Religião e Cidadania

August 3, 2017 | Autor: Joanildo Burity | Categoria: Religion, Religion and Politics, Brazil, Citizenship
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE REITOR Josué Modesto dos Passos Subrinho VICE-REITOR Angelo Roberto Antoniolli FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO Presidente Fernando José Freire DIRETORIA DE PESQUISAS SOCIAIS Diretor Morvan de Mello Moreira EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CONSELHO EDITORIAL Luiz Augusto Carvalho Sobral Presidente Antônio Ponciano Bezerra Dilton Cândido Santos Maynard Eduardo Oliveira Freire Lêda Pires Corrêa Maria Batista Lima Maria da Conceição V. Gonçalves Maria José Nascimento Soares Péricles Morais de A. Júnior Ricardo Queiroz Gurgel Rosemeri Melo e Silva Vera Lúcia Corrêa Feitosa Veruschka Vieira Franca Coordenador do Programa Editorial Luiz Augusto Carvalho Sobral Em convênio com a Fundação Oviêdo Teixeira Presidente João de Seixas Dória APOIO Norcon - Sociedade Nordestina de Construções Ltda.

Joanildo Burity Péricles Andrade (organizadores)

São Cristóvão, 2011

Copyright© 2011 by Editora UFS Centro de Educação Superior a Distância (CESAD)

Coordenação Gráfica Giselda Barros Editoração eletrônica Lucílio do Nascimento Freitas Capa Saxxxxxxxxxxxxxxx

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade Federal de Sergipe



Xxxx, Xxxxxx X000i ncoancoancoanocanocnaocnaocnaocaa (1897-1968 / Xoxoxoxoxoxoxox -São Cristóvão: Editora UFS, 2010. xxxxx 1. Xoxoxox. 2. Xoxoxoxo. 3. Xoxoxoxox. I.Título. CDU xx.xx

SUMÁRIO

Apresentação........................................................................................................ 7 Parte 1 – Religião, Republicanismo e Espaço Público..................... 15 Capítulo 1 – Só Deus resolve: desafios evangélicos à ordem mundana...............................................................17 . Patrícia Birman Capítulo 2 – A presença católica na esfera pública brasileira: para pensar o laicismo e o laicato......................35 Júlia Miranda Capítulo 3 – Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil........67 Péricles Andrade Capítulo 4 – Religião, Dádiva e Cidadania.............................93 Drance Elias da Silva

Parte 2 – Religião, Cultura e Pluralismo..................................... 111 Capítulo 5 – Religião e Cidadania: alguns problemas de mudança sociocultural e de intervenção política..............113 Joanildo Burity Capítulo 6 – Ensino religioso na escola pública e algumas questões mais gerais sobre religião e sociedade.....145 . Emerson Giumbelli Capítulo 7 – Um estranho no ninho: uma experiência protestante em escola laica no Recife........................157 Roberta Campos

Parte 3 – Religião, Caridade e Ativismo Social.......................... 177 Capítulo 8 – Horizontes Prático-Teóricos do Cristianismo de Libertação na Pós-Modernidade.....................179 Degislando Nóbrega de Lima Capítulo 9 – Caridade, conservação e mudança social........193 André Ricardo de Souza PARTE 4 – RELIGIÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS.......................................... 213 Capítulo 10 – Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate.......................................215 Josadac Bezerra dos Santos Capítulo 11 – As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e Bahia: Desenvolvimento, Cultura e Relações Étnico-Raciais...................................................231 Ronaldo Laurentino Sales Júnior Capítulo 12 – Algumas reflexões sobre religião e luta pela cidadania ..................................................................263 . Cecília Mariz Sobre os autores..........................................................................................273

Apresentação

Joanildo Burity Péricles Andrade

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campo religioso brasileiro é cada vez mais marcado pela presença pública de denominações e atores sociais que apresentam soluções ou saídas para a inclusão social. Até mesmo as religiões evangélicas que outrora estavam marcadas por posturas não-negociadoras estão sendo incorporadas, de modo menos dramático, à cultura e ao establishment políticos nacionais. O processo em curso está associado a duas grandes tendências. No contexto internacional, a crescente valorização da pluralidade cultural e social, que implica uma crescente abertura de espaços que gera uma diferenciação cultural e religiosa no âmago das identidades nacionais, desencadeando pressões para abrir espaço político a tais diferenças. Por outro lado, a partir da década de 1990, são perceptíveis mudanças na estrutura e forma de atuação do Estado. Em várias partes do mundo há um crescente processo de redesenho da fronteira entre o público e o privado, o governamental e o não-governamental, o domínio estatal e o da sociedade civil. Especificamente em relação ao Brasil, verifica-se nas últimas duas décadas uma reconfiguração das relações entre as religiões e o Estado, tendência esta associada ao movimento deste na direção de transferir à sociedade a execução dos programas sociais, e à movimentação da sociedade civil demandando maior participação e poder decisório no desenho e implementação das políticas públicas. Desde as lutas pela democracia dos anos de 1970, envolvendo os católicos e protestantes ecumênicos, até a entrada dos evangélicos em cena, a partir da segunda metade dos anos de 1980, cresceu o número de interlocutores e organizações religiosas envolvidos em questões de política pública e ação social. Assim, várias denominações religiosas foram “reabilitadas” como parceiras, seja das lutas pela democratização, seja na busca de enraizamento das ações governamentais em espaços da sociedade onde o Estado não consegue se fazer presente institucional e poli-

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ticamente. Isto implica o envolvimento mais intenso das minorias religiosas, com o atendimento das carências materiais e simbólicas de seus membros e de setores socialmente excluídos, mas também representa oportunidades para que seus objetivos institucionais sejam buscados e disputados vis-à-vis outros atores religiosos e não-religiosos no espaço público. Tal aproximação, que implica uma série de deslocamentos teóricos e práticos do arranjo republicano constitucionalmente em vigor no Brasil, bem como do discurso ainda predominante em importantes áreas das ciências sociais e humanas a respeito do lugar e do papel público das religiões. Seja em função das inovação trazidas pela expansão do pluralismo religioso do âmbito sociocultural para o domínio institucional, resultando em ajustes em certas práticas governamentais, mas também legislativas e judiciárias; seja dos problemas e desafios de equacionar pluralismo e igualdade perante a lei, há deslocamentos importantes a identificar e estudar. Um desses campos é o da cidadania, tanto em sua definição jurídico-política, como em sua crescente associação a formas de ação coletiva e de experimentação social com vistas a reinventar o vínculo social e ampliar compreensões convencionais de democracia. Há mudanças importantes ocorrendo quanto à compreensão de cidadania, seu escopo e conteúdo, das quais a variável religiosa é hoje parte inseparável. Este volume procura enfrentar estes desafios a partir de várias entradas. É o resultado de uma oficina e seminário organizados pela Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, no Recife, em agosto de 2007, com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A oficina ensejou a interação de pesquisadores e pesquisadoras e representantes de entidades religiosas (católicas, protestantes, espíritas e afro-brasileiras1) envolvidas em ações práticas neste campo. O seminário permitiu uma interação com um público mais geral e abordou as estratégias e ações adotadas por grupos religiosos no intuito de alcançar maior visibilidade e impacto público, bem como sua contribuição para as lutas pela ampliação da cidadania na sociedade brasileira. O conjunto de onze capítulos aqui reunidos são oriundos do material Participaram da oficina as seguintes entidades, em ordem alfabética: Cáritas, Casa de Xambá, Comissão Pastoral da Terra, Diaconia, Instituto de Intercâmbio do Pensamento Espírita de Pernambuco e Visão Mundial.

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apresentado, gravado, transcrito, revisado e transformado em um texto formal por alguns dos participantes da workshop. A obra está constituída em quatro partes, seguindo a divisão adotada na oficina, que se realizou entre os dias 7 e 8 de agosto de 2007 na Fundaj. A primeira seção está composta por três capítulos e intitula-se Religião, Republicanismo e Espaço Público. O primeiro trabalho constitui-se na conferência de abertura do seminário, realizado entre os dias 8 e 9 de agosto na sala Calouste Gulbenkian (Fundaj), proferida pela professora Patrícia Birman (Uerj). Só Deus resolve: desafios evangélicos à ordem mundana busca responder duas questões de investigação: como o diagnóstico evangélico sobre os problemas enfrentados pelos indivíduos tem renovado a percepção que estes possuem deles mesmos e dos seus modos de existência? Por que a proposta de conversão implica, para quem a vive, uma transformação radical e decisiva, tem se mostrado tão atrativa para os católicos e também os afro-brasileiros? Em seguida, temos o trabalho de Júlia Miranda, A presença católica na esfera pública brasileira: para pensar o laicismo e o laicato, que reflete sobre alguns aspectos importantes para a compreensão da presença da religião católica na esfera pública republicana, pensada a partir de questões como: que leitura da sociedade, do Estado, da política e do lugar da hierarquia e do laicato marca as primeiras décadas do século XX? Que práticas a acompanham? Faz uma análise diacrônica da participação político-eleitoral dos católicos, centrada nas eleições nacionais constituintes de maio de 19332 e nas eleições nacionais que marcam a virada do século XX para o XXI. Esses processos eleitorais são tomados como “chaves” de acesso às nossas culturas, religiosa e política, e permitem acompanhar-lhes algumas significativas transformações, num período caracterizado pela passagem de uma conjuntura de consenso sobre vivermos em um país católico para a constatação estatística de que hoje, neste pluralismo religioso relativamente recente e particular (majoritariamente cristão, caracterizado pela múltipla pertença, etc.), diminui o número de católicos e cresce significativamente o número de evangélicos e dos sem religião. Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora Essas são as primeiras eleições constituintes após a proclamação da república e a separação oficial entre Igreja e Estado. São marcadas por uma fortíssima campanha dos católicos que apresentam programa de dez propostas a serem incluídas na nova Carta.

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católica no Brasil de Péricles Andrade analisa o confronto entre o discurso explicitamente social e engajado e o discurso da emoção e da reafirmação dos valores e práticas religiosas tradicionais por parte da Cúria Vaticana e da Renovação Carismática Católica. A análise centra-se da divergência na esfera pública entres os modelos de catolicismos propostos pelos religiosos adeptos da Teologia da Libertação e pelos religiosos vinculados à Renovação Carismática Católica (RCC). Em linhas gerais, enquanto os primeiros enfatizam a importância da militância de esquerda, os carismáticos dão ênfase ao espiritual e à política clientelista. Isto levou à constituição de um clichê no ambiente eclesial: a RCC reza e as CEBs fazem política. Como ilustrativo desse processo, são analisadas as disputas envolvendo os adeptos da Teologia da Libertação e o padre Marcelo Rossi religioso mais conhecido entre os sacerdotes que compõe a ala carismática. O texto Religião, Dádiva e Cidadania, de autoria de Drance Elias da Silva, trata do significado da cidadania às instituições religiosas brasileiras, destacando a abertura por parte do Estado quanto às parcerias com tais instituições na promoção de políticas públicas. O autor questiona a eficiência dessa relação, até porque o interesse da cidadania levado a cabo pelas religiões não pode ser medido tão-somente pela abertura destas a projetos ou programas advindos do âmbito estatal, mas, sobretudo, por seu avanço de mudança de mentalidade através da qual se pode verificar mudança real na forma da consciência religiosa. E os desafios colocados pela Modernidade, tais como: o pluralismo religioso, a ascensão das ciências modernas, e a disseminação do direito positivo e da moral social profana, levaram as religiões a mudanças significativas de autorreflexão hermenêutica. A segunda seção intitula-se Religião, Cultura e Pluralismo e está composta por três capítulos. Joanildo Burity no capítulo Religião e Cidadania: alguns problemas de mudança sociocultural e de intervenção política foca sobre o impacto que a presença de novos e velhos atores religiosos tem causado nas instituições políticas nesses últimos anos. Entre as conclusões apontadas pelo autor, destaca-se que se a relação – ou a confusão – entre religião e política, religião e cidadania se dá num contexto em que não só a identidade como também o rol e conteúdo das demandas postas à esfera pública se inscrevem numa condição relacional, o destino dessa relação não está dado de antemão. Não está dado pela posição original de cada ator, 10

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isto é, sua identidade, demandas e repertórios de ação, previamente a seu “encontro” na esfera pública – onde suas convergências e divergências em relação a outros se expressarão. Nem está dado pela gramática e semântica de seu vocabulário público. Não se trata de esperar pelo melhor, mas de assinalar que, no cenário contemporâneo, independentemente das credenciais democráticas dos atores, a relacionalidade lhes impõe uma série de condições a que não podem impunemente se subtraírem. Sustentadas, ao longo do tempo, essas relações tendem historicamente a produzir acomodações e mudanças nas identidades dos envolvidos. O Ensino Religioso é tematizado por Emerson Giumbelli no capítulo Ensino religioso na escola pública e algumas questões mais gerais sobre religião e sociedade. Giumbelli realiza uma articulação entre um tema específico e algumas questões de alcance maior. O tema é o ensino religioso na escola pública, sobretudo no que concerne à situação no Rio de Janeiro, que passou por uma série de redefinições desde 2001. O autor coloca dois grandes pontos. O primeiro é a dimensão legal. O texto discute o princípio da laicidade. A presença de uma disciplina de ensino religioso na escola pública de um Estado laico levanta uma reflexão sobre esse modelo, o modelo da separação ou a exigência da separação entre religião e política. O segundo grande ponto analisado é a questão do pluralismo. Giumbelli destaca que temos uma situação interessante dada pela diversidade de modelos e de configurações por conta da descentralização que ocorreu para normatizar e implementar o ensino religioso. Por outro lado, não devemos desprezar as chances de aproximação que revelem dimensões interessantes dos casos particulares e, inclusive, que nos levem a questionar noções – como a de “laicidade” – que, muitas vezes, produziram barreiras analíticas intransponíveis. A segunda parte é finalizada com um texto de autoria de Roberta Campos. Um estranho no ninho: uma experiência protestante em escola laica, no Recife analisa, por meio de um caso etnográfico de bullying religioso, a importância de se investigar como crianças de contextos sociais mais heterogêneos e mais homogêneos experimentam e representam a diversidade religiosa. Campos destaca que entender como crianças vivenciam a diferença no espaço escolar brasileiro torna-se fundamental para percebermos se elas estão reproduzindo valores tradicionais hierárquicos ou não, e se o 11

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comportamento efetivo das crianças reflete atitudes de respeito e inclusão da diferença ou se expressariam intolerância. Religião, Caridade e Ativismo Social se constitui na terceira seção deste livro. Está composta por dois capítulos. Degislando Nóbrega de Lima trata no capítulo Horizontes Prático-Teóricos do Cristianismo de Libertação na Pós-Modernidade das correntes libertadoras no interior do cristianismo. Reflete sobre o deslocamento de práticas e de reflexões fundadas ou pelo menos preocupadas com a transformação sistêmica, com algo radical em termos de transformação para um tipo de atuação mais integradora, de participação num cenário cultural de afirmação da diferença. Interessa-se, sobretudo, a cogitar quanto às reservas de sentido da própria tradição cristã que poderão dar suporte performativo aos atores do cristianismo de libertação em tempos pós-modernos. André Ricardo de Souza, no capítulo Caridade, conservação e mudança social, trata da relação de diferentes vertentes cristãs com formas diversas de economia e respectivas implicações políticas. Souza parte do questionamento sobre o lugar da religião hoje. Que espaço a religião ocupa atualmente na sociedade brasileira? Como a religião, revestida desse ideal, pode assumir tais feições impunemente? O autor destaca que este se constitui num problema bastante inquietante para cientistas sociais e cidadãos de qualquer país que se pretenda laico. A quarta parte do livro é constituída por três capítulos e intitula-se Religião e Políticas Públicas. Josadac Bezerra dos Santos, no texto Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate, analisa o conflito proveniente do surgimento das reivindicações por grupos de mulheres pelo aborto, de pessoas cujas preferências sexuais incluem as relações homoafetivas, pelo reconhecimento moral e legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo e da reivindicação do direito de eutanásia. O enfoque do autor trata de duas naturezas distintas: um conflito propriamente político e o outro epistemológico. No primeiro caso, o objetivo é a identificação de estratégias de ação utilizadas pelos movimentos sociais, pelo Estado e pela Igreja, cada um desses atores interessados em impor ao conjunto da sociedade suas convicções. No segundo caso, o conflito epistemológico implica reconhecer-se que, por trás dos discursos, há sempre um posicionamento prévio quanto à concepção que atores sociais 12

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têm do conhecimento, consciente ou inconscientemente, por causa da natureza das demandas em jogo. As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e na Bahia: desenvolvimento, cultura e relações étnico-raciais, de autoria de Ronaldo Laurentino Sales Junior, evidenciam as relações entre os diversos projetos de civilização/ progresso/modernização/desenvolvimento na formulação de políticas e a articulação de demandas sociais por atores sociais conforme a identidade étnico-racial, que se constituíram em um campo político de disputas, na instituição da República brasileira. Sales Junior apresenta a presença irredutível de formas de religiosidade na identidade compósita de muitos dos participantes, simpatizantes ou antagonistas daqueles movimentos. Para isso, desenvolve um estudo comparativo entre os estados de Pernambuco e Bahia, dadas as formas diferenciadas com que os elementos “negros” e “religiosos”, “raciais” e “culturais” foram articulados às identidades culturais, históricas e geopolíticas destes estados. O olhar é lançado sobre a atuação coletiva dos atores religiosos em termos políticos e culturais, entre as fronteiras da política e da cultura. O livro é finalizado com o texto de Cecília Mariz, intitulado Algumas reflexões sobre religião e luta pela cidadania. Este trata da relação entre política social, religião e cidadania. Particularmente Mariz discute se estaria o Brasil mais próximo do modelo dos Estados Unidos ou da França quanto ao desenvolvimento de um tipo específico de República e de uma atitude distinta em relação à integração entre religião e política na vida pessoal. Demonstra a autora que a comparação dessas duas concepções e experiências é importante porque ambas têm influenciado a forma de se pensar a República no Brasil. Algumas questões norteiam seu enfoque: De quais desses modelos a experiência brasileira se aproxima mais? Em que modelo o Estado brasileiro se inspirou? Teria o modelo que inspirou a República no Brasil se efetivado em nosso país de fato? Os textos aqui apresentados ilustram com força o fato de que vivemos um momento em que as relações entre estado e sociedade civil vêm sendo significativamente redefinidas. Questões sérias sobre as competências de cada polo no equacionamento das desigualdades sociais, da pobreza e da garantia de direitos ainda estão em jogo. A presença pública da religião, nos últimos anos, tem assumido a forma de uma pluralidade de atores e 13

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de práticas, o que tem exigido dos atores públicos, governamentais ou não, uma nova atitude em relação ao segmento religioso. Questões éticas, políticas, de identidade social e cultural, de cidadania, de justiça, etc., estão colocadas nestas novas relações, muitas das quais carregadas de polêmica e pouco ou mal resolvidas. Num contexto de sério comprometimento da credibilidade do conteúdo ético-político da democracia, a movimentação de atores religiosos agrega tanto problemas quanto virtudes que merecem uma discussão aberta. É nossa expectativa que Religião e Cidadania permita que, desde diferentes perspectivas disciplinares e experiências engajadas, diferentes dimensões da questão possam ser discutidas e propostas apontadas para contribuir com o debate público sobre o lugar social e político das religiões no Brasil.

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Parte 1

Religião, Republicanismo e Espaço Público

Capítulo 1 Só Deus resolve: desafios evangélicos à ordem mundana Patricia Birman

Introdução Não é muito fácil se sentir à vontade diante de um apelo à conversão durante um culto. Foi com um grande desconforto que resisti a atender ao chamado do Pastor para ir junto ao púlpito e, publicamente, aceitar Jesus em uma pequena igreja da Assembleia de Deus. Em tom exaltado, o Pastor invariavelmente descrevia o destino nefasto que aguarda os que resistem aos seus clamores durante a longa cerimônia dos domingos. Descrevia os temores dos recalcitrantes como uma forma de submissão a uma ordem mundana aterradora, bárbara, cruel e imoral que é dominada pelo Diabo. Só Jesus salva de todos os demônios, dizia o Pastor. Variantes desta frase se encontram também rabiscadas em muitos muros da cidade do Rio de Janeiro. Toda a igreja olha e espera, em silêncio, aqueles que ainda não realizaram este gesto tão decisivo. A ligeira tensão que acompanha a curiosidade dos presentes, a espera que alguém ou alguns tomem coragem e respondam ao chamado, pode durar muito tempo. O Pastor é paciente e aumenta ao máximo o mal-estar daqueles que todos já identificaram como pecadores renitentes. Além de arriscarem seus destinos estão ali obrigados a enfrentar o constrangimento provocado pela ausência deste pequeno passo à frente, aguardado pelos fiéis. Uma dessas vezes, uma jovem sentada ao meu lado na igreja não resistiu: você não vai? Sem graça, desculpei-me, gaguejando uma pequena frase confusa. Foi com alívio que saí do culto após o término desta interpelação que me enviava publicamente a uma escolha radical: o que preferir? O fogo do inferno ou a alegria compartilhada no mundo dos eleitos? Em outros termos, manter-se conformado a uma vida miserável e cheia de dissabores ou aceitar o caminho mais promissor e venturoso cujas portas se abrem para os eleitos?

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Tais formas de pressão sobre eventuais visitantes nem sempre produzem os resultados almejados para os dirigentes da igreja. Ainda assim, não deixam de produzir os seus frutos: obrigam as pessoas a responderem, nem que seja para elas próprias, a perguntas radicais como: é esta a vida que você quer? O Espírito Santo bate a sua porta e seu coração vai recusá-lo? Quais os sinais que ainda será preciso receber para se convencer de que é hora de dar este passo radical e transformador na sua própria vida? Sabemos que momentos de reflexão, como este, acompanham diferentes modalidades de chamado religioso. A experiência subjetiva de um chamado divino, através de um dos seus mediadores terrenos, no entanto, nem sempre se traduz para as pessoas em um movimento de efetiva conversão. As relações mantidas por cada um com as esferas sagradas, assunto deste artigo, são objeto de questionamentos e de decisões complexos, que dizem respeito a posicionamentos importantes em relação aos quadros de vida dos indivíduos. Não basta “sentir” o chamado, tampouco é possível deixar-se guiar irrefletidamente por uma interferência dos seres sobrenaturais e/ou divinos que interpelam as pessoas e demandam adesão, exclusividade, fidelidade e, o que não é negligenciável, sacrifícios substanciais cotidianamente exigidos. Ceder ou não aos chamados de Pastores, da mesma forma como responder ou não a um forte apelo do Espírito Santo ou de uma entidade de umbanda, integra a experiência religiosa das camadas populares. A partir de meados da década de 1980, cresceu enormemente o movimento de conversão às igrejas evangélicas principalmente àquelas pentecostais. Indagações mais frequentes e interpelações mais pontuais passaram a acompanhar em muitos ambientes religiosos os sentidos possíveis destas novas ofertas de salvação. São muitas as histórias sobre pessoas que resolveram “largar tudo” e entrar para uma igreja evangélica. Como também são quase infinitos os relatos a respeito de dúvidas e de hesitações que manifestam sobre os sentidos das relações possíveis com a esfera divina e sobrenatural. Por todos os lados, os argumentos se sucedem. Cabe assinalar, no entanto, que foram os cultos afro-brasileiros que mais sofreram com a emergência em grande escala de novos grupos evangélicos (GIUMBELLI, 2006). Por vezes, a perda de filhos de santo é apontada pelas lideranças afro-brasileiras como efeito direto dos ataques agressivos de algumas igrejas evangélicas 18

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aos terreiros. Esses dirigentes também reconhecem que só são atingidos porque esses ataques tocam em cordas sensíveis relativas às concepções de vida dos seus fiéis. (GONÇALVES, 2007) O contato com as esferas sobrenaturais, a experiência de se sentir impulsionado a agir e mudar de inserção religiosa é corrente tanto no universo das religiões afro-brasileira e católica quanto no evangélico. No plano sensível, essas experiências, no entanto, estão longe de darem lugar a uma ação irrefletida por parte dos religiosos. Ao contrário, os impulsos provocados nas atmosferas ritualmente carregadas de certas cerimônias são objeto de um controle e de uma reflexão cuidadosa por parte de seus participantes. Em conversas com diferentes pessoas, surgiram formulações que deixavam claro a necessidade que se apresentava para as pessoas de bem dominar o quadro em que foi objeto de uma interpelação sobrenatural: qual o poder de interferência que tal Exu, ou tal caboclo teve até agora na minha vida? Será que é possível confiar no que diz o médium? Em que, de fato, os membros desta casa e suas entidades me ajudaram? Conversas com evangélicos revelam também críticas e elogios em relação às mediações realizadas por suas igrejas: um pastor seria ótimo, teria muitas visões e premonições. Na igreja de Fulano, o Espírito Santo “enche” o coração dos presentes de júbilo; já na igreja de Beltrano, só se sabe cobrar o dízimo... A bem dizer, efeitos mágicos e milagrosos são moeda corrente nos diálogos inter-religiosos. Épreciso lembrar, no entanto, que os resultados que se pretende obter por meio de intervenções sobrenaturais não são definidos da mesma maneira pelas diferentes igrejas nem supõem a mesma forma de envolvimento das pessoas. Desde que os grupos evangélicos começaram a crescer no país, ficou evidente para os estudiosos da religião que seus discursos estavam tendo um grande poder de atração sobre grupos populares, de origem católica e também afro-brasileira. Este interesse tem sido balizado, em parte, pela pergunta: como o diagnóstico evangélico sobre os problemas enfrentados pelos indivíduos tem renovado a percepção que eles possuem deles mesmos e dos seus modos de existência? Por que a proposta de conversão que, como dissemos, implica, para quem vive, uma transformação radical e decisiva, tem se mostrado tão atrativa para os católicos e também os afro-brasileiros? 19

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Os males do cotidiano e suas relações sobrenaturais Creio que não se tem levado suficientemente em consideração como discursos evangélicos entram em relação com as dificuldades vividas pelas camadas populares. Os diagnósticos que oferecem de seus problemas, bem como soluções elaboradas para resolvê-los, exigem da pessoa um movimento de transformação na sua forma de conceber tanto as relações humanas quanto a natureza do mundo em que vive. Outra imagem do mundo e dos recursos necessários para suportar o fardo que este impõe, em termos evangélicos, tem ganhado adeptos crescentemente. O mundo, com efeito, quando objeto do olhar pentecostal, apresenta-se sob uma luz sombria e os caminhos para enfrentar os seus percalços exigem mais esforço. Os evangélicos convidam os ainda não convertidos a olhar os acontecimentos mundanos através de premissas que até então ignoravam. A desordem social, física e moral do mundo, provocada pelo diabo, apresenta-se com grande relevo nos discursos evangélicos. Os crimes sangrentos são retomados nos discursos religiosos como uma ilustração apropriada para o trabalho missionário dos pastores. Gestos de assentimento e de concordância com as referências sobre o mundo como um território do diabo acompanham as palavras do Pastor nos cultos. Para os que se apresentam pela primeira vez, certamente esses discursos respondem a uma inquietação previamente existente, a um sentimento de desconforto e de desagrado com o curso habitual da existência. O diagnóstico evangélico parece ressoar de forma particularmente importante nas periferias do mundo, onde as suas igrejas mais crescem e onde se deterioram tanto as condições de vida das camadas populares quanto a sua confiança nos princípios sociais e sobrenaturais que as regem (CORTEN, DOZON e ORO, 2005). Através dessa vertente do universo protestante, estão em curso novas formas de rejeição religiosa das condições de vida entre os que vivem nas periferias do mundo. Esta rejeição tem se exprimido através de uma preferência por lentes religiosas que destacam as dimensões degradadas e cruéis da vida como o verdadeiro sentido da ordem mundana. Os desastres, os crimes, as desordens de toda espécie ganham um novo e poderoso foco. Os discursos dos pastores convidam os não convertidos a usar uma lente de aumento para que possam enxergar, com precisão, a relevância 20

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que as forças do mal possuem. Propõem que cada um reconheça que os seus próprios males que, longe de serem gratuitos ou produtos de uma eventualidade, obedecem a um único princípio, responsável, ele somente, por todos os acontecimentos nefastos em escala universal.

Feitiçaria, macumba e outros malefícios Na década de 1990, os pesquisadores orientaram-se por uma comparação, nem sempre explícita, entre o sentido do Mal para o cristianismo e os cultos afro-brasileiros. Estabeleceu-se certo consenso relativo a estes últimos: haveria neles, sem dúvida, uma forma de relativização do Mal cristão o que os distingue de todas as formulações evangélicas. A ideia de um mal relativo, presente nos cultos afro-brasileiros estaria em plena consonância com a visão católica do mundo, estruturada no país. O caráter benevolente do catolicismo desenvolvido nas terras brasileiras, tão enfatizado na obra de Gilberto Freyre, teria garantido uma convivência com o pecado e uma alegre despreocupação com o fogo do inferno por parte do seu clero. A relação entre macumba e malefícios, como já foi apontado inúmeras vezes, é baseada num princípio de relativização do mal, distante de uma perspectiva essencialmente cristã e protestante, que prega o seu caráter absoluto e universal. O “mal” de uns pode ser o “bem” de outros, depreende-se das consultas entre os fiéis e as entidades espirituais que ocupam os corpos dos médiuns, nos cultos afro-brasileiros. A “guerra de orixás”, expressão corrente nas casas de santo, designa uma disputa entre entidades sobrenaturais, que tornaria compreensível as brigas e os pequenos problemas enfrentados por seus fiéis. Estas “guerras” de certo modo supõem disputas em que a vitória é circunstancial e não prevê como consequência, grosso modo, a eliminação dos adversários, nem a sua exclusão de conflitos posteriores. Afinal, deuses, espíritos e orixás regeriam e integrariam uma ordem atemporal sob a qual se desenrolam os acontecimentos. A intimidade proclamada pelos líderes religiosos com os seres espirituais que frequentam suas casas serve como indicador de um saber teórico e prático a respeito das características destes bem como a respeito dos modos adequados de agir para melhor controlá-los. 21

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Yvonne Maggie (1974) apontou no seu livro Guerra de Orixá um longo processo de disputa pelo poder num centro de umbanda que terminou com a vitória de um dos contendores. Vagner Gonçalves e Rita Amaral descrevem a sociabilidade nos terreiros permeada por um mundo de futricas, mexericos e brigas através do percurso de um filho de santo. As lutas de poder internas e externas às célebres casas de santo baianas, com a participação dos seus orixás, eventualmente são publicadas pelos jornais do estado e repercutem entre os pesquisadores (VANDER PORT, 2006). Os embates entre as vontades do médium e das suas entidades, as interferências de uns e de outros para manipular os acontecimentos cotidianos ocupam um bom tempo da vida dos filhos de santo, como descreveram, entre outros pesquisadores, Kelly Hayes (2004) e Véronique Boyer (1993) nos seus trabalhos. O campo de conflitos individuais e coletivos que envolvem os membros das casas de santo revela, de fato, uma dimensão estruturante destas casas, qual seja, uma ordem multicentrada profundamente entrelaçada com a sociabilidade doméstica dos seus integrantes. Peter Fry (1983), comparando o protestantismo na Inglaterra com a Umbanda no Brasil, afirmou que este último teria um “Deus ocioso”, isto é, destinado a inatividade pelo fato de representar um centro que não possuiria relevância para a prática religiosa dos seus fiéis. Em outras palavras, a Umbanda bem como o candomblé e outras vertentes dos cultos de possessão não atribuiriam qualquer importância a um princípio unificador da ordem do mundo. A cosmologia afro-brasileira com o seu “Deus ocioso” parece estar perdendo espaço diante das exigências do cristianismo evangélico e principalmente da capacidade que este tem demonstrado de interpelar os portadores desta visão de mundo policêntrica. Questionam muitas vezes com grande virulência verbal os que resistem a reconhecer um só Deus no universo, único ente capaz de interferir beneficamente no mundo em que vivem. Todas as pessoas – garantem os pais de santo – para viverem precisam lidar com entes sobrenaturais complexos os quais mantêm com os homens relações também complicadas e problemáticas que exigem um conhecimento prático de suas possibilidades de ação e de intervenção. Através dos evangélicos, passamos para um universo no qual este modo de compreensão 22

Capítulo 1 – Só Deus resolve: desafios evangélicos à ordem mundana

é considerado inútil e mesmo perigoso. A complexidade de tais seres e das relações a serem entretidas com eles – sustenta os evangélicos – provém de uma única fonte, o diabo, com quem toda e qualquer negociação traz dificuldades suplementares para a vida de cada um. O que pode significar para os fiéis afro-brasileiros uma ruptura como esta proposta pelos evangélicos? Tentarei abordar a seguir alguns aspectos envolvidos por essa ruptura.

