no contexto da castanha. Diz ele que o castanhal dele foi herdado do pai no tempo ainda em que sua mãe era viva.

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Segunda entrevista Ontem entrevistei uma figura chave da economia da castanha em Tapauá. Seu Raimundo Rabelo de Oliveira, mais conhecido como “Louro do Abufari”, considerado o principal intermediário da castanha na cidade. O avô do Louro foi um cearense que veio trabalhar no que antes era o Seringal do Abufari (que depois acabou emprestando o nome à Reserva Biológica); uma área enorme com cerca de 180 mil hectares, com muitos castanhais e também com gente morando lá dentro - castanheiros/seringueiros (existem duas comunidades dentro dessa área – “Fazenda” e “São Sebastião” – possivelmente constituída pelas famílias que trabalhavam no seringal). Na década de 1980, o seringal foi vendido para uma empresa madeireira, porém, logo no ano seguinte (1982), o governo cria a Reserva Biológica (Rebio) do Abufari sobrepondo parte do antigo seringal, justamente nas áreas mais ricas em madeira. A empresa passa então a investir em projetos de manejo e reflorestamento e no extrativismo da castanha (os castanhais ficaram de fora da Rebio). Louro começa a trabalhar para a empresa, nos projetos de manejo e com castanha; depois ele acaba sendo contratado para gerenciar a extração de castanha – comprava a castanha e levava pra sede da empresa em Itacoatiara, de onde vendia para Belém, Manaus, etc. Em determinado momento, essa empresa para de funcionar (?); para continuar no Abufari ele passa a gerenciar contratos de arrendamento para a empresa de forma autônoma. Ele arrenda a propriedade da empresa, trabalhando com as famílias que estão lá dentro. O esquema funciona assim: as famílias que ali vivem quebram a castanha e vendem diretamente para o Louro, sendo que 20% do total do rendimento da produção vai para a empresa proprietária da área. O trabalho do Louro é conseguir compradores e financiamento externo para a safra da castanha bancos como o Basa ou empresas compradoras como a família Montran de Belém, Ibesaba e Siex em Manaus, gente de São Paulo, do Acre, enfim, uma ampla rede de contatos com interesse na castanha do Abufari, considerada de boa produção e a maior do Brasil. Hoje ele tem essa autonomia pra vender pra quem quiser. O sistema de trabalho funciona da seguinte maneira: antes da safra a empresa interessada “avia” (adianta) ao Louro certa quantia de dinheiro; este dinheiro vai servir para “aviar” os castanheiros naquilo que for preciso para o trabalho de coleta (combustível, medicação, rabeta, terçado, dinheiro, etc.); esse aviamento será pago pelo castanheiro com a castanha que coletou e o excedente (se houver) poderá receber em dinheiro ou em outro tipo de aviamento. Cerca de 100 famílias que vivem nas duas

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comunidades (600 pessoas em média) trabalham com o Louro, segundo ele, quase todos são seus parentes. Há um contrato meio informal que permite às famílias continuar morando na área; elas ocupam o espaço impedindo invasões e ao mesmo tempo cuidam da terra e da produção. Provavelmente existem restrições de uso; funciona assim como uma espécie de reserva particular produtiva. O Louro possui certo carisma na cidade, talvez por sua importância como provedor de muitas famílias. As relações dele com essas famílias não são apenas comerciais; foi difícil encontrá-lo com tempo livre para conversar, sempre correndo de lá pra cá. Quando aparece um problema nas comunidades é sempre a ele que se busca primeiro. Na cidade todos o conhecem.

Sem querer chegar a alguma conclusão, é possível levantar algumas questões a partir dessas entrevistas – além das que foram levantadas anteriormente - que poderão ser investigadas em trabalhos futuros. A primeira questão que chama a atenção é a respeito da concentração fundiária em torno dos castanhais. Ao que parece os maiores e mais produtivos castanhais estão dentro de grandes propriedades e pertencem a poucos proprietários. Isto implica que o trabalho com a castanha na região deve

ocorrer

predominantemente

em

forma

de

parceria

ou

de

arrendamento, constituído por uma diferenciação entre o dono terra e dos meios de produção (com pouca ou nenhuma relação com a terra), e aqueles que vendem sua força de trabalho (os castanheiros), mas que vivem e sobrevivem na/da terra. Isso fica muito claro na segunda entrevista quando se verifica que o proprietário da terra é uma pessoa jurídica que não possui vínculo com o município e que detém um território. Seria interessante, nesse sentido, tentar entender, a partir de um levantamento histórico, como se deu o processo de ocupação e de estruturação fundiária no município, investigando como o domínio dos castanhais pode estar relacionado com poderes políticos (locais, regionais e nacionais) e econômicos. Essa questão fundiária ou territorial de domínio em torno dos castanhais pode ser importante para entender como se dão as relações sociais não apenas entre castanheiros e proprietários, mas também entre os indígenas, uma vez que seus territórios são influenciados e estão envolvidos por esse sistema econômico. Não é a toa que no discurso dos

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Paumari, os

castanhais

e

os

lagos

– chamados

genericamente

de

“produção” – são considerados fatores determinantes no processo de demarcação e delimitação de suas terras. Outra questão associada a essa primeira é a permanência do sistema de aviamento, fenômeno de longa data na economia extrativista da região e que levanta muitas discussões a respeito das relações entre “patrão” (comerciante, regatão) e “freguês” (o extrativista que vende ou troca o produto). O TEMPO NAS ALDEIAS A sensação de estar dentro de uma terra indígena no coração da floresta amazônica é como viver em outra dimensão de tempo e espaço. Foram dezesseis dias de convívio, morando e participando das atividades diárias com os Paumari. Nesse tempo curto, creio pelo menos ter tido uma ideia de como é o dia a dia de um índio Paumari em tempos de invernada e de águas. Os Paumari se mostraram um povo receptivo e acolhedor. Nestes dias, visitamos e registramos castanhais e como é feita a quebra de castanha; acompanhei uma viagem à Vila da Foz com os Paumari com o intuito de vender castanha - e por tabela verificar como se dão as relações comerciais com os brancos; tive oportunidade de acompanhar uma caçada de caititu no Abaquadi e uma “pesca de mergulho de tracajá” no lago Capanã; passear nos roçados de terra firme; entre outras coisas, como pescar, jogar bola, tomar banho de rio, aprender a andar ou “flutuar” de canoa, dar meu primeiro tiro de espingarda - na tentativa meio incerta de acertar um bando de marrecos em noite de lua... A Relação com os Paumari Os Paumari são um dos grupos étnicos que compõem hoje a rica paisagem etnográfica do Médio Purus (junto com os Deni, Apurinã, Jamamadi, Jarawara, Suruahá, Himerimã e Banawá). Habitantes ancestrais de afluentes do Purus (rio Ituxi, Sepatini e Tapauá), os Paumari são um dos únicos povos que conseguiram sobreviver sem confrontos armados nos dois “ciclos da borracha” que devassaram o Amazonas em meados dos séculos XIX e XX. Diferentemente de outras etnias, acabaram se incorporando

