Relatos de Uma Juventude Assídua

June 4, 2017 | Autor: Ciceli Gravito | Categoria: Graphic Design, Artists’ Books
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Descrição do Produto

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Relatos de uma juventude assidua um livro de artista abordado a partir do design gráfico

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS BACHARELADO EM DESIGN GRÁFICO CENTRO DE ARTES

Ciceli Gravito de Carvalho Gomes

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Relatos de uma juventude assidua um livro de artista abordado a partir do design gráfico

Pelotas 2015

Ciceli Gravito de Carvalho Gomes

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Relatos de uma juventude assidua um livro de artista abordado a partir do design gráfico

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Design Gráfico pelo Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas Orientadora: Profa. Me. Thais Cristina Martino Sehn Coorientadora: Profa. Me. Vivian Herzog

Pelotas 2015

Banca Examinadora

Profa. Dra. Mônica Lima de Faria Profa. Me. Helene Sacco Orientadora: Profa. Me.Thais Cristina Martino Sehn Coorientadora: Profa. Me. Vivian Herzog

Pelotas, 2015

“Agora me vejo de fora Caminho e abandono a memória E saio num passo corrido No peito um solfejo contido E tudo tá mais colorido O foco tá bem mais preciso Agora eu vejo o que sinto E tudo faz bem mais sentido” Gui Amabis

Agradecimentos

À Thaís e à Vivian por todo o suporte e paciência nesse (realmente longo) caminho; Aos amigos por segurarem minha onda e me ajudaram a estar (e permanecer) aqui desde-sempre (em especial e com muito amor - à Brunilis, Biti e Zzi) e Aos meus pais (minha bibliomãe e meu monstro), o tempo todo, em todas as áreas e por serem os seres mais admiráveis dessa vida.

Resumo Este trabalho tem como objetivo refletir sobre um livro de artista a partir do olhar de um designer gráfico. O início se deu a com a produção do livro de artista “Relatos de uma juventude assídua” e a partir de tal produção, se desenrolou o embasamento teórico, conforme indicado pela metodologia das poéticas visuais. Ao longo do trabalho são cruzadas prática e teoria, desenvolvendo os seguintes capítulos, que surgiram a partir de questões levantadas pela produção do livro: Livro de artista, Ilustração/desenho e Texto e imagem. Em cada capítulo são abordados os momentos práticos e retomados os pontos do desenvolvimento do livro que se relacionam à cada teoria.

Palavras-chave: livro de artista, livro ilustrado, design gráfico

Abstract This paper aims to approach artist’s books from the perspective of a graphic designer. To do so, an artist’s book was created: “Relatos de uma juventude assidua” (“Reports from an assiduous youth”). It was then examined under a theoretical frame, as indicated in the methodology of visual poetics. Throughout the study, practice and theory come together, composing the chapters which have originated in the questions that arose during the production of the artist’s book: Artist’s books, Illustration/drawing and Text and image. Each chapter examines the practical aspects and stages of creating the book as well as the theoretical ideas which help comprehending them. Keywords: artist’s book, illustrated book, graphic design

Lista De Figuras Figura 1: Primeiro e segundo projetos do livro.....................................................................................................31 Figura 2: Primeiro e segundo projetos do livro.....................................................................................................32 Figura 3: Grid do primeiro e segundo projetos do livro........................................................................................34 Figura 4: Páginas internas preta e vermelha........................................................................................................35 Figura 5: Página final do livro................................................................................................................................36 Figura 6 Famílias tipográficas utilizadas no segundo projeto de livro..................................................................36 Figura 7: Fotografia da capa do livro....................................................................................................................37 Figura 8: As quatro imagens nas quais os corpos estão representados.............................................................44 Figura 9: As quatro imagens nas quais a aquarela é utilizada.............................................................................45 Figura 10: As quatro imagens nas quais são utilizados os traços vermelhos......................................................46 Figura 11 Ilustração e texto do livro que são apresentados na Epígrafe Epígrafe ..............................................47 Figura 12: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Todos Cigarros”..................................................56 Figura 13: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Solitude”.............................................................58 Figura 14: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Banho de chuva”................................................62 Figura 15: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Uma hora ao entardecer”..................................64 Figura 16: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Meias-Verdades”...............................................68 Figura 17: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Coxas-Retalhos”.................................................72 Figura 18: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Pino de segurança”............................................76 Figura 19: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Mecanismos de proteção”.................................78 Figura 20: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Mecanismos de proteção”.................................80

Sumário 1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 19 2 LIVRO DE ARTISTA.................................................................................................................. 25 2.1 Expressos.................................................................................................................... 26 2.2 Relatos transparentes................................................................................................. 30 3 ILUSTRAÇÃO/DESENHO......................................................................................................... 41 3.1 Expressos.................................................................................................................... 42 3.2 Relatos transparentes................................................................................................. 43 4 IMAGEM E TEXTO................................................................................................................... 49 4.1 Expressos.................................................................................................................... 50 4.1.1 Função do texto.............................................................................................. 51 4.1.2 Aspectos narrativos....................................................................................... 52 4.1.3 As respectivas funções de texto e imagem................................................... 53 4.2 Relatos transparentes................................................................................................. 55 4.2.1. Epígrafe......................................................................................................... 57 4.2.2 Todos os cigarros........................................................................................... 59 4.2.3 Solitude........................................................................................................... 63 4.2.4 Banho de chuva.............................................................................................. 65 4.2.5 Uma hora ao entardecer............................................................................... 69 4.2.6 Meias-verdades............................................................................................. 73 4.2.7 Coxa-retalhos................................................................................................. 77 4.2.8 Pino de segurança.......................................................................................... 79 4.2.9 Mecanismos de proteção............................................................................... 81 4.2.10 Sobre todas as análises............................................................................... 83 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................... 85 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................................. 87

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1 INTRODUÇÃO Já existiam os textos. São nove aconchegados entre si e reservados de setenta e quatro. São nove que borbulharam no corpo e questionaram sua existência como textos-só.

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Este projeto surgiu no momento em que consegui discernir o real dos “tons-de-cinza”, quando o período aparenteinfinito de depressão conseguiu ser percebido na terceira pessoa, ou seja, quando consegui me perceber e perceber aquele tempo de maneira distante, fora da depressão. Esse momento oportuno coincidiu com a necessidade de realizar o trabalho de conclusão de curso que, como o nome diz, também é um fechamento de um ciclo. Por esse motivo escolhi justamente como projeto prático transformar em livro estes “relatos”, pois eles também têm o intuito de fechar um ciclo: o de dor-não-palpável e de intenções-de-fim-antes-da-hora. Optei por desenvolver este texto na primeira pessoa do singular, porque nele reflito sobre um projeto meu (realizado por mim e que apresenta um momento de minha vida). Durante três anos nos quais as palavras eram meu único lugar seguro e a depressão era minha realidade, escrevi sessenta e seis textos, a partir desse grupo selecionei alguns para compor projeto prático. Aqui discorro sobre minha prática e sobre conceitos e questões relacionadas a ela. Os textos que utilizei para produzir meu livro de artista para a prática deste trabalho, o “Relatos de uma juventude assídua”, representam para mim, aquele tempo. Digo isso, pois os tive como ponto inicial da pesquisa, não só pelo que retratam, mas também pela possibilidade de “fechar os ciclos” utilizando algo que me interessa, pois sempre gostei de escrever. Meu primeiro desejo neste processo foi o de dar unidade a meus escritos. A questão é que não queria fazer apenas um livro com textos, queria acrescentar algo visualmente e que agregasse algum significado. Pensando nesse encerramento de unir coisas que gosto, decidi que, além do “verbal”, utilizaria imagens.

Para mim, a opção mais coerente de imagem era o desenho, por me dar mais alternativas de manipulaçõessensíveis, por permitir passar para o papel de maneira mais direta o que eu sentia ao reler os textos. Tomo por manipulações-sensíveis as possibilidades de variação do traço, da criação de texturas, de erro-que-não-é, ou seja, o traço ou a mancha que aconteceu ao acaso, e mesmo apagado, ficou ali marcado, é a marca que machuca o papel e fica como vestígio. A união dessas possibilidades atinge a percepção e causa uma sensação e, é, justamente, em meu contato incondicional com tais possibilidades que se encontra a passagem mais direta da minha sensação para o papel. Além desses pontos, percebi que a possibilidade de me inserir no projeto sendo um livro de artista, também me permitiria maior liberdade expressiva e autoral para retratar meus sentimentos durante um período específico da minha vida. Segundo Paulo Silveira “[...] o livro de artista seria uma obra em que as expressões da narrativa se apresentam numa condição de múltipla existência, ou seja, de existência em planos além do esperado” (SILVEIRA, 2008, p.12). Ao realizar este trabalho, como graduanda em design gráfico, minha pulga-atrás-da-orelha se relacionava à produção do livro como forma de expressão pessoal (e artística) aliada aos conhecimentos do design editorial. Através da minha prática, surgiram os objetivos específicos de apresentar a relação do meu livro de artista com o universo do design; compreender as razões da minha prática se encaixar como livro de artista; analisar a relação entre as ilustrações e os textos, compreendendo cada dupla composta por ilustração e texto como um conjunto. Ao longo desse percurso, percebi a necessidade de escolher uma metodologia que abarcasse prática e teoria e que me permitisse trabalhar o livro como ponto inicial da pesquisa, retomando-o durante o desenvolvimento desta. Tendo isso em vista, optei por seguir a metodologia das poéticas visuais, iniciando meu trabalho pela parte prática, com o projeto do livro e a partir dele, o desenvolvimento teórico. Essa escolha reflete, inclusive, na maneira como estou apresentando o meu trabalho, começando pelas minhas motivações e resultados para depois mencionar a metodologia, a organização do texto e o aporte teórico.