O Diabo mora ao lado Os ataques estigmatizantes dos quais os religiosos afro-brasileiros foram objetos provocaram muitas reações entre nós, pesquisadores. Não foram poucos que se sentiram afrontados com esses ataques, parte do novo panorama religioso no país. Deste faz parte a perda relativa da hegemonia católica, o desafio e o conflito com as religiões “herdadas” e a desconexão entre a ideia de nação brasileira com o catolicismo. Não é coisa pequena, digamos. Determo-nos simplesmente nos efeitos negativos do ponto de vista de uma política identitária, isto é, os efeitos estigmatizantes dos ataques sobre os cultos afro-brasileiros, é um convite tentador que, no entanto, deve ser rejeitado por ser insuficiente no plano analítico. Voltaremos a este ponto mais adiante. Usarei como exemplo sobre os sentidos possíveis desta mudança o caso de uma senhora que viveu uma situação particularmente difícil. Esta situação provocou o seu afastamento do candomblé e ganhou em inteligibilidade através de uma interpretação claramente evangélica. Chamemos de Maria esta senhora que se percebeu envolvida em duas mortes através de suas relações familiares no lugar em que vive. Segundo ela, uma de suas entidades, um Exu, ao intermediar a sua relação com o seu futuro genro, provocou a morte dele. Independentemente de sua vontade, o Exu continuou a agir provocando a morte de outro jovem que passou a namorar a sua filha em seguida. Esse caso só ganha importância se levarmos em conta o seu contexto político e social. Os dois mortos estavam envolvidos em lutas faccionais entre bandos de traficantes de drogas e também com a polícia. Tanto um quanto outro faziam parte, naturalmente, do sistema de dominação político deste território. Em outras 23

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palavras, o local onde morava Maria tinha se transformado paulatinamente num campo de guerra, onde assassinatos de jovens foram aumentando em número e se banalizando. Como sabemos, nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, os responsáveis pelos conflitos armados não encontram diante deles nenhum poder que se mostre capaz de interditar suas ações. Bandidos e polícia criam nas periferias urbanas das nossas cidades uma ordem política e social em que o uso da força garante uma dominação local que não é desafiada pelo Estado, bem ao contrário, tem encontrado neste um aliado sem igual (LEITE, 2008). Para o que nos interessa aqui, o importante é considerar que esta senhora, membro do candomblé, viu-se diante de um dilema moral e também político: como manter uma relação com uma entidade que ela acredita ter se envolvido com crimes e mortes? Uma entidade que visivelmente prefere acompanhar os princípios de uma ordem política local violenta a proteger os seus interesses domésticos e a sua pessoa? Maria sugere que o comportamento do Exu se “diabolizou” quando ele se envolveu como ator nos atos violentos entre as facções em luta. O que foi traduzido por ela como um comportamento guiado por um princípio diferente daquele que orienta as entidades afro-brasileiras. Maria formulou uma relação de causalidade entre o modo de agir violento e inaceitável de indivíduos, membros da polícia e de facções do tráfico de drogas, e o seu Exu, agora diabo. Teria sido este último que estaria por trás do assassinato do seu genro. Ao pensar desta forma, Maria renuncia a considerar as suas entidades como seres que guardam uma proximidade com ela e se encontram sob o seu controle relativo, no interior da sua rede de relações, por um lado e, por outro, como seres que não estariam subordinados a um centro. A autonomização da entidade vis-à-vis seu quadro doméstico e familiar fez-se em proveito de uma violência cujas regras ultrapassaram inteiramente a sua possibilidade de intervenção. É neste quadro que a cosmologia pentecostal ganha sentido e importância. Através dela foi possível relacionar a violência cotidiana com um sistema de causalidade de outro porte e de outra natureza. Há, nesses eventos, moralmente inaceitáveis, a manifestação de um poder cuja fonte não é local. O comportamento do Exu/diabo não dependeria do poder de manipulação de Maria nem da natureza específica destes entes sobrenaturais, mas sim de uma força única, centralizada, de 24

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onde emanam as orientações do diabo, controlando o movimento de todos os entes, seus subordinados. A ruptura com as entidades do candomblé torna-se inevitável. Robbins (2008), de modo muito oportuno, fornece- nos uma chave interessante de leitura desses acontecimentos. Chama atenção para o que seria um traço comum ao pentecostalismo que contrasta com cultos “tradicionais”: como uma religião que separa e distancia o transcendental e o mundano de uma maneira radical, o pentecostalismo possibilitaria aos indivíduos o reconhecimento de uma falta de controle e de poder sobre as suas condições de existência. Esta interpretação me parece perfeitamente adequada a experiências religiosas como esta que relatei1.

Da crítica à hierarquia e do combate à tradição O caso de Maria apresenta um intrincamento particularmente revelador entre a sua rejeição e sua indignação moral ante o acontecimento catastrófico que viveu e a ideia de um mal absoluto e universal direcionando o comportamento criminoso dos indivíduos, seus responsáveis diretos. A definição cristã a respeito da universalidade do mal no mundo faz parte dos princípios absorvidos pelas sociedades ocidentais como parte de sua definição do social. Isso não significa, porém, uma adesão à doutrina evangélica que exige dos seus fiéis um afastamento estrito da ordem mundana. Os fiéis de tais igrejas são orientados a cultivar um comportamento que reafirma simbólica e cotidianamente uma ruptura com o mundo como um lugar diabólico. O diagnóstico a respeito dos problemas vividos pelas pessoas ganha, por meio da palavra evangélica, um sentido que aponta para a ruptura com a ordem mundana: com o mal não se negocia, o mal se combate. O desmoronamento do pequeno mundo familiar de Maria revelou o seu desconforto em aceitar os comportamentos criminosos que a ameaçavam. Abandonar as suas entidades no seu caso não significou uma entrada em uma igreja evangélica. No entanto, não responder ao chamado destas igrejas não quer dizer que tenha permanecido indiferente aos discursos a 1

Cf. Birman, 2008.

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respeito da “batalha espiritual” como expressão da ordem mundana (MARIZ, 1999; FRIGÉRIO e ORO, 2003). Com efeito, outros pequenos mundos, Brasil à fora, sofreram abalos significativos através da chegada da palavra evangélica. Dizia-se no passado recente que, no Brasil, ricos e pobres partilhavam da mesma religião, o catolicismo. A religião católica, no entanto, não era considerada simplesmente a religião da “maioria”, mas sim aquela identificada como a religião da nação e, em consequência, dos seus princípios sociais e políticos. A consubstancialidade entre a identidade brasileira e a identidade católica, embora sujeita a conflitos, não deixou de se conformar progressivamente como uma evidência. A imagem do Brasil como um país católico se forjou ao longo do século XIX, e foi de tal forma naturalizada que as mudanças que hoje se assiste provocam uma grande interrogação2. A “catolicidade” da nação brasileira, no entanto, nem sempre foi reconhecida e foi combatida por muitos, tendo se constituído também como lugar de conflito e de disputa de poder. Apesar disso, o catolicismo “sincrético” se constituiu como uma marca identitária, cultural e política da nação – uma espécie de lugar comum de um imaginário em que catolicidade e brasilidade se constituíram como termos senão sinônimos ao menos complementares. O processo que hoje atrai a curiosidade e o interesse dos estudiosos da religião diz respeito, em consequência, a essa mudança de valor e de lugar atribuído ao catolicismo que, ao ser questionado, provoca perplexidade e chama atenção para esta perda de hegemonia que está em curso3. Hoje se diz, portanto, que há “ainda” uma “maioria” católica, mas se ousa, cada vez menos, falar numa consubstancialidade entre a nação e a catolicidade como se mencionava até recentemente. A “cultura evangélica,” desde os anos noventa, espraia-se pelo espaço público ameaçando esse imaginário nacional cuja estabilidade e naturalidade garantia o seu caráter “a-históri Pierre Sanchis (1996, p.35) faz menção a uma “cultura católico-brasileira” referindo-se à ideologia que se construiu no final do séc.XIX, momento em que a Igreja Católica:”marginalizada do espaço público pela separação da Igreja e do Estado, tentava reconquistar o seu lugar nesta arena, desenvolveu uma ideologia chamada a prolongar-se como construção difusa da identidade nacional” Sanchis relaciona alguns intelectuais católicos que ao longo do século colaboraram neste forço para forjar: um “retrato” de um Brasil intrinsecamente – dir-se-ia entitativamente – católico, que não pode fugir aos traços fundamentais de sua origem. Nas palavras do Pe Júlio Maria: ‘O catolicismo formou a nossa nacionalidade… Um ideal de Pátria brasileira sem a fé católica é um absurdo histórico tanto como uma impossibilidade política’”. 3 Veja-se, por exemplo, o comentário de dois sociólogos (SARTI e VALLE, 1996, p. 8) sobre a reação da elite católica diante do crescimento pentecostal que eles ao mesmo tempo descrevem e criticam: “Perplexidade” é a palavra que melhor resume o efeito destes novos números sobre as elites católicas, as quais, aferrando-se cegamente a uma definição ampla e tolerante do catolicismo que em outros momentos renegam, sempre julgaram possuir uma hegemonia religiosa sobre o país”. 2

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co”. Outras experiências religiosas pouco institucionalizadas vêm também crescendo substancialmente nesta sociedade. Os elos religiosos que unem e hierarquizam ricos e pobres como componentes da mesma totalidade nacional, tal como se construiu com a participação ativa da hierarquia católica, parecem, no entanto, se desfazer e provocar inúmeros questionamentos sobre as fragmentações identitárias contemporâneas, sobre a perda de vitalidade do projeto nacional hegemônico, sobre a relação entre religião e Estado, sobre, em suma, as transformações por que passam a sociedade brasileira nestes tempos de “pós-modernidade” (PIERUCCI, 2004). Ser católico, ou ser “afro-católico” não definiria mais, ou pelo menos com o mesmo vigor, o pertencimento à nação nem a adesão a uma mesma concepção sobre a sua ordem.4 Um excelente exemplo provém de uma descrição etnográfica realizada por Boyer (2008) em um pequeno vilarejo amazonense. Neste lugar onde todos eram católicos “de nascença” a chegada de uma família de “crentes” fez aparecer de modo fulgurante os muitos fios da trama que ligam os católicos com as várias modalidades de exercício do poder local e supralocal. A diferença evangélica teve como sentido maior a efetivação de uma ruptura com o respeito que seus moradores cultivavam em relação à hierarquia social e política local. O “crente”, um recém-chegado, foi fortemente atacado e objeto de formas pouco sutis de segregação e transformou-se em uma figura de resistência que pôs a nu a solidariedade interna deste mundo e o seu sentido político maior. Como relata Boyer, de repente ficou espantosamente visível, para crentes e não-crentes, o que a hegemonia católica naturalizava: o quadro de dominação existente que se encontrava profundamente embebido pelo catolicismo com o qual se 4

Num artigo cujo título provocador e sugestivo “Bye bye Brasil – O declínio das religiões tradicionais no Censo de 2000”, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci chama atenção para a perda de elementos que garantiam a “brasilidade” e que estariam sendo perdidos contemporaneamente. Do catolicismo ele diz: “Em primeiro lugar, o catolicismo, esse que um dia se pensou triunfalmente nos haver cunhado, em cultura e civilização, católicos no todo e de uma vez por todas, selando-nos o destino confessional desde a primeira hora: católicos de berço e de colo. Do berço eucarístico, representado na mitificada “primeira missa” celebrada por Frei Henrique de Coimbra, em Porto Seguro, no dia 26 de abril de 1500, ao colo mariano, tornado trono em 1930, abertura da Era Vargas, com a proclamação de Nossa Senhora Aparecida como a padroeira universal do Brasil.” O segundo culto mais nacional destacado é a umbanda, culto de possessão incluído entre os de “origem africana”: “A perspectiva da construção de uma identidade nacional esteve sempre à mão entre os intelectuais, pelo menos desde a República, o que desde logo favoreceu toda uma boa vontade com a umbanda. Afirmativamente afro e marcadamente popular, ela não se fechava etnicamente em sua negritude, mas se oferecia brasileiramente a todos os brasileiros. Pensava suas raizes como plenamente brasileiras e não simplesmente africanas…O africanismo brasileiro em sua forma umbandista desde sempre se apresentou e se representou como uma “mistura típica”, “bem nacional”, de ingredientes de proveniência diversa, porém ressignificados como autóctones.” (PIERUCCI, 2004, p. 17 e 25)

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confundia. De “estrangeiros”, os “crentes” transformaram-se em figuras emblemáticas das dificuldades enfrentadas pelos “pobres” que, como todos os outros moradores, passaram a duvidar do caráter sólido e inquebrantável desta ordem naturalizada que passaram a desafiar.

Diferencialismo e universalismo como perspectivas religiosas no plano político O Brasil, frequentemente mencionado como o “maior país católico do mundo,” é também aquele considerado o “país do sincretismo” em que os cultos “afro-brasileiros” são percebidos como cultos complementares ao catolicismo oficial. Neste “país católico” as camadas populares foram identificadas através de uma dupla inserção religiosa: católicos que simultaneamente eram adeptos ou eventuais frequentadores de cultos de possessão. A ruptura com a hierarquia religiosa que naturaliza as relações de poder no vilarejo amazônico tem acontecido em outros lugares, através outros caminhos, particularmente associados à religiosidade “afro-brasileira”, concebida essencialmente como detentora de um estatuto inferior no interior da ordem católica nacional. Feiticeiros poderosos, curandeiros e mães de santo sempre tiveram sua eficácia reconhecida pelas elites católicas, o que foi mencionado (por vezes acusatoriamente) por intelectuais, médicos e juristas como um mal a ser combatido, sobretudo a ser mantido com um poder marginal, com um estatuto inferior a ser controlado e reprimido pelo Estado5. Conforme Maggie (1992), o Estado brasileiro, desta forma, pelo estabelecimento de seus peritos, pelos dispositivos judiciários que foi desenvolvendo, foi um ator importante na criação da “verdade” sobre a feitiçaria no Brasil. Esta realidade, contudo, fez-se como ela bem disse, elaborando um conjunto de dispositivos que configurava uma ordem hierárquica. Podemos acrescentar: entre as marcas identitárias que se consolidaram nesta dinâmica em relação aos cultos afro-brasileiros a mais importante foi a alocação social e política deses cultos em espaços periféricos e de pouca visibilidade, o que reiterava 5

Cf. Maggie, 1992 sobre a crença na magia e na feitiçaria.

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uma relação particular com o que é oculto pela sua própria natureza e com o que socialmente se deve ocultar. A relação com o oculto é historicamente constitutiva dos cultos afro-brasileiros e do lugar que lhes foi atribuído na vida social. A sua alocação em espaços de menor visibilidade, como periferias e favelas, parece estar associada, de um lado, aos grupos sociais que seriam seus maiores praticantes, os grupos subalternos da sociedade brasileira, e ao caráter religioso e moral de suas intervenções, de outro. João do Rio chamou atenção para a duplicidade do comportamento das elites cariocas que frequentavam os feiticeiros da mesma maneira que as prostitutas. A dupla moralidade, objeto de tantos romances e críticas dos costumes nas metrópoles européias, aqui e também lá, ajudou a fazer destas franjas do poder e da sexualidade um domínio associado à magia e à feitiçaria6. É interessante reconsiderar o argumento que a “crença na feitiçaria”, a adesão simultânea aos princípios do catolicismo e aos dos cultos afro não respeita as fronteiras de classe e de posição social no país (MAGGIE 1992, SANCHIS 1996, entre outros). No meu modo de entender, a noção de “crença” permite igualar o recurso que os diferentes grupos sociais fazem a práticas religiosas consideradas mágicas e perigosas. É preciso, ao invés disso, considerar as hierarquias e as divisões de trabalho que estas induzem. Com efeito, a prestação de serviços mágicos, ocultos e de moralidade duvidosa coube a certos segmentos sociais subalternos e o usufruto destes serviços se espalhava por toda a sociedade. Yvonne Maggie estabeleceu corretamente que a sociedade brasileira, na sua grande maioria, participava da “crença na feitiçaria”, e disse também que os dispositivos jurídicos e políticos que se criaram ao longo da República para controlar o exercício da feitiçaria engendravam hierarquias sociais. O que faltou desenvolver, no meu modo de entender, é que a “crença na feitiçaria” se constituiu através de uma divisão de papéis: para uns a “produção” e para outros o “consumo” o que foi essencial para a construção social de lugares hierarquicamente diferenciados por intermédio das práticas religiosas. Em outras palavras, os grandes feiticeiros mencionados pela literatura, bem como os praticantes destes cultos mencionados nos processos analisados por Yvonne Maggie na sua maioria eram indivíduos pobres, majoritariamente negros no século XIX e, ao longo do século XX indivíduos brancos foram também incluídos nesta categoria,“desracializando,”em certa medida, os critérios de pertencimento aos cultos afro-brasileiros. Como é consenso na literatura sobre religião no Brasil, a dupla pertença dos religiosos ao catolicismo e aos cultos afro-brasileiros predominou nas práticas religiosas de todos os segmentos sociais do país, até a “onda” pentecostal onde aparentemente diminuiu tanto a dupla pertença como o número de católicos na sociedade brasileira.

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Estes lugares de “produção” e “consumo” só se tornam mutuamente excludentes para aqueles pertencentes à elite social do país: estes seriam somente “consumidores”. O caráter oculto/secreto ou parcialmente encoberto das relações que os “consumidores” da elite social e política sempre mantiveram com pais de santo é essencial para se compreender o lugar desses últimos na esfera pública. Subalternidade e poder, eficácia mágica e amoralidade seriam assim seus atributos mais enfatizados. Estes atributos, no entanto, não necessariamente eram vistos como negativos por parte de seus praticantes já que diziam respeito a formas de intervenção eficazes num mundo social cujos princípios hierárquicos, ou cuja ordem social e política não eram objeto de questionamento. Ao atacarem como diabólica a magia dos afro-brasileiros, as igrejas evangélicas questionaram fundamentalmente o lugar de subordinação hierárquica que historicamente garantiu a eficácia do seu poder social7. Em outras palavras, as intervenções sobrenaturais na Terra passaram a ser cultivadas somente através da intervenção divina que se fez mais visível e em clara ruptura com as forças “ocultas”, agora definidas como subalternas e diabólicas, por um defeito moral a ser combatido e não por um destino inerente e claramente reservado a certos grupos, seja pela classe social, seja pela cor da pele. Em síntese: pelo estatuto social que possuem. Estou considerando que o pentecostalismo que nasceu no final dos anos 1980 ofereceu para os antigos praticantes afro-brasileiros e também os antigos católicos “sincréticos” convertidos uma passagem da “magia”, com sua carga de estigmas e preconceitos e também com os elos invisíveis com poderes maléficos, para o “milagre”, essencialmente situado como uma prática legítima no campo cristão e também católico. Ao desvincular as formas de intervenção sobrenatural, por um lado da feitiçaria e, por outro, de uma identificação com os grupos sociais subalternos, vistos como aqueles capazes de agenciar tais poderes, o pentecostalismo renovou as condições de intervenção dos religiosos na esfera pública, principalmente aqueles pertencentes aos segmentos mais desfavorecidos da população. Esta passagem do “oculto” para o “visível”, do “silêncio” para o exer Cf. A importante reflexão de Luiz Eduardo Soares neste sentido quando, em 1992, chamou atenção para o caráter horizontal e, portanto, mais igualitário e democrático que os pentecostais estavam impondo às controvérsias religiosas. Ver também Birman e Lehmann, 1999, Giumbelli, 2000, Mariano, Corten que discutem, a partir de pontos de vista diversos, a natureza renovadora do discurso pentecostal no Brasil.

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cício da “palavra”, das “margens” para o “centro”, da “magia” para o “milagre” tem provocado inúmeros efeitos no modo pelo qual se situam as religiões na esfera pública, nos poderes atribuídos aos seus atores em diferentes circunstâncias. Uma parcela importante do movimento negro no país construiu seu movimento apoiando-se em recursos identitários provenientes dos cultos afro-brasileiros. Buscam reforçar estes cultos como portadores de uma herança africana a ser associada à luta contra a discriminação racial. Quero chamar atenção para o quanto esta proposta política se distancia daquelas promovidas pelos grupos evangélicos. Com efeito, a conversão busca oferecer para o indivíduo uma forma de pertencimento que esvazia as identidades afro-brasileiras a partir de uma rejeição do lugar hierárquico em que estas sempre foram dispostas na sociedade nacional. Os evangélicos buscam dar lugar a princípios igualitários através de uma diabolização da diferença cujo significado, ao longo da história brasileira, tem sido aquele de produtor de desigualdades. O projeto cristão e evangélico busca valorizar aos seus convertidos uma cosmologia em que o tratamento igualitário será alcançado através da conversão, isto é, como efeito da ruptura com os compromissos que envolvem o contato com os entes diabólicos. Transcender o plano imanente, onde circulam os diabos e as pessoas, mergulhados todos em uma ordem maléfica, resume o essencial do projeto evangélico.

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Capítulo 1 – Só Deus resolve: desafios evangélicos à ordem mundana

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Capítulo 2 A presença católica na esfera pública brasileira: para pensar o laicismo e o laicato Júlia Miranda

Introdução O que estão fazendo os atores religiosos – e quem são eles – no tocante às práticas que promovem cidadania, no Brasil deste início de século XXI? Que aspectos parecem merecer maior consideração por parte, tanto de estudiosos quanto de atores identificados com instituições e/ou denominações, quando se busca compreender a presença de sujeitos político-religiosos no espaço público brasileiro contemporâneo? Nossa sociedade pode ser apresentada como plural e tolerante religiosamente, ou tais qualificativos escondem uma realidade complexa, mal conhecida e extremamente desafiadora, do ponto de vista da reflexão e da ação? Com que grau de propriedade podemos dizer que são laicos o Estado e a sociedade brasileiros? Muitas são as possibilidades de abordagem dessas questões, sobretudo se consideradas as inúmeras ênfases que podem orientar as análises. A literatura acadêmica recente tem mostrado que diferentes práticas, hoje consideradas religiosas, vão-se construindo como tal, no interior de um sistema jurídico-legal que as define em contraposição ao catolicismo, tomado como modelo e como “a religião dos brasileiros” no início do período republicano, quando se acendem os debates sobre a liberdade religiosa e sobre aquelas que se lhe seguem (GIUMBELLI, 1997; MONTERO, 2006). Não são poucos os estudos que tratam – além da constituição religiosa do kardecismo – também das especificidades do processo de institucionalização dos cultos afro-brasileiros (ORTIZ, 1978; NEGRÃO, 1996; MAGGIE,

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1992). As peculiaridades geográfico-espaciais marcam esses desenvolvimentos sócio-históricos. E o catolicismo; como reage à separação entre Igreja e Estado operada pela República e pela Constituição de 1891? Que rupturas e continuidades marcam seu desenvolvimento posterior? As peculiaridades locais e regionais não seriam, também nesse caso, portadoras de elementos heurísticos importantes? Tomo como pressuposto – para sistematizar minha participação na discussão compartilhada com outros estudiosos e com agentes confessionais, reunidos em workshop e seminário sobre Religião e Cidadania, promovidos pela Fundação Joaquim Nabuco e pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE – que, sendo plural a religiosidade dos brasileiros, também no tocante ao catolicismo, um olhar sobre os desenvolvimentos históricos particulares pode enriquecer a compreensão do presente. Este trabalho reflete sobre alguns aspectos importantes para a compreensão da presença da religião católica na esfera pública republicana, pensada a partir de questões como: que leitura da sociedade, do Estado, da política e do lugar da hierarquia e do laicato marca as primeiras décadas do século XX? Que práticas a acompanham? Faz uma análise diacrônica da participação político-eleitoral dos católicos, centrada nas eleições nacionais constituintes de maio de 19331 e nas eleições nacionais que marcam a virada do século XX para o XXI2. Esses processos eleitorais são tomados como “chaves” de acesso às nossas culturas, religiosa e política, e permitem acompanhar-lhes algumas significativas transformações, num período caracterizado pela passagem de uma conjuntura de consenso sobre vivermos em um país católico para a constatação estatística de que hoje, neste pluralismo religioso relativamente recente e particular (majoritariamente cristão, caracterizado pela múltipla pertença, etc), diminui o número de católicos e cresce significativamente o número de evangélicos e dos sem religião. A reflexão é parte de um projeto3 que busca identificar as representações da sociedade, da religião e da política, entre outras que a ela se Essas são as primeiras eleições constituintes após a proclamação da república e a separação oficial entre Igreja e Estado. São marcadas por uma fortíssima campanha dos católicos que apresentam programa de dez propostas a serem incluídas na nova Carta. Consideram-se aqui as eleições de 1998, 2002 e 2006, e lembra-se que todas elas foram realizadas sob a égide da Constituição Cidadã, promulgada em 1988 e redigida pela Assembléia Nacional Constituinte eleita em 1986; a primeira pós-ditadura militar. Para efeito desta reflexão foram também considerados os pleitos municipais de 2000 e 2004, importantes para acompanhar as tendências em curso. 3 Uma primeira reflexão sobre o tema foi publicada sob o título “Os católicos e a construção do poder na cidade dos homens” In: HEREDIA, B. 2007. Continuidades e rupturas na política cearense, Campinas, Pontes, 1

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Capítulo 2 – A presença católica na esfera pública brasileira: para pensar o laicismo e o laicato

vinculam, como as noções de laicismo, tolerância, cidadania e democracia – construídas pelos católicos brasileiros, tomando como base o Estado do Ceará e as especificidades da sua tradição católica. Os fatos observados, ora enfatizem as práticas políticas stritu sensu do laicato, ora contemplam a ação institucional e outras iniciativas laicas dos católicos ao longo do período, em especial na passagem do século XX para o XXI.

A particularidade do Ceará O Atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil4, lançado em 2003, embora não se detenha sobre as especificidades regionais ou locais do catolicismo brasileiro do final do séc. XX, destaca que a Região Metropolitana de Fortaleza foge aos modelos binário e ternário, estabelecidos com base na análise dos microdados do censo5, apresentando uma estrutura intermediária e caracterizada pela significativa presença de católicos também no centro da Região Metropolitana. É possível ainda observar que mesmo estando localizada no litoral, Fortaleza permanece fortemente católica, ao contrário de outras capitais como Recife e Salvador. Ora, esses são apenas indícios – os mais recentes e estatisticamente construídos, mas não os mais importantes – de que a perspectiva geográfica é indispensável para a análise e as possibilidades de generalização dos fatos relacionados à religiosidade dos brasileiros e a sua articulação com outras instâncias de práticas e construção de pensamento, como a política, por exemplo. Entre os católicos brasileiros, hoje mais do que no início do século XX, há diferentes modos de crer e de praticar, expressos principalmente pela cultura religiosa republicana que deu origem ao cristianismo de libertação e à Renovação Carismática, se quisermos identificar somente os dois principais movimentos que se constituíram numa dialética de aproximação e distanciamento com os chamados catolicismo oficial6 e popular. Em cada um, observa-se: lugares e iniciativas do laicato com um perfil próprio; Atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no Brasil (org. César R Jacob et alli), Rio de Janeiro, PUC/Loyola/CNBB, 2003. No modelo ternário há forte presença de católicos no município central, redução na periferia próxima e aumento em direção à periferia mais distante. O modelo binário implica menores percentuais de católicos no centro e maiores na periferia. 6 Aqui representado sobretudo pela ação pastoral das dioceses. 4 5

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formas de organização; reelaborações litúrgicas; ênfases em textos bíblicos específicos; cultos e imagens preferenciais; vida comunitária; representações da religião e da sociedade, além de relações distintas com a hierarquia. O cenário é igualmente marcado pelas práticas de sujeitos religiosos que não entendem do mesmo modo a presença da religião na esfera pública e se envolvem em ações, aqui de caráter contestatório, socialmente críticas, ali em projetos meramente filantrópicos, de exercício da caridade cristã. No Estado do Ceará, nas duas últimas décadas, tem sido possível observar a ocorrência, crescente e multifacetada, de fatos, aparentemente isolados entre si, que apontam para possibilidades na análise das expressões públicas de culto e de pertença religiosos no país. Eles interpelam fortemente e, entre os católicos, podem ser resumidos como certo “despudor” na exibição dos símbolos de pertença religiosa7, acompanhado da criação de novos grupos, cultos, santuários e paraliturgias, entre outros elementos. São formas renovadas de presença do religioso no espaço público. Não são políticas no sentido estrito da participação partidária (MIRANDA, 2006; ORO, 2003), nem políticas se considerada sua parceria com o Estado na concretização de políticas públicas (BURITY, 2006). São novas expressões públicas de culto e de presença, que coexistem com as primeiras. Esse “reavivamento” do catolicismo no Ceará parece-me particularmente significativo pois, embora seja este o segundo maior estado católico do país (atrás apenas do Piauí8), vale aqui, para os praticantes da fé católica, a mesma observação feita para o restante do Brasil no último censo9, a saber: numericamente eles aumentam, mas esse aumento é inferior ao crescimento da população. Logo, a tradição católica perde fiéis também no Ceará. Pode-se inferir, como hipótese, que essa maior visibilidade observada, essa presença renovada no espaço público, está ligada a um processo de conversão interna ao catolicismo, descrito por Hervieu-Léger (1999) como fazendo emergir uma sociabilidade da experiência partilhada, da comunicação direta, do engajamento pontual, mesmo em se tratando de uma religiosidade de escolhas individuais. Trata-se, pois, de um tipo Vestuário, adornos pessoais, peças de decoração e utensílios caseiros, por exemplo. É sempre bom lembrar que, no Ceará, diferentemente do Estado vizinho, há dois dos maiores centros de peregrinação católica do país: Juazeiro do Norte e Canindé, respectivamente dedicados ao padre Cícero e a São Francisco de Assis. 9 Conforme o Atlas (op.cit.) 7 8

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especial de “convertido”, surgido de um contexto intra e extraecesial particular, no qual tem ainda grande importância os padrões de mercantilização, estetização e espetacularização vigentes na sociedade brasileira contemporânea (RUBIM, 1994). A capital cearense e seu catolicismo forte, diversificado e em permanente reconstrução, representam um nada desprezível desafio às denominações pentecostais (fato assumido explicitamente por inúmeras de suas lideranças eclesiais) e, no campo da política partidária, esse aspecto da concorrência tem ficado patente nas eleições, através das cuidadas estratégias por elas adotadas e nos resultados obtidos. Diferentemente de outras capitais, Fortaleza não registra diminuição de intensidade dessa presença na política (MIRANDA, 1999; 2006). A perspectiva relacional tem mostrado essa interação como capaz de oferecer interessantes indícios explicativos das práticas de diferentes grupos religiosos, católicos e pentecostais, na capital e em todo o Estado10. Mas, um catolicismo com tais características, não se explica apenas pelo que se convencionou chamar de grande “fé do povo nordestino”,11 não todo ele envolvido com as mesmas práticas, nem mantendo os mesmos laços entre laicos e hierarquia eclesial. Cumpre fazer aqui alguns esclarecimentos. Tenho utilizado os termos laicos e hierarquia, ao invés do englobante instituição (ou institucional) porque entendo que assim destaco uma das dimensões nas quais se podem observar algumas das significativas transformações do catolicismo republicano, isto é, os espaços ocupados pelos fiéis no âmbito da instituição e os modos de fazê-lo. Voltarei a esse aspecto mais adiante. Penso que, do ponto de vista institucional – e aí se unem laicos e hierarquia – o imperativo católico no Brasil, desde a separação entre Igreja e Estado, tem sido sempre o mesmo. Na primeira metade do século XX, em que não havia uma grande pluralidade de discursos e práticas no âmbito da hierarquia ou do laicato12, ele assume a forma da conclamação feita por Dom Sebastião Leme, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro na década de 30: É preciso recatolicizar o país e fazer o Estado reconhecer o deus do povo. Nos anos 1970 e 1980, é o padre peruano Gustavo Gutierrez, sistematizador Estratégias, discursos e tipos de campanha são imitados, tanto entre diferentes denominações pentecostais quanto entre estas e os católicos. Até porque a região Sul do país também é fortemente católica, embora não pareça compartilhar com muitos desses elementos. 12 Ver MIRANDA (1987). 10

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da teologia da libertação latino-americana, que lança o apelo com idêntico conteúdo semântico: Precisamos levar a religião para a praça pública. Meio século separa ambas as frases do convite dos carismáticos de hoje para que aceitemos Jesus e tornemos o mais visível possível essa aceitação. É sempre da presença pública da religião que se trata. Na capital cearense deste início de século, é possível observar, ainda, outra característica no que concerne à esfera religiosa católica. A Renovação Carismática – que, em 2007, completou trinta anos no Brasil – e suas comunidades, aqui implantadas, servem de referência para o país. O movimento encontrou, em Fortaleza, as condições que a transformaram num dos mais importantes polos nacionais de irradiação das novas práticas do catolicismo. Somente a pioneira comunidade Shalon13, principal centro de formação de leigos (já autorizada pela Santa Sé a formar também clérigos), possui 55 casas distribuídas em 18 estados brasileiros e 12 sedes em outros seis países. Sob a forma de comunidades de aliança e de vida14, essas instituições laicas carismáticas se diversificam e multiplicam, estendendo sua ação também aos grupos de oração que se reúnem em universidades, residências, hospitais e paróquias, entre outros locais da cidade. A pertença religiosa se torna cada vez mais pública, também porque imprime variações no estilo de vida dos fiéis – sobretudo dos jovens – e porque faz surgirem candidaturas políticas identificadas com o movimento, embora estas últimas registrem significativas diferenças quando comparadas com as candidaturas de representantes das duas maiores denominações pentecostais presentes no cenário político-partidário nacional e local, quais sejam a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembléia de Deus. Em Fortaleza, esse novo cenário religioso católico, no que concerne particularmente aos jovens, é responsável pela farta exibição de modos variados de exibição dos símbolos de pertença e de uma sociabilidade plena de musicalidade e entusiasmo. Mas ele já aponta – não sem causar certa inquietação15 – para práticas de construção identitária que evitam os diferentes. Resulta daí o estímulo a certa intolerância fundada na crítica constante Até bem pouco tempo a maior comunidade católica carismática do país, Shalon só perde, hoje, em estrutura e número de membros, para a paulista Canção Nova. Ver MIRANDA 1999, op. cit. 15 Uma reflexão sobre esse tema está em elaboração para publicação. 13