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rapidamente ao sistema social e econômico sobreposto, optando pela manutenção de relações pacíficas (e submissas) ao invés da guerra ou da fuga. 45 Relatos de viajantes do final do século XIX já os descrevem como pacíficos e com boas relações comerciais, indicando que já estavam incorporados ao sistema econômico dominante da borracha, entrando em um acelerado processo de dependência. Essas reações e relações históricas dos Paumari, submetendo-se e incorporando-se rapidamente à economia extrativista, talvez explique o estereótipo do grupo hoje tido como “povo manso”, “aculturado” ou “civilizado”, a ponto de eu já chegar a ouvir na cidade frases do tipo “Paumari não é índio”. Talvez pelo curto tempo de permanência com os indígenas, tenha sido quase impossível identificar diferenças com a sociedade envolvente. Em geral, a arquitetura e a disposição das casas seguem o modelo regional (casas de madeira, cobertas de palha ou telha de amianto); o cardápio alimentar é praticamente o mesmo (mandioca, peixe, caça, etc.); os Paumari também consomem bens domésticos e industrializados (fogão, TV, panelas, etc.); verifica-se o mesmo padrão na construção das canoas ou rabetas e o uso de motores e por aí vai. Mas talvez o que mais aproxime os Paumari coma sociedade envolvente seja a questão da língua. Em todas as aldeias, sem exceção, as crianças, os jovens e os adultos falam o português perfeitamente num sotaque bem ao estilo regional. São poucos os que dominam a língua Paumari (alguns adultos e os mais velhos) e as crianças são educadas no dia a dia ouvindo o português. Falar Paumari é exceção e não regra. Portanto, não houve “choque cultural” na minha relação com os Paumari. Em poucos dias já me sentia “em casa”, com condições de entender e

45

APARÍCIO, Miguel. (2011). Panorama contemporâneo do Purus Indígena. In: SANTOS,

Gilton Mendes (org.). Álbum Purus. Manaus: EDUA, p. 113-131.

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participar das conversas e ações do dia a dia Paumari com certa desenvoltura. 46 Sempre busquei adotar uma postura de igual pra igual com eles e elas, “entrevistando” e também sendo “entrevistado”, colocando minhas opiniões e pontos de vista, como faria com qualquer outra pessoa mais próxima; ajudando nas atividades domésticas como se estivesse na casa da minha família; o que não quer dizer que não tenha presenciado situações reveladoras de contraste cultural, ou de estar vivenciando experiências novas a cada dia. O fato de não ter aquela pressão em coletar dados e informações específicas ajudou para que eu me sentisse mais a vontade. Na verdade, eu estava ali com a finalidade sim de coletar informações, porém, a ideia era deixar que os dados surgissem a partir do contexto vivenciado, de uma “escuta atenta” de “participação observante”. De fato, me sentia ali um privilegiado “turista aprendiz”, como Mario de Andrade se reportava em sua viagem à Amazônia. Atividades produtivas Pesca Uma vez que o peixe e a farinha são os principais alimentos dos Paumari – peixe assado e cozido com farinha, foi o que mais comemos no campo -, a pesca é uma atividade permanente e diária na vida do índio Paumari. Pesca-se praticamente todos os dias - como quem vai a um mercado ou a uma feira comprar alimentos. Na maioria das vezes são os homens que pescam, mas as mulheres também saem para pescar, geralmente quando o marido ou os irmãos estão ocupados em outra atividade, como a quebra da castanha por exemplo. As crianças e os jovens geralmente acompanham os pais e quando preciso saem para pescar sozinho - ou em dupla - o alimento do dia. Quando por algum motivo não

46

Embora o português tenha facilitado a comunicação com os Paumari, por outro lado, a

minha total ignorância da língua nativa e seu uso não corrente, não permitiram que eu adentrasse em aspectos mais profundos do conhecimento e da visão de mundo Paumari, nas suas relações sociais e na relação com os elementos constituintes dos ecossistemas em que estão inseridos.

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tem peixe ou carne, satisfaz-se a fome só com farinha, bolacha e frutas como banana, açaí, pupunha, etc. Mesmo no inverno - quando as águas dos rios se espraiam formando um só corpo d’água com os lagos, permitindo que os peixes se espalhem por amplas áreas dificultando a pesca - peixe nunca falta na rede ou na linha. A rede ou malhadeira (de náilon) é o principal instrumento de pesca, mas também se pesca com vara e anzol. Os Paumari sabem onde jogar sua rede ou como atrair o peixe ao anzol. A pesca (no inverno) é feita dentro dos igapós (ou florestas de várzea), em meio às árvores, geralmente próximo de uma margem de terra (quando há), em locais mais rasos, com água parada; amarra-se uma ponta da rede em um tronco e com a canoa em movimento vai jogando a rede na água, formando um tipo de barreira em linha reta, na horizontal ou diagonal, por quinze a vinte metros de distância - dependendo do tamanho da rede ou do espaço disponível no local. A rede pode ficar esticada por algumas horas ou o dia inteiro dependendo da necessidade alimentar, mas sempre tem que ser retirada no mesmo dia; não sendo assim, corre-se o perigo de algum peixe maior – ex. pirarucu – ou de um jacaré furar a rede, ou mesmo, as piranhas devorarem todos os peixes emaranhados. É comum sair com a rede, esticá-la em algum lugar e ir fazer outro tipo de atividade, como por exemplo, caçar, e na volta recolher a malhadeira com os peixes; o resultado sempre é garantido. Na maioria das vezes pesca-se de malhadeira e esta é utilizada sempre quando há muitas bocas para alimentar. A pesca com linha e anzol parece ser mais utilizada quando a necessidade é mais modesta – para a pessoa que pesca ou uma família; em todo caso, sempre existe a possibilidade de compartir o peixe ou a refeição na aldeia. A pesca pode ser feita em qualquer igapó e a isca mais utilizada foi uma espécie de grilo, popularmente conhecido como “esperança”; a pesca de anzol é sempre precedida pela busca da “esperança”, pega com as mãos nas folhas e galhos das árvores; para atrair os peixes na mata, costuma-se bater a vara na água repetidamente por algumas vezes - imitando algum bicho? O sentido auditivo dos índios também é aguçado em meio ao silêncio do lugar; um barulho na água e identifica-se um peixe – cada espécie tem um

