Relevância, Ressonância, Engajamento – a Museologia e o Patrimônio em ação.

July 24, 2017 | Autor: M. Parreiras Horta | Categoria: Relevance
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Relevância, Ressonância, Engajamento – a Museologia e o Patrimônio em ação.
Maria de Lourdes Parreiras Horta
Lisboa, novembro 2014

Como analisar as ações da Museologia e do campo do Patrimônio Cultural na era da realidade virtual e das redes intangíveis que parecem hoje controlar a vida em sociedade? Como avaliar o papel das instituições patrimoniais e museológicas e sua potencial contribuição para o desenvolvimento individual e coletivo? Acreditamos que é unicamente através e a partir da prática que encontraremos os fundamentos das teorias que embasam, na atualidade, essas disciplinas e campos do saber. Os conceitos de Relevância, Ressonância e Engajamento podem ser alguns dos parâmetros que podemos utilizar para aferir a importância e a efetividade da Museologia e do Patrimônio, quando postos em ação.
Antes de abordar as questões acima, gostaria de contar algumas histórias, falar de algumas experiências, que podem melhor explorar estes conceitos, em diferentes casos e momentos: o caso do Museu de Brasília... "museu é coisa de branco"... e a questão da "relevância"; o caso dos elefantes brancos... e a questão da "ressonância"; e a preocupante questão do futuro do Alberto...


O caso do museu de Brasília...
Há alguns anos atrás uma intensa polêmica explodiu em Brasília, em torno da instalação de um museu de arte contemporânea no belo edifício circular criado por Oscar Niemeyer para originalmente abrigar um Museu Nacional do Índio. A disputa entre os defensores da causa indígena e os representantes da arte "ilustrada" na capital federal chegou a tal impasse que um bem intencionado representante da "mídia" resolveu ouvir a opinião dos próprios indígenas. A resposta de um de seus líderes veio rápida e conclusiva: "Façam o que quiserem com o prédio. Museu é coisa de branco...".
O fato acima descrito, e seu desenrolar, podem ser tomados como uma parábola exemplar da natureza, da história e do papel dos museus na configuração sócio-política e cultural do Brasil, e que por extensão poderia ser aplicada ao contexto dos demais países da América Latina, em sua trajetória ao longo dos últimos séculos. Nestes contextos multifacetados, os museus podem ser "lidos" como "textos", ou "intertextos" que refletem em seu vocabulário, gramática, sintaxe e semântica os "discursos" dominantes e hegemônicos que permeiam a trama, as atitudes e as inter-relações dos diferentes grupos que compõem nossas sociedades, neste vasto continente.
Se quisermos analisar o "sistema de museus" no Brasil, e seu funcionamento, no passado e no presente, e estabelecer uma análise comparativa, aplicada aos demais países latino-americanos, poderíamos começar pela observação de suas origens, ou de sua "pré-história", a partir do século XVI, no momento em que tem início o processo de conquista dos territórios pelos colonizadores europeus. A frase lapidar do cacique indígena pode sintetizar a situação: "museu é coisa de branco", ou melhor, de europeu, que descobre o Novo Mundo.
A ideia e o modelo de "museu" que começam a tomar forma em nosso continente naquele momento correspondem à ideia e ao modelo, ainda privados e privilégio de uns poucos, que se difundiram na Europa no final da Idade Média, com a designação de "gabinetes de curiosidades", ou "câmara das maravilhas", para deleite dos príncipes e senhores renascentistas.
A descoberta das terras americanas veio trazer um incremento incalculável à coleção de espécimes exóticos e raros, de riquezas inesperadas à visão deslumbrada dos senhores do norte. A estratégia da conquista dos novos territórios teve como um dos seus eixos principais a demarcação do solo e a realização de "inventários" das riquezas encontradas, vivas ou inertes.
A descrição e a "nomenclatura" dos elementos e espaços encontrados é a missão fundamental das viagens exploratórias que se sucedem ao descobrimento, e a literatura de viagens, baseada em relatórios minuciosos, elaborados de acordo com regras precisas, configura-se em um "corpus" literário cuja importância até hoje não foi suficientemente explorada e reconhecida, como analisa Daniel Defert (Defert, 1982), em um ensaio sobre a "coleta do mundo" para o Museu de Etnografia de Neuchâtel.