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do “outro”, assim como no incentivo e opção pela convivência entre iguais. Ambas as posturas são grandemente alimentadas pela literatura, palestras e pregações de lideranças laicas responsáveis pela “formação moral” da juventude16. É cada vez mais comum encontrar jovens universitários que comparecem às aulas de camisetas e bonés ilustrados por imagens ou frases alusivos ao cristianismo; que se organizam em projetos exclusivamente religiosos como – Universidades Renovadas e Profissionais do Reino – que reúnem estudantes para louvores e orações no campus, em intervalos de aula, e promovem Calouradas Cristãs e missas. Nas ruas, aumenta o número de carros que ostentam adesivos com a figura da Virgem Maria e com frases de louvor e confiança em Jesus Cristo. Criadores de joias conquistam a clientela com coleções cujos elementos predominantes são símbolos do cristianismo católico, e o “carnaval da fé”17 se espalha pelos mais diferentes bairros. Os terços viram adereços e companhia em locais de onde sempre estiveram ausentes18 e eventos de massa, reúnem dezenas de milhares de fiéis para orações e louvor em estádios esportivos19. Imagens de Maria são entronizadas, cada vez em maior número, em praças e condomínios da capital cearense, e novos cultos a ela são criados nos bairros periféricos da cidade. É o caso da Campanha da Mãe Peregrina de Schoenstatt (ou culto à Mãe Rainha e Vencedora, Três vezes Admirável), assim como do Terço dos Homens, que tem aumentado o contingente masculino nas igrejas. Tem-se a impressão de que se reza em todos os lugares da cidade. A frequência aos templos – pelo menos à grande parte deles – parece ter-se tornado maior e muito, muito mais ruidosa20. Não se pense, porém, que essa é a única forma dos fortalezenses serem católicos; elas são hoje plurais, se as comparamos ao que eram há setenta anos. Esse catolicismo fragmentado ainda está buscando as formas de convivência interna – com suas outras expressões – assim como com as demais denominações religiosas. Os fundadores da Shalon, Moisés Azevedo e Emir Nogueira, responsáveis pelas palestras principais e pela literatura específica para essa faixa etária, são exemplos de vida e lideranças objetos de certo culto à personalidade. Durante o período momesco e nas festas do carnaval fora de época (Fortal), as mais de uma dezena de comunidades carismáticas fortalezenses se reúnem em eventos de louvor, cura e orações. 18 Salas de espera de clínicas médicas, caminhadas à beira-mar e bancos de praças públicas, entre outros. 19 A vigésima edição do Queremos Deus reuniu mais de 60 mil pessoas em 2007. 20 De um frade capuchinho ouvi que sua ordem religiosa nada tem a ver com a Renovação Carismática, mas: “esse pessoal é tão cheio de fé e tão animado” que seguimos o ensinamento do Senhor: “deixa-os; quem não é contra nós está conosco”. E assim, os carismáticos vão disseminando o “seu jeito de ser católico.” 16

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Laicismo à brasileira A primeira Constituição republicana, em 24 de fevereiro de 1891, oficializa a separação entre Igreja Católica e Estado no Brasil e cria o então chamado estado laico. Coloca-se, de imediato, para a instituição eclesiástica, uma dupla tarefa. Primeiramente ela deverá assumir essa separação, com todo o ônus advindo, tanto no que se refere à perda de prestígio, quanto à crise econômica interna então gerada. Em segundo lugar, impõe-se-lhe a busca, agora fora da tutela do Estado21, de um espaço próprio para atuação junto à sociedade brasileira. Para os analistas sociais tem-se colocado, desde então, o desafio de entender esse laicismo. Quando Berger (1980) afirma que a democracia norteamericana, diferentemente de “várias ideologias democráticas da Europa e da América Latina”, não é hostil às igrejas, ele explica que, ali, os princípios implícitos na separação entre Estado e Igreja eram pluralistas, mais do que laicistas, como na França. O que dizer do caso brasileiro? A separação deixa a hierarquia católica aturdida e empenhada em protestos veementes, como dão mostra as Cartas Pastorais Coletivas de 1890, 1900 e 191522; as duas primeiras repudiando explicitamente o decreto do governo provisório, de 7 de janeiro de 1890, que, entre outras coisas, estabelece a liberdade de cultos. Um trono afundado de repente no abismo que princípios dissolventes, medrados à sua sombra, em poucos anos lhe cavaram; assim se referem à proclamação da República as Pastorais de 1890 e 1900, que procuram mostrar que o trono caiu, mas o altar continua de pé, “amparado pela fé do povo e pelo poder de Deus”. Prevalece o sofisma que transforma a verdadeira questão – a da separação entre Igreja e Estado – no problema da escolha da “religião oficial”, que se entende dever ser o catolicismo. Uma voz soa forte apontando outra “leitura” da realidade. O novo regime é incontestavelmente a liberdade restituída a Igreja brasileira, depois de sua longa e triste escravidão brada o padre Júlio Maria, opondo-se aos bispos temerosos da perda de espaço junto aos governantes e aos econo Até a proclamação da República, a Igreja Católica brasileira vivia o regime de Padroado, que implica absoluta submissão ao poder temporal, e foi transferido pela Coroa portuguesa ao imperador Pedro I em 1827. Tão grande era essa ingerência que, apenas depois de 1830, as orientações do Vaticano puderam ser recebidas diretamente pelo clero nacional. 22 Esses documentos episcopais darão o tom da ação institucional da Igreja Católica durante toda a primeira metade do século XX. Eles foram consultados nas obras dos autores: Moog, AM. A igreja na república (1981) e LUSTOSA, O. Os bispos da Brasil e a imprensa (1983). 21

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micamente poderosos. Ele, que já insistia na necessidade de se substituir as questões políticas – que erroneamente predominam nos governos, parlamentos e jornais – pela questão social, dá um dos mais significativos depoimentos da Igreja no alvorecer da República: O clero vive separado do povo; quase que o povo não o conhece. O clero contenta-se com uma aristocracia de devotos. Quase a sua aspiração se reduz a ver os templos bem enfeitados, o coro bem ensaiado e, no meio de luzes e flores, os seus paramentos bem reluzentes. Toda a atividade do clero quase que se resume nisto – festas para os vivos e pompas fúnebres para os mortos. O clero político não tem nenhum valor político e social. Nem ele pesa, como deveria acontecer, na balança da opinião; nem a Igreja brasileira é ouvida em nenhum dos grandes interesses da pátria. Por que? Porque o clero está encerrado na sacristia e, esperando tudo da graça de Deus, imagina que essa há de arranjar tudo sem a sua cooperação, como se a promessa de triunfo que Deus fez a sua igreja compreendesse a do catolicismo em todos os lugares onde a negligência, o preconceito teológico e a paixão política unem-se como íntimos amigos, em oposição aos progressos da religião23. Manter unida e forte a Igreja, além de garantir-lhe uma organização burocrática adequada (romanização), torna-se o principal desafio da hierarquia, enquanto o padre Júlio Maria exige mudança de estratégia e um olhar voltado para o reforço da ação junto aos fiéis. A historiografia quase sempre prefere enfatizar o aturdimento da hierarquia diante da separação entre Estado e Igreja, e sua dedicação primordialmente à romanização, na Primeira República. Entendo, porém, que nos anos 1910/20, as lideranças confessionais24, não alheias à orientação de Roma, mas tampouco às vozes do clero e às transfor O padre Júlio Maria publicou artigos sobre o tema no jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, de março a maio de 1989. Esses artigos compõem o livro O Catolicismo no Brasil, publicado pela Editora Agir, em 1950. Para se ter uma ideia da estrutura da Igreja Católica brasileira quando da proclamação da República, em 1889, nós éramos um país de 14 milhões de habitantes, para os quais havia apenas setecentos padres seculares, 12 dioceses, 13 bispos e 9 seminários.

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mações no cenário econômico e político do país, se organizam numa ação que me parece representar a primeira significativa recomposição do espaço laico católico no Brasil. Tem início, então, o projeto de “recatolicização” do país. Dom Sebastião Leme, arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro, desde 1921 e, a partir de 1930, seu cardeal-arcebispo é o grande articulador político da hierarquia católica brasileira nas décadas de 1920/30. Ele constata que a Igreja “romanizada” tem dois grandes problemas: a ignorância religiosa dos fiéis e o insignificante número de padres. Propõe a dinamização do ensino religioso e volta sua atenção para a intelectualidade laica. Ele entende que defender a liberdade da Igreja na área religiosa implica reconhecer e admitir o poder do Estado na ação política, independente da forma de governo, e tentar uma aproximação que trará vantagens para ambos os lados. Assim, nos anos 1920, vendo surgir no país diferentes movimentos que apontam a necessidade de verdadeiras revoluções sociais, a Igreja, finalmente, parte para uma ação ofensiva concreta, através da criação de movimentos de massa. Entendia a hierarquia que uma massa desorganizada pouca influência teria sobre a sociedade e o Estado. Sob a orientação da hierarquia, na pessoa de Dom Leme, e seguindo a liderança de respeitados intelectuais laicos – principalmente Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima – tem início a revolução espiritual e moral, cuja palavra de ordem é a reconquista do Brasil para Cristo. A elite intelectual laica engajada no projeto – que Amoroso Lima insistia dever se manter longe da política – atua através de uma eficaz rede de produção e difusão do ideário católico, integrada por movimentos religiosos do tipo mais tarde reunido na Ação Católica (1935); por organizações responsáveis pela discussão e produção das questões centrais da agenda católica do momento, como o Centro Dom Vital, criado no Rio de Janeiro em 1922, e em meios de comunicação de massa, tal qual a revista A Ordem, fundada em 1921, na mesma cidade25. Além deles, também os jornais católicos que surgem nas capitais. O Centro Dom Vital – intimamente ligado à revista – é uma espécie de centro difusor da ideologia religiosa católica e das diretrizes práticas do episcopado brasileiro, evidenciando, ambas as KRISCHKE, P.J. em: A igreja e as crises políticas no Brasil, lembra que, também nos anos 1920/30, entre outros periódicos católicos em circulação no país, está a revista Vozes de Petrópolis, fundada pelos franciscanos, com posições mais liberais que as de A Ordem, e circulando, majoritariamente entre as ordens religiosas, não diretamente controladas pela hierarquia.

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iniciativas, a preocupação com a formação doutrinária do laicato. Velloso (s/data) lembra que a revista confere crescente importância ao papel do intelectual na sociedade, passando a arregimentá-lo para sua obra (p.123). É de autoria do próprio Dom Leme a Oração dos Intelectuais Brasileiros, onde pede que eles “sirvam à verdade e aos destinos espirituais da Pátria”. Refletindo sobre a construção do espaço público no Brasil Montero (op.cit.) diz que a ideia weberiana de “secularização” é insuficiente para explicá-la e lembra que, aqui, “a instauração de um Estado secular produziu ao mesmo tempo um espaço civil e novas religiões”. Ora, temos ainda aí um processo de constituição de um Estado nomeadamente laico, no bojo do qual são instituídas as denominações religiosas que, ao lado do catolicismo, vão caracterizar o nosso pluralismo religioso. Por outro lado, fica difícil falar de princípios laicistas no sentido anticlerical, no caso brasileiro, quando, ainda na Velha República, lideranças governamentais e eclesiais dão-se os braços publicamente. Já no governo de Epitácio Pessoa se inicia o processo de reaproximação entre os poderes espiritual e temporal – que toma corpo ao longo dos mandatos de Artur Bernardes e Washington Luis. Interessava ao governo republicano o apoio da força conservadora da Igreja, num contexto de surgimento de movimentos como o modernismo, o tenentismo e o Partido Comunista entre outros, enquanto a esta, sempre buscando o reconhecimento do catolicismo como religião oficial, interessava ser vista publicamente como aliada. José Murilo de Carvalho (1990), analisando o imaginário da República brasileira, afirma que nas duas primeiras décadas, Maria foi utilizada como arma antirrepublicana26, e lembra o esforço de incentivo dos cultos marianos por parte dos bispos (op. cit: 93-94). Finalmente conclui que “não havia como ocultar a competição entre a Igreja e o novo regime pela representação da nação”. Penso haver certo exagero – certamente pelo olhar que contempla particularmente as imagens – pois essa forma de culto se junta a inúmeras outras (não necessariamente marianas), reativadas e/ ou criadas, como demonstração de organização (não esqueçamos que a Igreja vinha de completar sua romanização) de força e presença pública. Mais do que identificar a imagem de Maria ao novo regime, buscava a O autor comenta o fato de nenhuma imagem feminina ter-se confundido com a República no Brasil, como ocorrera na França. Nem mesmo a representação feminina da Humanidade, tal como construída pelo positivismo.

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hierarquia católica ser reconhecida como possível aliada social e política pelos seus dirigentes, assim como “exibir” o caráter “inquestionavelmente católico” dos brasileiros. Em 1931, Dom Leme, ao transformar dois eventos religiosos nacionais27 em verdadeiras festas populares, faz uma advertência que ficou famosa: “O nome de Deus está cristalizado na alma do povo brasileiro. Ou o Estado reconhece o Deus do povo ou o povo não reconhecerá o Estado” (MIRANDA, 1987). A crítica ao laicismo, visto como “expressão legal da clássica posição filosófica da burguesia em face do problema religioso, fazendo crer que é para o bem da Igreja que suprime a sua ação moral sobre o Estado” estará enfatizado no discurso da intelectualidade católica durante a década de 1920 e até as eleições constituintes de 1933. Sempre presente, também, está o repúdio à maçonaria, ao protestantismo e às “seitas” resultantes do sincretismo entre catolicismo e religiões africanas, e, de forma veemente, à luta contra o comunismo e o liberalismo. Assim, a perspectiva histórica indica que é a ambiguidade dos discursos e das práticas da hierarquia católica e dos governantes do Brasil laico que marca o laicismo brasileiro. Carvalho (op. cit.) já mostra que essa está longe de ser a única ambiguidade de origem da República que, entre nós, termina por adotar o modelo liberal norte-americano, do qual não estão, porém, ausentes traços do modelo jacobino (francês) e, sobretudo, positivista; este último tendo oferecido ricas possibilidades de reativação dos imaginários sociais, num projeto que não contou com a participação popular. No geral, vimos surgir uma República na qual a inserção política dos não-escravos e dos não-elite, “se dava mais pela porta do Estado do que pela afirmação de um direito de cidadão”; o que o autor julga mais adequado chamar de “estadania”. A ausência de participação popular na implantação da República no Brasil oferece bases para a hierarquia católica, durante os anos 1920/30, falando em nome da Igreja e “da nação brasileira”, desvincular a “mania laicista de alguns espíritos das classes dirigentes” da vontade da população que com aquelas não se confunde, pois é “esmagadoramente católica”. Contribui assim, também, para alimentar a polissemia do termo laicismo (e seus correlatos) e as ambiguidades que envolvem sua percepção A inauguração da estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, e a festa de Nossa Senhora Aparecida, declarada padroeira do Brasil, pelo Papa Pio IX, no ano anterior.

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e utilização nos discursos e práticas dos atores sociais, mesmo passado mais de um século. No tocante ao lugar e às práticas dos laicos nesse contexto, alguns aspectos importantes merecem destaque: é a Igreja Católica, através de sua hierarquia principalmente, que tem a iniciativa de abrir espaço para os fiéis responsáveis pela recatolização do país. A natureza dessa ação e suas características são definidas institucionalmente e há uma total submissão à hierarquia. A ação doutrinária, e prioritária, é tarefa das classes médias intelectuais, únicas interlocutoras daquelas no tocante aos meios para “salvar o Brasil” e promover “uma revolução espiritual e moral”, como afirma, então, Alceu Amoroso Lima, que substitui Jackson Figueiredo na direção do Centro Dom Vital. Em todo o país, no Ceará e no Nordeste particularmente, a autonomia do segmento laico já vinha sendo combatida, desde a separação entre Igreja e Estado, com a substituição de devoções e formas de organização identificadas com o catolicismo popular e herdadas do Império, como as capelas, confrarias, santuários e irmandades, por devoções sob o controle clerical e subordinadas às paróquias, como as Conferências Vicentinas, Congregações Marianas, Pias Associações das Filhas de Maria, etc.

A revolução espiritual e moral no Ceará O Ceará, que nunca integrou o chamado nordeste açucareiro e escravista e que, portanto, não contou com a aristocracia dos “senhores de engenho”, tinha nos “coronéis” os legítimos representantes das oligarquias. Pouco expressivas – econômica e politicamente é verdade –, se consideradas no cenário nacional, as oligarquias mantinham o absoluto controle do jogo que se desenvolvia no âmbito dos partidos políticos locais, o Liberal e o Conservador, cujos militantes eram também conhecidos, respectivamente, como chimangos e caranguejos. O Estado, como todo o Nordeste, guarda por muito tempo as características de vida rural e aqui, portanto, o catolicismo popular ou patriarcal permanece como expressão religiosa maior, até durante os primeiros anos da República (RIBEIRO, 1980). Não é de estranhar, pois, que no Ceará, ao final do século XIX, 47

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predomine o tipo tradicional de padre e que, só lentamente, o tipo “reformado” vá surgindo. O primeiro esforço significativo de romanização, parte de Dom Luiz Antônio dos Santos que, em 1861, é investido nas funções de primeiro bispo do Estado. De formação européia – lembra Girão (1953) – ele toma imediatas providências no sentido de promover a difusão das ideias reformadoras, inaugurando, apenas três anos após a sua investidura, o Seminário da Prainha. No ano seguinte, funda o Colégio da Imaculada Conceição (destinado à formação das jovens adolescentes) e, mais tarde, um novo Seminário, na cidade do Crato. Em vinte anos de bispado, Dom Luiz Antônio deixa perfeitamente edificadas as bases da romanização católica, facilitando sobremodo a ação de seus sucessores; Dom Joaquim José Vieira (1884/1912) e Dom Manuel da Silva Gomes (1912/1941). Este último, cuja administração corresponde à conjuntura aqui enfatizada, trata apenas de manter e fortalecer uma igreja já em perfeita consonância com as diretrizes romanas, inclusive nas paróquias do interior. Essa eficácia e rapidez no processo de romanização da Igreja Católica no Ceará será um dos fatores determinantes da força, inclusive política, alcançada pela instituição nos anos 1920/30. O movimento revolucionário de 1930 encontra Fortaleza como a capital nordestina onde a Igreja Católica está mais forte, coesa e presente no seio da sociedade; seja entre os leigos de classe média (Associações, Congregações e Ligas) seja entre o operariado (Círculo de Operários e Trabalhadores Católicos de São José e Federação Operária Cearense, entre outros). O terceiro bispo da cidade e primeiro arcebispo do Ceará, Dom Manoel da Silva Gomes – respeitado nacionalmente e em permanente contato com Dom Sebastião Leme – organiza nessa capital os intelectuais católicos que representam o pensamento e o projeto de recatolização do país sob o regime laicista da constitução republicana de 1891 e dá suporte ao jornal O Nordeste, porta-voz desse pensamento católico, então homogêneo e identificado com a hierarquia eclesial. A reconstitucionalização do país conta, pois, em Fortaleza, com a força e organização da instituição eclesiástica que se diz a representante religiosa da “esmagadora maioria” dos brasileiros. Nessa capital, à época, as minorias protestantes históricas estão recolhidas aos seus espaços próprios; os “terreiros” funcionam escondido, posto que alvo de perseguições; 48

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dos pentecostais não se ouve falar; e os espíritas, com suas experiências mediúnicas, mantêm certa ambiguidade de pertença, esta majoritariamente ainda declarada como católica. O termo “Igreja”, grafado com maiúscula, dispensa, então, um qualificativo. E a revolução espiritual e moral? Detenhamo-nos um pouco sobre alguns aspectos dessa construção religiosa da sociedade, do poder e da política, promovida pelo laicato intelectual de classe média, na forma como ela particulariza o contexto cearense. Destaco aqui o lugar ocupado pelo jornal O Nordeste. Ele é criado por influência direta do então arcebispo Dom Manuel da Silva Gomes, em 1922, e tem à frente um grupo de intelectuais cearenses cujo pensamento está em absoluta sintonia com o Centro Dom Vital28. No período que antecede as eleições constituintes de 3 de maio de 1933 o jornal mostra toda sua força persuasiva, de arregimentação e organização do eleitorado católico – com resultados sem paralelo no país – razão pela qual é possível vê-lo como o “intelectual coletivo” de que fala Gramsci (MIRANDA, 1987). Essa ação que a Igreja cearense entende ser apenas católica, e quer caracterizar essencialmente como tal, põe a nu os fortes vínculos que a ligam à fração mais conservadora da classe dominante. Às décadas anteriores ao movimento revolucionário de 1930 corresponde, em todo o país, um processo de valorização da imprensa por parte da hierarquia, justamente pela necessidade de produção e veiculação do discurso de recatolização. Frei Oscar Lustosa (1983) chama a atenção para o fato de que, ao alvorecer do século XIX, os jornais católicos deixavam de ser meras réplicas do catecismo e se posicionavam sobre as polêmicas ligadas à vida da instituição. Assim, no Ceará, o surgimento do jornal O Nordeste inaugura essa nova fase da imprensa católica, de modo a atender aos objetivos já relacionados. Seu discurso – seguindo as diretrizes nacionais às quais é totalmente submisso – aponta a recatolização da sociedade como o meio de solucionar os problemas e de mostrar as saídas buscadas pelos vários segmentos da população. Assim, ele aborda os principais temas que se constituem fontes de preocupação para a sociedade e de críticas à estrutura já esclerosada da Velha República, tais como a moralização administrativa, a credibilidade do processo eleitoral, a educação, a questão Entre eles se destacam Luiz Cavalcante Sucupira, Andrade Furtado e José Martins Rodrigues.

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operária e sindical, as formas de mudança de governo propostas e, já nos anos 1930, a constitucionalização do país. Duas características fundamentais o marcam, como produção discursiva doutrinária, sem as quais ele teria perdido muito de sua força mobilizadora, e que são decorrentes do objetivo básico proposto: a recatolização. Em primeiro lugar a preocupação com a manutenção da unidade nacional; em segundo, a apresentação das posições da hierarquia, não apenas como sendo as do catolicismo brasileiro, mas de toda a nação, “inquestionavelmente católica”. Aos Círculos Operários e Dispensários de Pobres, entre outros espaços de vivência católica distantes das oligarquias e das camadas médias intelectuais, não é dada voz; apenas a condição de alvos do projeto de recatolização, através da obediência às formas de organização propugnadas e dos benefícios da filantropia religiosa. Nos anos 1920, O Nordeste reconhece a decadência político-administrativa do país, mas não admite soluções revolucionárias, pois prega o respeito absoluto à autoridade constituída e as suas instituições, citando como exemplo as fórmulas de poder adotadas na Itália por Mussolini. A campanha aliancista é duramente criticada. A política partidária e as eleições convocadas são vistas como símbolos do liberalismo sectário, desfigurador do fácies moral da nacionalidade. Não interessam os candidatos e suas posições ideológicas, o princípio é não apoiar eleições. Mais tarde porém, uma vez instituído o governo revolucionário, no final de 1930, O Nordeste aceita-o como fato consumado e brada pelo restabelecimento da ordem. Inicialmente avesso à reconstitucionalização do país, através da convocação de eleições para uma Assembléia Constituinte, o jornal vai se transformar, em 1932 e 33, naquele dirigente e organizador coletivo de que já falei, tomando a si a tarefa de garantir o sucesso da LEC29. Nesse momento, mesmo Alceu Amoroso Lima, então presidente do Centro Dom Vital, já manifestara seu apoio (e da instituição) à entrada dos católicos na arena política. Para se ter uma ideia da influência de O Nordeste durante a campanha basta dizer que seu texto orienta estritamente a conduta dos católicos de classe média. “Um candidato político desaprovado por O Nordeste, fatal Lembro, porém, que antes de se entregar de corpo e alma à campanha, os católicos cearenses ainda estiveram de acordo com um fracassado movimento em prol do adiamento das eleições constituintes marcadas para 3 de maio de 1933.

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mente teria que desaparecer”, afirma Luiz Sucupira30. O segmento feminino da população é um destinatário privilegiado pelo jornal, posto que ali estão as “rainhas do lar”, as “formadoras das consciências”. Em um primeiro momento, entretanto, Mussolini e o tratamento por ele dado às mulheres são invocados, como argumento a respaldar a necessidade de a população feminina ficar distante da política. Quando a LEC é fundada, a 16 de dezembro de 1932 (neste ano o novo código eleitoral amplia o direito de voto às mulheres), o eleitorado feminino se transforma no grande trunfo para orientar o voto “dos católicos”. Seu comparecimento aos locais de registro, assim como sua participação no pleito e seu empenho no convencimento de maridos, filhos e parentes são objeto de insistentes apelos veiculados em O Nordeste. O Nordeste publica incontáveis matérias sobre a Liga apresentando-a não como um partido político, mas como uma instância de arregimentação dos católicos. E o jornal explica: Não queremos mandar; também não deixaremos que mandem os inimigos da nossa Fé e da nossa Pátria... Não nos moveremos por pessoas, combateremos por ideias...Dentro da nossa organização há margem para que se pertença a esse ou àquele partido; os católicos ficam com a liberdade das suas opiniões políticas.

O monumental empenho, que une o jornal O Nordeste e a Liga Eleitoral Católica no Ceará, visa eleger uma bancada de deputados comprometidos com o apoio ao programa por eles apresentado nacionalmente. Significa a inclusão, na nova Constituição que será promulgada, de tópicos através dos quais estará recuperada a presença oficial da Igreja Católica no seio da sociedade brasileira. Vale destacar que a Igreja cearense não descuidara da criação de uma rede de espaços de vivência da fé católica, com a qual ela marcava sua presença também entre outros segmentos da população da capital. Ao lado das Associações Vicentinas, das Congregações Marianas, e das Ligas de Jesus, Maria e José, que desde o final do século XIX, vinham substituindo as antigas devoções populares, surgem inúmeras associações para Um dos diretores-fundadores e principais articulistas do jornal, em entrevista à autora.

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arregimentação do laicato. São criados o Círculo Católico de Fortaleza (cujos integrantes também são de classe média) e o Instituto de Proteção e Assistência à Infância. Também, por inciativa de Dom Manuel da Silva Gomes, são fundados o Círculo de Operários e Trabalhadores Católicos de São José, a Liga dos Senhores Católicos e o Dispensário dos Pobres; todos com caráter meramente filantrópico.

O “quase” partido católico e os novos atores político-religiosos A participação dos intelectuais como propagandistas e organizadores coletivos, a serviço da instituição eclesiástica e da formação dos movimentos de massa, é da maior importância, sobretudo quando, no pós 30, a Igreja decide que é preciso priorizar a ação política. Somente em julho de 1932, um texto autorizado pela hierarquia deixa clara a “necessidade dos católicos influírem como expressão política”. E, no mesmo ano, é criada a Liga Eleitoral Católica. Inaugura-se aqui um novo sofisma, pois a LEC é apresentada insistentemente como suprapartidária. Há a firme convicção entre os bispos e leigos ligados à tarefa de doutrinação, de que, mesmo com relação às eleições para a Constituinte e ao modelo de Constituição, as propostas católicas são suprapartidárias e, portanto, não excludentes das demais. Ora, ensino laico e liberdade de cultos, entre outras proposituras, estão relacionados com uma concepção liberal do Estado e da sociedade, dificilmente conciliáveis com aquelas que integram o programa do grupo católico. A hierarquia, porém, insiste que a doutrina católica é de ordem distinta das chamadas “teorias civis” e, assim, com elas perfeitamente harmonizável. A história registra algumas iniciativas importantes de organização partidária dos católicos brasileiros, ainda que não tenham alcançado o êxito desejado ou tenham-se constituído eventos isolados, isto é, restritos a alguns estados. Se considerarmos que até o final do Estado Novo não há no Brasil uma estrutura partidária nacional, esse fato não chega a causar estranheza. Ainda durante o Império, entre 1874 e 1876, vê-se a tentativa de criação de um Partido Católico que, durante as três primeiras décadas da República, volta a ser rearticulado, tanto por ocasião da separação oficial entre Estado 52

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e Igreja, como ao ensejo das eleições presidenciais de 1910. Quando, em 1915, a Pastoral Coletiva dos Arcebispos e Bispos do Sul exclui a tentação de criar um partido oficial da Igreja, é na diocese de Campinas que vai ser buscada a nova tática; a criação de uma organização supra-partidária. Ali já existia, desde 1913, um movimento com tais características, dirigido por Dom João Batista Correia Nery. Fortaleza vira palco privilegiado da ação de uma LEC com força suficiente para registrar-se como partido. O Ceará é o único estado brasileiro a fazê-lo. São eleitos, em primeira apuração, todos os seis nomes apresentados numa lista de dez31, dois dos quais são membros da Ação Integralista Brasileira (AIB), mas aceitos como candidatos da Liga. Este pode ser visto como “o primeiro ato” do espetáculo político-eleitoral com a presença de atores religiosos e religiosamente identificados e legitimados, em Fortaleza. A tradição que então se inaugura constitui elemento de significativa diferença entre essa cidade e as demais capitais e, nos anos 1990, os católicos carismáticos surgem nos processos eleitorais como candidatos e eleitores, novamente de modo a particularizar o caso cearense. Embora a LEC tenha atuação no âmbito do estado, a capital funciona como “palco”. Os eleitos são homens identificados, antes de tudo, com os anseios do eleitorado de Fortaleza, onde estava concentrado àquela época o contingente de votantes. E, quem são os adversários da LEC? Cabia ao Ceará apresentar dez nomes e o PSB propõe que a LEC, o Clube Três de Outubro e a AIB apresentem um nome cada. Consciente de sua força em face do intenso trabalho de propaganda e organização, a LEC rejeita a proposta e indica seis nomes, todos eleitos em primeira apuração. Luiz Sucupira expressa um lamento ao dizer: “Se tivéssemos apresentado os 10, eles teriam sido eleitos”. O partido tenentista (PSD) elege os outros quatro32. Assim, a 16 de julho de 1934, a nova Constituição é promulgada, e nela está incluída a totalidade das propostas dos deputados católicos. Elas são: 1) Promulgação da Constituição em nome de Deus; São eles: Luiz Cavalcante Sucupira; Leão Sampaio; José Antônio de Figueiredo Rodrigues; Antônio Xavier de Oliveira; Waldemar Falcão e Jeová Mota. José de Borba Vasconcelos; João Jorge de Pontes Vieira; Manuel do Nascimento Fernandes Távora e João da Silva Leal.

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2) Defesa da indissolubilidade do casamento; assistência às famílias numerosas e reconhecimento dos efeitos civis ao casamento religioso; 3) Incorporação legal do ensino religioso facultativo, nos programas de escolas primárias, secundárias e normais, da União, estados e municípios; 4) Regulamentação da assistência religiosa facultativa às classes (sic) armadas, prisões, hospitais, etc.; 5) Liberdade de sindicalização, de modo que os sindicatos católicos, legalmente organizados, tenham as mesmas garantias dos sindicatos neutros; 6) Reconhecimento do serviço eclesiástico, de assistência espiritual às forças armadas e às populações civis, como equivalente ao serviço militar; 7) Decretação de legislação do trabalho inspirada nos preceitos da justiça social, e nos princípios da ordem cristã; 8) Defesa dos direitos e deveres da propriedade individual; 9) Decretação da lei de garantia da ordem social contra quaisquer atividades subversivas, respeitadas as exigências das legítimas liberdades políticas e civis; 10) Combate a toda e qualquer legislação que contrarie, expressa ou implicitamente, os princípios fundamentais da doutrina católica. Transportemo-nos, agora, para a Fortaleza deste início de século XXI. Os católicos estão longe da coesão de há setenta anos e a instituição já não apresenta a força persuasiva de então. Menos ainda a unidade de discurso e de práticas. O termo “igreja” hoje precisa de um qualificativo, posto que não se refere necessariamente à instituição católica. Embora pouco, os protestantes históricos cresceram em número e visibilidade. Quanto aos pentecostais, esses se multiplicam com uma rapidez que surpreende mesmo os não pesquisadores. Aumenta o contingente de fiéis e surgem sempre novas denominações. Se durante algumas décadas os católicos ficam ausentes da cena político-partidária, como grupo religioso, ou dela participam sob outros modos, a partir dos anos noventa do século passado eles buscam, timidamente no início, seguir os passos das maiores denominações pentecostais, 54

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no país e no Ceará; a Igreja Universal do Reino de Deus e a Assembléia de Deus33. Nas eleições de 1996 os fortalezenses já podem identificar candidatos que insistem na pertença católica como diferencial: são membros de comunidades distintas da Renovação Carismática. No Ceará, a diferença entre as candidaturas políticas oriundas das Comunidades Eclesiais de Base, do cristianismo de libertação, e estas últimas, reside em alguns significativos aspectos. No primeiro caso, os postulantes se dizem e são apresentados pelos seus partidos – de modo quase exclusivo o PT – sob o “rótulo” de candidatos populares (algumas vezes, como segunda identificação eles são “cristãos”). Vêm de uma ligação estreita entre os movimentos sociais e os segmentos da Igreja Católica comprometidos com a teologia da libertação e possuem uma prática democrática alimentada na interação face a face; alguns militam em comunidades eclesiais de base34. Os problemas gerados pelo estímulo à participação político-partidária desses cristãos, por membros mais engajados do clero, geraram um grande debate, puxado por Clodovis Boff, e publicado no livro Cristãos: como fazer política (1987). Nele, entre outros importantes aspectos levantados, Frei Betto chama a atenção para o fato de que Boff, em nenhum momento do seu texto, toca na questão que lhe parece chave: a definição ideológica dos cristãos que atuam na esfera político-partidária. E ele acrescenta: Não faz sentido pretender que os cristãos se articulem político-partidariamente em torno do eixo da fé, que atua na linha do sentido e não das mediações específicas. Penso que persiste aqui, sob nova forma, o problema registrado nos anos 1930; princípios religiosos não são operacionais no âmbito da prática político-partidária. Aqueles que se lançam candidatos a cargos legislativos nos anos 1990, em Fortaleza35, o fazem – como é o caso de Paulo Mindello, vereador eleito em 199636 – utilizando largamente “o selo” religioso. Sua imagem é insistentemente vinculada à condição de membro da comunidade carismática Em 2002, com uma estratégia já consolidada, a Iurd reelege Almeida de Jesus deputado federal e o Pastor Ronaldo Martins, deputado estadual, além de apresentar seu primeiro candidato ao senado no Ceará; o Pastor Gelson Ferraz. Como candidatos da AD são eleitos o Pastor Pedro Ribeiro, deputado federal e o médico Jaziel Pereira de Souza, deputado estadual. Nas eleições municipais de 2004, em que a Iurd elege tranqüilamente seus candidatos e a AD perde-se nas dissensões internas não elegendo nenhum. 34 Nos meios políticos populares, eles são muitas vezes identificados como “o PT Igreja”. 35 Tenho notícias de alguns candidatos pertencentes à Renovação Carismática Católica, e que alardeiam essa pertença, também em Belo Horizonte e Curitiba no período. 36 Essa candidatura foi alvo de análise em trabalhos anteriores: Júlia Miranda, Carisma, Sociedade e Política, Rio, Relume Dumará, 1999 e “O Jeito cristão da fazer política” In: Barreira e Palmeira, Candidatos e candidaturas – enredos de campanha eleitoral no Brasil, São Paulo, Annablume, 1998. 33

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Face de Cristo e sua campanha é feita majoritariamente em comunidades e grupos de oração. No entanto, já à época, é possível notar que a identificação do candidato à Renovação Carismática Católica como apelo ao eleitorado de mesma opção religiosa é resultado primordialmente de uma decisão do candidato e de seu esforço em levar a política partidária, e consequentemente as eleições, à agenda de discussão do movimento37. O resultado esperado é o apoio em bloco dos católicos carismáticos, o que não acontece. Se, nos anos 1990, essa resistência em atrelar o voto à pertença religiosa já se faz sentir entre lideranças e membros da RCC, nas eleições de 2006, a situação é ainda mais complicada: as comunidades carismáticas se multiplicaram enormemente e de mais de uma delas surgem candidatos. Há inclusive comunidades em confronto e líderes repudiados no interior dos grupos. Persiste, para além desses problemas internos, a questão da definição ideológica, sempre e cada vez mais acrescida pelos conflitos criados em função do perfil programático dos partidos escolhidos. Aqui já intervêm, também, fatores externos e próprios do sistema partidário brasileiro. Nas eleições municipais de 2004, Fortaleza explicita seu “rosto católico”, ao eleger Fátima Leite vereadora pelo PHS, com 5.220 votos. Aqui sim, temos uma significativa transformação no modo pelo qual os católicos fortalezenses articulam religião e política, quando o voto é tomado como referência. Nem Igreja Católica, nem grupo religioso particular (embora a nova vereadora seja da Renovação Carismática); apenas “a força do terço” legitima sua candidatura e a elege. Fátima Leite é apresentadora de um programa, na Rádio Assunção, em que o terço é rezado, e no qual ela exerce carismas como o de ciência e o de cura, levando graças aos seus ouvintes. É eleita sem nenhum investimento financeiro, sem ter feito ou participado de um comício sequer, e principalmente, sem qualquer contato anterior com a política. Ela é eleita rezando o Terço da Misericórdia nos mais diferentes locais da capital (casas, mercearias, oficinas, pizzarias e mesmo ruas fechadas para esse fim) a convite de moradores da periferia, e fica conhecida como a Voz da Misericórdia. Ao terminar a campanha, restam-lhe ainda 107 pedidos de terço que não podem ser atendidos. A velha Fortaleza dos anos 1930, com a imensa maioria dos seus cató Ele cria, inclusive, uma Secretaria de Ação Política.