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barulho específico? – e vai-se lá jogar a linha. Da única vez que pude acompanhar uma pesca de anzol, durante apenas meia hora pescamos – eu, Nilson e seus dois filhos pequenos – uma meia dúzia de tucunarés atrás de seu flutuante. Tucunaré e piranha são os peixes mais comuns, mas também comemos aruanã, jaraqui, matrinxã entre outras espécies. 47 Logo no segundo dia no campo, tive o privilégio de acompanhar e a incumbência de registrar fotograficamente uma pesca de mergulho de tracajá (Podocnemis unifilis) ao estilo tradicional Paumari. Peço licença mais uma vez para registrar essa pesca/caça de tracajá, tal como está no meu caderno de campo - com alterações: Os Paumari historicamente são reconhecidos por sua forte ligação com o universo aquático. Neste ambiente rico em lagos e rios, cercados por águas, tanto no inverno quanto no verão, eles se aperfeiçoaram ao longo dos séculos na arte da pesca e da caça de peixes, tracajás, tartarugas e peixes-boi. Uma prática tradicional de pesca bastante conhecida e documentada ainda no século XIX por viajantes (...) é a chamada “pesca de tracajá (ou tartaruga) de mergulho”. Esta consiste em pegar o tracajá dentro dos igapós; mergulhando e surpreendendo-o, agarram-no em cima de um toco ou tronco na superfície, enquanto o bicho toma seu banho de sol diário – geralmente entre 12hs e 14hs, na hora do dia em que o sol está mais forte. Hoje a pesca de mergulho é praticada somente por poucos. A maioria dos Paumari prefere a facilidade da pesca com malhadeira do que os riscos em mergulhar no meio de um igapó, que são muitos: cruzar dentro da água com um jacaré, um puraqué (peixe-elétrico) ou um pirarucu, não seria uma coisa das mais agradáveis. ~ O registro fotográfico desta prática foi feito num dia de sol na sua hora mais quente (mais ou menos 13hs), numa mata de igapó a cerca de dez

47

Dentre esses não comemos tambaqui nem pirarucu. Dizem que a região era farta de

tambaqui, mas que devido à sobrepesca no passado hoje é raro encontrá-lo. Já o pirarucu parece ser um peixe voltado à “exportação”, talvez pouco consumido pelos Paumari dado seu alto valor de mercado.

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minutos de motor do flutuante onde mora o Nilson e sua família, no lago Capanã dentro da TI Paumari Manissuã. Neste dia, fomos visitá-los junto com seus pais (seu Luis e D. Laurinda) para pegar uma lona que seria utilizada futuramente por seu Luis para viajar à Tapauá de motor, com o motivo de receber o pagamento da aposentadoria do casal. A visita acabou rendendo o dia inteiro na casa dos nossos anfitriões, já que tivemos ainda que esperar o Nilson e sua mulher voltarem do castanhal (o que levou toda a manhã). Nilson é hoje o agente de saúde da comunidade do Manissuã e se mostrou uma pessoa muita viva e ativa, sempre muito disposto a nos mostrar e ensinar sobre a cultura do seu povo. Neste dia, ao chegarem do castanhal por volta do meio dia, aproveitando a oportunidade da nossa presença em sua casa, ele me convidou para mostrar “como Paumari pega tracajá” - ou “Zé-prego” como eles chamam os machos da espécie. Com o sol a pino – que é a melhor hora, pois é quando eles saem da água e ficam em cima dos tocos - pegamos a pequena canoa Paumari (eu munido da câmera com a incumbência e a honra de registrar essa prática tão antiga) e partimos rumo a um igapó próximo ao seu flutuante; quando chegamos próximo da mata alagada ele desliga o motor, sai da popa e vai à proa. Do motor para o remo. [Silêncio] Só o barulho do impulso da madeira (do remo e da canoa) na água em meio às copas das arvores e dos troncos submersos. Jogo de luzes e sombras conforme entravamos ou saiamos das “clareiras alagadas”, entre folhagens e galhadas. O céu estava num azul limpo e cintilante. A sombra da mata dava o refrescor do sol quente do dia. Olhar atento na câmera. Olhar atento na mata. Algumas frases e palavras soltas por vezes quebravam o silêncio. O menino, filho do Nilson, apesar de novo, se comportou como gente grande, não fazendo galhardes. Qualquer barulho pode espantar o bicho pra dentro d’água. Passados uns dez minutos flutuando na mata, avista-se um casco; longe. Silêncio e expectativa. Mais leveza na remada. Nilson então estaciona a canoa atrás de uma galhada. Detalhe: só ele viu o bicho. Diz para o menino ficar de pronto, esperar aviso, pra quando a hora, remar até o toco, buscá-lo. Ele desembarca sorrateiro como se entrando numa banheira. Pela água vai, chega mais próximo a um tronco, e verifica uma distância calculada

236

para que o oxigênio sustente os pulmões para alcançar a presa submerso. Atrás do tronco dá um sinal de positivo e se prepara para o bote. [Mergulha] Após mais ou menos um minuto o menino ouve um chamado e começa a remar. Desta vez sucesso! O Zé-prego vacila em cima do toco seguro pelas mãos habilidosas do Paumari. Sorriso. Satisfação. Segundos. Pose pra foto. O menino ainda leva uma arranhada afiada do bicho quando tenta pegá-lo pra colocar no “porão” (fundo) da canoa. Parte do almoço agora está garantido. O bicho, nas mãos das mulheres, logo foi para o fogo e virou caldo. A carne cozida tem gosto de frango, eu digo ao experimentá-la. Dona Laurinda brinca rindo dizendo que “o tracajá é a galinha dos Paumari”.

