RELEVÂNCIA DO DECRETO N.º 1.318, DE 1854, PARA A VERIFICAÇÃO DA VALIDADE DA ORIGEM DA PROPRIEDADE PARTICULAR SOBRE A TERRA

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RELEVÂNCIA DO DECRETO N.º 1.318, DE 1854, PARA A VERIFICAÇÃO DA VALIDADE DA ORIGEM DA PROPRIEDADE PARTICULAR SOBRE A TERRA Cláudio GRANDE JÚNIOR

Procuradoria-Geral do Estado de Goiás (http://www.pge.go.gov.br/)

RESUMO: Trata-se de pesquisa que analisa as atuais dificuldades encontradas ao se tentar empreender análise jurídica mais rigorosa a respeito da validade da origem do domínio particular sobre terras, localizadas em território goiano, atualmente consideradas propriedades particulares. Demonstra que, em grande medida, essas dificuldades decorrem de algumas soluções imediatistas adotadas pelo Decreto n.º 1.318, de 1854, que veiculou o Regulamento da Lei de Terras do Império. Atualmente, essas dificuldades são de complexa superação, quando não insuperáveis, o que tem levado o Estado de Goiás a presumir a validade da origem do domínio particular em várias situações, principalmente invocando o art. 150 da Constituição Estadual de 1947.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Agrário. História do Direito. Propriedade Imobiliária. Terras Devolutas.

ABSTRACT: It is a research that analyzes the encountered difficulties when attempting to undertake more rigorous legal analysis regarding the validity of the source of private field on land located on goiano territory, currently considered private properties. It demonstrates that, to a large extent, those difficulties stem from some shortsighted solutions adopted by Decree no. 1,318, of 1874, which conveyed the Regulation of the Land Law of the Empire. Nowadays, those difficulties are complex overrun, when not insurmountable, which has led the State of Goiás to assume the validity of the source of the private domain in several situations, mainly by invoking the art. 150 of the State Constitution of 1947.

KEYWORDS: Agrarian Law. History of Law. Real Estate Property. Untitled Public Lands.



Mestre em Direito Agrário (UFG). Especialista em Direito Constitucional (UFG). Especialista em Direito Administrativo Contemporâneo (IDAG). Procurador do Estado de Goiás. [email protected]

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INTRODUÇÃO

Trata-se de pesquisa a respeito das dificuldades de análise jurídica sobre a validade da origem das cadeias dominiais de muitas das terras, localizadas em território goiano, atualmente consideradas propriedades particulares. Dificuldades essas que decorrem, em grande medida, de algumas soluções capengas adotadas pelo Decreto n.º 1.318, de 1854, que baixou o Regulamento da Lei de Terras do Império (Lei n.º 601, de 1850). Para que tenha origem jurídica válida, a propriedade particular da terra, no Brasil, precisa ter se constituído conforme autorizado pela Lei de Terras de Império, seu Regulamento, e pelas leis federais e estaduais subsequente sobre o assunto. Problema: nos dias atuais ainda é sempre possível uma análise rigorosa disso? A hipótese é a de que transcorrido tanto tempo (159 anos), nem sempre isso é mais possível e, quando sim, com extrema dificuldade. É o que esta pesquisa procura verificar com relação a vários imóveis recentemente objeto de usucapiões e desapropriações no Estado de Goiás, cotejando a documentação encontrada sobre suas cadeias dominais com a legislação acima referida.

MATERIAL E MÉTODOS

Tratando-se de uma pesquisa jurídica, buscou-se primeiramente socorro nos textos da legislação vigente e revogada. Foram pesquisadas as interpretações doutrinárias e jurisprudenciais conferidas a esses textos legais no decorrer da história. Por outro lado, foram analisadas não apenas obras jurídicas sobre o tema, mas também livros e artigos de outras áreas, como história, geografia e economia. Também, a título de comparação, foram estudadas algumas obras sobre a origem da propriedade privada da terra nos Estados Unidos da América. Paralelamente, foram pesquisadas e examinadas amostras de documentação representativa de situações que ampararam a elaboração e a interpretação da legislação sobre o assunto, tais como: cartas de sesmarias, certidões sobre autos judiciais de medição e demarcação de sesmarias, registros paroquiais, certidões sobre escrituras de transferências de terras lavradas a partir de títulos admitidos como de domínio antes do início da vigência do Código Civil de 1916, antigos autos judiciais de ações de divisão de terras particulares e de ações de inventário e partilha envolvendo terras supostamente particulares, peças extraídas de autos de ações discriminatórias e títulos de domínio expedidos pelo Estado de Goiás. 2