Poderíamos sugerir que estes relatos e crônicas de viagem constituem o documento de nascimento, ou de "fundação", do grande e imaginário "museu americano", que começa a constituir-se, virtual e concretamente, a partir deste momento. Nesta interpretação, é possível explicar a existência, em museus e arquivos europeus, de um acervo original de fundamental importância para a história e a cultura dos povos sul-americanos, recolhido em suas formas e manifestações originais no momento da conquista, e que jamais voltaram ao seu local de produção, nem sequer foram vistos por seus verdadeiros herdeiros; basta lembrar, como exemplo, que as peças mais antigas e exemplares da artesania Tikuna, do Alto Amazonas, encontram-se em museus e arquivos da Alemanha e da Áustria, e nunca puderam ser vistos pelos antropólogos brasileiros ou pelos próprios indígenas, que hoje procuram recuperar suas origens e tradições culturais. O Museu Magüta, em Benjamin Constant, no estado do Amazonas, criado e desenvolvido pelos Tikuna, de modo especial pelo nosso colega Constantino Cupeatüku Ramos Lopes, falecido prematuramente em 2012, teve a ajuda e colaboração da antropóloga Jussara Gruber para se constituir em um dos mais genuínos e relevantes museus da cultura indígena do país, consagrado como o "museu do ano" pelo Comitê Brasileiro do ICOM, em 1993. Infelizmente, depois de alguns anos, e por interferências indevidas, a energia do Museu Magüta se perdeu, "embranqueceu"...

A questão da RELEVÂNCIA...
O conceito de relevância é estudado em muitos campos diferentes, inclusive o das ciências do conhecimento, da lógica e das ciências da informação. Mais fundamentalmente, ele é estudado na epistemologia - a teoria do conhecimento. Diferentes teorias do conhecimento têm implicações diferentes com relação ao que é considerado relevante. Estas visões fundamentais diversas têm da mesma forma implicações em todos os outros campos.
De acordo com a mais simples definição:
"Alguma coisa (A) é relevante para uma tarefa (T) caso aumente a probabilidade de se atingir o objetivo (O), que está implícito em (T)." (Hjorland & Sejer Christensen, 2002).
Uma coisa pode ser relevante, um documento ou uma informação podem ser relevantes. A compreensão básica de "relevância" não depende de que falemos de "coisas" ou de "informações".
Em 1986, Dan Sperber e Deirdre Wilson (Sperber e Wilson, 1986) chamaram a atenção para a importância central das decisões baseadas na relevância, no raciocínio e na comunicação, e apresentaram o relato do processo de inferir informação relevante de qualquer proposição. Para fazer este trabalho, usaram o que chamaram de "Princípio da Relevância": notadamente, a proposição de que qualquer frase dirigida a alguém carrega automaticamente a presunção de sua própria relevância máxima. A ideia central da teoria de Sperber e Wilson é a de que todas as expressões se encontram em algum contexto, e que a correta interpretação de uma expressão específica é aquela que permite que o maior número de novas implicações possa ser feitas naquele contexto, com base no menor número de informações necessárias para transmiti-las. Para os autores, a relevância é concebida como relativa ou subjetiva, pois depende do nível de conhecimento do ouvinte quando se depara com uma expressão.
Sperber e Wilson afirmam que esta teoria não visa explicar todas as aplicações intuitivas da palavra "relevância". Relevância, como um termo técnico, está restrito a relações entre expressões e interpretações, e desse modo a teoria não pode responder por intuições tais como as que relações de relevância obtêm em problemas envolvendo objetos físicos. Se um mecânico precisa consertar uma torneira pingando, alguns objetos e ferramentas são relevantes (por exemplo, uma chave de fenda) e outros não são (por exemplo, uma máquina de waffle). E ainda, esta última é irrelevante de um modo que não depende do nível de conhecimento do mecânico, ou das expressões usadas para descrever o problema.
Uma teoria da relevância que parece ser mais facilmente aplicável em tais instâncias de resolução de problemas físicos foi sugerida por Goraskaya e Lindsay (Goraskaya e Lindsay, 1993) em uma série de artigos publicados nos anos 90. Um item (por exemplo, uma expressão ou um objeto) é relevante para um objetivo se, e apenas se, ele pode ser um elemento essencial de algum plano capaz de atingir o objetivo desejado. Esta teoria abarca tanto o raciocínio proposicional como as atividades de resolução de problemas das pessoas, tais como os dos mecânicos, por exemplo, e define a relevância de tal modo que o que é relevante é determinado pelo mundo real (porque se os planos darão certo, é uma questão de um fato empírico) e não pelo nível de conhecimento ou crença de um solucionador de problemas qualquer.