Além do tracajá, os Paumari também se aperfeiçoaram na arte da pesca de tartaruga e do peixe-boi. Porém, não foi possível acompanhar a pesca de nenhum dos dois. As conversas informais indicam, no entanto, que a pesca da tartaruga (maior e mais pesada) difere da do tracajá, uma vez que a tartaruga é capturada no fundo das águas (e não na superfície), com o Paumari mergulhando apanhando-a com as mãos ou usando um tipo de arpão comprido, arpoando-a no fundo das águas. Já a relação com o peixeboi, cuja carne é muito apreciada pelos índios e pela população regional, foi objeto de investigação da minha companheira de pesquisa - a Angélica -, tendo ela a oportunidade de acompanhar um dos mestres nessa arte, seu Evange, que fez a gentileza de levá-la a um local de pesca/caça. Assim sendo, a impressão que ficou durante esses dias nas aldeias, é que boa parte do dia a dia dos Paumari gira em torno do arranjar o de comer: seja um peixe, um tracajá, uma caça, frutos de açaí, etc. (tudo sempre misturado com farinha). Salvo algumas exceções, como a “mixira” do peixe-boi48, não há excedentes alimentares (no caso das proteínas), pois

48

A “mixira” é um termo genérico referente ao processo de conservação tradicional de carne

de caça, a qual é conservada na gordura da própria banha do animal - geralmente em galões ou latões hermeticamente fechados. A mixira mais conhecida é a do peixe-boi, mas pode-se fazer também com caça. Além da mixira também pude observar postas de pirarucu sendo

237

não há como conservá-los durante muitos dias. Mas com isso não quero dizer que o Paumari “pensa com o estomago” ou que “vive pra comer”. Embora o esforço pra arranjar o de comer seja diário a tempo de sobra para outras atividades ou simplesmente para não fazer nada. De toda forma, vale ressaltar que é a partir dessas práticas diárias de subsistência que o conhecimento - sobre a mata, as águas, os bichos, as plantas, os ecossistemas, enfim, sobre o território - é construído e mantido. Caça Como mencionado anteriormente, os Paumari são conhecidos na literatura como “índios aquáticos”, dada a preferência deste povo na exploração dos recursos dos rios e lagos. O que não é de se estranhar, por sempre viverem cercados de águas com fartura de alimentos. No entanto, essa “especialização” aos ambientes aquáticos é uma característica que os distingue dos outros povos do Médio Purus, mais voltados para a exploração de recursos da terra firme. Como disse seu Ademarzinho - um Katukina casado com uma Paumari (filha de seu Luis) – que mora no Manissuã: “cada qual [povo] tem seu sistema”. Em nossa conversa ele fazia questão de ressaltar sua preferência pela terra firme, que a floresta é onde se sente em casa, etc. e que Paumari é bom pra caçar peixe-boi, pescar e pegar tracajá, mas não para caçar. A importância da caça na história do povo Paumari é, portanto, algo que precisaria ser melhor investigado. Minha hipótese é que a caça tenha adquirido mais importância a partir do contato com o branco, quando os Paumari passaram a ter acesso às armas de fogo (espingardas). O fato é que hoje os Paumari caçam com certa regularidade, entretanto,

a

caça

continua

sendo

um

recurso

secundário

quando

comparado à pesca. Geralmente caça-se durante expedições na floresta, principalmente,

durante

as

expedições de

coleta

de

castanha,

que

costumam durar vários dias. Nestes casos, a caça é feita quando algum animal – passível de virar comida - cruza o caminho da pessoa, desde que

salgado, outro método bastante utilizado para conservar não só o pirarucu, mas também carnes de caça.

238

se esteja com uma espingarda à mão. Presenciamos isso no campo quando o Germano e seus filhos chegaram do castanhal com um macaco barrigudo que acabou virando nossa janta (um picadinho de carne frita) aquela noite. Outra situação como essa foi com o Gerson (cunhado do Germano e filho caçula de seu Luis). Ele mais seu sobrinho (Esdrei) foram quebrar castanha e quando montavam acampamento ouviram um bando de queixadas, foram atrás e conseguiram matar um. Como haviam se esquecido de levar sal, resolveram voltar pra casa e a queixada acabou se tornando nossa comida durante dois dias na casa do Germano. Além destas, teve um dia que eu comi uma carne de anta no Manissuã, mas acabei não perguntando de quem era e como havia sido caçada. Somente um dia, no Abacoadi, pude participar de uma expedição de caça que durou algumas horas, e mesmo assim não foi exclusivamente de caça, pois se aproveitou a ocasião para esticar a malhadeira de pesca no caminho. Neste dia, eu, mais João, Isac e Oseas (e os cachorros), fomos atrás de caititus (avistados em dias anteriores) na ilha do Paricá, no lago de mesmo nome, que segundo João, é a sua fazenda ou reserva onde ele “cria seu gado” - isto é, de “caça”. A ilha do Paricá foi um antigo local de ocupação e de roçados, portanto, constitui uma capoeira não muito antiga, com plantas úteis (buritis, castanheiras, etc.) e um tirirical medonho. Não encontramos nem os rastros dos caititus, pois segundo eles, havia ainda “muita terra”, mas seu João, que desceu antes, conseguiu matar um veado jovem com os cachorros. Na volta, tirou-se a malhadeira da água com muitos peixes, levando para a aldeia fartura de carne de caça e de peixe, posteriormente distribuídas entre as famílias da aldeia. Roças A agricultura/horticultura é um componente essencial das atividades produtivas Paumari, ainda que durante nosso período no campo eles não estivessem

trabalhando

na

terra.

Embora

os

Paumari

sejam

mais

conhecidos por sua preferência pela pesca e coleta de quelônios, não há dúvidas de que também são horticultores já de longa data, como atestam as antigas capoeiras, indicadoras de antigos roçados dentro do território. É preciso ressaltar, no entanto, que assim como outras atividades produtivas,

239

como a caça e a coleta de castanha, não sabemos se a horticultura e o consumo de mandioca constituem um costume antigo ou se tem influência da atuação do SPI nas primeiras décadas do século XX e posteriormente dos missionários. Minha impressão é que apesar de muito da cultura Paumari hoje estar imiscuída com elementos da nossa civilização, a roça constitui um dos elementos culturais que permanecem relativamente íntegros, constituindo um tema bem interessante de se pesquisa da cultura Paumari. Nosso período no campo não permitiu que acompanhássemos os trabalhos na roça, pois os Paumari na época do inverno estão envolvidos com a quebra de castanha, sendo que a lida no roçado começa quando aquela acaba, ou seja, no início do verão (junho/julho). Mas mesmo assim, tivemos oportunidade de visitar alguns roçados nas três aldeias que visitamos, permitindo, ao menos, dar uma ideia do que seja uma roça típica indígena amazônica. Seguem algumas observações bem gerais a respeito delas: Verificamos certo padrão na estrutura e no “funcionamento” dos roçados nas três aldeias Paumari visitadas (Manissuã, Abacoadi e Terra Nova). - Em geral, estão localizados no que eles chamam “pé da terra firme”; - O tamanho da roça varia entre um a dois hectares por família; - Em geral estão localizadas próximas das aldeias, ao longo dos igarapés, facilitando assim o acesso por canoa; - São pequenas áreas abertas dentro da floresta, num sistema de corte-e-queima, no qual os troncos são empilhados e queimados e os tocos das árvores mantidos (daí também esse tipo de agricultura ser conhecida como “roça de toco”); - As roças são utilizadas em geral por dois a três anos, depois se abre outra área de floresta ou capoeira, que pode estar contígua ou não à área aberta utilizada, que a partir daí, vai ficar em descanso, podendo voltar a ser utilizada após alguns anos; - Uma família nuclear tem a sua própria roça da qual é responsável por zelar;