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A metodologia das poéticas visuais tem como característica “[...] entrecruzar uma produção plástica com uma produção textual” (LANCRI, 2002, p.19) e apresenta a prática de uma pesquisa como seu ponto inicial, sendo seu próprio meio da pesquisa. Em síntese, Lancri (2002) expõe o fato de que a pesquisa em poéticas visuais surge de um meio, de uma trajetória e pesquisa visual que vem da prática, de suas investigações que delineiam bases para o surgimento de questionamentos que serão abordados através das reflexões teóricas. Esta metodologia ajudou a perceber meu projeto prático com distanciamento, facilitando a análise do mesmo. Uma vez que tal metodologia aproxima prática e teoria, optei pela apresentação de ambas nos próprios capítulos desta pesquisa, ou seja, cada capítulo contém uma parte de desenvolvimento teórico e a parte prática relacionada a esse desenvolvimento. Assim, os três capítulos de desenvolvimento desta pesquisa possuem dois subcapítulo: Expressos e Relatos Transparentes, sendo o primeiro a revisão teórica, enquanto o segundo trata da prática relacionada a essa teoria. Batizei os subcapítulos nos quais trato das questões teóricas de “Expressos”, pois parto do pressuposto de que as teorias utilizadas são um discurso – uma manifestação por palavras – já-dito e finalizado. Penso em teoria como sendo uma expressão concluída, e por isso resolvi utilizar o particípio do verbo “exprimir” para me referir a ela. Já “Relatos transparentes” diz respeito à realização prática que tem relação com o conteúdo teórico exposto nos “Expressos”. Decidi nomear estes subcapítulos relacionados à apresentação prática “Relatos transparentes” por fazer relação com o meu livro desenvolvido no projeto prático, que se chama “Relatos de uma juventude assídua”. A partir de meu trabalho prático, percebi três temáticas que o cercavam: livro de artista; ilustração e desenho e, por fim, a relação da imagem com o texto a cada página. Por uma questão didática, escolhi organizar os capítulos iniciando pelo que seria mais abrangente conduzindo a discussão para as questões mais pontuais. No capítulo 2, Livro de Artista, trato das questões particulares de livro de artista e do projeto gráfico do meu trabalho prático, no capítulo 3, Ilustração/Desenho, passo para os pontos relacionados ao desenho e, por último,

no capítulo 4, Imagem e Texto, discorro sobre as análises específicas do meu livro de artista, no qual falo sobre as ilustrações, os textos e como estão relacionados, encerrando assim, no que seria o mais pontual desta pesquisa. Este trabalho se organiza em dois volumes: o livro de artista e o desenvolvimento teórico. Do meu livro de artista foi feito apenas uma cópia que ficará resguardado na universidade junto com os outros trabalhos de conclusão de curso. Em função disso, optei por trazer as imagens das páginas ao longo do texto em tamanho real. Para ficar mais fácil a compreensão dos meus apontamentos com relação às imagens. Por fim, te convido a conhecer os diferentes matizes de cinza, com algumas pinceladas de vermelho, que me envolveram naqueles quatro anos e que resultaram neste trabalho que encerra, entre vários ciclos, o da minha depressão e o do meu período como universitária.

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2 LIVRO DE ARTISTA

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Quando comecei a elaborar o projeto do meu livro, percebi que suas características (tanto em relação ao conteúdo quanto à forma de produção) não estavam de acordo com o que eu acreditava serem as “concepções formais de livro”; minha intenção era de conceber integralmente a prática, de estar envolvida em todo o processo de geração a execução, e por isso, o conceito acabou se direcionando para “livro de artista”. Como “concepções formais de livro”, pretendo me referir, por exemplo, a definição de livro da UNESCO, na qual é afirmado que “Um livro é uma publicação não-periódica de pelo menos 49 páginas, excluindo as capas, publicado no país e tornado acessível ao público”. No caso, meu exemplar, não alcança as 49 páginas e terá apenas uma cópia que ficará disponível ao público através do acervo de trabalhos de conclusão de curso da universidade. Com o intuito de diferenciar mais claramente o livro como o objeto que conhecemos comumente e livro de artista, percebo como necessária a exposição de algumas interpretações do objeto livro, que, de acordo com o dicionário Houaiss seria uma “coleção de folhas de papel, impressas ou não, reunidas em cadernos cujos dorsos são unidos por meio de cola, costura etc., formando um volume que se recobre com capa resistente” (HOUAISS, 2009). Albert Labarre, em sua publicação “A história do livro”, afirma que este é o “objeto que o Oriente antigo conservava sob a forma de placas de argila [...]. Reunião de várias folhas que servem de suporte a um texto manuscrito ou impresso [...]” (LABARRE, 1981). E o compreende como um “Conjunto de folhas impressas e reunidas num volume brochado ou encadernado” (LABARRE, 1981). Linden (2011) também comenta que o livro “tal como o conhecemos hoje e que sucedeu o volumen (rolo) no período romano, é um suporte que foi concebido para abrigar um texto” (LINDEN, 2011, p.11), e, como será apresentado no desenvolver desta discussão, livro de artista se dispõe como um objeto que engloba muitas outras ‘responsabilidades’ além de ser receptor de um texto.

Por existirem opiniões diversas ao se tratar do termo livro de artista, escolhi utilizar para esta exposição teórica basicamente o livro “A página violada”, de Paulo Silveira (2001), pois em tal obra o autor apresenta pesquisas anteriores e percepções de outros autores, além de este ser o trabalho mais amplamente referenciado em se tratando de livro de artista no Brasil.

2.1 Expressos “[...] Livro é uma sequência de espaços (planos) em que cada um é percebido como um momento diferente. O livro é, portanto, uma sequência de momentos.” Plaza

O que seria livro de artista? Para mim, logo no início desta pesquisa o significado de livro de artista parecia óbvio: um livro produzido por um artista ou um “objeto livro” exposto ou apresentado em um meio artístico. Apesar dessa ideia não estar totalmente errada, “livro de artista”, como gênero, contém uma grande variedade de objetos e significações, as quais fui descobrindo a partir deste estudo. Silveira (2001, p.25) expõe, logo no início do capítulo “Definições e indefinições do livro de artista”, que, como campo, “livro de artista” designa todas as composições que utilizam o livro como obra de arte e que, como objeto, o termo se refere “ao produto específico gerado a partir das experiências conceituais dos anos 60”. Discussões teóricas tendem a excluir ou acrescentar objetos do campo de livro de artista, e por isso, concluir quais são seus pertencentes depende da compreensão de cada autor. A questão de localizar historicamente um representante do início desse campo também se mostra dependente de ponto de vista, e, tratando disso, Silveira expõe que: [...] a Caixa verde, de Marcel Duchamp (1934), é um claro livro de artista [...]. Assim como também o são os livros de William Blake, publicados entre 1788 e 1821, ou qualquer dos cadernos de Leonardo da Vinci, executados no século 15 e começo do 16, sem possibilidade de publicação (SILVEIRA, 2001, p. 30).

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Maria do Carmo de Freitas Veneroso (2012), no artigo “Perspectivas do livro de artista: um relato”, comenta que “o livro de artista, compreendido como gênero artístico, de uma maneira geral não segue um movimento contínuo nem linear, podendo ser visto como uma espécie de rizoma, que aparece de tempos em tempos aqui e ali” (VENEROSO, 2012, p.12). Jennifer Tobias (2011) afirma que livro de artista “é um dos vários termos contestados que descrevem publicações alternativas realizadas por artistas” (TOBIAS, 2011, p.162) e que deve ser reforçado que eles não são equivalentes aos livros de arte mais frequentes e aos livros de artista luxuosos (TOBIAS, 2011). Silveira (2001) cita estudos de outros autores, entre os quais destaco Riva Castleman, Johanna Drucker e Clive Phillpot. Nos parágrafos seguintes, discorrerei sobre as duas primeiras, Castlemas e Drucker, uma vez que tratam de pontos complementares, mas opostos sobre os temas relacionados a tempo e conteúdo. E, mais próximo ao fim do capítulo, trato de Phillpot já que ele pretende sugerir possíveis objetos pertencentes ao campo do livro de artista, e por que pretendo apresentar, também, uma breve discussão sobre o campo no Brasil. O trabalho de Castleman (1984) citado por Silveira (2001), tido como a principal obra da autora, é a publicação “A century of artists books”, que teria como intenção “traçar o desenvolvimento internacional destes livros e celebrar o impacto extraordinário que os artistas modernos teriam tido sobre a tradição secular da produção de livro” (CASTLEMAN, 1995, p.1. Tradução minha1). Em tal publicação, Castleman enfatiza e dá importância aos livros ilustrados, pretendendo diferenciá-los de livros de artista, o afirma que A diferença entre “livro ilustrado” e livro de artista é o que o torna moderno: o artista argumenta o texto com passagens que não necessariamente definem passagens textuais. Dessa forma, o leitor pode formar respostas pessoais às imagens e aos textos, assim ampliando a experiência do livro. A intenção do ilustrador é de clarificar o texto, enquanto a intenção do artista é de criar imagens que expandem ou realçam o texto (CASTLEMAN, p.2. 1995. Tradução minha2). 1 Do original A CENTURY OF ARTISTS BOOKS traces the international development of these books, and celebrates the extraordinary impact that modern artists have had on the centuries-old tradition of book design. 2 Do original “The difference between ‘illustrated books’ and ‘artists’ books’ is what makes them modern: the artist arguments the text with images that do not necessarily define passages in the text. In this way, the reader-viewer may form personal responses to the images as well as to the text, thus broadening the experience of the book.... The intention of the illustrator is to clarify the text, while the intention of the artist is to create Images that extend and/or enhance the text.” p.2.