A partir desses conceitos e exemplos poderíamos analisar qual a relevância dos museus e do patrimônio cultural para se atingir o objetivo do desenvolvimento local, da melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, do reforço da autoestima, da sustentabilidade destes valores. E poderíamos nos perguntar que objetivo, ou objetivos, têm nos museus e na ação patrimonial elementos essenciais únicos e específicos para sua consecução. Que planos estratégicos para a ação museológica e/ou patrimonial seriam os instrumentos ou elementos essenciais para se atingir estes objetivos?
Em determinado momento de sua história, o Museu Magüta foi fundamentalmente relevante para o reforço da identidade e da cultura do povo Tikuna; as estratégias de sua implantação foram essenciais para os resultados afirmativos de sua ação social, cultural e identitária.
Que tipo de relevância teriam os museus e o patrimônio para a vida social, para os indivíduos e as comunidades... Este é um grande tema de pesquisa, cujo desenvolvimento pode nos trazer grandes revelações... Mas a teoria é uma e a prática é outra. E esta relevância só pode ser avaliada em seu efeito sobre o mundo real...
Passemos à segunda história:
O insólito caso dos elefantes brancos...
Há mais de 20 anos atrás fiz uma palestra em um Seminário sobre os Museus Nacionais, em que eu comparava estas grandes instituições com "elefantes brancos", como era comum se ouvir em críticas feitas por diferentes pessoas, relativas ao seu alto custo e pouca presença na vida coletiva. A maioria das pessoas ignorava então a função, o interesse e a importância dos grandes museus para a sociedade, em contraste com todos os problemas que a população tinha que enfrentar em seu quotidiano, como a prestação sempre insatisfatória dos serviços públicos, e com todas as carências nas áreas fundamentais como a saúde, a educação, o emprego, a segurança e assistência social.
Acredito que hoje essa visão tenha mudado bastante, por diferentes fatores, como inclusive o estímulo da mídia em relação às grandes exposições internacionais que atraem hoje públicos diversos e em números impressionantes, com a possibilidade das pessoas de viajar ao exterior, e de fazer filas quilométricas nos grandes museus, nas grandes metrópoles, e ainda a melhor compreensão, por uma grande parcela da população, da importância dos eventos e exposições promovidas pelos museus para o futuro de seus filhos e de si própria. É aí que vem ao caso...
O caso do futuro do Alberto... Naquela época, por ocasião da realização de uma primeira grande mostra, no Rio de Janeiro, do tipo que classificamos como "blockbusters", com obras de Rodin, vindas diretamente da França, registramos um diálogo exemplar entre uma repórter e uma senhora que, acompanhada do filho de uns oito ou nove anos, aguardava já há umas quatro horas na fila para ingressar no Museu Nacional de Belas Artes. Respondendo à pergunta sobre os motivos que a faziam estar ali, vindo de um subúrbio distante do centro da cidade, para ver aquela exposição, e se sabia da importância do artista cuja obra estava prestes a conhecer, a mãe respondeu categoricamente: "Esse tal de "Rodinho" eu não sei quem é não, não conheço, mas sei que isso vai ser muito importante para o futuro do Alberto!". Esta afirmação já foi tema de uma longa palestra que fiz em outro encontro de museólogos em Buenos Aires, enfocando o papel social e educativo dos museus, cujas questões são ressonantes por toda a América Latina... E já nos aproximamos da discussão da palavra e do conceito de "ressonância" que aplicaremos ao tema! Mas voltemos aos nossos elefantes:
A imagem dos elefantes brancos, ou dos grandes museus nacionais, muitos ainda hoje perfeitamente enquadrados na metáfora que escolhi para falar dessa questão, num dos quais trabalhei, vivi boa parte da minha vida, e assumi a direção por mais de 17 anos, parece-me ainda pertinente e útil: estes elefantes (os nossos grandes museus, públicos ou privados) se equilibram, numa pata só, no meio de uma corda bamba esticada entre dois pontos. A clássica imagem que até alguns anos atrás era a propaganda dos grandes circos, oferece-nos um bom tema para discutir o assunto: o problema não se resume apenas em saber como cuidar desses belos monstros de estimação, como alimentá-los, escová-los, tratá-los, e colocar curativos nos seus arranhões, e ainda conseguir que façam gracinhas para o público. É difícil até mesmo explicar como chegaram até lá, no meio da corda bamba. O problema maior, entretanto, é saber como fazê-los descer, e coloca-los em terra firme, para poderem continuar caminhando.