240

- Os homens participam do trabalho mais pesado de “limpar” a área isto é, cortar os “paus” mais grossos e atear fogo – e do cultivo; as mulheres podem participar do processo, mas sua responsabilidade é em cuidar das plantas cultivadas; - A mandioca é a grande “protagonista” das culturas plantadas, ocupando cerca de 80 a 90% do espaço cultivado; -

As

outras

espécies

cultivadas

nestes

espaços

agrícolas

são

“coadjuvantes”, mas que não deixam de ser boas para pensar: variedades de abacaxi, ananás, banana, batata doce, cana-de-açúcar, cará, etc. - O tempo de trabalho na roça é durante o verão, quando as raízes maduras são colhidas e começa uma nova safra de produção de farinha; -

O

tempo

de

abrir

uma

nova

roça

é

no

fim

do

verão

(setembro/outubro); - O trabalho despendido para se fazer um roçado é enorme, e parece não ser todos os Paumari que tem essa disposição – algumas famílias preferem comprar farinha dos comerciantes, regatões ou mesmo de outros Paumari. Coleta Afora os produtos cultivados nas roças, há uma série de frutas nativas e outras cultivadas próximas às casas ou às aldeias, que são consumidas diariamente pelos índios. Entre as frutíferas nativas destaca-se o açaí e a bacaba, dos quais se prepara um tipo de caldo ou vinho, freneticamente consumido, misturado com açúcar e farinha. Pudemos participar no Abacoadi de uma “açaizada” que alimentou toda a aldeia. Existe todo um processo em torno do preparo do açaí, desde a sua coleta na mata (tarefa masculina) - na qual as crianças participaram como protagonistas, competindo para mostrar suas agilidades em tirar os frutos em cima das arvores -, até o preparo do vinho pós-coleta, tarefa predominantemente feminina. O consumo do açaí apresentou-se assim como um fator interessante de coesão social entre indivíduos e famílias. Há também a pupunha, que é cozida durante horas, sendo seu consumo acompanhado de café (sempre doce). Das frutas cultivadas, a goiaba e o taperebá (ou cajá), foram as mais consumidas nas aldeias. A goiaba (de vários tipos) em

241

especial é muito apreciada e era constantemente consumida pelas crianças. Há sem dúvida muitas outras frutas, nativas ou cultivadas, que não vimos, registramos ou experimentamos porque não estavam na época ou porque não houve oportunidade.

A Castanha “Comercialização das relações” Parece impossível falar da castanha entre os Paumari sem entrar na questão das suas relações mercantis com os jará. Porque antes de tudo a castanha pertence à categoria de “produto” entre os Paumari – que implica ser mais do que um produto de coleta. Por entrar no rol classificatório de “produto” a castanha funciona mais como uma moeda de troca do que como alimento. De fato, mesmo sabendo que a castanha seja apreciada e consumida como alimento, foi raro ver um Paumari comer uma castanha ou tirar leite de castanha, salvo quando nós mesmos tomamos a iniciativa de comprar a castanha deles. Alguns relatos de Paumari mais velhos a respeito de antigos castanhais apontam, no entanto, que a castanha era apreciada como recurso alimentar antes do contato (em que grau não sabemos), e que após o surgimento de uma demanda de mercado tenha se tornado um “produto”. Para entender a relação dos Paumari com a castanha temos que adentrar neste universo de dádivas e contradádivas de bens e serviços – possivelmente mais antigas do que podemos supor - que no caso das relações com os brancos se institucionalizam no sistema de aviamento. Como

aponta

a

antropóloga

Oiara

Bonilla,

o

aviamento

marcou

profundamente a vida econômica e social Paumari, a ponto de ter sido incorporado e estar presente nos rituais e na cosmologia do grupo. A autora ressalta a importância do comércio para os Paumari, ou o que ela chama de “comercialização das relações”, isto é, a apreensão e inversão no plano simbólico das relações sociais ou comerciais em relações de predação. Sua

242

hipótese consiste em pensar que a relação comercial é a Relação por excelência, para os Paumari. 49 Sem querer me aprofundar nessa questão levantada pela autora, o fato é que no campo foi interessante verificar a “comercialização das relações”. Os Paumari estão sempre trocando, se endividando, negociando, comprando, etc. seja conosco, seja com os patrões, seja entre eles próprios.

Isso

faz

com

que

bens,

serviços,

ideias,

etc.

circulem

continuamente entre as aldeias e as famílias. E a castanha, produto com alto valor no “mercado”, contribui de certa forma para que essas relações sejam estabelecidas, permitindo que os Paumari tenham acesso a bens e mercadorias que, ao entrarem nas aldeias, inserem-se em uma rede de trocas, dádivas e contradádivas, fazendo girar a roda viva social Paumari. As relações comerciais Os Paumari “vendem” sua castanha para os regatões, comerciantes da Vila da Foz e da cidade de Tapauá. Os regatões, durante todo período de safra, sobem e descem o rio Tapauá e Cuniuá, visitando aldeias e comunidades ribeirinhas, atrás de castanha pra trocar ou comprar - em viagens que podem levar semanas. A relação Paumari com o regatão é contraditória. São vistos como exploradores, que inflacionam o preço das mercadorias ou contabilizam os preços de forma a levar vantagem aproveitando-se da “ingenuidade” dos índios -, mas sempre tratados como afins e conhecidos em detalhes - aquele é mais “solidário” nas trocas; aquele cobra mais caro, aquele vende mais barato; etc. Por outro lado, são eles de fato os agentes sociais externos que mais próximos estão e mais frequentemente se relacionam com os índios, conhecendo-os também pelo nome, pelo parentesco, pelo caráter, etc. Essa relação de trocas - face a face - é construída na base do aviamento, que é uma variante linguística de adiantamento, ou seja, o regatão ou o comerciante adianta ou avia mercadorias, ferramentas, ranchos, etc. entrando assim em um ciclo de prestações e contraprestações

49

Ver BONILLA, OIARA. (2005). O bom patrão e o inimigo voraz: predação e comércio na

cosmologia Paumari. Mana, 11(1), 41-66.