A autora também comenta que, em oposição aos livros nos quais o artista simplesmente embeleza a produção de um escritor, o livro de artista é uma composição inteira e exclusiva do artista, “de capa à capa” (CASTLEMAN, 19953). Com a pretensão de questionar as exposições de Castleman (1995), Drucker desenvolve a pesquisa “The century of artists’ books” (O século dos livros de artistas) no qual, segundo Silveira (2001), defende que “o livro de artista é uma empresa exclusiva do século XX, mesmo que devedor das experiências anteriores, ou seja, do que ela chama de livres d’artistes, identificados com valores burgueses das escolas francesas” (SILVEIRA, 2001, p.36), além de afirmar que, para a autora, livros escultóricos e seus semelhantes cabem mais ao universo da instalação e escultura do que daquele pertencente aos livros (DRUCKER, 1995 apud SILVEIRA, 2001). Quanto à possibilidade de determinar um primeiro livro de artista, Drucker “prefere entender o livro de artista como um campo ‘que emerge om muitos pontos espontâneos de origem e originalidade [...] que dá a ideia falsa de uma noção linear de uma história com um único ponto de origem’” (SILVEIRA, 2001, p.38). Fazendo um parêntese na discussão de âmbito internacional e trazendo para o panorama nacional, Veneroso (2012), em seu artigo, comenta que poucas publicações no nosso país tratam do tópico e, com o intuito de analisar o ponto no qual o livro de artista se encontra, refere-se ao livro de Silveira (2001) e ao catálogo da exposição “Tendências do livro de artista no Brasil” das artistas Annateresa Fabris e Cacilda Teixeira da Costa, como publicações de destaque em relação ao assunto. Fabris e Costa (1985, p.1) afirmaram que, à época da publicação, internacionalmente percebia-se livro de artista como uma área desconhecida e fechada e, que no Brasil, esta área era praticamente inacessível aos círculos que iriam além de artistas, iniciados, bibliófilos e poetas. Com o intuito de traçar um parâmetro dos “avanços” em relação aos estudos de livro de artista, Veneroso (2012) comenta que no período entre as duas publicações citadas até a publicação de seu texto, poucos avanços bibliográficos foram apresentados, ainda assim, afirma “estarem surgindo espaços dedicados à sua guarda, 3 Do original “Unlike books in which the artists embellish the words of a writer, these books constitute entire artistic creations, from cover to cover” (p.4).

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exposição e divulgação, como é o caso da nova coleção de livros de artista da Biblioteca da Escola de Belas Artes da UFMG, a primeira coleção no gênero, no Brasil, a ser mantida em uma universidade” (VENEROSO, 2012, p.13). A autora afirma que “há uma produção expressiva de livros de artista no Brasil, apesar de ela, muitas vezes, não ser mostrada” (VENEROSO, 2012, p.20) e conclui seu artigo dizendo que as perspectivas para o livro de artista no Brasil são boas e diz que é esperado “que esse gênero artístico, cuja discussão ainda gera algumas polêmicas e indefinições, receba cada vez mais atenção” (VENEROSO, 2012, p.20). Retomando as questões do livro de artista no cenário internacional, Phillpot (1998 apud. SILVEIRA, 2001) não investe na afirmação ou negação do que cabe, ou não, ao campo do livro de artista, ele prefere argumentar são várias as possibilidades que cabem no mesmo, para mostrar isso utiliza principalmente de diagramas. Silveira expõe uma taxonomia concebida por Philpot em ensaio publicado no livro “Artist/Author: Contemporary artist’s books”, na qual são determinados como objetos pertencem à categoria: revistas que incluem arte para a página (que se comportam como livros de artistas seriais); assemblings (volumes compostos por agrupamentos de páginas feitos por diferentes artistas); antologias (semelhantes aos assemblings, mas com o concurso de um editos); escritos diários e manifestos; poesia visual e obras com a palavra (desde que componham o volume); partituras e roteiros; documentação; reproduções facsimiladas e cadernos de rascunho; álbuns e inventários; obras gráficas (sem narrativa), às quais convêm, o formato livro; histórias em quadrinhos específicas; livros ilustrados; page art (arte de página, iluminuras, interferências gráficas, etc) e arte postal; arte do livro e bookworks (livros-obra) (SILVEIRA, 2001, p.55).

Dentre as vertentes citadas, identifico meu livro como livro ilustrado uma vez que, de acordo com Linden (2011), eles são obras que podem (ou não) conter texto, mas, por sua vez, contém sempre imagens, que são espacialmente de maior importância que os textos e, sua articulação ocorre na narrativa. Além de esclarecer o que seria livro ilustrado, a autora afirma que os textos contidos nele, usualmente, são curtos, e esta é uma característica tida como evidente e indicada por inúmeros críticos em relação ao livro ilustrado (LINDEN, 2011). A autora trata, também, de questões compositivas relacionadas à diagramação e ao formato do livro, afirmando que “no livro ilustrado, a diagramação é trabalhada no intuito de articular formalmente o texto com as imagens. Assim, os textos dependem do suporte, do tamanho, e em geral devem acompanhá-las tanto quanto

possível” (LINDEN, p.47, 2011). Pensando nisso, exponho a seguir, os pontos compositivos e os relatos da diagramação e formatação do meu livro de artista.

2.2 Relatos transparentes Neste momento trago o processo de criação do projeto gráfico da minha prática. Desde o início, eu tinha uma ideia de como ele seria, no entanto ao concluir o projeto, imprimi-lo e encaderná-lo me deparei com um objeto com muitas falhas a serem corrigidas. Portanto ao falar sobre este tópico trago esse primeiro resultado, suas falhas e como ficou o trabalho final após essas reflexões e refinamentos. Antes de iniciar a falar da diagramação, acho importante destacar minhas escolhas editoriais e as principais partes compositivas do meu livro, que são: capa, contracapa, folha de rosto, epígrafe, dedicatória e o conteúdo propriamente dito (ASSOCIAÇÃO, 2006). Segundo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (2006), ainda teriam outros pontos a serem tratados como, por exemplo, o sumário, introdução e bibliografia, contudo por não estarem contidos em meu livro, não serão abordados aqui e, inclusive, a ausência dessas características reafirmam sua definição como livro de artista. De volta ao meu percurso desenvolvido, minha principal diretriz era trabalhar com o espaço em branco, em função disso, a ideia inicial era que sua construção se guiasse por um formato horizontal (11cm por 20cm), tendo em mente o melhor uso desses espaços e uma melhor distribuição de textos e ilustrações (Figura 1). Porém, ao imprimir o livro, percebi que a finalização ficou com aparência desleixada (pois não possuía uma estrutura firme), além de as ilustrações e os textos terem ficado muito pequenos. Como nas primeiras configurações e escolhas gráficas do livro, não se atingiu as qualidades esperadas, decidi alterá-lo. Para segundo formato, tornado o Projeto final do livro, aumentei a altura, de 20 cm para 21 cm, e a largura, de 11 cm para 15 cm (Figura 2).