Desse modo, a pesquisa desenvolvida é em caráter não experimental do tipo bibliográfica, bem como documental e de estudo de casos. Para a apreciação da legislação, o método de abordagem inicialmente utilizado na condução da investigação foi o hipotético-dedutivo. Mas este se mostrou insuficiente para uma satisfatória compreensão dos diplomas legais e das respectivas interpretações doutrinárias e jurisprudenciais. O método indutivo despontou na análise do material documental colhido e dos estudos de caso. Ademais, revelou-se inevitável a investigação histórica de acontecimentos políticos, econômicos e sociais para uma compreensão minimamente aceitável do fenômeno jurídico em foco, principalmente quanto ao enfrentamento das divergências encontradas no material bibliográfico e no documental. Neste ponto, foi imprescindível a utilização do método dialético para superação das contradições.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O material documental pesquisado confirma que, em Goiás, poucas propriedades particulares imobiliárias têm origem em títulos formalmente expedidos pelo Estado. Eles cobrem pequena extensão do território goiano e em sua maioria são recentes, porque têm por origem terras devolutas cuja arrecadação ou a discriminação e demarcação só aconteceram na segunda metade do século XX. Outros são do fim do século XIX e do início do século XX, mas em grande parte títulos provisórios. Neste caso, sabe-se que o particular pagou ao Estado a quantia na época considerada necessária para a aquisição da terra. Mas, sem encontrar o título definitivo, não se alcança certeza sobre a subsequente medição e demarcação exigidas para a expedição do título definitivo. Com relação a títulos expedidos durante o Império, seja por venda ou legitimação de posse, o material bibliográfico dá notícia de uns poucos (ALENCAR, 1993, p. 32-36), não tendo sido encontrado nenhum no material documental. Por sua vez, as cartas de sesmarias concedidas também cobrem diminuta extensão do território goiano, confirmando as informações do material bibliográfico. A documentação levantada não dá certeza sobre a confirmação de nenhuma delas, embora eventualmente indique que isso possa ter ocorrido com relação a algumas. Assim, na maioria dos casos, não é possível enquadrar a validade da origem da propriedade privada da terra no art. 1º nem no art. 3º, §§ 3º e 4º, da Lei de Terras do Império. À primeira vista, também não é possível enquadrá-la no § 2º do art. 3º da referida Lei, de 3

modo a parecer que a grande maioria das propriedades particulares imobiliárias em Goiás não tem origem válida. É neste ponto, contudo, que Regulamento de 1854 demonstra sua enorme relevância. Isso pela forma como ele disciplinou várias questões, sobretudo, a da primeira parte do § 2º do art. 3º da Lei de Terras, considerando uma série de hipóteses como de “domínio particular por qualquer titulo legitimo”. A questão foi tratada principalmente do art. 22 ao 27 do Regulamento, reconhecendo o domínio a todo possuidor de terras que tivesse adquirido sua posse por algum titulo que, pela legislação da época, também fosse hábil à aquisição do domínio, ainda que essas terras tenham sido originariamente adquiridas por mera posses de seus antecessores ou por concessões de sesmarias não medidas, ou não confirmadas, nem cultivadas. A maioria dos registros paroquiais analisados faz referência a esse tipo de situação, ou seja, de segundos possuidores, normalmente a título de herança ou compra. Contudo, os registros paroquiais certificavam apenas a posse a partir de declarações do interessado, de modo que para se conseguir certeza sobre a origem válida do domínio particular é necessário encontrar os títulos legítimos mencionados nos registros paroquiais. Isso hoje é extremamente difícil, porque a obrigatoriedade do registro imobiliário para a transferência da propriedade imóvel só foi imposta sem exceções a partir do Código Civil de 1916 (art. 530, I) e melhor regulamentada pelo Decreto n.º 18.542, de 1928, tanto que muitos cartórios de imóveis no Estado de Goiás só surgiram a partir de 1930. Os títulos que compõem a cadeia dominial anterior a esse período estão espalhados em vários cartórios e fóruns, além de alguns serem meros escritos particulares, conforme permitido pela legislação da época e mencionado no art. 26 do Regulamento. Essa dificuldade toda poderia ter sido evitada se o Regulamento tivesse ao menos exigido dos particulares requerer, junto ao Poder Público, a expedição de novos títulos confirmatórios, como aconteceu em algumas regiões dos Estados Unidos da América. Todavia, o Regulamento dispôs exatamente em sentido contrário no seu art. 23. Como não promovida a discriminação das terras devolutas durante o Império e nem na República Velha, foi e vai se tornando cada vez mais difícil a identificação das terras devolutas, o que dá margem, inclusive, à grilagem de terras. Isso tem levado o Estado de Goiás à admissão de várias presunções para o reconhecimento da origem válida do domínio particular, principalmente mediante a aplicação do art. 150 da Constituição Estadual de 1947, que impediu o Estado de exercitar direitos sobre as terras que estiverem no domínio de particulares, por qualquer título de aquisição anterior a 4

1º de janeiro de 1887, ou em virtude da posse, com cultura efetiva e morada habitual, também anterior àquela data.

CONCLUSÕES

É extremamente difícil uma rigorosa análise sobre a validade da origem das propriedades particulares imobiliárias em Goiás, quando não impossível, em razão da tacanha sistematização adotada pelo Regulamento, de 1854, da Lei de Terras do Império. Isso tem forçado o Estado a presumir a validade da origem do domínio particular em várias situações, invocando principalmente o art. 150 da Constituição Estadual de 1947.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, Maria Amélia Garcia de. Estrutura fundiária em Goiás: consolidação e mudanças (1850-1910). Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 1993. ALMEIDA, Francisco de Paula Lacerda de. Direito das cousas. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos, 1908. CAMPOS, Francisco Itami. Goiás, formas de ocupação: “... uma população sem terras, numa terra despovoada...”. Sociedade e Cultura, v. 1, n. 1. Goiânia: UFG, jan./jun. 1998, p. 71-80, p. 78. Disponível em: Acesso em 23 ago. 2011. CLAWSON, Marion. The land system of the United States: an introduction to the history and practice of land use and land tenure. Lincoln: University of Nebraska, 1968. GRANDE JÚNIOR, Cláudio. Usucapião quarentenária sobre terras do Estado: fundamentos jurídicos, atualidade e repercussão na questão agrária brasileira. Dissertação de Mestrado. Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2012. JUNQUEIRA, Messias. O instituto brasileiro das terras devolutas. São Paulo: Lael, 1976. LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria Sulina, 1954. PORTO, José da Costa. Estudo sobre o sistema sesmarial. Recife: Imprensa Universitária, 1965. SILVA, Ligia Osorio. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850. Campinas: Unicamp, 1996. VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 5

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