243

com o “freguês”, que sempre é paga com algum tipo de produto da floresta – castanha, peixe, tracajá, etc. A lógica é que o “freguês” esteja sempre endividado, que é uma garantia para o “patrão” de que vai adquirir algum produto, pois de outra forma, haveria livre-arbítrio em vender a quem melhor entendesse. Se o certo é que “se a pessoa passa a dever a um regatão, pode esperar que um dia ele vai voltar”, também é certo que mais dia menos dia, um Paumari vai se endividar – seja por razões culturais/simbólicas (Bonilla, 2005), seja por necessidade material. É interessante pensar, como esses laços relacionais entre os Paumari e os regatões, se tornam mais intensos na medida em que aumenta a distância geográfica entre as aldeias e a foz do rio. 50 Foi interessante observar que há diferenças na relação paumari com comerciante regatão e com um comerciante da Foz. 51 Como disse acima, o regatão é aquela pessoa que tem maior afinidade e proximidade com os índios, que pode passar dias em uma aldeia, que conhece todo mundo, etc., portanto, percebe-se um tipo de relação que é motivada não só por interesses

racionais,

mas

também



uma

relação

mais

aberta

à

emotividade. Já com o comerciante que vive na Foz, relativamente distante geográfica e socialmente, predomina uma relação mais “racionalizada”, onde não há muito espaço para brincadeiras e nem muita conversa. - há em alguns, desconfiança de ambos os lados. Há algumas exceções, como no caso de seu Luis e dona Laurinda, que são evangélicos e preferem vender

50

Ver BONILLA, Oiara. (2011). Os Paumari dos rios Tapauá e Cuniuá. In: SANTOS, Gilton

Mendes (org.). Álbum Purus. Manaus: EDUA, p. 206-229. 51

O sistema de trocas com os comerciantes da Foz ocorre no mesmo esquema de

endividamento. O comerciante tem a sua cadernetinha, onde se anota tudo que foi comprado e o valor final do débito correspondente, que será subtraído numa próxima vinda, mas nunca saldado. Percebi no caso do seu Luis, que não sabe ler nem escrever, uma total falta de controle de sua parte nas negociações com a castanha, tendo que confiar em tudo que o comerciante anotava e calculava. Dada a minha presença ali, o comerciante fez os cálculos e as anotações certinhas, mas verifica-se aí a fragilidade e a vulnerabilidade que os Paumari principalmente os mais velhos e analfabetos - estão sujeitos nessas relações.

244

seus produtos aos comerciantes da Foz que também são evangélicos, que também os recebem bem. Neste caso, observei que existe uma relaçãode afinidade maior por conta dessa “irmandade religiosa”. Ações e relações sociais A ideia de aplicar conceitos como o de ação e relação social buscando entrever os sentidos das ações dos indivíduos em torno da castanha, permitiu observar o que faz (os motivos das ações) com que um Paumari vá à floresta coletar castanha. Isso acabou revelando o lado “de dentro” da ponta de uma cadeia produtiva (da castanha), que vai se estender e movimentar outros indivíduos, com outras motivações e sentidos em suas ações, podendo terminar em uma prateleira de supermercado em São Paulo ou em Paris. Como mostra a tabela, são as necessidades básicas do dia a dia que levam um Paumari a quebrar castanha na mata, desde comprar alimento ou rancho, até comprar mercadorias diversas como xampu, calças jeans, munição, etc. Tabela 9 - Motivações que levam os Paumari a quebrar castanha. Fonte: Caderno de campo, 2012.

Saldar dívidas com regatão, comerciante ou com outro Paumari Trocar por rancho e mercadorias - xampu, roupas, munição, espingarda, etc. Comprar combustível - que servirá para ir à Tapauá receber o dinheiro da aposentadoria e visitar o filho que mora na cidade e que está doente Comprar rancho de “resguardo” para a esposa, fraldas e roupas para o nenê que nascerá em breve Pagar serviço de um serrador que vai cortar a madeira necessária para reformar o flutuante Trocar por um porco (doméstico) - que depois virou churrasco de domingo e pretexto para encontro de parentes e afins de diferentes aldeias Comprar motor Honda 5,5 ou um motor a diesel

245

Enfim, as ideias de ação e relação social propostas por Weber, neste caso, permitiram seguir alguns itinerários de desejos e de ações Paumari e perceber que por trás de uma canoa no rio que carrega castanha jaz uma pequena ação social que irá envolver uma pluralidade de outros agentes, com sentidos diversos subjacentes às suas ações. O transporte De acordo com os relatos dos Paumari, a coleta (ou a quebra) de castanha na região ocorre de janeiro a março, sendo o forte da “produção” em fevereiro. É o período da invernada amazônica; o nível dos rios está alto e continuando a subir, inundando matas centenas de metros adentro – formando os igapós, um dos ecossistemas mais fascinantes da Amazônia; rios e lagos se tornam “tudo uma coisa só”, tornando impossível aos olhos leigos distinguir nessa geografia o que é rio e o que é lago. Arrisco-me a falar que se não fosse assim, o extrativismo da castanha entre os Paumari – e em boa parte da bacia amazônica -

se tornaria inviável. Isto porque a

água é um elemento essencial para transportar um produto pesado como a castanha - uma saca de castanha pesa em média 80 quilos - sem precisar mais do que uma canoa com um motor (ou mesmo um remo). O transporte por terra por longas distâncias tornaria inviável a produção, pois não há outro meio de transporte que não seja a canoa ou o barco*. As pequenas canoas Paumari permitem ainda adentrar quilômetros de mata pelos igarapés, acessando os castanhais mais distantes. O ambiente aquático é nesse sentido um fator fundamental para que a castanha quebrada seja transportada facilmente por longas distâncias, diminuindo o tempo de viagem e possibilitando a coleta em locais de difícil acesso. As distâncias A distância geográfica entre os locais de habitação e os castanhais é uma questão interessante de se pensar no que toca aos conceitos Paumari a respeito da castanha. Os Paumari classificam as árvores de castanha em dois tipos: as “de planta” e as “nativas”. As castanhas “de planta” são as árvores plantadas ou cultivadas e que geralmente estão localizadas próximas às aldeias ou ao redor das casas - espaços de transição entre o

246

“doméstico” e o “selvagem”? Já as castanhas “nativas” são as árvores não cultivadas (pelo ser humano), que existem por “si”, que são “dadas” pela floresta,

portanto,

se

incluem

no

domínio

do

“não

domesticado”.