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Figura 1: Primeiro projeto e Projeto final do livro

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Fonte: a autora

Figura 2: Primeiro e segundo projetos do livro

23 Fonte: a autora.

No primeiro projeto do livro, além das questões anteriormente citadas, era dado pouco destaque aos títulos (tanto do livro quanto dos textos) e às ilustrações. Essa opção foi escolhida por, naquele momento, eu ter definido o conteúdo dos textos e das ilustrações como elemento prioritário, tentando privilegiá-los na composição da página. Contudo, percebi que o título podia ser trabalhado com maior destaque, tonando-se um elemento com maior peso visual que agregava dinamismo à composição, além de pautar mais claramente a interpretação da imagem em um primeiro olhar. A editoração foi pensada para cada par de páginas, trabalhando o conjunto do texto e ilustrações visualizados juntos quando o livro estiver aberto. A localização dos textos e das ilustrações pode variar de acordo

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com o conteúdo; algumas vezes a ilustração estará na página par e, em outras vezes, na ímpar. Para poder trabalhar com os textos e imagens nesse novo formato, era necessário estabelecer também um novo grid, que seria a base de toda a organização visual e principalmente da parte textual. Assim, defini 1,5cm para todas as margens, exceto a lateral externa que ficou com 2,5 cm de margem. O grid foi organizado de forma modular, em três colunas com intervalos de 6 mm e, horizontalmente, foi dividido em três partes espaçadas com os mesmos intervalos de 6mm (Figura 3). Com a utilização desses módulos, foi possível flexibilizar a diagramação e posicionar o texto de diferentes formas seguindo o padrão do grid, otimizando a relação dos textos com a imagem e com o sentido do conteúdo. A possibilidade dos espaços em branco na organização do conteúdo do livro foi a principal diretriz para construção do grid, tendo definido a utilização de apenas uma coluna – vertical ou horizontal – como distribuição única dos textos. A definição do grid me orientou, principalmente, na organização de títulos e textos, tendo definido a distribuição fixa deles; enquanto para a organização das ilustrações, apenas a coluna central do grid e as margens foram utilizadas.

Figura 3: Grid do primeiro e segundo projetos do livro

25 Fonte: a autora.

A distribuição dos espaços em branco, textos e ilustrações foi projetada para enfatizar o conteúdo do livro, que são esses três elementos, por isso optei pela disposição de texto e ilustração em páginas separadas. Também pensando na ênfase a ser dada ao conteúdo, escolhi, após a banca de qualificação, adicionar páginas “de respiro” entre os textos ao longo do livro, sendo essas páginas brancas, pretas ou vermelhas (Figura 4). Além disso também alterei a primeira ilustração e a última página do livro, na ilustração foi alterado o tipo de papel, que antes era impresso na própria página do livro e passou a ser em transparência, já a última página foi acrescentada, também em transparência, mas apenas com uma frase, sem imagem ou poesia (além daquela criada pelo próprio leitor a partir da leitura) (Figura 5).

Figura 4: Páginas internas preta e vermelha

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Fonte: a autora

Figura 5: Página final do livro

27 Fonte: a autora

Escolhi trabalhar textos e títulos em famílias tipográficas sem serifa, respectivamente Colaborate-thin e Ostrich Sans Rounded (Figura 6), com a intenção de simplificar ao máximo a visualidade dos textos. Tais tipos são compostos por linhas simples, não possuem uma configuração elaborada que concorra visualmente com as imagens, e assim não chamam atenção para a configuração visual do tipo. Outra característica que me levou a escolher a tipografia do texto foi que, por ser fina e limpa, ela contrasta com as ilustrações, que por sua vez, são mais riscadas e manchadas.

Figura 6: Famílias tipográficas utilizadas no segundo projeto de livro

28 Fonte: a autora

A capa do livro foi composta em duas páginas, sendo a primeira uma mancha de aquarela digitalizada e impressa em papel vegetal, e a segunda, o título do livro impresso em sulfite (Figura 7), para, dessa forma, remeter às ilustrações da parte interna. A tipografia empregada no título do livro foi a mesma utilizada no título dos textos, contudo o tamanho da fonte foi alterado, para dar a ênfase necessária à capa. Capa e contracapa não são uma folha contínua, como normalmente ocorre nos livros, elas são independentes, dando ênfase a costura da lombada. No entanto, mesmo refiladas elas dão continuidade à ilustração e ao conceito de cada uma ser formada por dois papéis, um transparente e outro mais grosso, para dar a sustentação necessária ao objeto.

Figura 7: Fotografia da capa do livro

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Fonte: a autora.

3 ILUSTRAÇÃO/DESENHO “Uma linha é a trilha deixada pelo ponto em movimento... Ela é criada pelo movimento – mais especificamente, pela destruição do repouso, intenso e ensimesmado.” Wassilly Kandinsky

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Entre escrever os textos e “produzir” as ilustrações, passou mais de um ano. Aliás, até pouco antes do início deste projeto (compreendido aqui como a soma de prática e produção teórica), desejava nunca mais ter contato com quaisquer coisas que pudessem me remeter ao tempo de depressão. Comentei anteriormente que esta pesquisa veio com a intenção de fechar ciclos e para isso, se fez necessário contato com o que (eu) havia deixado de lado. As ilustrações do livro vieram depois dos textos, mais especificamente, depois de re-lidos e escolhidos. Cada desenho foi feito especificamente para cada texto que a acompanha e, para isso, tentei me recolocar naquele momento, tendo definido elementos construtivos e o conteúdo das ilustrações de acordo com o que cada palavra manifestava em mim. No primeiro momento deste trabalho, achei que só textos e ilustrações, como composição, seriam suficientes para transmitir ao leitor as sensações pretendidas por mim. Após a qualificação, percebi que meu livro é um todo, que todos os espaços transmitem algo e que tudo entre as capas poderia ser usado como transmissor de ideias e sensações. Por isso, escolhi me reinserir naquele contexto da construção do livro e pensar espaços, brancos ou não, além daqueles que já estavam preenchidos, além das duplas de páginas de textos e imagens. O que acabou gerando a exploração maior dos materiais que compõe os meus relatos. Para as ilustrações, escolhi as linhas como componente comum a todas elas. Essas linhas são interrompidas e retomadas, como se fossem intervenções profundas naquela “pele”, através do preenchimento

incompleto, que delimita certas partes das imagens, mas permite que o olhar do leitor complete “as falhas”. Tais “falhas” se dão propositalmente remetendo a cortes, que, por sua vez, são relacionadas com os textos e, mais especificamente, àquele que menciona o ato de cortar as pernas. Esses cortes também se relacionam com as falas-incompletas, por tangenciarem – devido ao momento no qual foram escritos – a dor não-palpável e de certa forma “invisível” da depressão. Utilizo em algumas ilustrações, além dos riscos, manchas de aquarela pensando na transparência e a fluidez que propiciam como preenchimento mais suave, contrapondo a rigidez dos riscos. A partir dessas características, busquei na teoria explanações que reforçassem esse meu sentir, e encontrei Nathan Goldstain que traça comentários muito ricos sobre as linhas e manchas.

3.1 Expressos De acordo com Nathan Goldstain (1999), a linha é um dispositivo familiar e conciso amplamente utilizado para comunicar vários tipos de informações visuais. Apesar disso, a linha não existe no mundo físico, “praticamente tudo o que consideramos como linha é, na verdade, um fino e sólido volume como, por exemplo, um cabo, um galho ou um arco” (GOLDSTAIN, p.40, 1999). Graças a esse dispositivo – a linha – é que se torna possível a delimitação das características mensuráveis e das múltiplas dimensões de uma figura, sendo capaz de demarcar, por exemplo, os espaços de textura e cor. Goldstain(1999) discorre sobre os tipos de linha e afirma que elas podem ser estruturais, e ao mesmo tempo transparecer muito da significação do desenho. O autor explicita quatro tipos de linha: diagramática (ou esquemática), estrutural, caligráfica e expressiva; e que elas não necessariamente ocorrem de maneira exclusiva em um desenho. As linhas diagramáticas (ou

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esquemáticas) tem como principal função a representação das medidas de profundidade, comprimento, direção, formato e questões estruturais gerais; já as linhas estruturais, tendem a explorar e enfatizar o volume na construção de um plano e expor o ponto de união das formas que compõe um volume complexo. De acordo com Goldstain (1999), esses dois tipos de linha se apresentam como uma análise, por parte do artista, que tenta intuir as formas estruturais e espaciais do desenho, se preocupando principalmente com as questões estruturais. Além dessas duas, ele explica também as linhas caligráficas, que são caracterizadas nas linhas curvas, que apresentam ritmo intenso e são resultados comuns de um movimento mais dinâmico, ao invés de uma intenção mais estrutural; E, também, as linhas expressivas, que representam dominantemente uma sensação emotiva em relação a outras características. Goldstain (1999) afirma que, obviamente, todas as linhas são expressivas, mas aquelas reconhecidas como linhas expressivas enfatizam mais questões intuitivas do artista, como empatia e temperamento.

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3.2 Relatos transparentes Como as imagens são relacionas àquele período de construção dos textos que eu refiro como tons-de-cinza, defini o preto como cor principal para as ilustrações e os textos, por estes apresentarem – e representarem – os momentos mais “escuros” de tal contexto. Realizei oito ilustrações para os meus relatos, em quatro delas (Figura 8) representei corpos - em uma delas (4), apenas o busto – sem rosto, e em duas delas (1 e 2) conservei os traços que mantém sua semelhança com bonecos (as marcas nas articulações dos braços e dos joelhos). Com isso, pretendi “despersonificar” as ilustrações, retirando características que poderiam determinar “quem são”, para permitir que qualquer um se identifique naquele “ser”.

Figura 8: As quatro imagens nas quais os corpos estão representados

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Fonte: a autora.