O elefante branco pode assim ser uma boa metáfora do perfil e da natureza dos museus nacionais, espécimes raros e talvez em extinção, mantidos a um enorme custo e esforço de muita gente, cuja memória, como se sabe, é fabulosa, exercendo um indiscutível fascínio sobre as gentes, misteriosos, poéticos, atraindo adultos e crianças, e cujo inquestionável e inquestionado poder mitológico faz com que pareçam tão naturais e prováveis em qualquer esquina dos zoológicos urbanos das grandes capitais quanto eram os seus colegas cinzentos que atraiam invariavelmente as plateias dos velhos circos.
A imagem pode também ser explorada com uma função metonímica – representando uma parte da realidade pelo todo – que não é só o todo dos museus e das instituições culturais e patrimoniais, mas dos sistemas sociais, políticos e econômicos do meu país. Um todo que se sustenta, em última análise, em sistemas de valores e critérios capazes muitas vezes de gerar espécimes tão aberrantes e exóticos quanto os nossos pequenos, pobres elefantes.
Algumas questões fundamentais são relevantes aqui:
Porque os elefantes estão na corda bamba? Como fazê-los descer de lá, com que instrumentos e métodos, e quais são as perspectivas de sucesso para tal operação? E que corda é essa, e quem a esticou?
Comecemos com a corda, para depois chegar à caçamba e quem sabe cheguemos até à água no fundo do poço. No plano puramente teórico que nos remete à natureza e à função dos museus, esta poderia ser a fronteira entre a Lógica e a Poesia, a linha tênue e oscilante sobre a qual se desenvolve e se equilibra a arte, a linguagem e a ação museológica e patrimonial. Ensinar ou Emocionar? Preservar valores ou sensibilizar para os valores? Informar ou Conscientizar? Questões que dariam motivo a uma longa discussão.
Quantas questões já colocamos aqui ... E ainda vêm de lá vocês com a questão da sustentabilidade? Ora, pois, como se sustenta um elefante branco numa corda bamba?
Voltemos assim objetivamente à situação. No plano concreto e real, o desastre parece iminente. Pela lei da gravidade e pela lei das probabilidades, é possível se prever duas alternativas: ou a corda arrebenta, ou o elefante se desequilibra - para as quais teríamos algumas soluções ou recursos que não são absolutamente seguros: ou se estendem mais cordas e se constrói uma rede, suficientemente forte que aguente o peso do animal, ou podemos tentar colocar escadas – para cima do telhado, ou do muro, e o problema continua, ou para o chão, e resta perguntar se elefantes descem escadas.
Deixando de lado o simbólico e buscando um enfoque semiológico da fábula aqui proposta para analisarmos a forma desse conteúdo e a substância dessa imagem, que vos proponho aqui, é preciso desviar a colocação para outro plano, que não é tão visível e concreto quanto o elefante, a corda, o chão ou a escada. Invisível, mas real como o ar que se respira, porque é justamente o plano do espaço que existe entre esses elementos e em torno deles: o espaço da produção cultural, no qual os museus se situam como agentes cujo peso, importância e efetividade ainda não foram devidamente explorados. Podemos assim tomar a corda esticada como uma medida desse espaço, o que nos permite várias interpretações:
A primeira seria considerar os dois pontos que a limitam como a Teoria e a Prática. Seria quase óbvio dizer que há uma longa distância entre esses dois pontos. Mas já não seria óbvio dizer, contrariando as leis da Geometria, que o caminho entre esses dois pontos não é uma linha reta (e por isso dizemos que é "bamba"), cheio de curvas, meandros e oscilações. Talvez se possa dizer até que é uma espiral ou mesmo um labirinto.
Não seria, portanto, óbvio dizer o que Pierre Bourdieu (Bourdieu, 1987:112/116) desenvolve como uma teoria – a teoria da distância entre a Teoria e a Prática, a teoria do espaço social e do poder simbólico que nele se desenvolve – o que talvez possa explicar porque os elefantes balançam, mas não caem!
Numa conferência pronunciada em Strasbourg, a propósito do Homo Academicus, em dezembro de 1984, Bourdieu (1987a) propõe-se a objetivar o sujeito objetivante – no caso, a Universidade: objetivar a situação a partir da qual somos legitimados a objetivar. Uma proposta com um duplo objeto: em primeiro o objeto aparente, o "objet naif", segundo o autor. "O que é a Universidade? Como é a Universidade?" No nosso caso poderíamos perguntar: "O que são os Museus? Como são os museus, para quem são?". Em segundo lugar, a ação particular de objetivar, e de objetivar uma instituição que é socialmente reconhecida como destinada a operar uma objetivação, com a pretensão de objetividade e universalidade. No caso dos museus, instituições que tem por fundamento a objetivação das evidências concretas da relação do homem com a realidade.