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licos identificados com a Instituição e seguindo-lhe a orientação, explicitada tanto nas Cartas Pastorais de seus ministros quanto no discurso laico de intelectuais, tem hoje um novo “rosto religioso” que, entre outras coisas, não é mais nem exclusivamente nem homogeneamente católico. Na esfera da política, tanto no âmbito exclusivamente partidário como no da participação social mais ampla, às novas práticas correspondem novas crenças – ou crenças antigas reelaboradas – sejam elas religiosas ou políticas. As ações desenvolvidas por todas as correntes e grupos convergem no empenho em manter a religiosidade católica no espaço público, conferindo-lhe visibilidade – tornando-a muitas vezes espetáculo midiático – recusando o retorno da religião à esfera do privado. Assim, entre outras coisas, garante-se a ingerência de seus líderes nas questões que extrapolam os limites da vida da instituição. Diferentes maneiras de conceber o espaço público – e nele aquilo que é caracterizado como ação política – parecem estar presentes entre os católicos das primeiras décadas da República; aqueles que nos anos 1970/80 se identificavam como progressistas e os carismáticos de hoje. No primeiro caso, “os católicos” são a hierarquia (não por acaso fala-se deles como “a Igreja”) e é da presença institucional, contraposta ao governo instituído (mais do que ao Estado), como força política que representa legitimamente os brasileiros que se trata. Afinal, o tal “eleitorado católico” é tão indefinível quanto os “candidatos católicos”. Mesmo a expressão “candidatos identificados com as propostas do grupo católico” é absolutamente ambígua, pois o suposto é de que toda a nação é católica (nem os adversários liberais se dizem a-católicos ou anticatólicos). Os candidatos são da hierarquia tanto quanto as iniciativas de ação social – meramente filantrópica – em nome do catolicismo. Já os católicos seguidores da teologia da libertação (ou cristãos, como preferem ser chamados) representam um processo de diferenciação interno. Para eles, o espaço público, conforme o modelo grego clássico, é a arena de confronto e discussão de ideias, o espaço do diálogo, por excelência (MIRANDA, 1995)38 O dever do cristão/católico é, antes tudo, o de se engajar na luta pela educação sociopolítica que permite explicitar as bases das injustiças e desigualdades sociais, apresentadas como o verdadeiro pecado. Essa ação, como se vê, não pode ser identificada à participação político Trata-se da obra dos principais teólogos do movimento.

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-eleitoral e ao jogo da representação. Daí que se insiste no fato de que a religião não pode ser recolhida ao âmbito individual.39 Hoje, às voltas com novo processo de diferenciação interna ao catolicismo (ao mesmo tempo também de novas identificações religiosas), os carismáticos parecem, cada vez mais, conceber o público como aquilo que aparece, seguindo os padrões da sociedade contemporânea, na qual o espetáculo (o que existe aparece; só existe aquilo que é exibido) incorporou a chamada lógica midiática. Toda manifestação de fé, de certa forma vira “show”, embora nem sempre midiático. Esses segmentos católicos caracterizam sua presença pública por devoções e cultos reelaborados segundo a referida lógica, pela ação filantrópica e pela participação eleitoral, como forma exclusiva de atuação política. Esta de conteúdo moralista e crescentemente intolerante40. Na virada do século XX, o pluralismo religioso brasileiro e a fragmentação do catolicismo –que apresenta correntes com “leituras” da sociedade muitas vezes mutuamente excludentes – exige um refinamento de interpretação. Em um primeiro momento, já é possível identificar, e de modo particular entre os católicos cearenses, uma maior autonomia do laicato e a reelaboração, também sob sua iniciativa, e não raras vezes em conflito com as autoridades clericais, de tradições litúrgicas, paralitúrgicas e devocionais (liturgia da missa, procissões, locais de culto, santos de devoção, etc). Forçoso é, porém, admitir que, mesmo nos anos 1920/30 do séc. XX elas ocorriam (mormente na zona rural), e que hoje ainda existe a ingerência das lideranças clericais. Tanto, que movimentos originariamente laicos, como a Renovação Carismática Católica, foram pouco a pouco assimilados pela instituição (também na França e no Canadá francês) e hoje lhe são particularmente submissos, como no caso da Comunidade Carismática Shalon, em Fortaleza, da qual falei acima. É curioso notar que, não os bispos, como um coletivo mediador, mas alguns clérigos isolados e carismáticos (embora não tanto quanto certos líderes laicos)41 representam esse vínculo com a Essa religião interiorizada, vivida individualmente vinha caracterizando, na época, conforme autores como Thomas Luckmann e Reginald Bibby, a religiosidade das sociedades modernas do hemisfério norte. Neste ano eleitoral de 2008, multiplicam-se os exemplos. Uma entidade denominada Consciência Cristã é responsável pela aposição do seguinte outdoor na cidade de Campina Grande: Homossexualismo (em letras grandes e maiúsculas) e, logo abaixo, Deus fez o homem e a mulher e viu que era bom. Um jornal cearense, sem identificar a origem, convoca para debate televisivo sobre o aborto (tema em discussão na Frente Parlamentar em Defesa da Vida), em anúncio de meia página, com o seguinte texto: Entenda porque esta prática mata milhões e como pode ser legalizada também via STF, por ocasião do julgamento sobre as pesquisas com células tronco embrionárias. 41 Exemplo de liderança clerical é o padre Jonas Abib da comunidade Canção Nova, em Cachoeiro Paulista e de liderança laica é Moisés Azevedo, dirigente da comunidade Shalon, em Fortaleza. 39

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instituição. No mais, essa ligação se consolida diretamente no elo com o Vaticano, cujo chefe é a única autoridade eclesial invocada. Lembro que essa situação varia entre comunidades (carismáticas ou de base) de uma mesma cidade e entre cidades diferentes; também se transforma permanentemente. A análise desse contexto foge, no entanto, a esta reflexão. Ainda no tocante à política eleitoral, hoje, em Fortaleza, os candidatos se identificam não somente como membros de correntes específicas do catolicismo, mas também como ligados a determinadas comunidades, no caso da Renovação Carismática Católica, Não parece existir, no entanto até as eleições de 2006, uma cultura católica de aproximação entre religião e política, de modo a tornar operativa a fórmula pentecostal do “irmão vota em irmão”. Parece que, na prática, a fragmentação do catolicismo continua ignorada, para fins eleitorais, pois o “fenômeno eleitoral” Fátima Leite – acima relatado – uniu, na sua cruzada pelo Terço da Misericórdia, católicos de todos os matizes.

Ao modo de conclusões Para encerrar, neste artigo, a reflexão sobre alguns aspectos do laicismo republicano brasileiro, através das práticas laicas católicas, com base na particularidade do catolicismo cearense, pergunto-me, por última vez, do que nos falam os elementos empíricos já em parte comentados ao longo do texto. Lembrei anteriormente que, no Brasil, “a instauração de um Estado secular produziu ao mesmo tempo um espaço civil e novas religiões” e que nós vivemos um processo de constituição de um Estado nomeadamente laico, no bôjo do qual são instituídas as denominações religiosas que, ao lado do catolicismo, vão caracterizar o nosso pluralismo religioso. Não estaria contemplado nessa constatação um elemento que ajuda a explicar porque, ainda hoje, nós brasileiros temos tanta dificuldade de entender e de vivenciar o nosso laicismo. Primeiro; o regime republicano, que traz o termo e a ideia de “laico” para a experiência dos brasileiros42, é também Fala-se, no entanto, de um Estado laico, mas ao fiel não-clérigo chama-se leigo e não laico (que seria o equivalente de laïc em francês). A expressão, que se tornou usual na língua portuguesa, tem sentido também ambíguo, pois significa igualmente aquele que nada sabe sobre determinado assunto.

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aquele que cria as condições de institucionalização de inúmeras práticas, colocando-as no rol das religiões. Ficam, assim, associados laicismo e pluralismo religioso, muito mais do que laicismo e recusa da religião, como na França, ou laicismo e liberdade religiosa, como nos Estados Unidos. Por outro lado, a centralidade do catolicismo, modelo em referência ao qual são, muitas vezes não explicitamente, instituídas aquelas práticas, de certa forma permanece; em parte pela múltipla pertença religiosa dos brasileiros, em parte respaldada no senso comum que afirma ser o Brasil, ainda, um país de católicos. Daí, aquilo que pareceu consensual no encontro do Recife43, isto é, a convicção de que, ainda hoje, pensar o laicismo44 no Brasil é pensar formas de combater a hegemonia católica. Seja no ensino, como bem lembrado por Giumbelli e Campos, seja na exibição de símbolos religiosos em locais públicos. É emblemática a observação feita por Ivo de Xambá sobre um crucifixo afixado na sede da Assembléia Legislativa de Pernambuco: “Aqui eu estou vendo um Cristo, para o país ser laico devia ter um Xangô também45”. Melhor seria esperar que nenhum dos dois ali estivesse? Uma das questões colocadas por este texto (embora ele não a vise particularmente) foi: O que estão fazendo os atores religiosos – e quem são eles – no tocante às práticas que promovem cidadania, no Brasil deste início de século XXI? Primeiramente, ao modo de uma conclusão provisória para a reflexão, pergunto-me sobre o que entendem por cidadania aqueles que adentram o espaço público “portando” uma identidade religiosa. Estarão preocupados com essa dimensão da ação? Penso que existe por parte dos sujeitos religiosos, tanto quanto em relação à compreensão do que é espaço público, formas diferentes de julgar a respectiva prática e logo, de considerá-la ou não promotora de cidadania. Com razão Burity46 lembra o uso indiscriminado do termo cidadania, hoje deslocado de sua acepção clássica, de titularidade de direitos assegurados pelo Estado, para Refiro-me ao workshop/seminário sobre Religião e Cidadania (op.cit.). Em trabalho anterior lembrei que nem os termos usuais em francês, na academia como nos meios pastorais e extra-eclesiais; laïc, laicité, laicisation, laïcisme encontram uso igualmente consensual e corrente em português. Certamente por não estarem livres das ambiguidades características de nossa história republicana. (Ver MIRANDA, Horizontes de Bruma, op. cit.) A respeito da indissolúvel relação entre a experiência própria de uma sociedade e os termos utilizados para falar dela, lembro que, bem recentemente, um nascente grupo de estudiosos da religião, em Portugal, decidiu usar a palavra pluralidade religiosa ao invés de pluralismo religioso, por atribuir a esta última uma conotação menos neutra (!). 45 GIUMBELLI, Emerson; CAMPOS, Roberta e IVO de XAMBÁ no workshop/seminário sobre Religião e Cidadania (op.cit.). 46 No workshop/seminário (op.cit). 43 44

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a compreensão mais ampla, que envolve a afirmação desses direitos. A tal ponto “desliza”47 o sentido da palavra que a promoção da cidadania parece representar hoje uma condição de cidadania, como aponta LIMA (v. capítulo 8 deste livro), o que traz, entre outros resultados, o estabelecimento de uma concorrência entre atores – principalmente institucionais – para se credenciar junto ao Estado como parceiro competente e confiável, numa ação cidadã confundida apenas com a implementação de políticas públicas. Sendo o Estado a referência, dilui-se a postura mais crítica (como também apontado por Burity), e atende-se aos imediatos e pragmáticos interesses de ambos os lados. Mas, e os católicos? Já que o termo e a ideia de cidadania, mesmo na sua acepção mais clássica, estavam ausentes da agenda católica do início da República, fixo-me nas práticas do último meio século, para levantar alguns aspectos cujo estudo não está ainda concluído. Nos anos 1970/ 80, os laicos reunidos nas comunidades eclesiais de base do cristianismo de libertação, guiados pelos agentes e animadores formados de acordo com a teologia que surge de suas práticas e se transforma depois na sua orientação, já discutem cidadania, sem que, na maioria das vezes, a palavra esteja presente. Discute-se direitos. À vida, em primeiro lugar, porque ela é permanentemente ameaçada pelas consequências da exploração capitalista, que gera injustiças e desigualdades sociais. A compreensão é que “transformar as bases mesmo da sociedade48” é o primeiro compromisso do cristão. Conscientizar e reivindicar é o imperativo religioso. Veja-se um exemplo: no interior do Ceará, divisa com o Piauí, em 1965 começa a emergir aquela que ficou conhecida como a igreja popular e libertadora de Crateús. Ali, novas práticas redimensionaram o espaço de atuação dos laicos, estabeleceram outra relação com a Santa Sé, criaram uma nova liturgia chamada “popular” e construíram “um novo jeito de ser vida religiosa”. As CEBs proliferaram como em poucos outros municípios brasileiros, transformando-se, sob a orientação do bispo Dom Fragoso, em preocupação para a administração estadual, para a ditadura militar e para o Vaticano. Ao longo ainda dos anos 1980, o movimento de CEBs vai perdendo Traduzo literalmente, na impossibilidade de encontrar equivalente para o termo francês “glissement”, usual para falar de recomposições de sentido. Cf. a Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez.

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força49 país afora, os teólogos da libertação se dispersam e, concomitantemente, vão-se estruturando outros grupos católicos, ou melhor, grupos de católicos com outra visão do compromisso cristão. É o movimento de Renovação Carismática que, tanto quanto o cristianismo de libertação, surge no seio da efervescência que marca o imediatamente pré e pós Concílio Vaticano II. A RCC, no Brasil, originalmente apresentada como iniciativa do laicato, não deixa mais dúvidas em relação ao seguimento estrito das diretrizes romanas, mesmo que esse se faça mediante o carisma de alguns clérigos, como o padre Jonas Abib ou pelos chamados padres-cantores ou padres-midiáticos (Marcelo Rossi, Jorjão, ZéMaria e outros50) e, muitas vezes, por meio de “lideranças carismáticas laicas” (caso de Moisés Azevedo). Parte do movimento pastoral diocesano foi fertilizada pela teologia da libertação e guarda, até hoje, uma visão crítica e questionadora da sociedade. Não são todas as pastorais que têm a mesma visão tampouco, em um número significativo de cidades de grande e médio porte. Ali existe uma concepção de prática cidadã diferente daquela com a qual se identificam os carismáticos. A presença religiosa católica na esfera pública brasileira é hoje majoritariamente marcada pelas iniciativas laicas dos carismáticos, por meio de grandes eventos de massa, missas-shows, reelaborações litúrgicas, novos – e muitas vezes “espetaculares” – cultos e devoções. A política é por eles reduzida a sua dimensão eleitoral e, ainda assim, não conseguiu, até agora, entrar na pauta prioritária de discussão. Nos grupos de oração e comunidades carismáticos toda a atenção é conferida à formação “espiritual e moral”, através de palestras, louvor e oração. O direito que parece ser insistentemente por eles reivindicado é o direito de ser sujeito religioso e de pela religião justificar suas práticas (apenas filantrópicas). Mais recentemente, tem sido possível até acompanhar (sobretudo através da mídia) intervenções de representantes do movimento, sobre temas há pouco tempo na agenda pública – como o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo, a descriminalização do aborto ou a liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias – e mesmo sobre temas clássicos da moral privada dos católicos – como a virgindade e a fidelidade. As razões incluem elementos intra e extra eclesiais, de natureza religiosa, política e econômica que seria exaustivo tratar aqui. Essa vertente do espetáculo católico tem sido bem analisada por Péricles ANDRADE, como mostrado no workshop (op.cit.)

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São esses também os temas de palestras e encontros de jovens – faixa etária sob vários aspectos identificada com essa ação católica – mesmo quando supostamente têm como objetivo formar “profissionais do reino”. Naturalmente só com grande esforço é possível aproximá-los da realidade profissional específica de cada um. Mas, essa religiosidade de comunidades, no interior das quais vai se construindo a diferença em relação ao “outro católico” (teologia da libertação, por exemplo); ao “outro cristão” (evangélicos de todos os matizes) e ao “outro sem religião” começa a inquietar os que (como eu) já tiveram a oportunidade de ouvir depoimentos inusitados sobre: cursos que devem ser evitados na hora de fazer o vestibular porque podem comprometer a fé (filosofia, história e ciências sociais são alguns deles); o “perigo” da companhia de jovens não religiosos; o “mal” causado por determinadas músicas, filmes, telenovelas, práticas políticas (revolucionárias), autores de ciência e de ficção; a importância do resguardo do corpo que impõe certas normas vestimentares e proíbe outras, que interdita veementemente certos comportamentos entre pessoas do mesmo e de sexo diferente; além da naturalização de construções sociais como a da sexualidade, por exemplo, transformando em patologias (e tratando como tal) os comportamentos “antinaturais.”51 Há, portanto, muito o que se perguntar, também, com base nessa construção identitária católica, sobre o respeito pela diferença, sobre o pluralismo religioso e a tolerância, de modo a prosseguir o debate intelectual e engajado sobre o tema religião e cidadania no Brasil.

Esses exemplos são tirados de depoimentos de jovens carismáticos com os quais tenho mantido estreita convivência nos últimos dez anos.

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. Conferência

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Capítulo 2 – A presença católica na esfera pública brasileira: para pensar o laicismo e o laicato

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Capítulo 3 Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil1 Péricles Andrade

Introdução ... a Igreja Católica, neste final de século, parece substituir figuras emblemáticas das décadas de 60 e 70, como Dom Helder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns, que se perfilavam nas lutas políticas e sociais do país e disputaram seus espaços religiosos na mídia, por novas figuras emergentes que disputam seu espaço religioso em programas como os do Faustão, Xuxa, Gugu Liberato e Hebe Camargo. É possível que se esteja diante de novos paradigmas ou novos paradoxos... (CARRANZA, 2000, p. 298).

No século XX, institui-se gradativamente no campo católico brasileiro um discurso de engajamento social desatrelado da tradicional política de aliança com o Estado, que deságua na Teologia da Libertação e no movimento das Comunidades de Base (CEBs). Isso remonta aos movimentos de Ação Católica ainda nos anos de 1930, mas ganha corpo na politização dos anos de 1950. Emerge uma “Igreja Popular” que demarcou uma diferenciação interna no catolicismo brasileiro, claramente hegemônica dos anos de 1970 até meados dos anos de 1980. Esta hegemonia da ala liberacionista recuou significativamente desde então, seja por ter a cúpula episcopal considerado 1

Parte integrante da tese “Um artista da fé: padre Marcelo Rossi e o catolicismo brasileiro contemporâneo”, defendida em março de 2006, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco, sob a orientação dos professores Dr. Roberto Motta e Dra. Lília Junqueira. Agradeço os comentários e as questões feitas por André Ricardo de Souza, Júlia Miranda, Patrícia Birman, Joanildo Burity, Josadac Bezerra, Cecília Mariz e Desgislando Nóbrega, durante a comunicação na Oficina Religião e Cidadania.

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que a Igreja tenha encerrado seu papel supletivo como caixa de ressonância das demandas sociais, com o retorno da democracia política; seja pelo fato de que a Igreja Popular chegou à mesma conclusão através da crença na autonomia dos movimentos sociais populares; seja por impasses teóricos e práticos experimentados pela própria proposta da pastoral da libertação. Em relação a este último aspecto, isso pode ser ilustrado com a guinada ambientalista perceptível nos últimos escritos de Leonardo Boff, conhecido teólogo do Cristianismo de Libertação (BURITY, 2006). Por outro lado, nova diferenciação se produziu com a substituição de bispos e padres progressistas por outros alinhados com a nova orientação do papado de João Paulo II, bem com o decisivo incentivo dado pelo Vaticano ao avanço de movimentos mais conservadores, como a Renovação Carismática, a Opus Dei, Communione e Liberazione, etc., como formas de neutralizar a hegemonia da Igreja Popular. Agora o discurso explicitamente social e engajado desta última foi sendo confrontado com o discurso da emoção e da reafirmação dos valores e práticas religiosas tradicionais por parte da Cúria vaticana e daqueles movimentos. Nos últimos anos, com a clara emulação provocada pelo avanço neopentecostal, o catolicismo deslocou-se ainda mais longe de identidade hegemonizada pelo discurso da libertação (BURITY, 2006). Este trabalho tem como objetivo analisar este processo de confronto entre o discurso explicitamente social e engajado e o discurso da emoção e da reafirmação dos valores e práticas religiosas tradicionais por parte da Cúria Vaticana e da Renovação Carismática Católica. Dito de outro modo, a análise centra-se da divergência na esfera pública entres os modelos de catolicismos propostos pelos religiosos adeptos da Teologia da Libertação e pelos religiosos vinculados à Renovação Carismática Católica (RCC). Em linhas gerais, enquanto os primeiros enfatizam a importância da militância de esquerda, os carismáticos dão ênfase ao espiritual e a política clientelista. Isto levou a constituição de um clichê no ambiente eclesial: a RCC reza e as CEBs fazem política. Como ilustrativo deste processo, serão analisadas as disputas envolvendo os adeptos da Teologia da Libertação e o padre Marcelo Rossi2, 2

Marcelo Mendonça Rossi nasceu em 20 de maio de 1967, em São Paulo, numa família católica de classe média. Sua infância foi vivida no bairro de Santana, Zona Norte, onde costumava ir às missas com seus pais Antônio e Vilma, suas irmãs Mônica e Marta. Aos 16 anos de idade se afastou da igreja, por ele então julgada “enfadonha”. Prosseguiu a vida com as atividades próprias de um adolescente metropolitano de classe média: futebol, namoro, danceterias, clubes e academias de ginástica. Ingressou num curso superior de educação física e, ao se formar, em 1989, passou a trabalhar como instrutor e depois como professor (SOUZA, 2001).

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Capítulo 3 – Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil

religioso mais conhecido dentre os sacerdotes que compõe a ala carismática. Vale ressaltar que o padre Marcelo Rossi costuma destacar seu pertencimento não à Renovação Carismática e sim à Igreja Católica. De fato, o citado padre não tem vínculos diretos com comunidades carismáticas específicas, como é o caso do padre Jonas Abib, da Canção Nova, entretanto, as práticas religiosas do padre Marcelo adotam matriz carismática. Este traço distintivo pode ser percebido nas “missas de libertação” celebradas no Santuário do Terço Bizantino. A leitura destas tensões demonstrará como emerge, na década de 1990, uma ressignificação da presença religiosa no espaço público brasileiro. Numa sociedade de espetáculo (DEBORD, 1997), há cada vez mais incentivo para que o público seja confundido com aquilo que é visível. Esta publicização das expressões culturais, dos símbolos de pertença religiosa, possibilita a emergência de um novo estilo sacerdotal, aqui denominado de “artista da fé”, que se contrapõe aos postulados da Teologia da Libertação. Na perspectiva desse segmento clerical, a ênfase evangelizadora, entre outros pontos, recairá sobre: o uso eficiente dos meios de comunicação, a adoção de práticas artísticas e a preocupação constante com questões morais. Ao contrário dos religiosos ligados Catolicismo Libertário, cujo foco era o pecado social, a ênfase de parte significativa do clero católico atual recai sobre o pecado moral.

Padre Marcelo Rossi e as correntes do clero brasileiro Cardeais, bispos e teólogos estão fascinados com a capacidade de o padre Marcelo Rossi atrair multidões. Depois de uma década em que os neopentecostais desfalcaram o rebanho católico, parte do clero sente-se, de certa forma, aliviada por presenciar uma cena que começava a ficar rara: igrejas superlotadas. Reações diversas, porém, eclodiram dos membros da Igreja Católica. Apesar da necessidade de diálogo com a Modernidade, aprendizado relativo ao uso “eficiente” dos meios de comunicação e dinamismo em face do avanço do pluralismo – as práticas rossianas dividem a Igreja. Entre religiosos mais conservadores, há certa reserva quanto ao excesso de entusiasmo físico que se observa nas missas do padre Marcelo Rossi e de muitos outros 69

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sacerdotes: “De modo geral, as missas à maneira antiga são maçantes. Mas as mudanças não podem ser exageradas e superficiais, como as que vemos nas missas-espetáculos”, criticava dom Décio Zandonade, bispo auxiliar de Belo Horizonte (KLINTOWITZ, 1999). Outro membro da ala conservadora também faz leitura favorável das práticas dos “artistas da fé.” É o caso do Cardeal-Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales: Não é meu estilo ficar pulando, mas havia ali muitos jovens. Acho que eles eram a maioria no estádio. O pessoal mais velho não gosta muito desse tipo de coisa, reclama das novidades. Se não atrair jovens, a Igreja fica velha (TAHAN et all, 1999, p. 30).

Nessa declaração evidencia-se que dom Eugênio Sales aprova práticas pastorais “eficazes” que se diz incapaz de empregar. Isso revela um sentido pragmático. Diante do avanço das outras religiões, da crise de plausibilidade do catolicismo, o Arcebispo discorda, até certo ponto, das novas práticas adotadas por sacerdotes como padre Marcelo e padre Zeca, mas elas são eficazes para atrair um grande número de fiéis, principalmente de uma faixa etária que décadas atrás não se sentia atraída pelo catolicismo: a juventude. Sua flexibilidade pode novamente ser exemplificada quando aprovou o slogan Deus É 10, do padre Zeca (1997): “Eu não escolhi a frase, mas sancionei”. Por fim, quando consultado pelo mesmo padre sobre as seleções das músicas de um dos seus CDS, o papel de censor foi recusado: “Respondi que ele não precisava me consultar. Dei-lhe carta branca. São riscos que é preciso correr, porque sem eles não se cresce. Só sou duro com quem não corresponde a minha confiança” (TAHAN et all, 1999, p. 31). Esse sentido pragmático da hierarquia aplica-se aos novos sentidos do campo religioso contemporâneo. Cada vez mais a competição acirra-se com as outras empresas de salvação pela construção e imposição duma violência simbólica. Nessa perspectiva, as estratégias e bens simbólicos oferecidos são relevantes e legítimos se resultam em aumento de fiéis. A diminuição do rebanho católico, como demonstram as pesquisas quantitativas, sinalizam a perda da hegemonia no campo religioso, o que poderia lhes acarretar uma condição minoritária na sustentação material e na visibilidade diante das outras empresas concorrentes. 70

Capítulo 3 – Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil

Isso não significa necessariamente uma rendição completa ao mundo. Também em dezembro de 1998, dom Eugênio havia partido para a ofensiva depois que alguns padres expuseram suas ideias em entrevistas ao jornal O Dia. O padre Francisco Marques Filho, responsável por duas paróquias em Realengo, revelou que gostava de frequentar a vida noturna e usar roupas de grife. Logo foi transferido para uma igreja em outro bairro, onde atuaria como auxiliar. “A punição não está relacionada ao modo como ele reza a missa. Ele foi punido pelo exagero de suas declarações”, afirmou dom Estêvão Bittencourt, naquele momento um dos principais teólogos da Arquidiocese do Rio de Janeiro. No mesmo período, o vigário-geral e moderador da Cúria local, dom Augusto Zini Filho, divulgou uma nota repudiando o estilo de vida e o modo de se expressar desses padres. “A roupa de grife não condiz com a opção de vida despojada de um padre”, diz a nota. As medidas atingiram o mais famoso dos padres do Rio de Janeiro, o padre Zeca. Ele não sofreu punição, mas parou de conceder entrevistas. A mesma postura de recusa à censura de dom Eugênio Sales se verificou com os padres ligados à Igreja dos Pobres. Dois anos atrás, dom Eugênio usou sua coluna em jornais de todo o país para chamar de indisciplinados os clérigos que apoiavam as invasões de fazendas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Aqui a forma de diálogo com o mundo foi questionada décadas anteriores pelo mesmo cardeal (KLINKE, 1998). A maioria dos membros do clero católico concorda que padre Marcelo trouxe um novo impulso ao catolicismo, principalmente o aumento de fiéis praticantes, das vocações sacerdotais – sobretudo na sua diocese –, da atração exercida sobre os jovens. Três aspectos, entretanto, tornaram-se motivos de opiniões divergentes: não-preocupação com as transformações sociais, excessiva exposição na mídia e “desrespeito” à liturgia católica. Em relação ao engajamento social, as críticas vieram com mais ênfase dos religiosos ligados à Igreja dos Pobres3 – frei Betto, D. Mauro Morelli, D. Eusébio Sheid, D. Pedro Casaldáliga, Leonardo Boff e padre A Igreja dos Pobres significa certa concepção de catolicismo que emerge no Brasil, sobretudo a partir da década de 1960. O objetivo último era exercer influência sobre os indivíduos e a sociedade por meio do processo de conscientização. Foi apresentada uma interpretação diferente da Bíblia e das doutrinas do catolicismo. A nova forma de organizar os leigos em comunidades de base e a interpretação renovada do evangelho eram maneiras de realizar uma transformação social e política da Igreja e da sociedade. A ideia principal do projeto da Igreja dos pobres era de despertar a consciência política. Os liberacionistas aplicaram esta expressão à sua abordagem, que promovia a leitura da Bíblia “da perspectiva daqueles que a lêem”. A retórica do catolicismo liberacionista dava ênfase ao conhecimento e à racionalidade como ferramentas necessárias para se formar uma idéia do progresso social e da responsabilidade individual no projeto de criação do Reino de Deus na Terra (THEIJE, 2002, p. 72-76).