Utilizei aquarela além dos traços em quatro das oito ilustrações, (Figuras 9 e 10); em duas dessas (1 e 4), utilizei a aquarela em elementos que compõe a ilustração junto aos corpos (citados anteriormente) e nas outras duas (2 e 3), trabalhei traços e manchas na mesma ilustração. Nas duas ilustrações também compostas por corpos, utilizei aquarela, principalmente, nos elementos ao redor deles, já que grande parte do que pretendia representar com as ilustrações foi representado no corpo. Figura 9: Duas das quatro imagens nas quais a aquarela é utilizada

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Fonte: a autora.

Figura 10: Outras duas das quatro imagens nas quais a aquarela é utilizada

35 Fonte: a autora.

Um dos meus objetivos nessas ilustrações era contrastar as linhas de diferentes partes da ilustração, e para isso percebi que a aquarela cumpria este requisito, pois preenchia com manchas fluídas, não tão “marcantes” quanto os traços no papel. Além disso, a mancha é fluida e traz um contraste em relação ao traço da linha que é demarcado e incisivo sobre papel. Além da tinta nanquim e da aquarela, utilizei também riscos vermelhos em quatro ilustrações (Figura 11). Os detalhes em vermelho têm como intuito atrair o olhar do leitor para pontos específicos da imagem, por ser um contraste marcante de uma cor tônica sobre o restante da ilustração, que se mantém em preto e branco, além de adquirirem outros significados se relacionadas juntamente com seus textos.

Figura 11: As quatro imagens nas quais são utilizados os traços vermelhos

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Fonte: a autora.

4 IMAGEM E TEXTO “[...] se o livro é, o livro de artista é muito mais. É linguagem e metalinguagem tornadas concretas. É um corpo físico expressivo” Paulo Silveira

Como já observado, meu livro se encaixa na categoria de livro ilustrado e, me baseio nisso para o desenvolvimento teórico deste capítulo, no qual trato das imagens, textos e da relação de ambos conforme estão contidos no meu livro Relatos de uma juventude assídua. Antes de iniciar o desenvolvimento teórico, gostaria de utilizar este espaço, neste capítulo no qual trato mais especificamente do conteúdo do livro, para comentar a escolha do título do meu projeto prático: por que “Relatos de uma juventude assídua”? Já disse no decorrer do texto que meu livro trata de um momento específico da minha vida, de um período de depressão. Quando pensei no título, parti do pressuposto que a juventude é o tempo entre a segurança da infância (segurança pela dependência de outros, pela necessidade de outros para se fazer e ser) e a segurança da vida madura (nesse caso, segurança pela independência e pela capacidade de aprender e ser só). Esse momento da juventude, para mim, soa como um tempo de tudo e nada, como o momento de limbo na vida. A escolha do título se dá por isso, pois assumo esse meu período de depressão - e tudo que foi envolvido por ele como um tempo de extremos, de um limbo pessoal. Meu “Relatos de uma juventude assídua” trata de um período de extremos, que vivi e frequentei com toda a minha força e incapacidade e, naquele momento, com toda a minha dor. Afirmei anteriormente que trataria, neste trabalho, do assunto mais abrangente ao mais específico, tendo dado início à abordagem com o tópico “livro de artista” e, agora, discorro sobre a relação de texto e imagem no livro ilustrado. Por fim, teço considerações sobre o que foi utilizado nas análises das imagens e dos textos, que serão apresentadas no subcapítulo “relatos transparentes”. Considero importante, também, trazer neste capítulo, alguns pontos teóricos relacionados à configuração de texto e imagem no livro, já que a diagramação também interfere em sua compreensão geral.

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4.1 Expressos

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Aqui trago os referenciais teóricos que serão utilizados para analisar as imagens do meu trabalho prático, na próxima seção Relatos transparentes. A base das análises é o capítulo “Um modelo para ler imagens” de Sandra Ramalho e Oliveira (2009), do livro “Imagem também se lê”, em que a autora apresenta três pontos principais para se compreender (basicamente) o papel da imagem no contexto que ela está apresentada. Além disso, emprego as observações de Linden (2011), em relação aos aspectos narrativos e à função do texto, já que a intenção das análises é apresentar as relações das imagens com os textos e conteúdo específico de cada uma delas. Para iniciar a análise, Ramalho (2009) explica que deve-se começar com a definição da macroestrutura da imagem, ou seja, a identificação das linhas ou da linha que traça a estrutura básica da imagem; para exemplificar esse ponto ela questiona: “é uma diagonal? É um eixo vertical? Diagonais que se cruzam, horizontais paralelas, figuras geométricas, ângulos ou um ponto central?” (RAMALHO, 2009, p.49). Essa delimitação, de acordo com a autora, é a base de apoio fundamental à decodificação dos significados. Como segundo princípio para a análise, a autora apresenta o exame dos elementos construtivos da imagem, tais como “linhas, pontos, planos, formas, cor, luz, dimensão, volume e textura” (RAMALHO, 2009, p.50), ressaltando também, a observação do entorno da imagem, compreendido como o espaço ao redor, com o qual a obra dialoga. O terceiro passo a ser realizado é chamado de “procedimento relacional”, que é utilizado para combinar os elementos construtivos apresentados anteriormente. Tal procedimento é comparado à “sintaxe, ou seja, ao modo de organizar as palavras entre si” (RAMALHO, 2009, p.51), entretanto, a autora reforça a necessidade de cuidado por existirem distinções entre a leitura da palavra escrita e a leitura da imagem. Com intuito de facilitar a compreensão, a autora cita como exemplo que

entre várias circunferências que compusessem uma imagem, elas poderiam estar relacionadas pela repetição ou rebatimento de formas; por outro lado, as mesmas circunferências poderiam estar relacionadas pelo contraste de dimensões e de cores; poderiam, ainda, estar relacionadas de modo equidistante, gerando ritmo, considerando-se o fundo dessas figuras, e poderiam se relacionar por meio do procedimento de repetição por meio de textura, fosse entre as circunferências ou desse bloco de circunferências desse bloco com o seu fundo (RAMALHO, 2009, p.51)

Com essa análise, pretende-se desestruturar a imagem para, assim, buscar os efeitos de sentido ou as significações de cada parte da imagem. Apresentados os conceitos de Ramalho (2009) passo, então, às compreensões de Linden (2011) que utilizo nas análises, das quais emprego: a função do texto, os aspectos narrativos e as respectivas funções do texto e da imagem. A função do texto trata, especificamente, de como o texto se relaciona com as imagens; aspectos narrativos aborda a relação entre os dois (imagem e texto) e; as respectivas funções do texto e da imagem trazem as funções “que cada um deles pode cumprir em face do outro” (LINDEN, 2011, p.122), ou seja, trata de como o elemento primário se relaciona com o secundário, podendo o elemento primário ser tanto a imagem quanto o texto.

4.1.1 Função do texto A função do texto pode se dar de diferentes maneiras e possuir diferentes características, dependendo da configuração de cada texto, portando, defino as características de cada função apresentadas pela a autora a seguir.

Função de limitação:

O texto que cumpre a função de limitação tem como princípio acentuar o espaço narrativo, se aliando à imagem “para isolar tempos específicos de uma ação ou acontecimento” (LINDEN, 2011, p.110).

Função de ordenação:

No caso da função de ordenação, o texto tem como princípio determinar a ordem que acontecem os fatos apresentados na imagem. “O enunciado do texto, quando ele por exemplo nomeia vários elementos, implica uma atribuição desses nomes aos elementos que se apresentam em sequência da esquerda para a direita da imagem”

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(LINDEN, 2011, p.110).

Função de regência:

A função de regência ocorre quando o texto exibe claramente uma indicação temporal, preenchendo lacunas deixadas pela imagem nesse quesito. “Códigos icônicos também podem cumprir esse papel, tal como as frequentes representações de mostradores de relógios que indicam o tempo fictício decorrido durante a ação apresentada” (LINDEN, 2011, p.111).



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Função de ligação:

No caso da função de ordenação, o texto tem como princípio determinar a ordem que acontecem os fatos apresentados na imagem. “O enunciado do texto, quando ele por exemplo nomeia vários elementos, implica uma atribuição desses nomes aos elementos que se apresentam em sequência da esquerda para a direita da imagem” (LINDEN, 2011, p.110).

4.1.2 Aspectos narrativos Os diferentes tipos de relação que podem existir – segundo Linden (2011) – entre a imagem e o texto em cada conjunto:

Relação de Redundância:

A relação de redundância ocorre quando texto e imagem, juntos, não produzem sentidos além dos expostos, quando “remetem para a mesma narrativa, estão centrados em personagens, ações e acontecimentos rigorosamente idênticos” (LINDEN, 2011, p.120). Apesar de, por definição, não ser possível possuírem conteúdos idênticos, graças ao pertencimento a diferentes linguagens, neste caso, a narrativa é apoiada principalmente ou pelo texto ou pela imagem.

Relação de Colaboração:

A relação de colaboração ocorre quando texto e imagem se articulam e então produzem um só discurso. “Numa relação de colaboração, o sentido não está nem na imagem nem no texto: ele emerge da relação entre os

dois” (LINDEN, 2011, p.121).

Relação de Disjunção:

A relação de disjunção raramente ocorre no livro ilustrado e ela ocorre quando “texto e imagem não entram em estrita contradição, mas também não se detecta nenhum ponto de convergência” (LINDEN, 2011, p.121).