Aplicando a experimentação sociológica de Bourdieu (a propósito do trabalho da sociologia), ao campo de trabalho museológico e patrimonial, é possível ampliar a esfera do debate aqui proposto a um nível que interessa a todas as disciplinas e áreas de conhecimento e de produção cultural aqui representadas.
Quando se diz, "os museus nacionais representam a ideologia das classes dominantes" ou "são a expressão de uma burguesia ascendente", comete-se o erro do "curto-circuito", como diz Bourdieu. Erro que consiste em relacionar dois termos bastante afastados, suprimindo uma mediação muito importante – o espaço no interior do qual as pessoas produzem, ou seja – o campo da produção cultural.
Este subespaço não deixa de ser um espaço social, no qual se estabelecem jogos sociais de um tipo particular, e interesses que podem estar bem distanciados daquilo que acontece no mundo exterior a ele. Entretanto, além dos interesses e determinantes sociais associados a posições e enfoques específicos, existem, segundo o filósofo, determinações bem mais fundamentais e bem mais despercebidas que são inerentes à postura intelectual, à posição do "sábio".
No momento em que observamos o mundo social, ou uma parcela dele, nossa percepção está sujeita a um desvio fundamental: o fato de que, para falar do mundo social, ou para estudá-lo para falar sobre ele, é preciso que nos distanciemos dele. Para falar do elefante equilibrado em cima da corda, ou para estudarmos as possibilidades de tira-lo dessa situação, é preciso que estejamos no chão, ou na janela, ou até mesmo em cima do muro.
O desvio que se pode chamar de "teoricista", ou intelectualista consiste, segundo Bourdieu, em esquecer-se de inscrever, na teoria que se faz do mundo social, o fato de que ele é produto de um olhar teórico (Bourdieu, 1987a). Para fazer uma ciência justa do mundo social é preciso não só construir uma teoria (modelos, estruturas e relações) como também inserir na teoria final uma teoria da distância entre a teoria e a prática. Entre a nossa objetivação do elefante e o seu ponto de equilíbrio.
É nesse espaço social, como em todos os universos sociais – espaço como sistema de relações, que os problemas se criam e se resolvem. Na Teoria, existem hipóteses, na Prática encontram-se soluções. Quaisquer que elas sejam – rede, escada, asas ou até mesmo a queda e o desmoronamento. Na análise e objetivação de um fenômeno social, é preciso estar atento ao objeto, mas também ao trabalho que se faz sobre esse objeto.
O campo social é também um campo de poder. No mundo universitário, como no museológico, há uma luta pela última palavra, por dizer a verdade mais definitiva sobre o mundo universitário, o mundo museológico e sobre o universo social de um modo geral. Uma luta que opõe o sociólogo ao antropólogo, o psicólogo ao médico, o arquiteto ao museólogo, como também os sociólogos, antropólogos, psicólogos, arquitetos e museólogos entre si.
O pseudo-objetivismo teórico e acadêmico, diz Bourdieu, abriga a tentação de esmagar os concorrentes, o que gera erros, e erros técnicos (Bourdieu, 1987a).
É preciso assim ultrapassar o conflito entre os opostos – estruturas objetivas e representações subjetivas – e aplicar ao fenômeno o que Bourdieu chama de revolução estruturalista, que consiste em aplicar ao mundo social um modo de pensar relacional, que é aquele da matemática e da física modernas, e que identifica o real, não a substâncias, mas a relações (Bourdieu, 1987b: 150). E para não dizer que fiquei em cima do muro com o meu olhar teórico, volto mais uma vez à análise da corda esticada para tentar estabelecer algumas dessas relações.
No plano horizontal eu poderia falar da posição relativa dos Museus entre a Universidade e a Escola, (centros de pesquisa e produção de conhecimento e centros de ensino), e que não sendo nem uma coisa nem outra acabam por esquecer o seu lugar específico, a meio caminho entre essas duas instituições, na terceira ponta do triângulo educacional.