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José Comblin – e moderados, como D. Fernando Serafim Gomes. Em novembro de 1998, o dominicano frei Betto publicou, na Folha de São Paulo, uma carta endereçada a Marcelo Rossi, pela qual o seu autor considerava-o positivo no que concerne ao reavivamento espiritual, ao consolo dos aflitos, à cura dos enfermos, ao reencontro da fé. A carta, entretanto, fazia críticas à pastoral rossiana, que obedece a uma “fórmula de sucesso”: muita emoção, pouca razão, com privilégio do espiritual em detrimento do social, que leva ao subjetivismo, ao conservadorismo. Ao final, propõe a Marcelo Rossi que traga seu rebanho para as obras de justiça social (FREI BETTO, 1998, p. 4-1). 4 Ainda em 1998, o secretário-geral da CNBB, dom Raymundo Damasceno, considerava “positivo”’’ o fato de o padre Marcelo Rossi atrair fiéis, todavia dizia que a fé devia “ser traduzida em compromisso social” e não só como “a expressão emocional, superficial do momento”: “Ele tem um talento, mas não é modelo para todos os padres”, afirmava Damasceno (CNBB, 1998, p. 1-1). Dom Marcelo Cavalheira – Arcebispo Emérito de João Pessoa – situa o padre Marcelo na grande atmosfera da Igreja hoje, sobretudo aqui no Brasil, onde surgem muitos grupos carismáticos, que interessam muito a juventude. O Arcebispo diferencia a época atual das décadas atrás, quando participava da Ação Católica, buscando inserir a massa na luta pela mudança social (CAVALHEIRA, 2004). Em 1998, D. Marcelo Cavalheira, então vice-presidente da CNBB, Esta carta causou diversas reações, principalmente dos leitores da folha que enviaram cartas à redação, como pode ser observado nesses exemplos: “Mesmo não sendo católico, não pude deixar de distinguir no eloqüente discurso de frei Betto, dirigido ao padre Marcelo Rossi, a acuidade e serenidade peculiares àqueles que abraçam a causa da verdade.” Marcelo Antunes Batista (Mogi das Cruzes, SP). “Querido frei Betto: fique tranqüilo e pode continuar seu trabalho com as minorias sem aparecer na mídia (muito louvável, até). Graças a Deus apareceu um sacerdote chamado Marcelo Rossi, que veio colocar minha igreja no seu devido lugar. O padre pop star já está fazendo, em poucos meses, o que você, D. Paulo Evaristo Arns e D. Pedro Casaldáliga, juntos, não fizeram em anos.” Ricardo Nassif Hussni (PAINEL DO LEITOR, 1998, p. 1-3). “Caro frei Betto, parece que você está com dor-de-cotovelo, com ciúmes do sucesso do padre Marcelo. Antonio Gordinho (São Paulo, SP). “Incomodo-me cada vez que vejo a mídia televisiva travando batalhas por índices de audiência, por ver que valores sociais estão sendo cada vez mais desprezados. Soma-se a tantos outros apelos a presença do padre Marcelo Rossi nos programas dominicais. Como pode um representante da igreja, ícone maior de fé mundial, sujeitar-se à exposição comercial?” Balduino Ferreira Leite (Lorena, SP). “Pegou mal a pretensa lição de trabalho e humildade que frei Betto explicitou em seu artigo de 20/11. Se estivesse preocupado em aconselhar de verdade o padre Marcelo Rossi, deveria usar o caminho ético de uma carta pessoal endereçada àquele que ele deixou bem claro temer como concorrente. Se frei Betto não gosta da mídia como afirma no infeliz artigo, sua atitude revela o contrário.” Osmar Baroni (Uberaba, MG). “É lamentável o perfil que a Igreja Católica vem adotando durante as missas nestes últimos anos. Longe do que eram antigamente, as cerimônias atuais deixam a desejar em conteúdo e sobram nas apelações artísticas.” Guilherme Devitte (Curitiba, PR). “Será que quem gosta de aparecer é mesmo o padre Marcelo? Creio que é quem, vivendo numa democracia, vive elogiando e visitando um ditador chamado Fidel Castro e uma ditadura chamada Cuba.” Paulo Toni Jr. (Santana do Parnaíba, SP). “Preocupa-me o discurso ingênuo do padre Marcelo, mas preocupa-me ainda mais a ingenuidade do próprio padre, que se sujeita a aparições televisivas ao velho estilo dança do passarinho. Que idiotização é essa?” Glória Alves Cruz (São Paulo, SP). (Folha de São Paulo, 1998, p. 1-3).

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pediu “compromisso social” ao falar dos fiéis do padre Marcelo Rossi. Questionado sobre a forma como o padre Marcelo conduzia a missa dançando, a que chama de “aeróbica do Senhor”, Cavalheira afirmou que é preciso “se comprometer com empobrecidos”: ...ele se exprime por meio de ritos muito palpitantes, muito vibrantes. É um fenômeno bom, pois muitos fiéis têm retornado (à igreja). Mas, para que não fique superficial, esses fiéis terão de se comprometer com os empobrecidos e com o aprofundamento da catequese (BISPO CRITICA, FOLHA DE SÃO PAULO, 28/11/98, p. 1-1).

Em entrevista de 2004, Dom Marcelo destaca que o padre Marcelo já vem atuando na área social, com um trabalho “assistencialista”, levando cestas de alimentos aos pobres. Ele acredita que isto levará o padre a uma “evolução”. Irá perceber que “não basta apenas fazer show, mas é preciso também trabalhar, olhar para que toda essa massa marginalizada seja integrada no processo da vida e da sociedade” (CAVALHEIRA, 2004).5 Tal opinião é também defendida pelo então secretário-geral da CNBB, dom Raymundo Damasceno. Ele definia como “positivo” o fato de padre Marcelo Rossi estar atraindo fiéis à igreja. Entretanto, ressaltava a importância de um “compromisso social” do catolicismo e criticava o “excesso de emoção” durante as celebrações. “Agora parece que a sociedade, não é só a igreja, está dando importância demasiada aos sentimentos, à emoção. A TV vive um pouco disso, de despertar a emoção, o sentimento das pessoas” (ZORZAN, 1998, p.1-15). O teólogo Leonardo Boff também tem suas críticas aos modos de Marcelo Rossi. Segundo ele, esses padres apresentam um discurso “vago e opaco”: Aparecem no Gugu, Faustão, na revista Caras, porque são a expressão do que o mercado deseja. Junto com a jovialidade deveria vir um compromisso com os mais fracos. Porém, se eles levarem seu carisma para a solidariedade com os oprimidos poderão sofrer punições (KLINKE, 1998, p. 05). 5

Cf. Entrevista não publicada.

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Numa entrevista de 2002, Boff critica a ênfase dos carismáticos na “emoção” e a entrada no “mercado de entretenimento”. Novamente o enfoque caiu sobre o padre Marcelo, que para o teólogo apresenta um cristianismo “superficial” e “anêmico”, “feito de alegria e parcos apelos à justiça e à transformação social. Vira um entusiasmo de bobo alegre” (BOFF, 2000, p. 47-49). O padre Márcio Anatoli, coordenador da Pastoral Universitária da Diocese de São Paulo, ligado à Teologia da Libertação, por sua vez, critica a Renovação Carismática e o padre Marcelo por “reunir ovelhas e entregá-las ao lobo, que é da ideologia do mercado (VENCESLAU, 2000, p. 22). Dom Mauro Morelli, bispo de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, articulador do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar, taxou Marcelo Rossi de “imaturo”, se disse chocado com suas declarações. De acordo como o bispo, a Igreja vivia no Brasil mais preocupada em dar mais “consolação” do que “cidadania”. “Nós estamos vivendo movimentos de massa, com conteúdos, com expressões, com propostas que a mim não me convencem”. D. Mauro se referia ao evento “Em Nome do Pai”, realizado no Maracanã em 12 de outubro de 1999. O bispo faz referência aos métodos de trabalho de alguns padres “ainda bastante jovens” e “imaturos”, como o padre Marcelo. O bispo de Duque de Caxias mostrou-se chocado com as declarações do padre Rossi dizendo que procurava mudar a imagem do padre, visto como “efeminado”, “mulherengo” e “alcoólatra”. Dom Mauro questionava a imagem que Rossi estava passando: a de um “padre que canta”. Nesse aspecto, reconhecia a grande atração que Marcelo Rossi exercia sobre a massa, assim como os limites da Teologia da Libertação nesse aspecto. Por outro lado, ele via todo o fenômeno como uma reação à difusão das “seitas”, que transformou a Renovação Carismática como instrumento de conquista (BERABA, 1999, p. 1-8). As discordâncias em relação às práticas do padre Marcelo também foram evidenciadas no 10º Encontro Intereclesial, que reuniu as comunidades de base (CEBs) de todo o Brasil em Ilhéus (Bahia). Marcelo Rossi foi “esconjurado” por sua “nova liturgia”. Segundo representantes das CEBs, a rápida ascensão do padre Marcelo explicava-se porque ele faz concessões à mídia e suas músicas não têm compromissos com questões sociais. “O neoliberalismo precisava ter seu sacerdote e o encontrou”, co74

Capítulo 3 – Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil

mentou o cantor e compositor Zé Vicente, que faz sucesso no meio das CEBs (CEBs, 2000). Uma parcela do clero destaca que o padre Marcelo exagera no exibicionismo, valorizando mais a forma que o conteúdo. “Esperava uma missa mais engajada, com uma missão, pregando por um milênio melhor, com mais trabalho e menos violência”, comenta D. Paulo Evaristo Arns (ALVES e COSTA, 2000). Nesta mesma linha, o padre José Comblin considera Marcelo Rossi como um fenômeno do século XXI. Sua mensagem responde à psicologia de uma imensa massa de pessoas, não muito diferente dos pentecostais, com técnicas bastante semelhantes. Numa sociedade “preocupada” e “angustiada”, é necessário algo que se lhes dê “alegria”, que se “liberte um tempo de toda esta miséria da vida de cada dia”. Diante da pobreza das massas e de um sistema paroquial católico que não oferece nada aos populares, da inexistência de uma pastoral católica, de uma liturgia e catequese para as massas, Marcelo Rossi aparece como uma padre que toca essa camada da população. Entretanto, Comblin considera-o como um fenômeno “que não vai muito longe”, que recebe apoio de alguns setores conservadores porque não “questiona nada.” (COMBLIN, 2004)6. Em relação à exposição na mídia, muitos religiosos demonstram preocupação com o uso da imagem de Marcelo Rossi pelas emissoras. Novamente a carta de frei Betto é exemplar. O frade demonstrava temor com um “padre pop star”, “ibopizado”, sendo usado para dar audiência, vender CDs e terços, camisetas e quinquilharias. Frei Betto alertava padre Marcelo para o perigo do “tombo” e da mercantilização da fé: “Essa mídia não quer o Evangelho. Quer uma isca que atraia maior audiência. Mais audiência significa ampliar a veiculação de clipes publicitários, formar consumidores e não cidadãos. Muito menos cristãos” (FREI BETTO, 1998, p. 4-1). Dom Serafim Fernandes de Araújo, cardeal-arcebispo de Belo Horizonte, também temia a exposição na mídia do padre Rossi: “só tenho um medo: que essa mesma mídia que o joga lá em cima, daqui a pouquinho vai jogá-lo lá em baixo. Estão levando porque ele é mídia, é ibope. Então, o dia que der vontade de jogar lá em baixo, vão jogar” (PEIXOTO, 1998, p. 1-16). 6

Cf. entrevistas não publicadas nas fontes.

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Padre Zezinho considera que Marcelo Rossi se submeteu aos caprichos da mídia. O padre, que já gravou 67 discos e vendeu oito milhões de cópias, ressalta que para pregar a palavra de Deus não é preciso tanta visibilidade, se tornar um “superstar”, ser colocado no pedestal pela Globo e SBT (LUIZ FRANCISCO, 2000, p. A8). Em 1998, por exemplo, o padre Marcelo reconhecia na reportagem da revista Istoé que seus compromissos com a Igreja estavam todos atrasados, tais como batizados e crismas. De fato, naqueles últimos meses as preocupações dele eram muitas. Numa missa no dia 10 de dezembro de 1998, ele não abençoou com a água benta uma área próxima ao altar, reservada aos seus próprios convidados. Alegou que não poderia molhar o lugar naquele dia, porque à noite seria gravada a missa de Natal que seria transmitida pelo SBT, num dos programas de Gugu Liberato. Em relação à exposição do padre Rossi na mídia, há também quem o defenda. Em 2000, Dom Eugênio Sales afirmava num tom peremptório: “Quanto mais ele aparecer na mídia para pregar Jesus Cristo, melhor será para a causa do evangelho” (ALVES e COSTA, 2000). Ainda em relação à mídia, há outra faceta do padre Marcelo que incomoda alguns membros da Igreja. No entender de alguns, ele se tornou maior do que a instituição que representa, como afirmou Frei Betto: Toda projeção na mídia é em cima da figura dele e não na de Jesus. Assim, ele não dá o passo seguinte. Não basta atrair gente para o templo. Não faz sentido um católico que curte o padre Marcelo, mas não vive nem divulga o Evangelho (KLINKE, Istoé, 16/12/98).

A mesma crítica vem do padre José Oscar Beozzo, ex-coordenador geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Cesep) e membro do Centro de Estudos de História da Igreja da América Latina (Cehila). Segundo Beozzo, um padre tradicionalmente deve estar na paróquia, diante do povo “dele” em reuniões, no sermão, às vezes na emissora de rádio da cidade. Diferentemente, Marcelo Rossi tem grande audiência, tornou-se uma figura nacional, um padre de todo o país. Ele tem mais visibilidade do que um bispo ou um presidente da CNBB. Então essa é uma situação nova dentro da Igreja que não afeta apenas os outros padres, mas principalmente os bispos por causa da sobreposição (BEOZZO, 2004). 76

Capítulo 3 – Engajamento social versus emoção e tradição: a reasserção conservadora católica no Brasil

Nessa fala do padre Beozzo, estão subentendidos dois aspectos. Primeiro, há uma preocupação quanto aos limites das ações do padre Marcelo. Ele começa a interferir nas unidades eclesiásticas dos demais padres. Não se limita a atuar apenas na sua paróquia, mas evangeliza fiéis por todo o Brasil. De certo modo, apresenta-se como um concorrente aos demais padres. Em segundo lugar, sua sobreposição leva-o a uma condição acima dos seus superiores, ou seja, os bispos. Quanto à liturgia, as críticas a Marcelo Rossi atingem dois sentidos. Primeiramente a instituição do modelo rossiano como “exclusivo”, como único caminho eficaz para a Igreja Católica evangelizar. Neste aspecto, Dom Serafim de Araújo, embora ressalte a ‘’grande contribuição’’ de Marcelo Rossi, por encontrar uma ‘’linguagem que vai mais ao coração do povo’’. Lembra, no entanto, que há muitos anos os padres católicos faziam o mesmo trabalho, de forma diferente e que há anos têm conseguido evitar a saída de fiéis da igreja. Nós temos um trabalho feito de corpo-a-corpo e o Marcelo vem com outro jeito. Agora, eu não sei se ele é eficiente nesse trabalho de corpo-a-corpo que nós estamos fazendo. Esse entusiasmo do padre Marcelo pode existir hoje e amanhã não existir mais (PEIXOTO, 1998, p. 1-16).

Tal posição é também do Dom Raymundo Damasceno. Ele reconhece a grande capacidade de Marcelo Rossi de reunir as massas para rezar e cantar. Este, porém, não seria o único caminho para evangelizar. O resultado não pode ser medido pela aglomeração de pessoas, mas “pelos frutos que perduram e permanecem”. A televisão, o rádio e o jornal são ótimos, mas não os únicos. “Cada um tem uma metodologia diferente”, diz Dom Damaceno. Ele ressaltou ainda que, nas celebrações litúrgicas, é importante distinguir a “celebração eucarística” de missa. A segunda tem normas que a orientam em toda a igreja e em todo o mundo. Já nos encontros de oração, “não há regras” (ZORZAN, 1998, p. 1-15). Crítica contundente a Marcelo Rossi vem do padre Manzatto, diretor da Faculdade de Teologia Assunção: “várias pessoas querem se transformar em novos padres Marcelos, mas aí percebem que o principal trabalho da 77

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Igreja não é fazer barulho e cantar”. Ainda de acordo com o padre, tal glamourização do sacerdócio, e a subsequente decepção, estão entre os fatores que levam aos altos índices de desistências (20% a 30%) de seminaristas (AS DESILUSÕES, 2004, p. 7-8). A própria CNBB criticou a ênfase dos grandes conglomerados da mídia nacional à cobertura do “espetáculo emocional do novo catolicismo”. Na opinião dos bispos, esse interesse da mídia “não é gratuito” e pode estar a serviço do esquecimento “dos grandes problemas nacionais”. Na opinião da CNBB, a mídia teria cometido o mesmo erro, nos anos de 1960 e 1970, período do regime militar, ao ser “omissa” na divulgação do trabalho da Igreja Católica, que “se empenhava em falar como a voz dos sem-voz”. Nos anos de 1990, dizem os bispos, a mídia estaria “exaltando o que lhe convém” para a “manutenção do pensamento hegemônico”. Na visão da CNBB, as manifestações “emocionais” aparecem na mídia, de forma equivocada, como a essência do trabalho da Igreja Católica. A CNBB admitia, no entanto, que as manifestações de massa dos católicos, puxadas pelo movimento Renovação Carismática, provocam “evidente inquietação entre especialistas em religião e pastoral sobre esses novos fenômenos “(CNBB, 1999, p. 1-10). O segundo aspecto criticado na liturgia rossiana é seu caráter de show. Assim, dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT), vê no padre Marcelo um fenômeno “passageiro”, que perderá sua influência com o tempo. O bispo analisa o padre como um fenômeno de massa. Perguntado sobre sua capacidade de atrair fiéis para a igreja, diz: “o povo também está sendo atraído pelo Ratinho, pelo Leão e pela Xuxa. E eles não são muito adequados”. E acrescenta: “uma coisa é um cantor, um ator. Outra é um padre-cantor ou um padre-ator” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 1-15). Diante das primeiras críticas, em dezembro de 1998, o padre Marcelo decide não dar mais entrevista naquele ano. A decisão veio ao encontro das orientações do Vaticano encaminhadas a alguns bispos do Brasil para que controlassem os padres que tinham dado mais valor à mídia do que à sacristia. Dom Fernando foi um dos que receberam essas orientações e prontamente recomendou ao padre Marcelo que “parasse de dar entrevistas logo que encerrasse os compromissos com a Polygram”. No dia 10 de 78

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dezembro, Marcelo Rossi entregaria um disquete com respostas a todas as perguntas que interessavam aos jornalistas (KLINKE, 1998). As inúmeras reações levaram também à ideia de reorientação do padre Marcelo Rossi. O arcebispo de São Paulo, dom Cláudio Hummes, dizia que o religioso tinha feito “grande trabalho positivo”. O cardeal entendia que padre Marcelo deveria ter seu trabalho “orientado e avaliado constantemente” pelo seu bispo, dom Fernando Figueiredo. O arcebispo não enxergava na atuação do religioso o perigo de exposição excessiva ou mesmo de mercantilismo, “é uma forma de comunicação nova” (FOLHA DE SÃO PAULO, 6/2/2000, p. 1-13). No ano seguinte (1999) cristaliza-se, com mais ênfase na CNBB, a preocupação com a reorientação de padres pop stars. A entidade discute a possibilidade de convocá-los para uma reunião ou um encontro em Brasília. O objetivo era estimular os sacerdotes, principalmente da ala carismática, a adotar discurso contra as injustiças sociais e alertá-los para o respeito à liturgia católica durante os show-missas. Para a CNBB, esses padres cantores devem se preocupar também com as mudanças sociais, não só com atos assistencialistas e a expressão eufórica da fé. Antes mesmo desta convocação, alguns padres foram punidos. Isso ocorreu em Salvador com Marcus Lázaro Mendes Dias, afastado pela sua congregação por ter criado bloco de Carnaval em 1999. Nesse mesmo ano, ele iria lançar um CD com um novo gênero, o “axé-gospel” (CNBB, 1999, p. 1-6). A relação de Marcelo Rossi com a CNBB continuou tensa. Em 2000, a entidade teria vetado sua participação na celebração dos quinhentos anos da evangelização católica no Brasil, em Porto Seguro, Bahia. Dom Marcelo Cavalheira, então vice-presidente da Confederação, afirmou que a celebração estava “aberta à participação de todas as pessoas”, sem “privilegiar nenhum grupo”. Quanto à participação de Marcelo Rossi, afirmou: “queremos prescindir dessas tendências polêmicas” (FOLHA DE SÃO PAULO, 26/2/2000, p. 1-10). A ideia de convocação dividiu os próprios membros da CNBB. Nesse mesmo período, o bispo de Santo Amaro, dom Fernando Figueiredo, mentor de padre Marcelo, afirmava que desconhecia essa proposta de reunião da CNBB, mas que a iniciativa permitiria a ‘’união de esforços para um trabalho conjunto’’. Ele, entretanto, discordava de alguns pontos. Segundo o bispo, os eventos reali79

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zados no Santuário do Terço Bizantino, além de respeitarem a liturgia católica, já possuíam conteúdo social: ‘’também buscamos essa dimensão social. Tanto é que muitas obras sociais estão sendo realizadas graças a esse trabalho”. O bispo também disse acreditar que a convocação para o encontro não refletia uma preocupação da CNBB em relação ao desempenho dos padres cantores. ‘’Para cada um desses padres há um bispo acompanhando o trabalho e que está ali justamente para buscar as expressões mais correspondentes à liturgia e à vida da igreja, com todas as suas dimensões, seja a teológica, a religiosa ou a social” (FOLHA DE SÃO PAULO, 7/11/1999, p. 1-6.). Padre Zezinho também defende a intervenção da CNBB na participação de padres na mídia. Segundo ele, a cúpula da igreja deve começar a se preocupar com o fenômeno de mídia gerado pelo padre Marcelo Rossi. “É preciso criar um projeto para que não passe dos limites. É errado um padre subir no mesmo palco para cantar com Reginaldo Rossi, por exemplo,” disse.7 O padre Zezinho, no entanto, defendeu o padre Marcelo alegando que ele conseguiu abrir espaço para a igreja na televisão (FOLHA DE SÃO PAULO, 5/2/2000, p. 1-12).

Política e religião na perspectiva do padre Marcelo Rossi Padre Marcelo Rossi reagiu prontamente às críticas. Sua tomada de posição no campo católico direciona-se de forma contrária ao catolicismo libertário. Seus discursos estão marcados por inúmeras críticas às posturas dos padres ligados à Teologia da Libertação. No seio das suas discordâncias está a distinção entre o plano espiritual e o plano político. Suas falas, em diversos momentos, apontam aquilo que Marcelo Rossi considera como “problemas” e “limites” das práticas da Igreja dos Pobres, tais como: “radicalismo”, “falta de equilíbrio”, ênfase no social em detrimento do espiritual, o uso da comunicação para “denunciar” e não “informar”, o “partidarismo político’, o sentido “acusatório” das pregações. O padre Antônio Aparecido Pereira, editor do semanário da Arquidiocese de São Paulo, concorda em muitos aspectos com o padre Marcelo Rossi, entretanto, na sua perspectiva, o padre precisava de melhor assessoria: “ele precisa ser mais bem assessorado. Alguns programas em que ele se apresenta mostram cenas “incompatíveis com a evangelização”. Destacou ainda que, em 1999, os padres cantores teriam se encontrado informalmente para discutir conteúdo e direcionamento de seu trabalho, e justamente o padre Marcelo não compareceu devido a cláusulas de seu contrato com a sua gravadora (VENCESLAU, 2000, 22).

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Numa entrevista à Folha de São Paulo, em 2000, quando foi indagado sobre a Teologia da Libertação, padre Marcelo destacou: É uma bênção. Só que o grande perigo é que esqueceram a oração. (...) Fui à igreja em Santana (zona norte de São Paulo), assistir a uma missa dominical. O padre _não interessa o nome, porque ele ainda está vivo_ falou de política. Quase falou em que partido eu deveria votar. Aquilo para mim foi uma agressão. Deixa explicar por quê. Já naquela época, comecei a estudar história da igreja. E fui me apaixonando por santo Irineu, santo Agostinho, santo Ambrósio. Pô, cheguei à missa, e o padre, em vez de citar esses exemplos, começou a comentar o panorama político. Não que seja contra, mas tudo tem hora. Mexeu comigo. Aí, voltei para valer à Renovação. (FOLHA DE SÃO PAULO, 6/2/2000, p. 1-12).

Diversos signos discursivos podem ser analisados nesse discurso do padre Marcelo. Primeiramente, há uma discordância quanto à ênfase na pregação religiosa. Na Teologia da Libertação, os pobres foram conclamados ao engajamento social, à ação política e à busca de conhecimento científico para entrar no jogo político moderno (STEIL, 1998). Na visão desse catolicismo, sob nítida influência do marxismo, o pecado é social e se chama capitalismo. No lugar do tradicional opositor sobrenatural (“o velho diabo”), esse catolicismo coloca a classe social concreta: o mal é a burguesia e seu sistema econômico de exploração. O pecado é a exploração do homem pelo homem, e a medida do pecado tem nome: a mais-valia marxista (PRANDI, 1998, p. 100). Respondendo as críticas, Padre Marcelo Rossi adota uma leitura contrária a esta associação entre política e religião. Ao contrário da Teologia da Libertação, ele reforça a ideia tradicional católica de pecado. Nesta o pecado é considerado um abuso da liberdade que Deus dá às pessoas. De acordo com o catecismo católico, o homem, tentado pelo Diabo, deixou morrer em seu coração a confiança em seu Criador e, abusando de sua liberdade, desobedeceu a seus mandamentos. O homem optou por si mesmo contra Deus, contrariando as exigências de seu estado de criatura. Com a instauração do pecado, a harmonia da criação 81

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visível tornou-se, para o homem, estranha e hostil. Por causa do homem, a criação está submetida “à servidão da corrupção” (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1999, p. 110-113). Nessa ótica, corroborada no discurso do padre Marcelo, a injustiça e a violência são atribuídas a “homens injustos”, que não tiveram seus “corações tocados” pela religião. O pecado aqui é individual e moral, em vez de social, conforme defendem os adeptos da Teologia da Libertação. Nesse aspecto, há uma vinculação direta entre o discurso do padre Marcelo e a concepção de pecado proposta pela Renovação Carismática. Tanto no campo da intimidade, quanto na esfera da vida pública. Seu programa defende e apresenta uma moralidade tradicional centrada na família, na sexualidade e nos costumes estreitos da vida quotidiana. O segundo sentido que pode ser observado nessa fala do padre Marcelo Rossi é a preocupação com a eficácia do modelo católico. O sentido pragmático emerge no seu discurso, pois ele critica a Teologia da Libertação pelo “afastamento das pessoas”, como pode ser observado num outro trecho da citada entrevista, quando fala da sua experiência numa comunidade pobre: ...há alguns anos, atendia à população da favela do Buraco Quente, que era uma das mais violentas de São Paulo.(...) Trabalhei dois anos e meio nessa favela. Folha – Ia todos os dias? Padre Marcelo – Todo final de semana. Eu celebrava lá. Tínhamos uma creche. O padre anterior não fazia na creche um trabalho de missa. Ele fazia um trabalho social muito importante, de assistência. Quando cheguei, comecei a celebrar a palavra, levava a eucaristia. As pessoas se aproximavam e diziam: ‘Que bom! Até então, nós vínhamos, pegávamos comida, deixávamos nossos filhos, mas íamos à igreja evangélica aqui do lado’. Não tenho nada contra as igrejas evangélicas, mas eram católicos e, no domingo, iam ao culto evangélico. Se você quer dar consciência política às pessoas, tudo bem, mas em outra hora, não na hora da missa. (ISTOÉ, 7/4/2004, p. 7-11).

Há, nessa fala, a discordância quanto ao papel do sacerdócio atribuído pela Teologia da Libertação e aquilo que o padre Marcelo 82

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considera adequado. Novamente o sentido pragmático está evidente. Há uma forte preocupação com a fuga dos fiéis e, nesse sentido, Rossi atribui outro papel à religião: conforto espiritual. Isso está evidente no seu depoimento quando aponta sua decepção ao assistir a uma missa dominical num momento em que precisava de “conforto”. Esse discurso demonstra também sua vinculação à Renovação Carismática. As críticas do padre Marcelo à ênfase no espiritual vinculam-se à perspectiva da Renovação, que apresenta um mundo encantado, com curas e milagres. Os carismáticos, incluindo o padre Rossi, estão distantes do catolicismo “desencantado” e racionalizado proposto por alguns setores eclesiásticos pelo aggiornamento do Concílio Vaticano II. A RCC trouxe algo que já se encontrava no catolicismo popular e em outras religiões. Males de todos os tipos são levados aos templos pentecostais, aos terreiros afro-brasileiros, aos centros católicos de peregrinação, aos centros kardecistas, às igrejas orientais. Agora, a cura de todos os males está num maior alcance dos católicos, que não precisam mais abandonar a religião “em que se nasceu”. Num outro momento, a insuficiência da Teologia da Libertação quanto à evasão dos fiéis é destacada, dessa vez devido ao discurso racionalizante: O discurso social dela abriu as portas para que os evangélicos avançassem. Eles tem um discurso pouco litúrgico e totalmente social. E quando a teologia se torna uma ideologia, é um perigo. O PT nasceu dessa igreja. (FOLHA DE SÃO PAULO, 16/4/2004).

O que padre Marcelo Rossi aqui condena é a aposta da Teologia da Libertação na secularização, aproximando-se de diversos modos da modernidade. Os setores progressistas católicos acreditavam que a secularização ocorreria sem a fuga da observância religiosa, uma vez que a religião se adaptaria à razão secular. Para um mundo secularizado, propõe-se um catolicismo despido de misticismo e irracionalidade.

Disputas no campo católico brasileiro Vê-se que as críticas feitas ao padre Marcelo Rossi centram-se nos seus “ritmos vibrantes”, sua “superficialidade”, “excesso emotivo”, ênfase 83

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sobre a “forma” em detrimento do “conteúdo”, associação da fé ao mercado de entretenimentos e ao neoliberalismo, seu proselitismo, o caráter “alienante” da sua liturgia. Estas tensões, aqui analisadas, demonstram que está em jogo a disputa pela hegemonia do campo católico entre dois estilos sacerdotais que estão, de certo modo, vinculados a duas concepções religiosas que fizeram leituras diferentes dos “sinais dos tempos”: a Igreja dos Pobres e a Renovação Carismática. A recepção ao padre Marcelo revela a dinâmica do campo católico brasileiro. Elas remetem às disputas entre os segmentos eclesiásticos pela definição do sacerdote. Dessa forma, as opiniões favoráveis ou divergentes relativas ao padre Marcelo Rossi estão relacionadas à concorrência entre diferentes estilos sacerdotais. Isto envolve divergências quanto à liturgia (racionalizada ou emocionalizada; tradicional ou inovadora), a maneira de se vestir, falar, a ênfase sobre o social ou espiritual, as inovações e diálogo com o mundo, entre outros traços distintivos. As posições perante as práticas do padre Marcelo revelam uma disputa entre dois estilos de ser católico. As falas apresentam duas definições distintas do catolicismo. Dito de outro modo, é uma luta simbólica por definição de um ethos: o modo “correto” de ser católico. A recepção ao padre Marcelo revela a dinâmica do campo católico brasileiro. Como todo espaço social, esse campo é definido pela exclusão mútua ou distinção das posições que os constituem. Seus agentes sociais encontram-se em lugares distintos e distintivos, marcados pela maneira de estar no mundo, sendo suas ações e pensamentos afetados, construídos e adquiridos no curso de uma experiência social situada e datada (BOURDIEU, 2001). Décadas atrás, os padres se dividiram em dois estilos principais. Eram conservadores, tradicionalistas, ou se inclinavam menos pela doutrina e mais para as questões sociais, de preferência associando teologia e pensamento de esquerda. Esses padres progressistas disputavam com a ala conservadora a hegemonia na Igreja brasileira. Nos últimos anos da década passada, um novo tipo de agente emergiu nessa disputa, recebendo, inclusive, apoio dos conservadores: os artistas da fé, principalmente os adeptos da Renovação Carismática. Esse terceiro grupo possui, como traço distintivo, a defesa da tarefa espiritual sobre a tarefa social e de que a missa tem que se modernizar e se tornar mais viva, talvez até próxima dos evangélicos para deixar de afastar os fiéis. 84

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Vale ressaltar que os carismáticos, segmento católico em que se vincula o padre Marcelo Rossi, embora critiquem o “discurso politizado desgastado” da Teologia de Libertação, estão longe de uma postura apolítica. No discurso e nas práticas dos carismáticos não se verifica um tradicionalismo religioso, que se caracteriza por um cultivo da religiosidade como assunto extramundano, indiferente às questões seculares e passível de conviver com qualquer código ético ou social que não hostilize a religião. Ao contrário, há aqui uma reasserção conservadora da religião. Esta é marcada pela reação a momentos de politização do campo religioso, quase sempre associada à legitimação de um discurso secular que desqualifique ou reprima as manifestações intramundanas de base religiosa, reconstituindo os elementos mais quietistas do discurso religioso em articulação com uma postura ativa de conservação ou reafirmação da ordem vigente. A reasserção conservadora da religião não necessariamente rompe com a política, mas desmotiva e reprime sua irrupção no discurso religioso e vigia qualquer trânsito nas fronteiras da prática intraeclesial com a dinâmica social mais ampla. Enquanto o tradicionalismo religioso é marcado pela alienação política, a reasserção conservadora apresenta claros traços de reacionarismo político (BURITY, 2006). Nesta perspectiva, inúmeros estudos demonstram como os carismáticos não se ocupam apenas da reza. Verifica-se a adoção de uma política clientelista, fundamentada na procura de privilégios e a busca estratégica pela manutenção e recuperação da presença católica no espaço público brasileiro. Isto não implicou uma negligência das questões sociais, mas a retomada do modelo tradicional católico de caridade e assistencialismo. Enquanto as CEBs insistem no pecado estrutural e na procura das soluções coletivas, através da luta pela cidadania, os problemas sociais são encarados no modelo tradicional como fruto do egoísmo humano, como conflitos que devem primeiro ser resolvidos na esfera privada para depois serem solucionados na esfera pública. Esta é uma posição defendida pelo padre Marcelo Rossi. Por outro lado, a Renovação Carismática manteve-se, até bem pouco tempo, à margem da política no Brasil, inclusive, e principalmente, da política partidária. Não se tem notícia de ações políticas latu sensu ou de candidaturas políticas identificadas por tal pertença religiosa até o início 85

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dos anos 1990. Nesta década verifica-se, porém, mudanças significativas com as primeiras candidaturas. Até 1996 os carismáticos se candidataram por diferentes partidos (embora o mais frequente seja o PSDB), a partir de 1997, o até então quase inexpressivo PSN – Partido Solidarista Nacional –, depois de reformulado e renomeado Partido da Solidariedade Nacional, passa a aglutinar esses parlamentares e a abrigar as candidaturas que surgem nas eleições de 1998 (MIRANDA, 1999). Como destaca Júlia Miranda (1999), os principais interessados na inclusão da política como objeto de reflexão e, consequentemente, de discussão, em meio carismático, parece ser aquelas lideranças que pleiteiam mandatos eletivos e que buscam construir suas candidaturas com base na pertença religiosa. Desta forma, assim como seus concorrentes evangélicos, a estratégia assumida pela RCC é a ocupação de cargos e espaços na política local e nacional. Isso pode ser constatado, entre outros indícios, a partir, da criação da Secretaria Matias pelo Congresso Nacional da RCC em 1995, da elaboração da cartilha Fé e Política: uma proposta de reflexão, da criação do Partido Solidarista Nacional (PSN) e da transformação dos grupos de oração em nichos eleitorais (MIRANDA, 1999). Com uma identidade confessionalmente definida, a RCC, junto com outros setores conservadores e evangélicos, se posiciona no Congresso Nacional em relação a temáticas morais, atuando, por exemplo, contra projetos de lei que visam incorporar como direitos civis questões como casamento homossexual e legalização do aborto. A Renovação tenta, através do seu discurso, resgatar na disputa política o catolicismo como fonte de valor e de norma. Sua concepção de santificação pessoal é antagônica a uma concepção de santificação pessoal por meio do profetismo e do engajamento nas lutas sociais que estimulam as CEBs. A disputa agora se dá com mais ênfase entre os adeptos da Teologia da Libertação, os “padres de passeatas”, e os adeptos da Renovação Carismática, tais como alguns “artistas da fé”. Com isso, as atitudes, as formas de praticá-las, opiniões, a maneira de expressão e o consumo daqueles religiosos formados na Igreja Progressista, tais como dom Casaldáliga e frei Betto, se diferenciam daqueles cuja formação está associada à Renovação, como o próprio padre Marcelo e dom Fernando Figueiredo. Se o padre Rossi fosse adepto da Teologia da Libertação, poderia ser 86

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apenas um anônimo, vivendo na periferia de São Paulo, fazendo sermões e ensinando a comunidade local a lutar pelos seus direitos. Como ele, alguns padres da Renovação Carismática preferem arrebanhar fiéis em escalas muito maiores, de preferência pela mídia. Na sua perspectiva, as missas precisam de um “sopro de vida nova”. Marcelo Rossi tem horror a sermões longos, enfadonhos e muito politizados, que “afastam” o fiel da Igreja: “há um ditado que diz: em cinco minutos é Deus quem está falando, em dez é o homem e em quinze minutos é o diabo” (JUNQUEIRA, 1998). Enquanto a Teologia prega a leitura “crítica” do Evangelho e faz dele uma arma contra a pobreza, a Renovação Carismática prefere a satisfação religiosa pessoal à luta pelas causas sociais. Através das Comunidades Eclesiais de Base, a doutrina da Libertação organiza minorias em todo o País, serviu de abrigo para os movimentos sindicais e a militância de esquerda. Atualmente oPadre Marcelo opta por atrair milhares de pessoas às suas missas, dançar, cantar, praticar a caridade e assistencialismo. “Progressistas e artistas da fé” partilham a adesão tácita a uma mesma doxa que torna possível a concorrência entre eles e lhes impõe seu limite: a pertença ao catolicismo romano. As reações ao padre Marcelo Rossi manifestam a disputa interna no campo católico brasileiro pela definição de um estilo hegemônico para a prática sacerdotal, o que implica as disputas internas entre dois estilos distintos. Essas diferenças associadas a posições funcionam como constitutivas de sistemas simbólicos. Como destaca Bourdieu, a ideia de separação está no fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre (BOURDIEU, l996, p. 18-19). Por outro lado, as tentativas de regulamentação dos “artistas da fé” demonstram que no campo religioso, assim como nos demais, há limites a ações individuais. Desta forma, as instâncias reguladoras, no caso a CNBB, são marcadas por disputas internas pela definição de um estilo ideal de sacerdote católico. Aqueles que extrapolam essa gramática gerativa são considerados fora do campo. Pode-se dizer que Marcelo Rossi estrutura o campo católico, assim como é estruturado pela dinâmica estrutural, pelas condições objetivas. Ele seria, então, um agente e ao mesmo tempo um 87

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sujeito. Suas ações não executam e obedecem a regras simplesmente. O padre Marcelo está absorvido pelo jogo como num universo transcendente e capaz de impor incondicionalmente seus objetivos e normas próprias.