4.1.3 As respectivas funções de texto e imagem O terceiro grupo de Linden (2011), as respectivas funções de texto e imagem, traz como enfoque da análise o elemento de maior de destaque na dupla de páginas, seja ele imagem ou texto. Portanto, se difere dos anteriores que ora enfatizavam o texto e ora a imagem. Aqui, as funções podem se referir tanto a um quanto ao outro.

Função de repetição:

A função de repetição ocorre quando a “mensagem veiculada pela instância secundária pode apenas repetir, em outra linguagem, a mensagem veiculada pela instância prioritária” (LINDEN, 2011, p.123).



Função de seleção:

A função de seleção ocorre quando, sendo o texto o elemento prioritário da narrativa, este “menciona apenas alguns elementos específicos de uma imagem” (LINDEN, 2011, p.123); e, se é a imagem o elemento prioritário, ela “pode se concentrar em um aspecto, um ponto de vista preciso da narrativa, ou eleger um sentido da polissemia do texto (no caso dos jogos de palavras, por exemplo)” (LINDEN, 2011, p.123).

Função de revelação:

A função de revelação ocorre quando o elemento prioritário da narrativa revela um ponto específico do outro elemento, de maneira a se tornar indispensável para a percepção deste, ou seja, esta função acontece se o suporte que um elemento dá ao outro se torna imprescindível para a compreensão de algo que não está obviamente apresentado.

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Função completiva: A função completiva ocorre quando o elemento secundário da narrativa intervém no prioritário, dessa forma dando oportunidade a um sentido completo. Nesse caso, “uma [coisa] completa a outra, fornece informações que lhe faltam, preenche suas lacunas ou ‘brancos’, constituindo um aporte indispensável para a compreensão do conjunto” (LINDEN, p.124. 2011).



Função de contraponto:

A função de contraponto ocorre quando um dos elementos confronta a ideia suscitada pela instância prioritária, “não mencionando, por exemplo, um elemento que no entanto é central” (LINDEN, p.125, 2011), ou se opondo completamente a ela.

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Função de amplificação:

A função de amplificação ocorre quando uma instância diz algo além do apresentado na outra, sem que a contradiga ou a repita, ou seja, um dos elementos desperta ideia (ou ideias) além das basicamente apresentadas pelo outro elemento. “Essa função de amplificação pode ser realizada com muita sutileza mediante, por exemplo, um tratamento plástico particular ou detalhes das ilustrações” (LINDEN, p.125, 2011). Apresentados todos os tópicos que embasam as análises, passo, então as exposições sobre as análises das imagens, textos e conjuntos de cada dupla de páginas contidos no projeto prático desta pesquisa, que é, também, o último “Relatos transparentes” desta pesquisa.

4.2 Relatos transparentes Neste momento irei analisar a relação das imagens com os textos de cada dupla de páginas do meu trabalho prático. Como foi apresentado na seção anterior Expressos, faço a análise baseada no modelo de Sandra Ramalho e Oliveira (2006) e acrescento nesses apontamentos as questões sobre as relações entre o texto e a imagem, apresentadas por Sophie van der Linden (2011). A análise foi organizada da seguinte forma, primeiramente apresento uma breve descrição da dupla de páginas e depois sigo o “roteiro” para fazer leituras de imagens, determinando por Oliveira (2009). O roteiro se divide em três tópicos: O tópico 1 traz as definições das linhas que compõe a macroestrutura da imagem; o tópico 2 é a observação dos pequenos detalhes dos elementos construtivos e, o tópico 3 destaca a articulação entre os elementos. Além desses três sugeridos pela autora, percebi a necessidade de acrescentar o tópico 4, para trazer com mais ênfase as relações abordadas por Linden (2011).

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Figura 12: Ilustração e texto do livro que são apresentados na Epígrafe Fonte: a autora.

4.2.1. Epígrafe Esta ilustração aparece, no livro, junto à epígrafe (na dupla de páginas). Nela vemos apenas parte da ilustração original (o restante aparece na página seguinte). O texto se encontra no extremo oposto da página (em relação à ilustração), pois com isso desejava enfatizar as sensações de queda e de vazio transmitidas pela ilustração. 1. Dois eixos diagonais (que não coincidem nesta parte da imagem) determinam a macroestrutura desta ilustração. Segundo Lupton (2008) “composições diagonais evocam movimento”, e essa sensação de movimento era desejada, uma vez que a intenção da ilustração era representar um corpo caindo. 2. As linhas são os elementos construtivos: em alguns momentos, várias linhas justapostas dão volume à ilustração, e em outros, apenas uma linha, que delimita contorno; e o espaço em branco no entorno da ilustração, que reforça a sensação de movimento, de queda. 3. Os principais grupos de linhas justapostas se localizam nas pernas, perto dos pés e nos pés, nos braços, perto das mãos e nas mãos, tendo a intenção de representar as articulações do corpo. As articulações e parte das pernas e braços se apresentam com linhas simples; no caso das articulações, a marcação ocorre para remeter a um boneco, a algo inespecífico e sem vida. E em relação aos braços e pernas, isso ocorre por pretender permitir ao leitor que preencha a imagem com o olhar, e também para sugerir um vazio, sensação muito presente na depressão. 4. Neste conjunto, imagem e texto exercem relação de colaboração, uma vez que com a ilustração, pretendi enfatizar um ponto do texto (“sou um corpo mofado que pousou no chão”), mas, mais que isso, pretendi enfatizar uma sensação transmitida por ele. Segundo Linden (2011), no caso desta relação entre texto e imagem, o sentido se encontra na relação entre imagem e texto, e não nos dois desconexos. E dentro dessa relação, texto e imagem exercem a função de seleção, que é quando a imagem enfatiza certo ponto do texto

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Figura 13: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Todos Cigarros” Fonte: a autora.

4.2.2 Todos os cigarros Esta ilustração aparece, no livro, junto ao primeiro texto (“Todos cigarros”). Nela vemos a outra parte da ilustração original, na qual se vê restante do corpo apresentado na ilustração anterior. O texto se encontra distribuído na coluna central da grid, pois era pretendido o contraste com os eixos diagonais da ilustração, e também pelo fato de nele estarem contidas ações consecutivas, e assim, o texto exige uma leitura contínua dos blocos de texto. 1. Os dois eixos diagonais da ilustração anterior seguem e coincidem nesta, e determinam sua estrutura básica, permitindo que a sensação de movimento também seja evocada, principalmente quando uma imagem é vista na sequencia da outra. 2. As linhas continuam como elementos construtivos nesta parte da imagem, sendo alterada apenas a localização das linhas justapostas. Aqui as linhas justapostas se encontram, além de em algumas articulações, nas costas e na cabeça próxima ao pescoço; enquanto as linhas sozinhas seguem o padrão anterior (que é de se encontrarem em alguns pontos do contorno da ilustração). O espaço em branco continua sendo o entorno da imagem e pretendendo reforçar a sensação de queda. 3. Nesta ilustração, os principais grupos de linhas justapostas se localizam nos pontos de pouca luz, nas costas e na cabeça (uma vez que o corpo se encontra em queda e a claridade viria de cima) e também próximas às articulações da coxa, dos joelhos e dos ombros. Aqui, as articulações se apresentam mais marcadas, com mais linhas justapostas, e as linhas sozinhas acontecem com menos frequência, quase não aparecendo, uma vez que a ideia era retratar o movimento e a proximidade com o ponto final da queda de maneira mais forte do que na ilustração anterior. O rosto sem detalhes (preenchido por riscos) pretende retirar qualquer associação específica a este corpo, e toda a constituição da ilustração tende a despersonificá-la1. 1 Por despersonificar, tenho a intenção de me referir ao oposto do que é compreendido pelo verbo personificar (que é, de acordo com o dicionário Houaiss “atribuir dotes e qualidades de pessoa a; tornar igual a uma pessoa”), ou seja, pretendo destituir a ilustração de qualidades e características que a relacionem à alguma pessoa ou ser específico.

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4. A função completiva (LINDEN, 2011) é a que aparece no caso deste conjunto, já que nesta ilustração, o intuito era acrescentar a sensação de vazio, de queda e de um fim desejado no momento em que escrevi o texto, e tais sensações não estão apresentadas diretamente nele, além de exercerem relação de colaboração. Esta função, segundo Linden (2011), ocorre quando uma parte constitui “um aporte indispensável para a compreensão do conjunto”.

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Figura 14: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Solitude”. Fonte: a autora.