Poderíamos ainda tomar o plano da estrutura administrativa em que se inserem, no âmbito governamental, e discutir de que maneira a sua relativa autonomia se reflete na sua relativa autossuficiência. O plano burocrático refletindo por sua vez a estrutura político/econômica do país, que encurta cada vez mais os recursos financeiros para a corda da Cultura. Relativa autonomia e relativa autossuficiência redundam em relativa responsabilidade na eficiente gestão dos assuntos públicos. Responsabilidade que recai, assim, em última instância, na autoridade máxima da administração pública, que normalmente está a uma relativa e considerável distância das áreas finalísticas. Se a corda balança numa ponta ao sabor dos ventos políticos fica essa responsabilidade pairando no ar, por lapsos de tempo suficientes para provocar instabilidade e descontinuidade de ação.
Mas se quisermos entender porque os Museus são elefantes, e porque estão pairando a muitos metros do chão, temos que analisar a distância cronológica que separa as duas pontas da corda e que corresponde ao Tempo Social em continua mutação. A medida deste espaço corresponde proporcionalmente à distância que separa os elefantes da plateia, ou melhor, os Museus do seu público.
Que papel podem realisticamente assumir as instituições museológicas hoje, num contexto social e natural em evolução tão rápida que não permite ao menos um espaço para a sedimentação histórica? Que garantia podem os Museus oferecer ao conceito tradicional de representação da identidade cultural de um povo, especialmente de um povo em desenvolvimento, quando as múltiplas identidades se constroem e reconstroem, e simultaneamente se esfacelam a cada minuto? Que sustentabilidade podemos pretender para as nossas ações? Temos aqui mais algumas questões a serem debatidas...
O fato é que para que os elefantes ponham seus pés no chão e encontrem seu lugar no espaço social da produção e da vida cultural, é preciso que sua presença e ação tenham um efeito concreto, um efeito vibratório como acontece com o chão, na passagem desses belos paquidermes. Podemos chamar a esse efeito de Ressonância. Ressonância cultural, ressonância social, ressonância afetiva. Para entendermos o significado desta proposição, exploremos o conceito e a definição de...
RESSONÂNCIA:
- a qualidade de um som que permanece alto, claro e profundo por um longo tempo…
- a qualidade que faz alguma coisa particularmente significativa ou importante para alguém...
- um som ou vibração produzida em um objeto que é causado pelo som ou vibração produzido em outro objeto.
A "ressonância" ocorre em ampla escala na natureza, e é explorada por muitos mecanismos feitos pelo homem. É o mecanismo pelo qual virtualmente todas as ondas sinusoidais e vibrações são geradas. Muitos sons que ouvimos, como quando batemos forte em objetos de metal, de vidro ou madeira, são causados pelas breves vibrações ressonantes no objeto.
Ondas curtas da radiação eletromagnética são produzidas por ressonância em escala atômica, tais como os elétrons nos átomos. É o que se utiliza modernamente na medicina, com os equipamentos de ressonância magnética para explorar as profundezas de nosso organismo.

Aplicando este conceito, metaforicamente, à prática da Museologia e da ação patrimonial, podemos ter um critério para avaliar nossas instituições, programas e projetos: que tipo de "ressonância", que tipo de impacto e de efeito elas têm sobre a sociedade em que estão inseridas, a nível nacional, regional, local? Que tipo de vibração provocam?
Uma medida deste impacto é verificar que alterações de comportamento em relação ao museu, à instituição, ao instrumento de preservação, seja tombamento ou simples registro, ao patrimônio monumental, integrado, imaterial se pode constatar... na verdade, cada experiência é única, cada comunidade é única, cada visitante de museu é único. Devemos ser capazes de estabelecer uma comunicação e uma interação com todos e com cada um, considerando todas as peculiaridades, necessidades, expectativas. Assim, a pesquisa do público antes do início do projeto ou da ação museológica ou patrimonial é um instrumento fundamental para orientar o planejamento e o design de nossas realizações.
Como conseguir este "engajamento participativo" por parte de nosso público, de nossas comunidades, de nossas autoridades e organizações locais? A moda hoje é o "crowd funding", uma expressão globalizada para nos referirmos às nossas famosas "vaquinhas", que bem pode ser traduzida como "vaquinha virtual"... esse instrumento, que se sustenta nas redes sociais virtuais, pode ser um dos recursos da moda, o que não impede que outras ações, mais básicas e reais (não virtuais) possam acontecer. É o que veremos adiante, nas ideias de Nina Simon (Simon, 2010), uma jovem designer de museus americana, e publicadas em seu livro "O Museu Participativo". Uma das constatações desta autora é surpreendente:
"Uma pesquisa feita nos EUA revelou que nos últimos vinte anos o público dos museus, galerias e salas de espetáculo diminuiu, e tornou-se mais velho e mais branco que a maioria da população. Apesar das instituições culturais proclamarem que seus programas oferecem valores cívicos e culturais únicos, cada vez mais pessoas estão se voltando para outras fontes de entretenimento, aprendizado e diálogo. Elas compartilham suas obras de arte, música e histórias entre si na Web. Elas participam na política e são voluntárias em números crescentes. Elas inclusive estão lendo mais. Mas não estão frequentando exposições e performances dos museus como costumavam".