Fontes Entrevistas não publicadas BEOZZO, Pe. Oscar. Entrevista concedida a Péricles Andrade. Recife-PE, 24 ago. 2004. CAVALHEIRA, Dom Marcelo. Entrevista concedida a Péricles Andrade. Recife-PE, 25 agosto 2004. COMBLIN, Pe. José. Entrevista concedida a Péricles Andrade. Recife-PE, 26 agosto 2004. MARIA, Pe. Antônio. Entrevista concedida a Péricles Andrade. Estância-SE, 29 maio 2004.

Entrevistas publicadas BOFF, Leonardo. “A Igreja ainda me ouve”. Época, 22 nov. 2000. p. 47-49. Entrevista. CRIVELLARO, Débora. Sagração do popstar. Entrevista de Marcelo Rossi. Época, 18/10/99, p. 33. PIOVESAN, Márcia. “Padre Marcelo Rossi diz como vê o sexo e o amor”. Chiques & Famosos, ROSSI, Pe. Marcelo. “Não sou milagreiro”. Istoé, 24/12/1997. ROSSI, Pe. Marcelo. Entrevista. Caras, 4/12/1998. ROSSI, Pe. Marcelo. Entrevista. Noroeste News. 9/12/1998. ______. “Não sou um pop star”. Época, 15/3/1999. 88

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______. Entrevista. Revista Coleção Glória ao Senhor, n. 1, 4/1999.01 ______. Entrevista. Revista Fé e Luz, 12/1999 (Especial). ______. “Estou em um momento especial da minha vida”. Contigo!, 21/12/1999. ______. “Padre Marcelo Rossi se emociona ao falar de sua estréia no cinema”. O Fuxico, 22/05/2003. ______. “Não senti com namorada o que sinto hoje pela Igreja”’. Folha de São Paulo, 6/2/2000, p. 1-13 (Brasil) SILVA, Chico. Entrevista: Padre Marcelo Rossi. Istoé, n. 1800, 7/4/2004, p. 7-11. SOARES, Ana Carolina. Padre Marcelo: o missionário quer o mundo. Contigo! n. 1479, 22/1/2004, p. 34-39. VIEIRA, Marceu e GUEDES, Cilene. A Igreja ainda me ouve. Época, 27 novembro 2000. p.47-49.

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Capítulo 4 Religião, Dádiva e Cidadania Drance Elias da Silva

Introdução O campo religioso brasileiro tem demonstrado fôlego significativo em face de um processo crescente de diferenciação. Há um esforço muito grande em contribuir com a questão da construção de uma cidadania no Brasil, e isso não é de hoje. Podemos lembrar de um fato de muito tempo atrás, quando os protestantes chegam no Brasil e desenvolvem campanhas de doação de Bíblias, sinalizando uma exigência de fundamental importância do novo pertencimento religioso: uma vez convertido, ler é preciso. Ter um livro na mão e aprender que esse livro é uma revelação de Deus e não saber como isso ali se expressa... De que adianta? O referido fato significou muito para aquele momento e repercutiu, no seu processo, de diversas formas. Em face de uma cultura religiosa hegemônica católica, sem incentivo à leitura e à posse do livro, a novidade evangélica, poderíamos dizer, soou como um exemplo de valor de cidadania, na medida em que criava, nos fiéis, uma expectativa de mudança simplesmente por ler o livro sagrado da sua própria religião. Afinal, poder ler o texto sagrado da religião a que se pertence, contribuiria muito para a formação da ideia que o grupo faria de si mesmo. E não só. Levaria também a uma compreensão fundamental a ser levada em consideração na explicação do seu comportamento. Logo, a identidade evangélica seria marcada por sua relação com o livro sagrado, o que favoreceu uma significativa autonomia do fiel em relação ao tradicional poder eclesiástico. A experiência religiosa evangélica seria marcada, então, pela forte emoção que daí provinha, pois esse aspecto contribuiria, também, para firmar, no Brasil, sua fundação. E tudo isso repercutiu na relação indivíduo e sociedade. Não devemos

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esquecer que, a luta contra o analfabetismo no Brasil, se constituiu numa questão fundamental de cidadania. Por outro lado, a Teologia da Libertação, já nos anos 1980, aprofundava essa perspectiva por outro caminho, atingindo católicos e parcela de intelectuais do protestantismo histórico com os seus processos formativos que buscavam integralizar a relação fé e vida. A bandeira da cidadania no Brasil minava cada vez mais o campo religioso cristão, pois fé e vida caminhavam para expressar mais compromisso efetivo com a vida. Apesar da atitude de resignação muito criticada por sua presença na religião, o campo religioso brasileiro na sua história não se manteve inerte em relação a essa busca por direitos fundamentais. E nesse sentido, Burity (2006, p. 25) faz questão de nos advertir: “(...) não se pode subestimar a memória de processos anteriores, em que pela fermentação teológica ou em decorrência de engajamentos concretos com movimentos sociais e políticos, setores das igrejas buscavam assumir um papel mais ativo nos debates e lutas sociais”. No Brasil de hoje, expressa-se com mais vigor a importância do fator religião na construção de uma cidadania concreta. A função social da religião não se ancora mais na ideia de ser ópio como talvez ainda assim se pense. Por exemplo, ela incrementa a oportunidade de um morador da comunidade participar de alguma associação. E isso fortalece laços de solidariedade que se expressam pela centralidade das igrejas e cultos como referências no desenvolvimento da capacidade de inclusão social (Cf. CASTELLO; LAVALLE, 2004). Por esse prisma, percebemos, também, certa abertura das religiões, sobretudo cristãs, em aceitar parcerias com o Estado através de políticas sociais destinadas à valorização do humano, principalmente em lugares em que sua fraca presença é profundamente sentida: O número crescente de experiências de participação religiosa em iniciativas sociais ou governamentais de enfrentamento da pobreza e da exclusão é apenas um aspecto do cenário. Ele pode ser avaliado incrementalmente de diferentes maneiras: por estudos de caso de comunidades locais e vizinhanças; pelo mapeamento das iniciativas de centenas de organizações caritativas de base religiosa em todo o território nacional (algumas das quais organizadas nacionalmente, e mesmo se autodenominando ‘organizações não-governamentais);

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pela constituição de redes e parcerias que incluem agências governamentais e organizações da sociedade civil nos diferentes níveis federativos. A imagem resultante de um tal exercício (...) revelará uma miríade de projetos de pequeno escopo, às vezes articulados por organizações caritativas ou por instâncias pastorais de igrejas que operam regionalmente ou nacionalmente, e recobrindo iniciativas nas áreas de educação, saúde, ação cultural, capacitação profissional básica, violência, organização comunitária, desenvolvimento rural,, inclusive de raça, gênero, habitação, geração de emprego e renda (crescentemente através do discurso da economia social solidária) (BURITY, 2006, p. 123\124)

O Estado tem demonstrado abertura para o relacionamento com as instituições religiosas, pois elas “possuem poder de aglutinação especial no trato de intuições morais principalmente no que tange a formas sensíveis de uma convivência humana” (HABERMAS, 2007, p. 148). Isto se constitui em um dos motivos pelos quais, segundo esse autor, o Estado permite as manifestações das comunidades religiosas: “Ele [o Estado] não pode desencorajar os crentes nem as comunidades religiosas de se manifestarem também, enquanto tal [Grifo nosso] de forma política, porque ele não pode saber de antemão se a proibição de tais manifestações não estaria privando, ao mesmo tempo, a sociedade de recursos importantes para a criação de sentido”1.

Partindo desse pressuposto, faz-se necessário repensar o significado da “separação entre Igreja e Estado” e, nesse sentido, Chantal Mouffe sugere a seguinte posição: Falar de separação entre Igreja e Estado, portanto é uma coisa; outra é falar de separação entre religião e política; e outra ainda é falar de separação entre público e privado. O problema está no fato de que esses três tipos de separação são às vezes apresentados

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como de algum modo equivalentes e requisitando-se mutuamente. A conseqüência disto é que a separação entre Igreja e Estado é vista como implicando a exclusão de todas as formas religiosas da esfera pública. Proponho que é a idéia de identificar a política com o estado e o estado com o público que tem levado à idéia equivocada de que a separação entre Igreja e Estado significa a relegação absoluta da religião ao privado. Não acho que esta concepção possa ser defendida. Na medida em que atuem nos limites constitucionais, não há qualquer razão pela qual os grupos religiosos não deveriam poder intervir na arena política para pronunciarem-se em favor ou contra certas causas (MOUFFE, 2006, p. 25).

O pronunciamento das religiões em “favor ou contra certas causas” têm sido muito frequente. O que faz uma determinada confissão religiosa se unir na participação de políticas públicas é a sua percepção acerca da dura realidade de vida das pessoas a quem de fato se destinam as atividades e, também, a sua percepção acerca da razão de ser do próprio Estado, que é assegurar a realização do bem comum. E o que seria este senão, um conjunto de condições que permitam a todos os membros de uma comunidade, atingir um nível de vida à altura da dignidade da pessoa humana. Essas condições são de ordem moral, intelectual e constitucional. Historicamente essas condições chegaram mais através das conquistas desencadeadas pela sociedade civil, do que simplesmente por ser garantias constitucionais. “O bem comum também pode ser imaginado como especificando o que podemos chamar, seguindo Wittgenstein, de uma ‘gramática de conduta’, que é informada pelos princípios ético-políticos da democracia moderna: liberdade e igualdade para todos”2. Voltar-se para o outro, as religiões bem sabem, é condição primordial de fazer fluir a dinâmica cidadã; é condição fundamental da reciprocidade social; é base para um fazer político numa perspectiva pública e democratizante. As religiões percebem bem tudo isso como valor e têm demonstrado abertura à participação. As religiões sabem mais hoje do que ontem da importância do cultivo da democracia. A conquista da cidadania, porém, Ibidem, p. 21.

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não se verifica e nem se reduz a essa via de relacionamento, no caso entre religião e Estado. Pode-se avaliar a eficiência dessa relação, até porque o interesse da cidadania levado a cabo pelas religiões não pode ser medida tão-somente por sua abertura a projetos ou programas advindos do âmbito estatal, mas, sobretudo, por seu avanço de mudança de mentalidade através da qual se pode verificar mudança real na forma da consciência religiosa. Os desafios colocados pela Modernidade, tais como: o pluralismo religioso, a ascensão das ciências modernas, e a disseminação do direito positivo e da moral social profana, levaram as religiões a mudanças significativas de autorreflexão hermenêutica. E a contribuição das religiões, verificada na prática, acerca do processo de exercício da cidadania, chega a atuar em lugares fortalecendo a perspectiva do reconhecimento dos sujeitos, e onde o Estado ainda vê bastante dificuldade em estar. É só fazermos a pergunta: como avaliamos a presença do Estado nas favelas do Brasil? Em muitos casos, para o usufruto da condição cidadã nesses lugares, decorrentes das políticas públicas formuladas pelo Estado, os braços das religiões, das igrejas se constituem (embora não somente) em mediação imprescindível.3 No geral, a compreensão de cidadania é a consciência de direitos democráticos, é a prática de quem está ajudando a construir os valores e as práticas democráticas. No Brasil, cidadania é fundamentalmente a luta contra a exclusão social, contra a miséria, é mobilização concreta pela mudança do cotidiano e das estruturas que beneficiam uns e ignoram milhões de outros. É querer mudar a realidade a partir da ação com os outros, da elaboração de propostas, da crítica, da solidariedade e da indignação com o que ocorre entre nós. Cidadão é, portanto, a pessoa que tem consciência de seus direitos e deveres humanos e participa ativamente de todas as questões da sociedade. Um cidadão com sentido ético forte e consciência de cidadania não abre mão desse poder de participação. Uma sociedade democrática é uma relação entre cidadãos e cidadãs. É aquela que estimula e se fundamenta na autonomia, independência, diversidade de pontos de vista e, sobretudo na ética. Ética, nesse sentido, como um conjunto de valores ligados à defesa da 3

O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal destinou 500 milhões de reais em investimento de melhoria das condições de vida nas favelas do Rio de Janeiro. Inclusive o próprio presidente fez questão de anunciar tal empreendimento in loco. Como, porém, isso pode acontecer, de fato, sem a participação real das mais diversas formas de organização da sociedade civil, entre elas, as organizações religiosas também em atuação nesses lugares?

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vida e ao modo como as pessoas se relacionam e se organizam, respeitando as diferenças e defendendo a igualdade de acesso aos bens coletivos. Em face do exposto, o meio religioso pode ser questionado como possibilidade de conquista da cidadania, por ser muitas vezes avaliado sobre o prisma do interesse pelas coisas internas referentes ao especificamente religioso, como por exemplo, mudança de denominação e conversão religiosa. Por outro lado, o fator religião pode está acelerando essa conquista na medida em que há uma identificação das religiões com as grandes demandas que se colocam para além de suas necessidades específicas, e que dizem respeito àquelas mais coletivas e abrangentes aos espaços de pertencimento. Poderíamos citar a questão da “participação política” como um valor abrangente e que, no momento atual, perpassa, por exemplo, o campo do evangelismo sem grandes problemas, pois o interesse pela política tem batido à porta também das necessidades do mundo religioso (na verdade tal interesse nunca esteve ausente das intenções religiosas, mas os motivos de hoje se expressam diferentes). Tanto quanto o dinheiro, a política vem sendo ressignificada pelo discurso evangélico pentecostal. Para os neopentecostais, por exemplo, dinheiro e política não são realidades do mal, embora não estando no mesmo patamar em termos de interesse por parte do discurso evangélico, em ressignificá-los, ambos gozam de uma melhor posição hoje do que antes da década de 1980. São duas realidades eficientes da práxis política e religiosa evangélica. São visíveis, públicos e permanentemente ressignificados no espaço de culto. É bem verdade que a questão do dinheiro como símbolo que se interpreta é bem mais trabalhado em seu significado no dia a dia do que a política. Há um processo criativo permanente e que penetra o imaginário coletivo das pessoas em relação a esse objeto. A espiritualidade neopentecostal testemunha o quanto ela se esforçou para produzir certa mística no trato com um objeto tão carregado de negatividade quanto sempre foi o dinheiro. Refletiríamos isso da seguinte forma: a dimensão social da comunicação de significados é a maneira sociológica de entendermos a força da espiritualidade neopentecostal, que toma para si o objeto “dinheiro” como símbolo. Essa comunicação revela que a espiritualidade gradualmente elaborada, ao tomar por pressuposto a predisposição subjetiva do indivíduo a dar, demarca sua posição de que essa condição humana se constitui em uma das 100

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mais fundamentais para o reconhecimento e valorização da pessoa humana. Sempre houve uma luta institucional por parte do Neopentecostalismo de estabelecer, por meio de sua produção cultural religiosa particular, que a predisposição subjetiva do indivíduo a dar se vinculasse diariamente, de forma efetiva, ao dinheiro. Mas se deve observar o seguinte: se, na sociedade, comprar é antítese que corrói a condição humana de gratuidade, na igreja, a experiência de pertencimento que induz ao fazer não pode deixar-se levar por “forças” mais poderosas do que o Espírito Santo. Este fala e dirige a reunião da comunidade, pois liberta o fiel da dúvida, que é maligna, tocando o coração, que, na visão da igreja, de fato, na relação com as coisas e Deus, produz e distribui valor. O fato de o dinheiro ser constituído em objeto mediador de relação no espaço neopentecostal não autoriza, de imediato, alguém formular conclusão de que dar é “como se” estivesse pagando. “Pagar” comumente se concebe como atitude mercantil no dia a dia, na realização do usufruto das coisas; e, como um tipo ideal capitalista, depõe tão-somente contra a gratuidade, que é expressão da dádiva. E mais: trama, fundamentalmente, contra o fortalecimento, no seio da sociedade, dos valores de um sistema que valorize a pessoa humana para além de sua condição de mero produtor de renda monetária. A espiritualidade neopentecostal, ao insistir na pregação diária de que Deus não quer o dinheiro, e sim o coração 4, entende que o vínculo social aí vivenciado, para ser mantido, depende menos da natureza do objeto do que da interpretação dada a ele. A condição de movimento adquirida pelo dinheiro em espaços como esse não decorre de mediação de troca (por isso circula, movimentando também a todos), mas da linguagem que lhe possibilita a representação, apontando para o que ele não é; e, mesmo não sendo, não se desvincula da realidade histórica dada. Assim, a membresia religiosa neopentecostal normalmente insiste em expressar, sem drama de consciência, que o dinheiro conta, de forma priori É interessante observar que, o “coração” está na centralidade do discurso neopentecostal quando associado ao dinheiro. Constituise numa forte representação a significar sempre momento de decisão quando da doação do fiel. É o coração que o fiel deve ouvir primeiro. O pastor ordena e o fiel deve obedecer. Não importa a quantia, esta deve ser expressão desse escutar. O pastor R.R. Soares em entrevista concedida à Agência Estado (SP) e publicada no Jornal do Commercio em 27\01\2008, p. 16, matéria intitulada “Meu único inimigo é o demônio”, quando perguntado sobre o dízimo, diz: “se você assistir ao Show da Fé vai ver sempre que eu digo: ‘Se Deus não está te chamando, não quero você como patrocinador’. Então eu faço um antimarketing. Digo: ‘Só quero que você me ajude se Deus tocar no seu coração. E digo mais: você sabe até a quantia. Se fala R$ 50, R$ 30, mais ou menos. E se Deus não falar nada? Não me ajude’. Se tem uma igreja que despreza dinheiro somos nós. Só queremos o que Deus nos dá”.

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tária, na doação. A nosso ver, isso não deixa atônita uma relação de dádiva, mas a reafirma, demonstrando que o simples fato de o dinheiro compor mediação de relação com o sagrado não anula a condição de as ações daí decorrentes não se terem efetuado sem garantias de retorno, não tendo em vista a criação ou a manutenção do vínculo de pertencimento social. A perspectiva simbólica que se delineia dessa reflexão entende que, o valor substancial do dinheiro está materializado e socialmente compartilhado, quando, por meio da fala, dos gestos, dos ritos, expressam-se significados outros que dizem o que o dinheiro não é. A ação e seus objetos – mesmo simbólicos – portam um espírito que fixa a noção comum de que sua força reside na dinâmica da criação, produção e mantenimento de uma relação. Agora, com relação à política, como um valor a recuperar, o processo de criatividade, não foi tão intenso e prioritário quanto foi com relação ao dinheiro que, como se refletiu acima, se incorporou à espiritualidade neopentecostal. A sua ressignificação no sentido de incentivar positivamente o fiel para o exercício da cidadania para além do compromisso com o espaço de pertencimento religioso, foi menos visível. Hoje, em se tratando de sua abertura a uma participação eleitoral, por exemplo, em que candidatos pastores se apresentem na disputa e os fiéis respondam positivamente a essa relação, tem sido um sinal de significativa mudança em termos de valor para com um âmbito em que, até o início da década de oitenta, não era expressivamente problematizado com interesse pela hierarquia eclesiástica dessas igrejas5. Se bem que, por essa época, o interesse maior que estava perpassando sistematicamente os cultos no dia a dia, não era um novo significado que deveria ter a política e sim, um novo significado que deveria ter a relação fiel-dinheiro-igreja, haja vista a grande adesão dos pobres aos três eixos fundamentais do discurso religioso evangélico: cura divina, exorcismo e prosperidade. A política foi se impondo em meio a esse processo como fator de importância, na medida em que a instituição religiosa lentamente avaliava que seu crescimento não poderia prescindir de sua representação em instâncias de significativa participação política, como àquelas que só por meio de eleição se é capaz de chegar. O reconhe Por exemplo, os “políticos de Cristo”, tipo ideal elaborado por Campos (2006, p. 46) para refletir a participação da nova geração de evangélicos na política toma como referência os anos 1990. O contexto era de fato de explosão do crescimento do pentecostalismo no Brasil.

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cimento dos neopentecostais a participação política por meio da eleição não custaria muito a chegar, como observado a seguir: A chegada desses novos pentecostais ao campo político foi precedida tanto pela criação de novas representações ideológicas, como por um descontentamento com as maneiras tradicionais de os evangélicos fazerem política no Brasil. Durante muito tempo, líderes pentecostais consideravam ‘suja’ a atividade política, denunciavam os ‘candidatos de porta de templo’, que apareciam apenas em épocas de eleições e que, depois de eleitos, se fechavam aos interesses das bases que os elegerem ou simplesmente fingiam atendê-las dando nome de seus mortos ilustres a escolas, praças e ruas. (...) Por isso, a IURD percebeu o potencial desse eleitorado que se mostrava cansado de ‘políticos profissionais (CAMPOS, 2006, p. 51).

A noção de política levada a cabo por evangélicos neopentecostais é construída sob a força representacional do demônio. A atividade política foi, durante muito tempo, considerada atividade “suja” porque também era atividade do demônio. A estratégia neopentecostal não deixa dúvida quando, por exemplo, ao buscar os responsáveis pelas dores e sofrimentos dos fiéis, não sinaliza para planos de governos, cenários internacionais, algum inimigo estrangeiro, rumos da economia etc., mas identifica o demônio como negação do progresso da fé religiosa, pois esta deseja um mundo inteiramente evangélico. Por isso, a conversão acontece para o interior da comunidade e o que fica de fora está sujeito à ação do maligno. O maligno povoa o universo cultural religioso e, sobretudo, o neopentecostal – clara demonstração de resistência ao mundo secular. Na década de 1990, o Bispo Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), apontava que a possessão demoníaca, além de estar ligada à questão do pecado, se revelava nas doenças, o que ainda se tem verificado como uma constante na vida cotidiana de muitos fiéis que chegam à igreja. À época o bispo apresentava uma relação que continha sinais de possessão, os quais, segundo ele, eram sintomas, há muito, identificados: 1. nervosismo, 2. dor de cabeça constante, 3. insônia, 4. medo, 5. desmaio ou ataque, 6. desejo de suicídio, 7. doenças cujas causas os médicos não descobrem, 8. visões de vultos ou audição de vozes, 9. vícios e 10. depressão. 103

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Seria, portanto, por intermédio do exorcismo, que toda essa situação teria que ser transformada, imprimindo uma saída por completo de quem vinha causando tantos atos de danação sobre o corpo, sobre a vida. Por tal razão, normalmente os pastores ainda insistem em afirmar, em suas pregações, que os médicos não conseguem entender o mal de que se sofre, pois este é de origem espiritual. E nas reuniões durante toda a semana, tem sido comum o pastor ordenar a todos que ali estão, a depositarem no altar seus pedidos por escrito, além de outros objetos como carteira de trabalho, resultados de exames de saúde, retratos, cartão de crédito, receitas de remédios, cópia de processos na justiça, cópia de pedido de aposentadoria, nomes de pessoas. Cada objeto correspondendo a alguma coisa a vencer ou a algum mal a derrotar ou, como o próprio pastor diz, “estão amarrados”. Todos os objetos dispostos no altar passam a compor uma identidade ritual cujo coração revela complexa relação afetiva que busca ligar seus donos uns aos outros, pois, mesmo objetos pessoais, carregam, em comum, o amargo gosto de vida que não prospera. Na existência das coisas, o diabo, conforme o discurso oficial da instituição, manifesta sua alma, por isso tranca a vida, ou “tranca a rua”. É preciso, então, destronar o “capeta” do poder que lhe é inerente. Dessa forma, política, não estaria de fora desse discurso e como realmente não esteve, basta lembrar a campanha presidencial de 1989: o “entusiasmo pela candidatura Collor não era apenas da IURD; todos os pentecostais, conforme registraram Mariano e Pierucci, encaravam Lula como a presença do próprio demônio, e Collor, o enviado de Deus para lutar contra a corrupção” (Cf. CAMPOS, 2006, p. 66). E o discurso da “demonização” se fez política e atingiu outros atores sociais dificultando mais ainda a noção de cidadania expressa pelos neopentecostais: a sua relação para com as religiões afro-brasileiras. A negação do outro no sentido do não direito a sua existência é revelador da impossibilidade do “conviver juntos”. Qual expressão neopentecostal que num cenário de pluralidade religiosa atual, ao perpassar o olhar em sua volta e, ao perceber tamanha diversidade de existências, pudesse satisfatoriamente dizer para si e para o outro, que podemos viver juntos? A demonização do outro, como se sabe, sempre se constituiu, na esteira do expansionismo religioso, em estratégia de aparecimento e crescimento de uma dada denominação. Assim, o diferente 104

Capítulo 4 – Religião, Dádiva e Cidadania

como diabólico não é algo estranho ao campo religioso. Não podemos, contudo, reduzir tudo acerca do neopentecostalismo a esse tipo de atitude. Ela é verdadeira, porém, não é o que predomina como estratégia dessa práxis religiosa na sua relação com o mundo. Há eixos significativos que poderíamos pontuar e que têm sido marcantes para também entendermos o avanço neopentecostal no Brasil. Citemos a título de exemplo, a questão da autoestima como algo forte e que se traduz de forma expressiva nas pessoas por se sentirem animadas pela nova forma e espaço de pertencimento em que elas agora estão. Um conjunto de pequenas frases de impacto, por exemplo, ser “mais valente do que o valente”; “você tem um guerreiro dentro do seu peito”; “Não se conforme com o seu salário” ou “Deus não quer o seu conformismo”; “não faça sua doação com tristeza, faça com alegria...” Tudo isso se traduz em testemunhos diário nos templos em torno da vida próspera que muitos têm alcançado. Isso repercute positivamente na vida de cada fiel e o faz acreditar em si e na vida. A questão da autoestima como possibilidade de alguém se soerguer ante uma situação de descrédito na vida pessoal, de infortúnios os mais diversos fortalece a experiência de pertencimento institucional, e produz abertura no indivíduo para que ele possa discutir o país em que vive e àquele do amanhã. O processo de ressignificação das coisas no espaço neopentecostal consolida o jeito de pensar dessa expressão religiosa. O universo religioso evangélico brasileiro, classificado nessa tipologia, fortalece a institucionalidade dessa experiência e congrega mais do que divide. Essa institucionalidade como algo de interesse dessas religiões passa, primeiro, pelo fortalecimento das teias linguísticas simbólicas, que precisam ser refeitas para uma melhor relação do fiel com o mundo, com a igreja, com Deus e com ele mesmo. O dinheiro, Deus, o mundo, a igreja, a política, a noção do bem e do mal que na experiência religiosa, sobretudo cristã, ao se constituírem em ícones significativos de poder, não se constituíram sempre símbolos positivos na vida interior das pessoas. O foco hoje, colocado nesses exemplos simbólicos deve-se a todo um processo de desgaste sofrido pelos mesmos em decorrência de uma práxis religiosa centralizadora, autoritária e violenta com Deus, o mundo e as pessoas. O desapego institucional, por exemplo, verificado no campo católico, explica-se pela constituição de uma 105

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práxis religiosa em que o simbólico concebido violou o real. No pentecostalismo evangélico tipo o da Universal do Reino de Deus ou da Internacional da Graça de Deus, os fiéis não se veem agredidos, mas defendidos. Deus, por mais exigido que seja quanto ao cumprimento de suas promessas, não é visto e nem entendido como um sagrado violentado só porque o fiel é levado a entender que é d’Ele todo ouro e toda prata. Esse processo de ressignificação parece muito estratégico, em face de uma conjuntura de sociedade que nós estamos vivendo, e de campo religioso em permanente confronto, por conta de toda uma perspectiva de expansão, crescimento e desenvolvimento institucional. Outro eixo importante da práxis religiosa neopentecostal, e que não foge à estratégia desse processo de ressignificação, é a utilização do espaço midiático que as Igrejas têm de fato ocupado. Fundamentalmente no rádio e na TV, mas não necessariamente numa perspectiva de conversão, mas de adesão às sugestões de rituais simbólicos que são veiculados pelos programas que apresentam. Sabemos que a cultura no Brasil do ponto de vista da sua relação com a televisão, é de que ela traz uma verdade muito importante sobre assuntos diversos. É uma relação de crédito que o povo tem com a televisão que chega a um grau significativo de verdade à cerca das coisas. Algumas emissoras gozam de uma imagem tão positiva quanto ao compromisso com a verdade que dizem veicular, que chegam a mobilizar o telespectador à sua opinião. O colorido das imagens límpidas contribui para uma hipnose coletiva. Isso também fortalece o grau de confiabilidade e de verdade. A verdade vem da luz, do som e da imagem. As Igrejas que estão ocupando esse espaço entram com seu púlpito dentro das casas no dia a dia das pessoas. O programa religioso lança sua verdade por meio dos rituais e mobiliza o fiel dentro de sua própria casa. Não é preciso o templo. Como no cristianismo primitivo, a casa é o próprio templo, com uma diferença: quem preside é a virtualidade. A imagem faz o real. O copo d’água ao lado da televisão, não é menos verdadeiro que a imagem. A força que o pastor aciona por meio da “telinha” parece ter o mesmo efeito dos céus que se rasgam quando do batismo de Jesus. O simbólico midiático é de luz, som e imagem, tal qual a força do imaginário dos antigos evangelistas. O que é solicitado do ouvinte, do telespectador é que se consuma a verdade simbólica que se oferece. 106