Interessante verificar que as castanhas nativas parecem estar associadas aos castanhais mais distantes das aldeias, locais de difícil acesso, e, portanto, espaços fora do domínio doméstico. São categorias interessantes que levantam questões para futuras investigações como o grau de domesticação (ou de humanização) das castanhas; a influência humana na distribuição dos castanhais; se há diferenças no tipo de relação entre a castanha “de planta” e “nativa”; se essa classificação pode ser parte de um sistema conceitual e de pensamento perpectivista mais amplo; quão “selvagens” são os castanhais nativos; etc. Enfim, perguntas suscitadas por essa experiência no campo que, seja por falta de tempo ou de percepção, não foram tão bem aproveitadas quanto poderiam. As expedições de coleta As áreas mais produtivas de castanha dentro do território Paumari localizam-se longe dos locais de habitação. Uma expedição de coleta de castanha pode levar vários dias dentro da mata (cinco dias ou mais), dependendo da distância, da quantidade de castanha a ser quebrada, da demanda do produto, da quantidade de pessoas, de comida, etc. Como não foi possível acompanhar essas expedições mais longas, minhas observações e registros estão limitados ao que foi possível observar em visitas curtas (de uma manhã) aos castanhais mais próximos, e nas conversas com os índios que iam ou chegavam dos castanhais. Segue um breve relato dessas observações: A quebra da castanha O meio de transporte ao castanhal é a canoa com motor; de furo em furo, entrando e saindo de igapós, chega-se à beira da terra firme; cada castanhal tem os seus caminhos - que no linguajar local designa-se como “varedas” – mais abertos ou mais fechados, cujo trajeto varia de acordo com a distribuição das castanheiras dispersas na mata; a distância entre as castanheiras pode variar, mas não chega a ultrapassar mais de um quilometro, em geral estão relativamente próximas; ao chegar à castanheira, o coletor apanha - com as mãos ou com o terçado - os ouriços (frutos) caídos no chãodentro de um raio

247

que abrange a copa da árvore - que pode chegar a 50 metros ou mais - e vai amontoando-os próximo à base do tronco da castanheira; repete-se o mesmo procedimento até a última castanheira; o número de castanheiras em cada “vareda” varia de acordo com o tamanho destas; na volta, o coletor “quebra” os ouriços amontoados e coloca as castanhas dentro das sacas; para quebrar o ouriço – fruto lenhoso e muito duro (devido à presença de lignina) - é preciso desferir vários golpes com o terçado na parte superior do fruto, como se fosse tirar sua “tampa”, exigindo força, destreza e equilíbrio, para que as sementes que estão dentro não sejam também cortadas; quebra-se a castanha sentado no chão da floresta; após abrir o fruto, pode-se ou retirar as sementes e colocá-las direto numa saca - de fibra de plástico, com capacidade de armazenamento de 100 litros - ou ir amontoando-os abertos até terminar de quebrar todos para então colocar as sementes na saca; os ouriços quebrados – chamados de “quengas” ou “quengos” - vão sendo amontoados ao pé da castanheira, que segundo um informante servem como adubo; no entanto, o acúmulo de água da chuva dentro dos ouriços faz com que estes sirvam como focos de reprodução de carapanãs (há muitos em volta das castanheiras), abrigo para formigas, diversos tipos de insetos e mesmo para outros bichos como cobras; depois de retiradas todas as castanhas dentro dos ouriços, o coletor coloca a saca nas costas e

segue

até

a próxima castanheira onde

se

repete o

mesmo

procedimento.* A castanha coletada e ensacada é então levada até a beira do igarapé e embarcada na canoa; um trabalho que exige muita força e resistência - carregar uma saca de 80 kg nas costas do “centro” até a “beira” não é uma tarefa pra qualquer um. A produção é transportada à casa do coletor onde ficará armazenada até ser vendida. O único tratamento que é feito antes da venda é a lavagem das castanhas, mergulhando-as no rio em cestas de palha vazadas. O grosso da produção é transportado e negociado na Foz (quando há combustível), onde os preços das mercadorias são mais em conta do que o cobrado pelos regatões. O que se leva O material levado ao castanhal é simples. Vale ressaltar que muitas dessas coisas são itens que fazem parte do pacote de “aviamento” do patrão ou do comerciante, um tipo de contrato informal que dá garantia de que o produto será vendido a ele. 1. Terçado - instrumento fundamental para abrir trilhas, “roçar” os locais de coleta, extrair fibras e cipós e principalmente quebrar o ouriço da castanha; 2. Camisa de manga comprida, calças - para se proteger dos mosquitos e de outros insetos durante a quebra - ou bermuda;

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3. Botas ou calçados (na falta de botas) - segurança para andar na mata e contra picada de cobra -, mas não são todos que tem bota ou calçado. 4. Rede, mosquiteiro e lona (quando há); 5. Espingarda e munição (utilizado para caçar e se defender de alguma onça); 6. Sacos de fibra de plásticode cem litros ou mais, onde se armazena a castanha; 7. Combustível; etc. Alimento O alimento levado é o básico: farinha de mandioca, sal e rancho, como café, leite em pó e bolacha; quando há, leva-se “mixira” de peixe-boi ou de caça. O restante arranja-se no próprio local: o peixe pescado nos igarapés, o fruto coletado na mata e uma caça quando aparece algum animal.

Regime de trabalho O trabalho com a quebra da castanha é familiar e predominantemente feito pelos homens. Os filhos acompanham os pais desde a infância e constituem uma força de trabalho fundamental, de forma que quando chega o tempo da castanha as aulas nas aldeias são suspensas até o fim da safra. Os jovens quando se casam - formando um novo núcleo familiar – passam a coletar para si próprios, garantindo um ponto de castanha próprio e desvinculando-se do trabalho com o pai – esse é um dado inferido que precisaria ser checado. As mulheres também quebram, só que mais comumente nos castanhais próximos às aldeias. Uso e territorialidade dos castanhais A forma como se dá o acesso aos castanhais dentro do território Paumari é uma questão interessante que a princípio parece simples, mas que trás muito pano pra manga. A questão pode ser colocada nos seguintes termos: dentro das TIs Paumari, os castanhais e as castanhas são de usufruto comum, porém o uso dos castanhais é regulado e/ou negociado entre os grupos familiares. De que forma se dão essas negociações, a que interesses e motivações obedecem, são questões que podem ser levantadas para iniciar o diálogo e abrir caminho para futuras investigações. Observase que a forma de acesso ao castanhal caracteriza-se pelo uso coletivo ou privado.