"Como podem as instituições culturais se reconectar com o público e demonstrar seu valor e relevância na vida contemporânea? Acredito que elas possam fazer isto convidando as pessoas a engajarem-se ativamente como participantes culturais, e não consumidores passivos. Quanto mais as pessoas usufruem e se tornam acostumadas ao aprendizado participativo e a experiências de entretenimento, elas querem fazer mais do conjunto fabuloso de ferramentas e modelos de design que fazem a participação cada vez mais acessível".
Os visitantes esperam ter acesso a um vasto espectro de fontes de informação e de perspectivas culturais. Eles esperam ter a habilidade de responder e de ser levados a sério. Eles esperam ter a capacidade de discutir, compartilhar e "remixar" o que eles consomem. Quando as pessoas podem participar ativamente nas instituições culturais, esses lugares se tornam centrais para a vida cultural e da comunidade". É o que propõe Nina Simon.
Vendido em seu blog pessoal ou pela internet, o livro de Nina Simon propõe várias técnicas para convidar o visitante a participar das instituições culturais e ao mesmo tempo promover os objetivos institucionais. "O engajamento da comunidade é especialmente relevante em um mundo que oferece cada vez mais oportunidades de participação, na rede social. Entretanto, propostas de participação da audiência nas instituições culturais datam de ao menos cem anos".
Há três teorias fundamentais na base deste livro:
- a ideia da instituição centrada no público, que é tão relevante, útil e acessível quanto um shopping ou uma estação de metrô. (com agradecimentos da autora a John Cotton Dana, Elaine Heumann Gurian e Stephen Weil);
- a ideia de que os visitantes constroem seus próprios significados de suas experiências culturais (com agradecimentos a George Hein, John Falk e Lynn Dierking);
- a ideia de que as vozes dos usuários podem informar e revigorar tanto o desenho dos projetos quanto os programas direcionados ao público (com agradecimentos a Kathy McLean, Wendy Pollock e a firma de design IDEO).
As propostas de Nina Simon, baseadas nas ideias de vários importantes museólogos e pensadores da museologia internacional, servem para embasar várias ações nas instituições de hoje, e são explicadas em casos de estudo. Não é preciso ter auditórios modernos ou exposições "blockbusters, mas sim que as instituições tenham um respeito genuíno e um interesse real nas experiências, histórias e habilidades dos visitantes. Nina define ainda uma instituição cultural participativa como um lugar onde os visitantes podem criar, compartilhar e se conectar com outros visitantes em torno de conteúdos. Criar significa que os visitantes contribuem com suas próprias ideias, objetos e expressões criativas para a instituição e para outras pessoas. Compartilhar significa que as pessoas discutem, levam para casa, remixam e redistribuem tanto o que elas vêm quanto o que elas fazem durante a visita. Conectar significa que os visitantes socializam com outras pessoas - técnicos da instituição e visitantes – que compartilham seus interesses individuais. Em torno de conteúdos significa que as conversas e criações dos visitantes estão focadas na evidência, nos objetos e nas ideias mais importantes para a instituição em questão.
O objetivo das técnicas participativas é não só atender as expectativas dos visitantes por um engajamento ativo como também fazer isto de uma maneira que incentive a missão e os valores fundamentais da instituição. Ao invés de oferecer o mesmo conteúdo para todo mundo, uma instituição participativa coleta e compartilha conteúdos diversos, personalizados e mutáveis, coproduzidos com os visitantes. Ela convida os visitantes a responder e a acrescentar aos objetos culturais, à evidência científica, aos registros históricos em exposição. Ela exibe as criações e opiniões diversas dos leigos. As pessoas usam a instituição como locais de encontro para dialogar sobre os conteúdos apresentados. Ao invés de serem "sobre" alguma coisa, ou "para" alguém, as instituições participativas são criadas e administradas "com" os visitantes.