4.2.3 Solitude

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Esta ilustração aparece, no livro, junto ao texto “Solitude”. Nela se percebe a representação de uma árvore sem folhas. Neste texto, a palavra “condenavelmente” é usada como ironia e expõe a insignificância da morte (em relação à explosão do copo de cerveja e a todas as outras coisas; é como se quisesse dizer que a desejava). O destaque foi produzido ao aumentar o tamanho da tipografia para enfatizar a palavra, conduzindo a uma leitura mais atenta, que desperta a sensação em relação ao texto. Texto e ilustração se encontram em pontos opostos da dupla de páginas, também pretendendo enfatizar a sensação de solidão. 1. Essa ilustração foi desenvolvida em um eixo vertical que percorre a altura da página entre as margens superior e inferior. 2. As linhas formando texturas e algumas manchas de aquarela são os elementos básicos dessa ilustração, cobrindo-a quase que por completo. Na parte que representa o tronco, as linhas e as manchas de aquarela acarretam em volume e textura. Nos galhos, as linhas vão diminuindo em quantidade de acordo com a distância do tronco (quanto mais perto, mais linhas). 3. Nesta ilustração trabalho traços e algumas manchas de aquarela, utilizando as manchas e os traços mais concentrados para representar suas sombras. A árvore é representada sem folhas e a maneira que os traços estão dispostos nos galhos remete ao momento no qual às árvores perdem as folhas, além de, aqui estar visível apenas uma árvore, transmitindo as sensações de frio e solidão. 4. Quanto a este conjunto, são exercidas a relação de colaboração e a função de seleção, já que nesta ilustração a intenção de representar “solidão” (e o título do texto é “solitude”), se concentrando assim em enfatizar um aspecto do texto. Além dessa representação, algo quase “sem vida” (por eu sentir, no momento que escrevi o texto, a vontade de não-vida). Tais razões também determinaram toda a configuração da ilustração: o fato de ser apenas uma árvore e de ela estar sem folhas.

Figura 15: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Banho de chuva” Fonte: a autora.

4.2.4 Banho de chuva

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“Banho de chuva” é o texto que acompanha a ilustração desta dupla de páginas. Nela, é percebido um corpo sentado, com as pernas dobradas e o joelho apoiando o braço, e na mão, segura um cigarro. Os riscos vermelhos são mais marcantes nesta ilustração, uma vez que a pretensão era remeter ao texto “meias verdades”, e a moldura existe aqui para produzir a sensação de compressão, de repressão, dessa forma, representando um momento anterior à explosão (dita na primeira linha do texto “Vou explodir”). Texto e ilustração se encontram em pontos opostos da dupla de páginas, porém a intenção aqui é de utilizar o espaço em branco (que contorna a moldura) como mais um elemento que pressiona o corpo da ilustração. 1. A macroestrutura desta ilustração acompanha quase todo o corpo: uma diagonal que vai do (que seriam) os ombros até os calcanhares, e outra que inicia na cabeça, acompanha a dobra do corpo (por estar sentado) e vai até os joelhos. 2. Aqui há mais manchas de aquarela e uma quantidade menor de linhas, que ocorrem nas costas (no ponto em que o corpo está próximo da moldura que limita o espaço das ilustrações), na coxa e no abdômen. As manchas de aquarela preenchem quase todos os vazios visuais do corpo, porém são mais fortes nos espaços da moldura da ilustração. O espaço em branco não tem tanto peso nesta ilustração. 3. As manchas de aquarela funcionam como auxílio ao fato de o olhar do leitor completar os traços, já que aqui linhas sozinhas acontecem com menor frequência, determinando apenas alguns contornos e algumas sombras. As linhas justapostas ocorrem de forma mais marcante no rosto (repetindo a intenção de despersonificar a ilustração) e nas costas, em que se marca o limite da moldura e da ilustração, além de ocorrerem próximo à cabeça e no local que limita tórax e braço. São percebidas linhas menos justapostas no que seriam as costelas, e linhas vermelhas nas coxas, que remetem a cortes nas pernas.

4. A relação de colaboração e a função de revelação são exercidas neste conjunto, função essa que, segundo Linden (2011), tem como propósito revelar algo do texto que não é visível imediatamente, ou seja, revelar algo indispensável para a compreensão da outra parte, e neste conjunto isto ocorre quando a única questão do texto realmente exposta na ilustração é o fato de estar fumando, mas as características visuais gerais da ilustração fazem parte da concepção total do livro, ou seja, remetem a sentimentos da depressão, aos cortes nas pernas e a sensação de sufocamento gerada por todas as questões vividas naquele tempo.

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Figura 16: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Uma hora ao entardecer” Fonte: a autora.

4.2.5 Uma hora ao entardecer Na dupla de páginas, esta ilustração está acompanhada do texto “Uma hora ao entardecer”, e nela se percebe um corpo em uma bicicleta, que está suspensa na parte extrema superior da página. Nesta dupla de páginas, o texto se encontra na área que seria de suporte a ilustração (se estivesse na mesma página) e está colocado na mesma linha horizontal da grid. 1. Uma linha diagonal (que vai da cabeça ao pé da ilustração) determina sua estrutura visual básica, uma vez que as linhas marcantes, justapostas e muito repetidas que ocorrem no corpo chamam mais atenção que as partes que o complementam (a bicicleta e as linhas que a sustentam). 2. Traços muito próximos preenchem o corpo, nesta ilustração, quase por completo, e as articulações são novamente marcadas (porém mais preenchidas que nas ilustrações anteriores). As manchas de aquarela preenchem o elemento secundário nesta ilustração (que é a bicicleta), definindo exatamente do que se trata e não deixando espaços para a associação e complementação do leitor. Os suportes da bicicleta, que são as linhas que vão das rodas a parte extrema superior da página, são fortes e marcadas, porém não competem com o corpo da ilustração por serem divididas (uma sai de cada roda e vai até o fim superior da ilustração) e não cruzarem entre si e nem com o corpo. 3. As linhas justapostas no rosto marcam novamente a intenção de despersonificar o corpo, porém, aqui, preenchem todo o corpo. Isso acontece pois pretende-se reforçar a dor do “semi-mudo e semi-tom” citado no texto (pois, os riscos arranhados e quase cortantes – no papel – se repetem insistentemente, simulando cortes que não são físicos, que essas sensações podem criar no corpo de quem tem depressão). A aquarela cumpre papel de reforçar o elemento secundário da ilustração (que é a bicicleta) sem competir com o corpo, já que seu preenchimento completo determina, sem dúvidas, do que se trata, já que, as manchas de aquarela são fluídas e não marcam o papel como os traços.

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4. Quanto a este conjunto, são exercidas a relação de colaboração e a função de seleção, uma vez que foi representado o fato de estar pedalando sem direção (“pedalo em direção nenhuma”), representação que ocorre devido ao fato de a bicicleta estar pendurada, o que tornaria a ação de pedalar sem direção e inútil.

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Figura 17: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Meias-Verdades” Fonte: a autora.

4.2.6 Meias-verdades

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Essa dupla de páginas contém o texto “Meias-verdades” e a ilustração que representa a concepção anatômica de um coração. Os riscos vermelhos representam os cortes, mas, como dito anteriormente, não se tratam apenas dos cortes físicos, mas também de todas as sensações lancinantes que podem ocorrer na depressão. Texto e ilustração são centralizados em suas páginas, com a intenção de que, quando fechadas, a ilustração se sobreponha ao texto, ou o texto se sobreponha a ilustração, efeito que ocorre por pretender demonstrar que nem as sensações das ilustrações nem as do texto significam plenamente as dores do momento retratado, elas se sobrepõem e doem mais, por não conseguir definir exatamente o que se sente. Quanto a diagramação do texto, a palavra “incessantemente” foi destacada com a intenção de reforçá-la no texto, uma vez que é nele que se dá uma mudança de acontecimentos no texto (já que ela conseguia dormir depois de cortar as pernas, até o susto a despertar incessantemente ao longo da madrugada). 1. Uma forma oval, centrada no meio da página, determina a estrutura visual básica desta ilustração, dentro da qual se encontra a parte principal do coração, enquanto outros elementos se encontram na adjacência superior. 2. Esta ilustração é composta principalmente por manchas, que preenchem e delimitam o coração; existem, também, alguns traços pretos, que percorrem principalmente a lateral esquerda da ilustração, e aparecem em menor quantidade em toda ela. Riscos vermelhos ocorrem na parte na qual as manchas de aquarela são mais leves, porém são detalhes discretos da ilustração. 3. Uma vez que a ilustração se encontra integralmente preenchida, não foi desejada a possibilidade de complementação pelo olhar do leitor. As manchas mais espessas de aquarela ocorrem na parte inferior e na lateral esquerda, quando acontecem em conjunto com traços. A ilustração foi pensada para evocar um coração, de acordo com definições da anatomia humana.

4. Neste conjunto, ocorrem a relação de colaboração e a função completiva, já que a imagem pretende explicar ou expor algo subentendido no texto, que é a sensação do corte (“Para dormir, ela corta as pernas”) e que as dores da depressão foram mais profundas e marcantes do que se poderia perceber.

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Figura 18: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Coxas-Retalhos” Fonte: a autora.