Capítulo 4 – Religião, Dádiva e Cidadania

Por fim, o eixo da participação. Da participação política-eleitoral na escolha de candidaturas que agrega a comunidade evangélica de uma determinada localidade à participação em marchas, campanhas pela paz e contra a fome. Essa visibilidade dos evangélicos pentecostais e neopentecostais sinalizam uma conquista no espaço público-político. Mesmo que essa novidade esteja sob o controle dos pastores por meio do discurso e da forma de organização, demarca uma posição diante da realidade não muito comum se levarmos em conta que, no dia a dia do pertencimento religioso, os fiéis focam sua preocupação mesmo na busca por resolução de coisas imediatas, como exorcizar o demônio que impede a vida de prosperar. A cidadania evangélica neopentecostal é a luta por prosperidade. Esse é o lastro por sobre o qual se estende a bandeira de uma religião que, para fugir do determinismo de uma imagem de um Deus inerte, o ressignificou para compor o novo tempo: poderíamos apontar, exemplificando certa diversidade de representações acerca do divino, as quais, sabemos, estão subjacentes à prática sociorreligiosa do neopentecostalismo e que circulam por todo esse campo religioso: “Um Deus guerreiro”; “Deus como provedor de bênçãos e de sucesso”; “Dono de todo ouro e toda prata”; “Um Deus de posse”; “Deus que exige prova e sacrifício”; “Deus de tudo ou nada”; “Deus do altar”; “Potência que restitui a oferta”. Essas múltiplas imagens sugerem um deus de força, de prova e de poder; a sua invocação mobiliza o fiel ao seu encontro. A representação de um deus a exigir “mobilidade” requer que o fiel não meça o tamanho do sacrifício a fim de desfrutar do propósito divino: entre outras coisas, restituir graças aos fiéis, conforme suas ofertas. Dar, receber, retribuir configuram o sistema que mobiliza, faz circular, que exige, por exemplo, do indivíduo integrante do círculo sair de si e participar. Há, por certo, uma construção social da ideia de Deus na experiência neopentecostal, mas o indivíduo, na sua experiência, deve estar motivado para cultivar a representação que, primeiro, não se coloque equidistante do laço coletivo e, segundo, o direcione a tomar iniciativa na busca de seus propósitos. O “espírito de guerra” sugere a representação de Deus moldada pela instituição, que requer, da parte de quem n’Nele, crê, um lançar-se aos desafios paulatinamente propostos. A escolha fundamental, ante a força dessa imagem, é derrotar o inimigo que impede a circularidade do 107

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dom, pois “dar” é a arma estratégica para libertar quem está tomado pela dúvida e desconfiança e, ao mesmo tempo, liberar em Deus os frutos de sua posse, que são abundantes. Dar, ato primeiro deixa, como dívida nas mãos de quem recebe, a possibilidade concreta de transpor certa distância, de pôr fim ao estranho e passar a compor um vínculo que vai sendo mantido pela forte presença de quem, mediante do dom, também dá de si mesmo. Isso acontece com a oferta de um sacrifício ou de simples oração. Dar é entregar-se à força do círculo. Em experiência religiosa em que a representação de Deus sugere “disposição” e “luta”, não se pode continuar vivendo sob a força de uma inércia a impedir transpor-se o abismo imposto pela distância, impossibilitando de se ver que o fundamento de nossa existência reside em dar para que o outro dê. Trata-se, portanto, não só de uma questão antropológica, mas também sociológica, porque um dos pressupostos para nossa existência é a relação. Isso porque “dar para que o outro dê” é uma das linhas que costuram o vínculo social, ao mesmo tempo em que, quando este se rompe, é por aquela cerzida. Assim, a imagem de um “deus guerreiro” que o fiel neopentecostal tem dentro do peito o mobiliza a agir em prol de si ou de uma coletividade afetiva, como a família. Esta é apresentada como experiência de base para efetivação de sujeitos que se confirmam mutuamente, sobretudo porque aí, por meio da dedicação amorosa vivenciada, “os sujeitos se sabem unidos no fato de ser dependentes, em seu estado carencial, do respectivo outro” (HONNETH, 2003, p. 160). É muito comum, entre os neopentecostais, a família aparecer como referência mais significativa nos pedidos de bênçãos6. Ser crente significa sê-lo também na família, prevenindo-a da mais indesejável situação: chegar ao “fundo do poço” 7. Machado, (1996, p. 87), a propósito de “Conversão e adesão religiosa: justificativas e conseqüências”, lembra uma hipótese plausível que norteia reflexões acerca dos efeitos da conversão ao Pentecostalismo nas relações intrafamiliares no Brasil: “a influência positiva da conversão a este tipo de expressão religiosa sobre a vida familiar, diminuindo os conflitos e consolidando este pequeno grupo social”. Essa hipótese observa a autora, “pode ser encontrada no trabalho de Willems (1967), cujo argumento central é o de que as orientações morais e padrões de comportamento estimulado pela doutrina pentecostal se afastam muito da tradicional divisão de papéis na família, fortalecendo a posição da mulher e atenuando o comportamento aventureiro dos homens”. A nossa questão, porém, não é a conversão, mas a força da representação que se verifica após a mudança de concepção de Deus, através do qual a relação com o mundo, com as pessoas, com as coisas parece mais eficiente hoje, haja vista forte recuperação da autoestima e do desejo como segredo essencial e atuante da religião. 7 Expressão muito usada nas reuniões evangélicas neopentecostais, para dizer sobre a situação de um determinado fiel que ali chegara antes das conquistas. O “fundo do poço” é caos, por exemplo, econômico-financeiro na vida individual ou nos negócios, caso seja um pequeno ou médio empresário; o desespero familiar como consequência de frequentes desajustes ou rompimentos. Esse testemunho é representativo da incapacidade de dar, pois a posse e o usufruto de realidade material mínima estão trancados nas mãos de forças demoníacas. Tal condição degradante de vida precisa, urgentemente, ser resgatada. A Igreja mostrará o caminho e Deus proverá com suas bênçãos, ao abrir as portas dos céus e derramar, com abundância, suas bênçãos. 6

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Capítulo 4 – Religião, Dádiva e Cidadania

Disso tudo acima refletido, concluímos que, a cidadania é uma construção permanente que se dá por meio de nossa ação em combate, também permanente, contra qualquer tipo de ação e atitude que negue a vida, o direito, a liberdade bem como tudo aquilo que já foi conquistado com muita luta e sacrifício. Para isso, é preciso, então, ter bem claro, no nível da consciência, o direito e o dever de ser cidadão. E mais que isso. Exercer tudo isso participando ativamente de diversas formas de organização da sociedade – e a religião é uma dessas formas de organização da sociedade e que a esta se abre e se oferece – mas sempre numa perspectiva libertária, que sempre foi a perspectiva histórica do processo de construção do que hoje denominamos por cidadania. Assim, nos percebermos como membros ativamente solidários, seria antes de tudo, nos deixarmos esvaziar das formas diversas e simplistas de interesses egoístas, para se abrir sobre a diversidade de razões para se produzir vínculos e solidariedade.

Referências BURITY, Joanildo A. Redes, parcerias e participação religiosa nas políticas sociais no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2006. CAMPOS, Leonildo Silveira. “De políticos de Cristo: uma análise do comportamento político de protestantes históricos e pentecostais no Brasil”. In: BURITY, Joanildo A.; MACHADO, Maria das Dores C. (Orgs.) Os votos de Deus. Evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana. 2006. HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007. HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003. LAVALLE, Adrián Gurza; CASTELLO, Graziela. Associativismo religioso e inclusão socioeconômica, Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 68, março, 2004. 109

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MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas: Anpocs, 1996. MOUFFE, Chantal. “Religião, democracia liberal e cidadania”. In: BURITY, Joanildo A.; MACHADO, Maria das Dores C. (Org.) Os votos de Deus. Evangélicos, política e eleições no Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana, 2006.

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Parte 2 Religião, Cultura e Pluralismo

Capítulo 5 Religião e Cidadania: alguns problemas de mudança sociocultural e de intervenção política Joanildo Burity1*

Introdução O título deste capítulo, Religião e Cidadania, sugere um tema extremamente genérico, muito mais guarda-chuva do que propriamente sinalizador de alguma coisa. Assim, reclama um exercício de delimitação e precisão. Uma primeira maneira de cercar a temática seria perguntarmo-nos: o que atores religiosos estariam fazendo no campo da promoção da cidadania? Hoje, quando tantas instituições da sociedade civil e mesmo organismos governamentais, agências multilaterais, etc. promovem e assumem ações nessa área, o que aconteceria no campo religioso? Como estaria a movimentação dos atores religiosos, quais as iniciativas, as ações no sentido de imprimir algum tipo de prática transformadora, ou não, nesse campo das práticas cidadãs ou da promoção da cidadania? Naturalmente, a própria discussão do que entendemos por cidadania já começa a entrar em jogo aí. Quando todos dizem que fazem alguma coisa para promover a cidadania, nós já temos uma inflação de significado do termo “cidadania”, que se torna passível de questionamento, e que sinaliza para algo que é muito comum no campo social e político: à medida que determinados termos ganham aceitação – ou tornam-se objeto de contestações múltiplas – e passam a ser invocados ou disputados por todos, o preço que eles pagam por isso é sofrerem um esvaziamento de sentido preciso, uma desliteralização (metafórica, metonímica, catacréstica, etc.). Isso pode ser também muito produtivo em determinadas circunstâncias. Exatamente * O autor agradece ao CNPq pela bolsa de pesquisa que viabilizou a realização deste trabalho.

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por se tornarem significantes tendencialmente vazios é que podem juntar demandas, expectativas, grupos e pessoas tão diferentes entre si. O fato de que são capazes de atrair tantas e tais adesões não decorre, nesta perspectiva, de sua riqueza de significado, mas exatamente de sua rarefação. Quanto mais se esvaziam de um conteúdo estável, preciso, maior a capacidade de significantes como “cidadania” se expandirem socialmente e, por meio de uma agência hegemônica, virem a nomear um campo de práticas ou um projeto de sociedade. Isto se dará por meio de distintos processos: a articulação de distintos sentidos/demandas/projetos sob um significante “representativo” dos mesmos; a agregação de sentidos em torno de um tal significante em função do efeito antagonístico produzido por outros significantes; a disputa pelo “real significado” ou pelo sentido mais “apropriado” por parte de atores sociais concorrentes de um dado significante com o qual se percebem identificados; a oscilação de sentido de determinados significantes, em função dos contextos em que se posicionam, abrindo-se a diferentes e mesmo contraditórias interpretações; etc. Assim, esvaziamento de sentido literal e articulação de significados díspares são dimensões ou etapas no processo de generalização de determinados significantes e, necessariamente, de discursos nos quais eles cobram lugar e sentido. São parte de processos de construção de hegemonia que estabilizam por um tempo e em certa medida a flutuação ou o deslizamento de sentidos “por baixo” de determinados significantes. Isto não implica um juízo necessariamente favorável ao que resulta: é possível que a articulação de sentidos em torno do significante “cidadania”, ou melhor, a articulação de um discurso sobre a cidadania, em meio a variadas inscrições de cidadania em distintos discursos, produza resultados politicamente conservadores. Estimulem distinções entre “incluídos” e “excluídos” como afirmações do que é admissível, legítimo, agregador em contraposição ao que é inadmissível, ilegítimo, desagregador. Delimitem um “nós” que se afirma pela discriminação ou perseguição aberta a outros vistos como “impuros”, “infiéis”, “imorais”, “indignos de viver”. E assim, “cidadania” pode autorizar violação de direitos, intolerância, xenofobia, racismo, etc. Por outro lado, seria compreensível pelo menos admitir que, à medida que se propaga, recebe adesões, mobiliza, delimita posições, um discurso nucleado em torno de um significante (como “cidadania”) desloca, altera 114

Capítulo 5 – Religião e Cidadania: alguns problemas de mudança sociocultural e de intervenção política

significados originais. Não há repetição, ainda que do mesmo significante, que não receba um suplemento de sentido, em função do novo contexto, sistema ou discurso no qual se constitui. E, como bem desconfiava Rousseau, o suplemento tem uma teimosa tendência a substituir aquilo que complementa. Em outras palavras, sentidos novos podem – se inicialmente complementar a aplicação de um significante – tomar o lugar de outros significados. Surgem daí definições novas (em relação ao contexto em que surgem, nunca em absoluto), pela reativação de sentidos anteriormente abandonados, pela ascensão de sentidos antes subordinados ou secundarizados, pela interação com significados antes estranhos à “órbita” do significante e seu contexto “de origem”, pelo efeito de desestruturação ou redefinição produzido por crises e desafios interpostos por outros contextos2. Assim, colocar a questão em termos da emergência de certo discurso sobre a cidadania que interpela atores religiosos ou é interpelado a partir destes seria já uma primeira ordem de discussões. Uma outra forma de colocar a relação seria: uma vez que instituições da sociedade civil se propõem a promover a cidadania, temos, no mínimo, a possibilidade de um deslocamento em relação à definição clássica (liberal) de cidadania, que é vista como titularidade de direitos que só podem ser assegurados pelo Estado. Então, esta concepção clássica, nas últimas décadas, praticamente foi para os ares com a enormidade de coisas feitas em nome da cidadania. A própria referência estatal do discurso se diluiu muito, e não só no Brasil. De um lado, a promessa da cidadania estatal, da garantia de direitos civis e políticos, defrontou-se com a massiva evidência da exclusão social – miséria, violência, ineficiência e baixo alcance dos serviços públicos – e do ataque neoliberal à própria ideia de gasto social estatal – por sua suposta crônica ineficiência, corrupção, ou pela rejeição do princípio da taxação para fins de provisão social. Os efeitos cruzados desse legado de desigualdades, com sua intensificação em decorrência da nova doxa pro-mercado dos anos de 1990, geraram descrédito ainda maior na capacidade de o Estado funcionar como referência de justiça e igualdade para todos, e contribuindo para um deslocamento do discurso da cidadania como Toda esta forma de raciocinar é tributária de elaborações oriundas da desconstrução e da teoria do discurso, associadas respectivamente às obras de Derrida, e Laclau e Mouffe. Para não multiplicá-las, e estender-se em referências que nos tomariam espaço não-disponível nos limites deste ensaio, remetemos à consulta desses autores, particularmente: Derrida (1990; 1995); Laclau (1993; 2005); Mouffe (1993).

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contraposição a sua circunscrição à esfera estatal – particularmente no sentido de governamental. De outro lado, a noção de cidadania extrapolou o Estado como lugar de realização. Organizações multilaterais, não-governamentais (internacionais e nacionais) e associações locais, ecoando discursos acadêmicos e políticos, assumiram e difundiram ideias de cidadania apoiadas nas noções de sociedade civil, ação social local e direitos coletivos e de grupo. Não se trata apenas de uma questão de deficiência ou banalização na maneira como pessoas e instituições passaram a entender o termo cidadania, mas propriamente uma mudança na forma de intervenção e de ação da sociedade civil que ampliou o conceito de cidadania para além da sua referência estatal. Aí, a ideia de afirmação e ampliação de direitos, e não somente de ter direitos reconhecidos e assegurados, torna-se um referencial importante3. O outro lado dessa moeda, que me parece também bastante desafiador, é perceber os atores religiosos afirmando a sua cidadania, ou seja, afirmando-se como atores-cidadãos. Novamente, de forma transformadora ou não, porque algumas dessas expressões de autoafirmação como cidadãos por parte de grupos religiosos se fazem em moldes em que o caráter corporativo dessas intervenções e afirmações é muito forte. Então, muito mais do que simplesmente mapear o que está acontecendo, temos nos deparado, em várias situações, com uma série de problemas, não só para os estudiosos do tema da religião, mas que também, no cotidiano nas suas práticas, os próprios atores enfrentam. Na abordagem do tema religião e cidadania, porém, gostaria de focar sobre o impacto nas instituições políticas que a presença de novos e velhos atores religiosos têm tido nesses últimos anos. Há, por exemplo, uma série de transformações que vêm acontecendo nas últimas duas décadas no campo das relações entre Estado e Sociedade Civil. Desde o governo de Fernando Henrique Cardoso isto se acentuou muito, no sentido de o Não se tratou de um processo unívoco. Parte dessa redescrição da ideia de cidadania a aproximou de uma concepção de virtude cívica e responsabilidade dos cidadãos pelos destinos da comunidade política (orientação republicanista), outra aproximou cidadania da noção de consumidor, através da interpretação segundo a qual ao pagar impostos, o cidadão estabelece um contrato de prestação de serviços com o Estado, e se comporta como consumidor de bens e serviços. Estas visões estiveram em confronto desde os anos de 1990, mas houve muitas convergências entre elas, cuja exploração não pode ser feita nos limites deste trabalho. Remetemos a algumas interpretações do fenômeno em Telles, 2006; Burity, 1999, 2001a; Dagnino, 2002; Dagnino, Olvera e Panfichi, 2006; Scherer-Warren, 2007; Gohn, 2007.

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Estado se declarar cada vez mais impotente para dar conta de algumas de suas funções tradicionais, seja porque não desejava mais fazê-lo, seja porque avaliava que não tinha mais condições para dar conta de todos os problemas e de todas as demandas que se colocavam para sua solução, numa escalada de mobilização social feita em nome da democratização ou da cidadania (BURITY, 2005; 2006a). Quando se propôs a fazer4 algo na direção da “ampliação”, do “resgate”, da “garantia” da cidadania, o Estado propôs insistentemente o estabelecimento de parcerias com a sociedade. Isto tanto aconteceu no sentido de experiências improvisadas, como na direção de se constituírem novas entidades jurídicas. Mudanças na legislação aconteceram, como, por exemplo, o Marco Legal do Terceiro Setor, que trouxe à luz uma forma de organização social que não tínhamos antes5. As instituições de utilidade pública, as instituições de caridade, as ONGs mesmo, são formas de organização social juridicamente distintas das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIPs, que surgiram com essa mudança de legislação. E apesar de a Lei das OSCIPs reafirmar a ideia laica do Estado, impedindo que fossem feitos termos de parcerias diretamente entre o Estado e entidades religiosas, muitas instituições claramente religiosas celebraram termos de parceria com o Estado, no entendimento de que juridicamente elas eram instituições de direito privado, laicas, etc., ou eram mantidas por instituições religiosas, mas elas próprias não eram Aliás, é significativo que a guinada nas políticas estatais se tenha dado em nome de um fazer em detrimento do debate ideológico. “Gente que faz” era um moto conhecido na segunda metade dos anos de 1990, para sugerir que as pessoas não precisavam esperar pelo estado, deviam “fazer a sua parte”. Nesta conjuntura, cresce a impaciência diante de discursos sobre modelos e projetos de futuro, ou discursos de transformação macro, insistindo-se no fazer – uma oposição clássica entre palavras e ações aqui tomava o sentido de uma oposição entre ideologia/imobilismo/incompetência e capacidade de gestão/ação/competência. O discurso da gestão, como discurso do fazer, é uma marca importante da nova conjuntura ideológica que governou a redefinição das relações entre estado e sociedade desde os anos de 1990. Bem entendido: tratou-se de um duro debate político sobre o sentido do fazer: construir novos mundos ou administrar processos e pessoas dentro de uma lógica de adequação ao mercado capitalista e sua cultura. Não estamos falando de gente operosa se confrontando com gente ociosa, nem com um fazer sem discurso (“ativismo”) contraposto a um discurso sem fazer (“ideologia”). O ideológico está, aqui, em toda parte. Tampouco estamos falando de batalhas de ideias apenas. O que havia era um antagonismo de práticas diferentes. 5 As duas principais referências nesta direção são a Lei n. 9.637, de 15 de maio de 1998 (Organizações Sociais-OS) e a Lei n. 9.790, de 23 de março de 1999 (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público-Oscip). Por meio dela, previa-se, no caso das OS, que entidades de direito privado com fins públicos/comunitários se vinculassem por meio de contratos de gestão a alguma das instâncias do Poder Executivo. No caso das Oscip, previa-se a viabilização de parcerias público-privadas entre Estado e organizações civis, sem alteração da natureza ou composição que quaisquer das partes, senão pelas regras mutuamente pactuadas para a transferência de recursos públicos do primeiro àquelas últimas. Tais leis visavam a refundar o tipo de vínculo entre Estado e sociedade que a lei de utilidade pública (1935), até então regulamentava, num aceno à maior flexibilidade e maior responsabilização, no interesse da eficácia da ação pública, num contexto de crescente questionamento da provisão social direta por parte do Estado. O Ministério da Administração Pública e Reforma do Estado, sob Luiz Carlos Bresser Pereira, e o Conselho da Comunidade Solidária, sob Ruth Correia Leite Cardoso, foram os principais espaços de concepção e formulação dessas propostas. Uma análise da trajetória do debate, por uma das assessoras da Comunidade Solidária, encontra-se em Ferrarezi, 2001. 4

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promotoras de práticas e rituais religiosos específicos, no âmbito de suas normas de funcionamento6. Então, essas ficções jurídicas que ajudam a resolver certas dificuldades estão presentes ali na Lei das OSCIPs (e não se restringem a organizações religiosas). De outro lado, as OSCIPs são o tipo de organização da sociedade civil que o Governo quer ter do seu lado. Diferentemente de outras organizações, que queriam ou estabeleciam uma relação mais crítica, mais tensa com o Estado, o modelo das OSCIPs não leva a isso, porque no modelo das OSCIPs o Estado transfere um conjunto de atividades para uma instituição, paga por isso e avalia ou acompanha a implementação desses projetos. Ou, às vezes, o Estado lança um concurso de projetos e seleciona aquelas instituições com quem quer trabalhar. Aparentemente, estes desdobramentos não teriam nada a ver com o tema da religião e, no entanto, por meio desse processo, dessas mudanças no plano da relação entre o Estado e a sociedade civil, certo credenciamento das instituições religiosas de novo como interlocutores do Estado (BURITY, 2006b; 2007). Por quê? Porque nesse modelo de relação estado-sociedade o perfil de instituições que atuam de uma maneira socialmente crítica, politizante, não é exatamente o que interessa ao Estado (entendido aqui como governo). O modelo de política social que passa a prevalecer até 2002, sofrendo algumas, não decisivas mudanças de sentido desde então, é um modelo de política social em que não há muita diferença, por exemplo, entre uma ação focalizada do Estado para transferir renda para uma determinada família ou uma ação caritativa de distribuição de bens, de roupas, de remédios, serviços de saúde e educação de pequena escala, que, já sabemos, as instituições religiosas classicamente fazem. O que se percebe é como muitas instituições laicas, antes muito críticas do “assistencialismo”, também começam a fazer isso. Outro lado desse processo é o efeito da mudança demográfica no campo das religiões sobre essas parcerias entre Estado e sociedade7. Esse No momento de fechamento deste trabalho (2009), há 5.032 entidades qualificadas pela Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça. Dados do IBGE de dezembro de 2007 indicavam que das 6.932 entidades inscritas no Conselho Nacional de Assistência Social, 2.629 (38%) eram qualificadas como Oscip e 4.065 (58,7%), como OS (IBGE, 2007). Considerando-se que apenas 6 entidades foram qualificadas como Oscip, no primeiro ano da nova lei, o crescimento é exponencial. Uma busca no cadastro do Ministério da Justiça (http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ59319A86PTBRIE.htm) mostra um dado curioso sobre as Oscips: apesar de a legislação básica proibir que pertençam a religiões, pelo menos 39 ostentam no seu próprio nome qualificativos como “cristã”, “evangélica”, “espírita”, etc. 7 Sobre a ideia de mudança demográfica no campo religioso, fundamentalmente expressa no crescimento dos evangélicos, cf. BURITY, 2006b, p.25-55. 6

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mesmo discurso de que o Estado não conseguia “chegar” ali onde precisava, nas regiões mais longínquas ou de mais difícil acesso, nas periferias urbanas, ou um pouco por toda parte quando a questão se referia à violência, também passa a identificar nas igrejas (ou, como se passou a dizer no registro “multicultural” dos últimos dez anos, nas religiões), nas organizações religiosas, a capilaridade8, a distribuição pelo território que permitiria, através delas, de uma rede que começaria nos ministérios, secretárias de estado ou municipais e suas áreas de assistência social, de educação e cultura, etc., chegar lá na ponta, aos cidadãos9. Além da noção de capilaridade, havia a leitura de que tais instituições têm uma credibilidade ou legitimidade social de que o próprio governo não desfruta. As pessoas acreditam que se uma ação for proposta ou implementada por meio dessas instituições é para valer, enquanto que, quando o governo “chega”, o faz de cima para baixo, ou mediante relações de favoritismo, de clientelismo, excluindo ao mesmo tempo em que se propõe a incluir. Qual o cálculo estratégico aqui? O de que a credibilidade conferida às instituições religiosas, para nos atermos ao tema de nossa discussão, reforce a ação estatal, ao se tornarem nós numa rede que ligaria o Estado ao cidadão. Um terceiro aspecto dessa mudança demográfica refere-se a quem é o principal ator emergente: os evangélicos, e dentre estes, fundamentalmente, os pentecostais. Daí provém um acentuado protagonismo político que se justificou, explicitamente, pelo novo peso de que esta minoria religiosa se via possuidora desde meados dos anos de 1980. Peso social, decorrente de seu crescente número, e peso eleitoral, dada a sua capacidade de construir Minucioso estudo do IBGE sobre a situação das entidades sem fins lucrativos (fundações, associações e organizações religiosas) de 2002 a 2005 apontou que 24,8% (83.775) de todas as entidades existentes se apresentam como possuindo fins estritamente religiosos. Trata-se do maior grupo individual de entidades e o relatório admite que o número é possivelmente bem maior, em vista de que muitas das entidades classificadas a partir de outros fins possuem origem ou vinculação religiosa (cf. IBGE, 2008:26-27). Segundo o relatório, “No exercício de 2005, foram criadas 3.242 instituições religiosas o que significa 21,2% do total de entidades criadas nesse ano” (Idem, p.29). Do total de entidades religiosas, 57,86% estavam no Sudeste, 15,69% no Sul e 13,5% no Nordeste. Embora haja uma significativa redução comparados os dados de 2005 com os do período até 1980, quando as entidades religiosas representavam mais de 38% do total, permanece o dado de que, 25 anos depois, ainda se mantêm como maior contingente do associativismo sem fins lucrativos no país. Remetemos ao estudo para uma avaliação mais detalhada de vários aspectos do quadro. 9 Mais uma vez, atenção às palavras: “chegar lá, na ponta”, traduz a consciência da distância horizontal entre o aparato estatal e o alcance político-cultural de suas ações, procedimentos administrativos e jurídicos, bem como da própria noção de império da lei (marco da concepção liberal do estado de direito). Traduz também a distância vertical entre o Estado e os cidadãos, gerando diferentes hierarquias, e se desdobrando entre os que possuem constitucionalmente esta titularidade, mas não a tem garantida por sua condição de gênero, étnico-racial, etária, por sua localização na distinção rural-urbano ou na repartição – bem se poderia dizer apartação – dos espaços urbanos entre núcleos de inclusão e vastas áreas de exclusão. 8

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uma efetiva representação parlamentar em todos os níveis. Inicialmente alvo de polêmicas e reações desconfiadas da elite secular e da religião majoritária, o catolicismo, e talvez por serem tão diferentes entre si que permitiam distintas formas de diálogo e articulação, os pentecostais passam a ser procurados, e todas as eleições desde 1986 e em muitas das ações sociais governamentais propostas desde 1995. No Rio de Janeiro, temos um claro exemplo deste protagonismo. O programa Cheque Cidadão, que vigorou de 1999 a 2006, foi iniciado no governo de Anthony Garotinho, um evangélico não-pentecostal que, no entanto, cedo soube trazer para junto de si importantes grupos pentecostais, notadamente a Assembleia de Deus (MACHADO, 2006, p. 59-61, 117-20; CAMPOS, 2005, p.75-81). O desenho do programa já institucionalizava a relação com a religião. As Igrejas, principalmente da Assembléia de Deus, num primeiro momento, e depois organizações religiosas num sentido mais geral, eram as principais intermediárias na implementação do programa, uma vez que funcionavam como lugar de cadastramento e distribuição dos cheques. Mensalmente, havia uma reunião que combinava uma espécie de ritual cívico-religioso, que incluía uma oração de agradecimento e uma preleção ou pregação, ainda que não pudesse haver nenhum chamado à conversão. As pessoas beneficiadas podiam não ir a este ato, embora tivessem que ir às sedes das referidas organizações para receber o benefício. Apesar de ser muito desigual a proporção entre igrejas evangélicas e outras organizações religiosas (paróquias católicas, terreiros de candomblé, centros espíritas, etc.) entre os parceiros do Estado, com o passar dos primeiros anos, ainda no governo Garotinho, começou-se a ter essa preocupação de que a política pública realizada pelas organizações religiosas não fosse uma relação flagrantemente privilegiada entre o Governo do Estado e os evangélicos, particularmente os pentecostais da Assembléia de Deus. Então, o programa Cheque Cidadão é um caso muito emblemático, ainda que não necessariamente o mais virtuoso (BURITY, 2007, p.78-80). O que quero salientar, entretanto, não é que seriam agora os pentecostais que realizariam a “política social” dos evangélicos. Refiro-me à percepção que se tem, nos círculos de militantes sociais e agentes governamentais, de quem são esses novos atores religiosos. Em ONGs entrevistadas, em agência governamentais, conforme apurei em pesquisa empírica no Rio Grande do 120

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Sul, no Rio de Janeiro e em Pernambuco (BURITY, 2007), quando se fala de novos atores religiosos, fala-se essencialmente de pentecostais. O que é diferente de identificarmos quem realmente está atuando no campo das ações sociais de organizações religiosas. Aí, as organizações criadas e mantidas pela Igreja Católica, as pastorais sociais, as organizações criadas e mantidas por Igrejas protestantes históricas, são claramente predominantes. O que dizer da cultura? Primeiro que, do lado das políticas sociais e das políticas culturais, passa-se a assumidamente explicitar o caráter plural do Brasil. O Brasil é um país multiétnico, plurirreligioso, multicultural10. Abundam os signos da multiplicidade: “pluri-”, “multi-”, “diverso”, etc. No discurso oficial (de governos e organizações sociais e empresariais), o tema da diversidade abunda. Valoriza-se a diversidade, que é sempre positiva. Esse processo de pluralização, que tem várias dimensões11, mas em relação à que recolho aqui, a da pluralidade cultural, é ambíguo. Ele tem um caráter despolitizante, na medida em que a interação mais intensa entre governo e sociedade civil, amortece a tensão entre os dois campos, incorpora a segunda na lógica da governamentalidade12, e desautoriza a explicitação do conflito para além do dissenso canalizado nos espaços institucionais. A lógica de funcionamento do Estado demanda muito de formalização dos procedimentos, atendimento a exigências de relatórios, de prestações de conta, deferências institucionais, etc. Por outro lado, da parte das organizações, a ideia de que se estão conquistando alguns espaços de interação que são vistos como espaços da sociedade civil, mesmo quando eles são institucionalizados dentro do Estado, demanda uma espécie de aprendizado novo de como atuar naqueles espaços. Esse aprendizado novo diverge bastante da cultura organizacional de onde essas pessoas vêm. É ainda parte dessa mesma conjuntura o foco colocado cada vez mais na Para tanto, basta que se consultem os sites das áreas de cultura, turismo e de políticas diferenciadas para mulheres, pessoas negras e povos indígenas, em nível federal, estadual e municipal nos três estados pesquisados, bem como documentos oficiais a respeito da diversidade e das políticas de ações afirmativas. 11 Explorei a questão da pluralidade e do pluralismo em BURITY, 1997; 2005; 2006b, p.25-69. 12 Utilizo o termo em seu sentido foucaultiano e não quero dizer “governabilidade”. Esta última é apenas uma das acepções do conceito de governamentalidade, e mesmo assim, no jargão cotidiano da política brasileira, está associada à disseminada prática de montagem de alianças heterogêneas e instrumentais para a complementação das exigências quantitativas de formação de maiorias governamentais. Governamentalidade, por sua vez, vai numa direção mais profunda, de uma crescente expansão da atividade de gestão do social, seja em sua forma estatal, seja não-estatal, em muitos sentido desfazendo as fronteiras entre público e privado, por meio de ações regulatórias ou da produção de saber que Foucault designou como biopoder ou biopolítica. A governamentalização do estado e da sociedade, embora um processo de longa duração na perspectiva foucaultiana, assume características específicas nas últimas décadas (cf. FOUCAULT, 1992, 2006; BURCHELL, GORDON e MILLER, 1991; VEIGA NETO e LOPES, 2007; BURITY, 2006d). 10

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gestão, na competência gerencial, na eficiência do gasto, na efetividade das ações, do impacto, etc.13 Então, há uma tendência de despolitização dos assuntos públicos, mas também uma percepção de que não podemos mais trabalhar com um modelo de política pública em que existe, de um lado, “o” cidadão, pura e simplesmente, no singular, sem gênero, sem etnicidade, sem religião, sem cultura regional, local, sem sotaque, etc. e, de outro lado, o Estado, universal e neutro em relação às diferenças. Uma tendência despolitizante representada pela articulação do discurso da diversidade com o da eficiência gerencial, mas em tensão14 com um perceptível aumento da interação entre estado e sociedade civil, de um lado, e da reflexividade dos atores em diferentes níveis quanto ao conteúdo político de sua atuação. Despolitização, portanto, perceptível não em absoluto, mas em relação aos processos de politização vivenciados nos anos de 1970 e 1980, como resposta a estes15. Na compreensão de cultura, nesses ambientes e nessas ações tão ciosas da “diversidade”, o que predomina é a noção de entretenimento. De cultura como expressão lúdica, como expressividade artística de vivências comunitárias ou subjetivas. Muitos dos projetos sociais que fazem ou que trabalham com a cultura na verdade promovem atividades como: oficinas de percussão, aulas de expressão artística, de pintura, música, dança, artesanato. Enfim, a ideia de cultura como modo de vida, como lastro material e imaterial da identidade de um grupo ou de uma comunidade, aparece muito mais claramente em movimentos de caráter étnico, como o indígena e o negro, do que na maior parte desses projetos que afirmam trabalhar com “cultura”. Em alguns casos, a elaboração dada à cultura chega apenas ao ponto de reservar um momento celebrativo que acontece dentro de um cronograma de atividades sociais da organização ou do projeto. Promove13 Avaliações desta dinâmica podem ser encontradas em Dagnino, 2002; Dagnino, Olvera e Panfichi, 2006. 14 Pois, via de regra, estamos diante de uma disputa hegemônica – o que quer dizer que os contendores compartilham um espaço comum de disputa – e não de uma contestação polarizada. Mesmo opositores ferrenhos aceitam jogar os jogos da representação e da alocação de recursos nas políticas públicas. Disputam, portanto, concepções de gestão, concepções de política pública, e não tanto concepções radicalmente descontínuas de sociedade. 15 Discuti criticamente a tese do esgotamento do político (como elemento explicativo para a emergência pública dos atores religiosos), em Burity, 2006c, p.180-89. A despolitização de que falo acima pode ser vista como um sinal de crise da política institucional em condições ideológicas específicas, marcadas pela influência do neoliberalismo e do gerencialismo, mas não se configura, em evidência do esgotamento do político, tese que não consegue dar conta do intenso ativismo institucionalizado ou de ação direta presente no campo da sociedade civil (e do estado) desde meados dos anos de 1990.