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No primeiro caso, observado no Abacoadi, as famílias da aldeia se reúnem no tempo da castanha e fazem investidas coletivas aos castanhais, onde cada qual “quebra o que pode ou aquilo que dá”. Disse-me um informante que quem convoca essas primeiras incursões é o chefe/cacique da aldeia – no caso, seu Evangelista. Depois dessas primeiras investidas, onde se coleta o máximo de castanha possível, cada família tem livre acesso para voltar e coletar as castanhas que continuam a cair - mas que já não são muitas. No entanto, ainda que haja essas áreas de uso comum no Abacoadi, parecem existir outras áreas de castanhais de domínio das famílias mais proeminentes da aldeia- uma informação que precisaria ser checada. Nos casos em que o acesso é “privado”, como no Manissuã, a coisa fica um pouco mais complicada. Aqui os castanhais são divididos em pontos por família. Cada ponto é composto de uma “vareda” – caminhos ou trilhas na mata - com uma determinada quantidade de castanheiras (esquema que remete às chamadas estradas ou colocações nos seringais), no qual uma família tem direito de usar e fica responsável em zelar por ela. Um castanhal pode ter um ou mais pontos dependendo do seu tamanho. É interessante observar que os maiores castanhais (que podem chegar a ter mais de 400 castanhas) estão localizados na TI do Lago Manissuã. 52 Segundo o relato de seu Luis, logo após a terra ser demarcada foi feita uma reunião para dividir os pontos entre as famílias interessadas em trabalhar com castanha. Não compreendi muito bem quais foram os critérios de divisão utilizados, mas seu Luis parece ter tido um papel importante nesse processo, por ter sido ele o responsável em dividir os pontos por família – haja vista, ser ele uma liderança importante dentro das aldeias. Contudo, existem divergências no Manissuã entre as famílias que

52

Os principais castanhais da TI Paumari do Lago Manissuã, com os respectivos chefes de

família responsáveis pela quebra de castanha na área, são: Capanã – Boró, Davi, Germano e Nilson; Manissuã – Ademarzinho, Davi, Dário, Germano e Gerson; Peruano – seu Luis e família; Assinharim – seu Luis e família. Todavia, não posso precisar quem são as pessoas que realmente usam cada castanhal – isso acabou não ficando muito claro no trabalho de campo –; possivelmente essa lista poderia se estender mais e incluir a quantidade média de castanha quebrada em cada local.

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trabalham com a castanha, que alegam uma divisão desigual, de que seu Luis se apossou dos castanhais maiores e mais produtivos - que a princípio são áreas coletivas e de usufruto da comunidade –, sobre os quais se alega no direito de receber parte da castanha quebrada por qualquer outra pessoa. Além disso, dizem que o cacique se apropriou dessas áreas mais distantes mesmo sem estar em condições físicas de quebrar a castanha, quando poderia abrir mão delas para aqueles que estejam precisando mais. O fato é que, por conta dessas e outras questões, as relações entre os Paumari em torno dos castanhais no Manissuã são mais tensas quando comparadas com o sistema de trabalho no Abacoadi. O uso “privado” ou coletivo dos castanhais não é nenhuma novidade quando comparados aos sistemas de acesso e uso dos castanhais em âmbito regional. Mas chama atenção essa questão do domínio individual de um castanhal dentro de uma terra indígena, onde a princípio os recursos são de usufruto da comunidade. Por isso a necessidade de se colocar aspas no “privado”, porque neste caso estamos tratando de um sistema de territorialidade (domínio e controle de um recurso) regulado por relações de poder e/ou de parentesco regidas dentro de uma lógica, que se aplicarmos os conceitos de Weber, misturam tanto interesses racionais e emotivos, quanto os que são dados pela tradição. Verificamos relações de trabalho que refletem as de âmbito regional, como por exemplo, casos de “parceria” ou de “meia” - em que parte da castanha quebrada fica nas mãos do “dono” do ponto – mas que quando regidas por uma lógica de parentesco ou de compadrio entre os núcleos familiares (genro e sogro, pai e filho, etc.), podem nem sempre funcionar de maneira maniqueísta. No vocabulário Paumari, castanhal é sinônimo de “produção” – assim como os lagos de pirarucu -, e no discurso e ações deles aparecem como um dos principais critérios a serem considerados quando se trata de fiscalização e definição dos limites do território oficialmente demarcado. É importante tentar entender quais são esses critérios que fazem com que se assuma um castanhal como sendo de domínio Paumari. Tive a oportunidade de acompanhar seu Luis num castanhal fora dos limites da TI - uma “vareda” pequena com apenas dezessete castanheiras - que segundo ele, era tudo “planta de parente” e por isso se via no “direito legitimado” de

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quebrar castanha lá dentro, mesmo estando fora do território demarcado e mesmo sabendo que a área pertence ou também é utilizada pelos brancos. Verificamos aí uma ação social territorialista motivada por interesses dados pela tradição (com base num critério ecológico), mas que também apresentam razões práticas (racionais ou emotivas), por ser uma área próxima e acessível para uma pessoa de idade mais avançada, permitindo que ele quebre sua castanha de forma mais independente. 53 Mesmo tendo obtido permissão da FUNAI para coletar, foi interessante observar a postura de seu Luis neste “espaço”. Durante a nossa permanência lá dentro – havia um clima de enfrentamento por parte dele e de certa tensão no ar, como se estivéssemos sendo vigiados por pessoas no gratas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os resultados e a discussão apresentados neste relatório são bem preliminares. importante,

Abrange tendo

informações

em

vista

nossos

sobre

aquilo

objetivos,

que que

eu

considerei

merecem

maior

profundidade de análise e de diálogo com a teoria – especialmente na questão da castanha. Nesse sentido, creio ter sido este um primeiro passo para um futuro artigo. Pretendo

ainda

complementar

este

relatório

com

um

ensaio

fotográfico, onde serão apresentadas as fotos da viagem junto com algumas reflexões suscitadas pelas imagens.

53

Seu Luiz diz que não tem mais condições físicas de acompanhar o ritmo de trabalho nos

grandes castanhais - os pontos pertencentes a ele estão sendo quebrados pelos filhos e genros -, daí ele ter solicitado à FUNAI quebrar castanha nesta área mais próxima de onde mora, porém fora dos limites da TI. A FUNAI acatou “direito legitimada”, desde que fosse só para coletar a castanha e não para habitar - morar só dentro do território demarcado.

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