4.2.7 Coxas-retalhos “Coxas-Retalhos” é o texto que acompanha a ilustração desta dupla de páginas. Na ilustração, foi representada uma porta, cuja maçaneta aparece em vermelho. A maçaneta concentra todos os riscos vermelhos também por pretender representar, com eles, os cortes nas pernas que ninguém vê, e por querer colocar os riscos em um ponto que poderia não transmitir as ideias citadas anteriormente, ou seja, poderia passar apenas como um elemento de composição não percebido, como o ponto avermelhado contido na calça (“Ninguém percebe o ponto avermelhado naquela calça branca”). Texto e ilustração se encontram em pontos opostos da dupla de páginas, porém a intenção aqui é de utilizar o espaço em branco (que contorna a moldura) como mais um elemento que pressiona o corpo da ilustração, seguindo a mesma ideia do texto “Banho de chuva”. 1. A macroestrutura desta ilustração é um retângulo vertical que engloba toda a ilustração. 2. Apenas traços compõe esta ilustração. Traços pretos diminuem de intensidade do ponto superior direito ao ponto inferior esquerdo, sombreando assim a ilustração. No espaço do que seria a maçaneta, são percebidos traços vermelhos. A abertura da porta ocorreria da esquerda para a direita da ilustração, como se a abertura pudesse se dar somente para o texto. 3. Os riscos nesta ilustração ocorrem fortes e repetidamente, com a intenção de simular os cortes nas pernas e para representar o desejo de continuar cortando, e a maior concentração deles à direita propõe sombras nesse local. Também não se tratam de riscos perfeitamente retos e lisos para simular algo trêmulo. Os traços vermelhos na maçaneta podem remeter a uma mancha de sangue neste local. 4. A relação de colaboração e a função de seleção são exercidas neste conjunto, já que aqui foi representada a porta na qual pretendia se enforcar (“E o desejo de enforcar na porta, entorpece todos os dias”). Além disso, também se pretende ilustrar uma porta imaginária, que abriria o caminho compreendido como o único para o fim da dor daquele momento.

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Figura 19: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Pino de segurança” Fonte: a autora.

4.2.8 Pino de segurança Esta ilustração é acompanhada pelo texto “Pino de Segurança” na dupla de páginas. A ilustração é composta pela repetição e sobreposição da frase em inglês “you better let them go” (é melhor deixá-los ir). Os traços intensos pretendem, aqui também, remeter aos cortes e à intenção de continuar cortando, assim como aos cortes invisíveis que ficam cada vez mais profundos. Neste conjunto, texto e ilustração não se apresentam com uma relação visual na dupla de páginas, a ilustração ocupa toda a extensão de sua página, e o texto se localiza na linha horizontal central da grid. O título se encontra entre texto e ilustração, pois o equilíbrio (ou o “pino de segurança”) da situação na qual o texto foi escrito se encontrava entre “deixar ir” e as medicações que impediam de repelir a alma do corpo (se chegasse mais próximo de deixar ir, o pino de segurança seria ativado). 1. Por se tratar de uma ilustração composta por um texto escrito à mão que é repetido algumas vezes e aplicado em toda a extensão da página, a estrutura visual básica, neste caso, acompanha as linhas horizontais nas quais as faixas de texto se encontram. 2. Esta ilustração é composta por traços justapostos e repetidos, que desenham as palavras da frase, não apresentando grandes discrepâncias de traços ao longo de sua elaboração. A frase se repete três vezes, em duas delas com transparência (uma mais transparente que outra) e em uma sem transparência. 3. Os traços, nessa ilustração, se apresentam intensos e marcantes, mesmo estando localizados apenas no desenho das palavras. É percebida a repetição dos traços, registrando-os fortemente. 4. Quanto a este texto e esta imagem, é estabelecida entre eles a relação de colaboração e a função de revelação. Esta função, no caso deste conjunto, ocorre por que a imagem se refere a deixar ir, tanto com relação aos remédios que impedem de repelir a alma do corpo, como às pessoas que faziam pensar em não repeli-la, questões que não estão diretamente expostas no texto (apesar do texto falar dos remédios - “Número exato de medicações me/ impede de repelir a alma do corpo).

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Figura 20: Ilustração e texto do livro, referentes ao conjunto “Mecanismos de proteção” Fonte: a autora.

4.2.9 Mecanismos de proteção Esta é a última ilustração do livro e é acompanhada na dupla de páginas pelo texto “Mecanismos de proteção”. Nela é percebido um busto sem definição de rosto. A ilustração, neste caso, pretende reforçar algumas sensações expostas no livro, como por exemplo o despersonificar recorrente em algumas ilustrações e o vazio sentido naquele momento; e outras que ressaltam todo o período de depressão, como por exemplo o fato de, nesses momentos, não serem identificáveis características ou qualidades pessoais, só se identificam contornos, dores e ausências. O texto, neste caso, pretende reproduzir a condição gráfica na qual o primeiro texto foi colocado, se mantendo na coluna vertical central, porém se colocando como final (já que no primeiro o título se encontra acima do texto – abrindo o livro –, enquanto neste o título se encontra abaixo - fechando o livro). 1. Um retângulo vertical que abrange rosto e pescoço da ilustração determina sua macroestrutura, já que são a parte mais marcante da ilustração, deixando os ombros como elementos secundários e adjacentes. 2. Traços são os elementos construtivos básicos desta ilustração e se concentram principalmente em seu rosto, o qual possui riscos mais intensos na parte inferior que vão perdendo intensidade conforme se aproximam da parte superior do rosto. Esses traços proporcionam volume e, por não delinearem feições ao rosto, despersonificam a ilustração. 3. Os traços, aqui, tem como principal intuito retirar características que determinariam quem é na ilustração. Eles delimitam, também, o contorno do busto. 4. Aqui acontecem a relação de colaboração e a função de revelação. A ocorrência desta função se dá já que a ilustração representa um todo de sentimentos da depressão, e não algum ponto específico do texto.

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4.2.10 Sobre todas as análises

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Ao observar as ilustrações como um conjunto, percebo que em comum à todas as ilustrações estão o traço e o espaço em branco. O traço é o elemento mais marcante e o branco tanto é utilizado para emoldurar, bem como, para conectar texto e imagem, inclusive quando ambos estão em pontos extremos opostos da dupla de páginas. Outra característica presente é a intenção de despersonificar as ilustrações e, com isso, despersonificar os textos. A relação de colaboração é a que ocorre em todos os conjuntos, já que texto e imagem cooperam para a produção de um sentido comum, enquanto que as funções exercidas pelo elemento prioritário do conjunto varia, sendo a função de seleção a que aparece em maior número (quatro vezes), seguida pela função de revelação (três vezes) e a função completiva (duas vezes). Além disso, todos os textos, ilustrações e títulos interagem espacialmente na dupla de páginas, ou seja, a maneira que estão dispostos sempre tem a intenção de enfatizar a significação do conjunto.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Iniciei esta pesquisa com o intuito de fechar um ciclo. Cheguei a acreditar que seria impossível me desvincular do ciclo de depressão – inclusive estive completamente imersa nele ao longo de todo o desenvolvimento deste trabalho – confesso que não esperava um tempo tão difícil e doloroso. Precisei mexer em coisas que eu tinha guardado, olhar para as cicatrizes que não queria ver e acreditar que eu não conseguiria fechar esse ciclo para, agora, realmente conseguir fechá-lo. Escrevo essa conclusão com o sentimento que esperava – e precisava – ter ao iniciar esta pesquisa: sinto que, finalmente, consigo finalizar este ciclo. Devido à construção editorial do livro – o grid, a maneira que foram distribuídos textos e imagens, a escolha da tipografia – percebi a associação dos componentes do design à minha produção artística: meu livro de artista. Compreendo meu livro dentro da categoria de livro de artista uma vez que, este campo abrange todas as produções que empregam o formato do livro para constituir uma obra de arte; e, dentro deste campo, compreendo meu projeto prático como livro ilustrado, já que este é caracterizado pela presença de texto e imagem, sendo a diagramação utilizada para articulá-los e as imagens de maior importância espacial que os textos. As ilustrações e os textos foram reafirmados como conjunto nas análises, uma vez que a conexão entre eles sempre se deu para enfatizar o sentido pretendido, independente de qual dos dois elementos foi reconhecido como elemento primário. As análises ocorreram com intuito de dissecar esses conjuntos e de entender melhor como a combinação flui e, através delas, foi possível perceber conexões formais entre textos e imagens.

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSOCIAÇÃO Brasileira de Normas Técnicas. NBR 6029: Informação e documentação — Livros e folhetos — Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2006. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2014. CASTLEMAN, Riva. A Century of Artists Books. New York: N. Abrams. 1995. Disponível em: < https://www. moma.org/momaorg/shared/pdfs/docs/press_archives/7297/releases/MOMA_1994_0083_55.pdf?2010> acesso em 10 mar 2015. GOLDSTEIN, Nathan; The Art of Responsive Drawing. New Jersey: Prentice-Hall, 1999.

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OLIVEIRA, Sandra Ramalho. Imagem também se lê. São Paulo: Edições Rosari, 2009. SILVEIRA, Paulo. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. 2 ed. Porto Alegre: UFRGS, 2001. _______. As existências da narrativa no livro de artista. Porto Alegre: Instituto de Artes da UFRGS, 2008. 321p. (Tese, Doutorado em História, Teoria e Crítica da Arte). TOBIAS, Jennifer. Livro de artistas. In: LUPTON, ELLEN . A produção de um livro independente - indie publishing - um guia para autores, artistas e designers. São Paulo: Edições Rosari, 2011. UNESCO. Institute for Statistics, 1964, Disponível em > Acesso em: 04 nov. 2014.

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