Porque uma instituição cultural convidaria os visitantes a participar? Como todas as técnicas de design interativo, a participação é uma estratégia que se dirige a problemas específicos. "Vejo as estratégias participativas", diz Nina (Simon, 2010) "como maneiras práticas de reforçar, não de substituir, as instituições culturais tradicionais. Planejando oportunidades explicitas para o diálogo interpessoal, as instituições culturais podem se destacar como locais do mundo real onde se possam discutir assuntos importantes referentes aos conteúdos".
O desafio é saber como fazê-lo. Buscando técnicas participativas que se alinham com os valores fundamentais da instituição é possível ampliar a sua ressonância social e garantir o engajamento do público, visando a sustentabilidade da instituição e do seu patrimônio coletivo.
Como podem as instituições culturais usar técnicas participativas não apenas para dar voz aos visitantes, mas para desenvolver experiências mais valiosas e profundas para todo mundo? Isto não é uma questão de intenção ou desejo; é uma questão de planejamento e de design. Quer o objetivo seja promover o diálogo ou a expressão criativa, aprendizado compartilhado ou trabalho co-criativo, o processo de planejamento começa com uma simples questão: que instrumento ou técnica produzirão a almejada experiência participativa?

Não temos espaço, aqui, para explorar as múltiplas possibilidades, instrumentos ou propostas desse processo de experiência participativa, mas o importante é aceitarmos que, se quisermos que os museus e as ações patrimoniais tenham relevância e ressonância para a sociedade, nos dias atuais, é imprescindível que possam proporcionar ao público esta "experiência": e mais, que possam seduzir e conquistar o público e a sociedade para um verdadeiro "engajamento" neste trabalho. Um dos princípios da Educação Patrimonial é a ideia do "aprender fazendo"... a participação no trabalho dos museus, do patrimônio e da educação cultural através do patrimônio, por parte da comunidade, é um poderoso instrumento de aprendizado e conhecimento, cujos caminhos levam ao "empowerment", ao "empoderamento" individual e coletivo, proposto por Paulo Freire.
O livro de Hugues de Varine, "Raízes do Futuro, o Patrimônio Cultural a serviço do desenvolvimento" (De Varine, 2012) lançado em português recentemente, e do qual tive a honra de fazer a tradução, traz um série de estudos de caso em que o uso e a apropriação do patrimônio cultural e natural, material e imaterial, de diferentes comunidades revelam resultados efetivos e extraordinários no sentido da solução de problemas e crises e da busca de caminhos para o desenvolvimento sustentável. O caso da Quarta Colônia de Imigração Italiana no sul do Brasil é um desses exemplos, em que o engajamento das autoridades (no caso prefeitos e secretários de cultura locais), mobilizados por um líder, José Itaqui, provocou um fenômeno excepcional de transformação de uma situação de pobreza e estagnação para um cenário de novas oportunidades e perspectivas, ao longo de várias décadas. O programa "Arca de Noé", elaborado para enfrentar um dilúvio anunciado, com a construção da hidroelétrica de Itá, no alto curso do rio Uruguai, também no sul do país, foi construído com o engajamento de vários segmentos da sociedade, desde os arquitetos da empresa construtora aos prefeitos das áreas atingidas pela barragem, aos professores e líderes comunitários, no resgate dos elementos culturais relevantes para a preservação da memória comum e de todo o processo de transformação profunda a que foram submetidas estas populações.
Mas há um ponto fundamental a colocar, como final desta comunicação, e que deve estar no âmago de qualquer estratégia institucional direcionada a envolver e a engajar o público nos destinos da instituição: museu, sítio histórico, galerias e espaços culturais. É preciso que não nos afastemos da missão e do propósito originais que justificam a existência dessas instituições. Se acreditamos em nossa missão publica e institucional, não podemos abandonar o seu conteúdo e proposta originais em troca de temas mais amenos e mais atraentes, no sentido da vulgarização da ação institucional. A questão dos valores institucionais e dos significados atribuídos às coleções e sítios patrimoniais deve ser respeitada e debatida, em diálogo democrático, com as comunidades detentoras deste patrimônio. O "valor público" das instituições e dos programas de patrimonialização é também um fator fundamental a ser considerado, contribuindo para a validade e a sustentabilidade do debate, em especial quando verbas públicas estão em jogo, como discutido por Carol Scott (Scott, 2013).
Neste aspecto, são muitas as questões, que poderiam ocupar a extensão de muitos simpósios como este de que participamos hoje. Ficamos por aqui.



































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