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-se uma “noite da cultura nordestina” durante um evento ou num mês de atividades especiais e contabiliza-se tal evento como evidência da “questão da cultura” na prática da entidade ou projeto, como sensibilidade cultural, ou “diálogo” com a cultura da comunidade local. Em outras palavras, o contexto de emergência da religião na convergência entre a cultura e a ação social é o do discurso multicultural liberal. Valorização da diversidade, delimitação da diversidade como cultural, e compreensão da dinâmica multicultural como uma de tolerância e de ocupação de espaços bem demarcados para cada grupo; tudo é válido, na medida em que cada um ocupe seu lugar e se relacione com o outro pela ótica do “deixe estar”. Yúdice (2006) chamará a isto de conveniência da cultura, isto é, sua utilização como recurso para promover outros fins. Para ele, embora não possa deixar de ser um recurso, mobilizado por grupos subalternos e pela esquerda ou por grupos dominantes e pela direita, a cultura assim entendida inscreve-se na governamentalização da sociedade, no sentido foulcaultiano dessa expressão. Em nível macro, distanciando-se das práticas cotidianas e/ou do espaço local dessas iniciativas, a identidade cultural passa a ser vista como algo que deve ser considerado no desenho e na implementação das políticas. De um lado, isso tem a ver com a questão técnica. Na concepção do programa social da política, identifica-se a necessidade de levar em consideração uma dada comunidade religiosa ou que religiões estão presentes nessa comunidade ou que corte étnico existe nessa comunidade. Avalia-se que as ações ganharão em eficácia quanto mais consigam identificar, valorizar e envolver as diferentes identidades sociais presentes. Então, políticas vão sendo desenhadas especificamente para atender às especificidades desses grupos, pois isso é uma condição de sua eficácia. Temos as políticas indígenas, por exemplo, nas últimas décadas, as políticas voltadas para o povo negro, as políticas voltadas para as mulheres, as políticas voltadas para os homossexuais, etc. De outro ponto de vista, político, a identidade cultural se insere na dimensão da participação, quer dizer, a política não é legítima se não envolver o mais diretamente possível aqueles grupos que serão afetados ou beneficiados por ela, mas que também possuem visões da boa sociedade, que não só querem realizar como estão dispostos a defender contra as de 123

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outros. Vemos, então, a difícil trajetória de implantação de um conjunto de conselhos de políticas e de programas, as rodas de interlocução ou de concertação social (conforme, por exemplo, nos reportemos ao governo FHC ou ao governo Lula16), fóruns, redes e coletivos que vêm sendo articulados nas mais diversas áreas (temáticas e geográficas). A ideia da identidade cultural abre-se nas duas direções, técnica e política, portanto. Neste contexto, o tema da religião acaba entrando, também. Um aspecto curioso que meu trabalho recente de pesquisa revelou (BURITY, 2007) é o seguinte: a religião não aparece espontaneamente na fala das pessoas, dos atores da sociedade civil, dos atores governamentais. Mesmo quando se trata de instituições religiosas, elas (através de seus representantes ou em pronunciamentos oficiais) fazem o discurso laico da cidadania, ou então, só se pronunciam sobre os lugares e modos de presença da religião nas questões sociais ou no cotidiano da vida pública quando se lhes pergunta diretamente. Estaríamos diante de um “efeito-pesquisa”, tão presente nos instrumentos quantitativos quanto qualitativos de coleta: a situação de pesquisa interfere no fluxo cotidiano da vida dos entrevistados17 ou observados e produz aí uma dupla inflexão. De um lado, desencadeia um processo reflexivo ali em que as injunções da ação, a (auto) contenção em explicitar valores ou relações de força existentes definem lógicas sociais distintas da interrogação (auto)crítica e da tematização dos agentes. Estes se põem a pensar em termos das questões colocadas, ou reagem a elas. De qualquer forma, uma dinâmica reflexiva que é parte e efeito da situação de pesquisa. De outro lado, produz-se a inflexão da performance: o entrevistado e o entrevistador, o observado e o observador assumem e negociam papéis transitórios que “suspendem” as injunções mencionadas, redefinem as fronteiras entre a lógica social da interrogação e da ação cotidiana, e instauram certa cena fictícia, descrita como de “diálogo” e “informação”. O que se pensa e o que se diz não podem ser tomado como uma fração de Iniciadas em 1996, as Rodadas de Interlocução Política visaram a constituir um esforço deliberado no sentido da construção de um terceiro setor diretamente vinculado ao estado, como “interlocutor”, mas também como executor de políticas e programas. Catorze rodadas foram realizadas pelo Conselho da Comunidade Solidária, sob a coordenação de Augusto de Franco. Já o Governo Lula lançou, sob a coordenação do ministro Tarso Genro, um debate sobre a concertação social, um novo “contrato social” que teve como espaço de animação o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. Desta feita, seis “cartas de concertação” foram produzidas entre 2003 e 2004. 17 Que a leitora me permita grafar o masculino nos parágrafos que seguem, ao referir-me às pessoas envolvidas na situação de pesquisa, exclusivamente por questões de fluência do texto, para evitar os parênteses indicativos de variação de gênero. Leia-se todo o tempo “pesquisadores(as)” e “pesquisados(as)” e expressões semelhantes. 16

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realidade objetivamente dada antes da situação de pesquisa. A narrativa que se produz ali e a que se segue na análise demandam vigilante atenção do pesquisador: são parte de uma prática social distinta daquela em que estão envolvidos cotidianamente pesquisadores e pesquisados. O dado curioso da pesquisa, volto ao ponto, é que o relativo silêncio dos pesquisados sobre a religião, ou a abstenção de expressarem-se espontaneamente em termos de uma linguagem religiosa sobre questões de cidadania, demandam atenção para essa necessidade de, digamos, fustigar, incitar a fala do outro sobre o tema da religião. Mais do que uma artificialidade, as respostas revelam então, quase ao modo da catarse, um volume de coisas “represadas” que poderiam ser ditas, mas nunca são ditas na primeira vez. Rompido o silêncio, ou a (auto)censura sobre o tema da religião, elas falam de reconhecimento, pluralidade, as dificuldades da convivência com as diferenças, as dificuldades de compreensão dos códigos culturais ou éticos dos grupos minoritários que emergem agora, na situação de pesquisa. Ora, uma coisa é dizermos: “somos todos plurais, múltiplos, mestiços”; outra coisa é: qual o espaço dos pentecostais, dos afro-brasileiros, dos índios, etc. – nomes que descrevem estes, não quaisquer outros “nós” – publicamente, se colocarem como são, sem precisar se traduzir numa outra linguagem que seria a linguagem, digamos, do Estado ou da academia? Então, isso causa muito desconforto e muita dificuldade no relacionamento, e talvez explique a reticência com que a incitação ao discurso sobre a religião é tratada pelos entrevistados. Eles precisam sentir-se autorizados a verbalizar o que os protocolos do discurso governamental ou acadêmico consideram, tácita ou explicitamente, passível de autorização prévia: o uso do vernáculo identitário como linguagem legítima no espaço público18. A sugestão é que, nesta dinâmica, nos encontramos com o tema e a 18 O estranhamento ou o incômodo com que os atores públicos ou a academia reagem ao uso da linguagem religiosa, ou emocional, no debate público, dão a pensar, para além das questões referentes aos gêneros apropriados ao discurso em diferentes espaços sociais (mais claramente o caso da relação academia/ religiosos), sobre a clara vigência, na institucionalidade brasileira, do princípio da separação entre religião e Estado, sob a forma da rarefação do discurso religioso na esfera institucional (discurso governamental, legislativo ou legal). Isto destoa de avaliações alarmistas quanto a uma “tomada” do espaço laico da política pelos discursos religiosos, embora suscite duas observações: a) a autocontenção dos participantes nesta “conversação” pública quanto a usarem seu vernáculo identitário não é garantia de que a fronteira está assegurada de uma vez por todas; b) o ponto de referência de muitas advertências secularistas é o discurso das minorias religiosas, não se dando a mesma ênfase ao fato de que a religião majoritária, o catolicismo brasileiro, jamais abdicou de acompanhar e interferir no debate público, utilizando-se diferentes registros discursivos, mais ou menos religiosos, e mesmo em situações em que se postou (e posta-se) em flagrante descompasso com a opinião pública majoritária (seja esta a voz de quem fala “mais alto” e dá o tom hegemônico dessa opinião; seja a voz sintética dos números produzidos em surveys) raramente é acusada de violar a institucionalidade democrática ou a “tradição republicana”.

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dimensão cultural das práticas sociais. A “cultura” está presente ali onde pensamos que só há “política”, ali onde pensamos que só há relação entre governo e organizações sociais, ou entre instituições públicas e grupos de interesse. Está presente sob a forma dessas modulações introduzidas no debate público por grupos que trazem sua diferença (inscrita na língua, no corpo, nos valores compartilhados e/ou na sua organização coletiva) como trunfo, reivindicação de reconhecimento ou de justiça, ou demanda corporativa por uma fatia de recursos desigualmente apropriados por outros grupos. Está presente sob a forma dos valores e costumes associados a tais grupos e que repercutem concretamente sobre a repartição dos lugares que a ordem vigente distribui de forma assimétrica aos distintos grupos sociais, beneficiando-os ou estigmatizando-os. A sugestão é de que estaríamos chegando a um patamar de ampliação da compreensão e da prática sobre o que está em jogo na política: mais do que interesses pré-constituídos fora dela, e nela apenas representados, também identidades e construções culturais do mundo a partir de perspectivas particulares19. Por outro lado, a cultura também penetra e cruza distintas estratégias estatais de produção de legitimidade (por exemplo, quando associada à defesa do patrimônio histórico, artístico e cultural da localidade/região/ nação ou à justificação das políticas de turismo e lazer); de formulação e implementação de políticas (por exemplo, quando é vista como um contexto a ser conhecido, mobilizado ou respeitado de forma a assegurar eficácia ou minimizar resistências, ou como objeto de ações afirmativas para corrigir injustiças históricas); de pacificação social (associada a diagnósticos sobre violência e crime); de representação política (resultante da participação eleitoral ou pressão sobre o legislativo e o judiciário por parte de pessoas “sensíveis à cultura”). Isto pode ocorrer devido à pressão exercida sobre o Estado por movimentos e organizações locais/ nacionais ou por instituições internacionais, gerando respostas genuínas Esta não é exatamente uma percepção “nativa”. No calor das disputas, cada parte tende mesmo é a apresentar-se como expressando uma identidade previamente constituída à sua entrada no espaço agonístico da representação, embora na maioria dos casos consciente de que tenha que “negociar” sua presença e sua agenda ali. Não importa muito, para o ponto acima, se os atores partilham de uma posição de que suas identidades estão em jogo por conta de sua relação com outras ou porque não podem impô-las pura e simplesmente. Em ambos os casos, o efeito é o mesmo: a articulação, como a representação, não permite, em condições contemporâneas, que as identidades dos atores compareçam e permaneçam na esfera pública plenamente constituídas e intocadas. Sua própria entrada na esfera pública é já uma resposta a algo ou alguém, se não reagindo a uma agenda posta, pelo menos tendo que convencer outras identidades de sua própria agenda.

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ou puramente táticas. Em todos esses casos, percebe-se, nos últimos anos, que os grupos religiosos tanto buscam inserir-se nesses espaços como são procurados como possuidores de saberes e de reconhecimento social politicamente instrumentais, como ocupantes de lugares social e politicamente relevantes ou disputados. Mencionamos no início um processo que, no Brasil, colocou a religião na pauta dos discursos governamental e público, em função da ruidosa chegada dos pentecostais na política. Essa observação não deve levar ao equívoco de acharmos que os pentecostais se distribuem com igual intensidade e peso em todos os espaços de discussão e decisão públicas. De um lado, eles conseguiram hegemonizar o designativo “evangélico”, utilizado também pelo protestantismo histórico (as chamadas igrejas protestantes tradicionais). Assim, conseguiram “penetrar” um campo de interlocução com a sociedade abrangente que, desde fins do século XIX, mas especialmente após a segunda metade dos anos de 1950, vinha laboriosa mas erraticamente construindo credibilidade e legitimidade sociais. Quer dizer, houve um trabalho de hegemonização do campo evangélico pelos pentecostais, que se traduz desde a disseminação da cultura religiosa pentecostal no interior das igrejas históricas até a fala “autorizada” de lideranças pentecostais via organizações representativas de setores evangélicos (como o Conselho Nacional de Pastores do Brasil e mesmo a Associação Evangélica do Brasil)20, o qual se beneficiou de conquistas anteriores. Mas seria ainda preciso dizer que sob o termo “evangélicos” há práticas díspares, tradições confessionais distintas e distintos níveis e intensidades de inserção nos espaços públicos e nas lutas sociais? De outro lado, a forte investida dos pentecostais sobre a política eleitoral pós-1986 e a posse de poderosos recursos de mídia contribuíram para silenciar outras vozes, particularmente aquelas que ao longo do processo de democratização foram, mais fora do que dentro do pentecostalismo, construindo um discurso social evangélico. Tais vozes já se haviam constituído – algumas desde os anos de 1970 – em agências de serviço, evangélicas e ecumênicas, empenhadas em sensibilizar A diferença mais significativa é que esta última se demarca dos neopentecostais, mas inclui pentecostais “históricos”.

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as igrejas para atuarem socialmente ou apoiarem iniciativas locais de organização comunitária21. Nos anos de 1990, tais agências vivenciaram três deslocamentos importantes em sua atuação: a) ampliaram o apoio a iniciativas de grupos locais, independentemente da participação de igrejas; b) incorporaram a cultura “ongueira” dos projetos, dos vínculos com agências internacionais e da atuação em rede; c) inseriram-se nos circuitos da participação da sociedade civil na esfera estatal – conselhos, fóruns, redes e parcerias – ou se (re)organizaram em função da nova legislação do “terceiro setor”. Os lugares de convergência desses deslocamentos continuam sendo rarefeitos quanto à presença pentecostal, com exceções (como certas ações da Iurd e da Assembléia de Deus) que não falsificam a regra. Os representantes evangélicos nesses espaços continuam fundamentalmente sendo os evangélicos não-pentecostais, os protestantes históricos22. Assim, quando dissemos acima que os principais atores que emergem na atuação política das religiões são pentecostais, não necessariamente significa dizer que as principais organizações que estão atuando nesse campo são organizações pentecostais. Aliás, tal conceito é ainda, em larga medida, um oxímoro: a forma pentecostal é fundamentalmente igreja (no sentido institucional, não exatamente no sentido weberiano). Mesmo assim, se pensarmos em termos das congregações ou das comunidades religiosas locais, há um incentivo, um discurso no sentido de fazer alguma coisa “pelo social”, que encontramos, neste caso, numa pequena sondagem Estas organizações, todas oriundas do protestantismo histórico, emergiram do movimento ecumênico ou do movimento evangelical. Algumas delas, de atuação nacional, que tiveram maior expressão no período podem ser citadas ilustrativamente: o Centro Ecumênico de Divulgação e Informação (depois, Koinonia – Presença e Serviço; o Instituto Superior de Estudos da Religião, a Visão Mundial, a Aliança Bíblica Universitária do Brasil, a Visão Nacional de Evangelização, a Diaconia, além de ministérios e pastorais sociais das igrejas Luterana (particularmente a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil) e Metodista. Este número só se ampliou nas últimas duas décadas, embora também se tenha tornado mais heterogêneo o campo dessas organizações. Há ainda processos de articulação em curso, como no caso da criação da Rede Evangélica Nacional de Ação Social (Renas), criada em 2003 (a partir de um processo iniciado em 2000) numa consulta com cerca de 100 organizações de ação social evangélicas e hoje reunindo 22 entidades associadas e 9 redes (Disponível em: www.renas.org. br), ou a rede ecumênica Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, que atua no monitoramento de processos globais (financeirização da economia, dívida dos países pobres, auditoria da dívida pública, direitos humanos, etc.) e das políticas públicas (Disponível em: http://www.rbrasil.org.br). 22 Para citar alguns exemplos, há uma representação evangélica no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, no Conselho Nacional da Juventude; no Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção, dentre outros, e em conselhos estaduais e municipais em todos os estados da federação. Em maio de 2008, o Ministério da Educação realizou uma cerimônia para o lançamento do Plano de Mobilização de Igrejas pela Educação, elaborado a partir do trabalho de uma comissão que reuniu representantes do (Conselho Latino Americano de Igrejas (Clai), Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (Conic), CNBB, Unesco e do Compromisso Todos pela Educação. Tal representação é, como se sabe, definida a partir de instituições representativas pluridenominacionais ou ecumênicas ou reconhecidas como referências de atuação nas áreas temáticas de tais conselhos, fóruns, etc. (cf. JOVENS, 2008; CLAI, 2005; Governo, 2004; IECB, 2008). 21

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realizada na região metropolitana do Recife para a ONG Diaconia. São quase invariavelmente grupos muito pequenos de fiéis que se envolvem em algum tipo de trabalho social. A quase totalidade dos casos envolve o que classicamente conhecemos como filantropia. Já nas organizações do protestantismo histórico, encontra-se uma ação social mais articulada. A não ser no caso de poucas denominações, como a Luterana23, por exemplo, que tem uma rede de organizações atuando em várias frentes, o que dá a essas organizações certo grau de autonomia para o trabalho. A maior parte são entidades paraeclesiásticas supradenominacionais (isto é, desvinculadas de qualquer subordinação a estruturas eclesiásticas, associações civis religiosas) ou secretarias/ministérios de ação social denominacionais, no campo protestante. Em terceiro lugar, é preciso nunca esquecer que, em tais espaços, particularmente os das políticas sociais e ambientais há atores religiosos já de longa tradição: as pastorais sociais e organizações caritativas da Igreja Católica24. São principalmente entidades mantidas por ordens religiosas ou pastorais mantidas pela hierarquia. Muitas vezes, essa presença está mimetizada enquanto representação de movimentos e setores não identificados em termos religiosos, mas as parcerias institucionalizadas entre governos e Igreja não são poucas. Estas apenas, como foi dito acima a respeito das entrevistas, não estão publicizadas no grau em que uma discussão explícita da dimensão religiosa organizada nas políticas públicas poderia fazê-lo. Entre católicos e protestantes históricos encontramos percepções muito mais críticas em relação a esse campo, mas também muito mais pragmáticas25. Nos últimos anos, todos ficaram muito mais pragmáticos, não só em matéria de política eleitoral, como já vimos acima. Há, por exemplo, um sério problema de financiamento dessas instituições, mas cresceu a possibilidade de acesso a fundos públicos para executar projetos. Isso é, então, simultaneamente, uma maneira de assegurarem a sobrevivência institucional e uma forma de ampliação do lugar das organizações religio As duas denominações luteranas brasileiras, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, de origem europeia, e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil, de origem americana, se incluem nessa observação, embora o trabalho realizado pela primeira tenha mais características ecumênicas, profissionalizadas (no sentido da “onguização” da ação social em vigência no país), e autônomas em relação às comunidades de fé e suas lideranças locais, do que as obras sociais da segunda. 24 As pastorais da Criança, da Terra, dos Migrantes, de Juventude; a Cáritas; a CRS; e tantas organizações de menor porte, vinculadas a ordens religiosas ou a movimentos de igreja são alguns exemplos. 25 Elaborei mais longamente a respeito deste segmento da atuação social das igrejas em Burity (2006b, p.119-85). 23

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sas no arranjo institucional das políticas públicas. Mas para tanto, aquelas têm que entender num sentido mais lato certos princípios ou valores que as ONGs ou instituições abertamente confessionais sempre fizeram muita questão de enfatizar. Torna-se necessária certa transigência ideológica e até de procedimentos para que o acesso a tais recursos públicos aconteça sem maiores bloqueios. Torna-se necessário o aprendizado e uso da linguagem administrativa do estado e da cultura de projetos e de avaliação das organizações não-governamentais. Poucas instituições conseguiram se manter inteiramente livres de recorrer a esse campo do financiamento público e de assumir o pragmatismo. Não necessariamente julgo isso como negativo ou politicamente inconsequente, mas certamente é outro perfil de atuação social, diferente daquele dos anos de 1980, intervenções que tinham um caráter contestatário subjacente, na esteira da mística das comunidades de base e da pastoral popular. Inclusive porque, no campo católico, é evidente a contracorrente desse tipo de ação pastoral que está em curso desde o papado de João Paulo II. O que os partidos e os grupos da esquerda clandestina dos anos de 1970 não puderam mais fazer, dadas as circunstâncias políticas, muitas organizações de base, no início dos anos de 1980, achavam que poderiam fazer. Esse perfil mudou muito, até porque “sociedade civil”, no campo das políticas sociais, tornou-se quase sinônimo de “ONGs”, sem a direta referência a movimentos populares, como há vinte anos. Dessa maneira, podemos lançar alguma luz sobre um campo de práticas que não se dá ao par com o processo de participação eleitoral, estando inclusive em aberta tensão ou contraposição àqueles que se movem neste último plano, e que repercute sobre o que se pode analisar a propósito da relação entre religião e cidadania. No mínimo, esta evidência suscita a questão da diferença, mais uma vez, só que para o interior do campo religioso: a identificação de formas de atuação institucionalizadas, oficiais ou paraeclesiásticas, que tematizam e refletem pautas, condutas e processos organizativos em curso no campo da chamada “sociedade civil”, demanda uma atenção para a dimensão política da experiência participativa e cidadã no âmbito das igrejas. O que já era perceptível há tempos para o catolicismo, pode ser delimitado no protestantismo. O que ocorre é que essas experiências não recobrem cartesianamente as fronteiras denominacionais e não se 130

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deixam neutralizar ou anular pela publicidade conferida na mídia à fala dos parlamentares ou dos porta-vozes oficiais das igrejas (da CNBB às denominações). Para além delas, existe um campo de associações e projetos mantidos por igrejas afinadas com a hegemonia pentecostal na política religiosa: são ações assistenciais que se conectam com projetos eleitorais (um caso emblemático é o projeto Nova Canaã, da Igreja Universal do Reino de Deus, na Bahia, que se tornou plataforma política para a ascensão do bispo Marcelo Crivella). Nesse caso, quase se pode arriscar o traçado de uma fronteira denominacional: igrejas históricas, no primeiro grupo; igrejas pentecostais, no segundo. É certo que uma abordagem cultural desse tema deve enfrentar a questão de qual o conteúdo cultural dessa participação evangélica. Qual a política cultural produzida ou encenada pelos atores evangélicos? A primeira advertência aqui é: não há uma uniformidade nesta atuação, como não há no catolicismo. Assim, o que ocorre no plano da atuação parlamentar não deve ser transposto, sob risco de grosseiras simplificações, para o da atuação social organizada das igrejas. Em segundo lugar, como indicamos, sendo o discurso da cidadania hegemônico, ainda que polissêmico26, no campo da atuação das organizações não-governamentais e assistenciais e das redes de políticas públicas nas quais estas se inserem nacionalmente, os atores religiosos precisam ajustar sua fala (e suas práticas) aos lugares onde se pode/deve falar em termos de cidadania. Assim, não se trata de mera ausência de percepção da cidadania, sinalizada, por exemplo, pela disputa por espaços privilegiados ou benesses públicas para certos grupos religiosos (corporativismo), contraposta a um discurso pleno da cidadania. Estamos falando de gradações e mobilizações contraditórias do discurso da cidadania, de disputas cotidianas, ou conjunturais, pela fixação do sentido de cidadania em certa direção, digamos, mais republicana ou mais liberal27. Seguindo um argumento desenvolvido por Laclau, pode-se dizer que ser hegemônico é precisamente interpelar um conjunto heterogêneo de posições sociais, cuja adesão aos termos do discurso que assim se define não é do tipo correspondência de sentidos, mas por equivalência em relação a outro comumente identificado como aliado ou adversário. Isto implica que estamos falando de distintas formações discursivas em que o significante “cidadania” opera de maneiras diferentes mas, no contexto que discutimos, constrói equivalências entre, por exemplo, “exigir direitos”, “demandar proteção do Estado”, “participar ativamente dos assuntos públicos”, “pedir acesso a bens públicos, como saúde, moradia, educação, transporte, segurança alimentar, segurança”, “obedecer as leis e não transgredir a ordem estabelecida”, etc., que pertencem a distintos discursos originariamente. 27 Para formulações sobre o que seria a cidadania liberal e a cidadania republicana, cf. KYMLICKA E NORMAN, 1993; MOUFFE, 2000; LARA, 2002; JENNINGS, 2000; CARDOSO, 2004; MODOOD, 2005; LOREA, 2008. 26

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Em terceiro lugar, a cultura política evangélica, se pudéssemos delimitá-la como distinta da cultura política da sociedade abrangente28, já vivencia uma tensão entre um marco liberal-conservador ou antidemocrático (dos direitos pensados como codificados em lei; de responsabilidade de um estado que os promulga e garante; dirigidos a cidadãos que se tornam receptores/detentores passivos dos mesmos) e um marco liberal-conservador ou antidemocrático (dos direitos como exigindo uma contrapartida em termos de obrigações; caracterizados como uma relação de consumo entre contribuinte-pagador e estado-servidor; o preenchimento de condicionalidades para acesso; e devendo ser cuidadosamente limitados em seu alcance e exercício para evitar agitações e conflitos)29. Esta tensão gera posturas delegativas em relação ao poder estabelecido, de distanciamento da vida política (especialmente dos conflitos que ela envolve), de assunção da ideologia do “cada um fazendo a sua parte”, mas crescentemente estas vêm sendo questionadas tanto à direita como à esquerda do espectro político-ideológico no sentido de se legitimar a atuação política (eleitoral) e a atuação social. O conteúdo concreto dessas duas modalidades de atuação variará tanto segundo suas posições ideológicas quanto segundo o contexto e as forças com as quais os atores religiosos se relacionam. Outra faceta do tema, entre a problematização da cultura política e a análise das práticas políticas e sociais concretas dos grupos religiosos diz respeito ao grau de incorporação pelos atores emergentes, notadamente os pentecostais, do pragmatismo grassante no campo político e social. Aqui há claramente novidades, pois ainda que se tome o caso da Iurd ou da Assembléia de Deus, encontra-se uma combinação de discurso moralista em relação a assuntos envolvendo o corpo e os costumes (sexualidade e direitos reprodutivos, violência na tevê, corrupção na política, etc.), defesa de irrestrita liberdade religiosa para a garantia de competição religiosa, e defesa de bandeiras progressistas em relação aos direitos sociais. Há ainda uma adoção tentativa da linguagem da participação e da reivindicação de direitos que se articula e oscila com a tripla postura acima. E há pragmatismo eleitoral: o apelo aos irmãos eleitores não descuida de interpelar o eleito E nunca há “a” cultura política da sociedade abrangente! Já destacamos isso numa pesquisa anterior, realizada em grupos católicos e evangélicos na zona norte (popular) do Recife (BURITY, 2001b; 2005b).

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rado mais amplo30, preocupando-se com a estatística dos votos; evitam-se as questões muito polêmicas por meio de jargão vazio e genérico sobre o enfrentamento dos “graves problemas sociais” ou a defesa dos “excluídos”; respeitam-se os protocolos da discussão política no espaço midiático (combater, para mostrar desenvoltura, mas não assumir a posição do conflito, para não mostrar intransigência). Nisso, os candidatos religiosos ao mesmo tempo distinguem-se e assemelham-se em relação à maioria dos candidatos que não se definem pela identidade religiosa. As práticas clientelistas predominam aí, e a ligação entre as obras sociais e a legitimação eleitoral dos candidatos da igreja é frequente, ainda que mais no discurso “submerso” do cotidiano do que nos espaços de mídia (MACHADO, 2006). Talvez se opondo a isso, coloca-se a questão da tática x reciprocidade: como é que isso está presente nas redes de ajuda mútua e de mobilização social? Finalmente, há um debate hoje em torno da questão da cidadania que passa muito pelo conceito de reconhecimento (KYMLICKA E NORMAN, 1997, 2000; TAYLOR, 1992; 1994; FRASER, 2001; PAREKH, 1997; SOUZA, 2003; TELLES, 2006; SILVA E MICHELOTTI, 2007). Trata-se de uma segunda geração de discussões que começou pela ideia de afirmação de direitos, dentro da ótica dos direitos humanos, principalmente. Afirmação de direitos como demanda por democratização, na expectativa de que a democracia conquistada representaria a garantia da igualdade de condições desejada. As tortuosas condições em que as democracias pós-anos de 1980 evoluíram, particularmente na América Latina, mantiveram praticamente inalterada a desigualdade e não levaram à plena vigência da soberania do estado de direito sobre o território e a população nacionais. A crise econômica do período e o avanço do neoliberalismo na mesma conjuntura da redemocratização fragilizaram ainda mais as realizações das novas democracias. Começa-se a perceber que não basta assegurar os direitos se não há certa internalização da cultura dos direitos, se as pessoas não passam a se comportar nas suas relações interpessoais, e as organizações, nas suas relações interorganizacionais, de maneira que o outro seja visto como um igual. Nas eleições de 2006 para a Presidência, o Congresso e os governos e assembleias estaduais, esta balança pendeu nas duas direções – apelo aos irmãos (e irmãs), apelo a todos os eleitores (e eleitoras) [sim, já se ouvem os ecos de gênero no discurso político dos evangélicos!] – em todos os níveis, onde se encontrassem candidatos religiosos ou apenas o “espectro” do eleitorado evangélico (assumido como um fiel da balança).

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Esse déficit em sociedades institucionalmente democráticas, mas onde há altos índices de desigualdade, discriminação, violência, invisibilidade de grupos chamados de minoritários (mesmo que sejam numericamente muito expressivos), levou a que se começasse a propor suplementar a afirmação dos direitos com o reconhecimento. Falar em reconhecimento de quem está excluído ou de quem é visto como excluído, ou como diferente, é procurar em primeiro lugar trazer essas pessoas ou esses grupos para um nível em que elas sejam vistas como legítimas, idealmente como iguais. Isso é um desafio tanto de cultura política – passar a enxergar a diferença como legítima e o outro como igual – como de prática social. Pois reconhecimento pode ser admitido na chave da “integração”, não garantindo a igualdade, apenas a equidade. Não à toa, fala-se tanto em tratar os diferentes como diferentes – expressão dúbia, conforme seja pronunciada por um diferencialista de direita ou de esquerda! O que é preciso fazer ou como é preciso fazer para criar essa igualdade de condições? Desde o século XIX, quando Tocqueville escreveu sobre a democracia na América, igualdade de condições é um dos atributos da democracia. Tocqueville fala de democracia antes da emergência da forma eleitoral. A revolução democrática estaria em curso desde a Idade Média e tinha como efeitos ou consequências uma equalização de condições e isto por oposição à desigualdade natural ou à noção de sociedade como uma hierarquia de posições fixas. O problema é como promover as novas políticas de reconhecimento de modo a produzir igualdade de condições, porque elas passam pela diferença. Quer dizer, para tratar o outro como igual, certo discurso diferencialista pós-1968 tem insistido, é preciso reconhecer que o outro é diferente. E esse é um nó ainda não desatado. A nossa imaginação social ainda tem dificuldade de descobrir como é que você reconhece como igual e ao mesmo tempo reconhece como diferente. Nós encontramos esse discurso muito fácil nas organizações da sociedade civil, nas organizações governamentais. Todos falam e propõem medidas que supostamente produziriam tais resultados, mas os efeitos dessa profusão de falas sobre o reconhecimento do outro ainda não conseguimos ver com clareza, pois, se o igual é simultaneamente diferente, sua aparição ou seu adentramento na esfera comum em que as pessoas se reconhecem como iguais se dá em meio a uma heterogeneidade irredutível: o outro 134

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não necessariamente vai falar nossa linguagem, comportar-se como nós, respeitar com a mesma intensidade as coisas que valorizamos. Um dos grandes desafios da democracia hoje é esta quadratura do círculo: não basta ter as instituições clássicas da democracia, é preciso que nessas instituições as pessoas se reconheçam como iguais e o façam como simultaneamente iguais e diferentes31. O que tenho visto muito nas experiências que eu estudei é que há um limite de compreensão do que fazer nessa área. A fragilidade do nosso discurso público se revela plenamente aí: improvisada incorporação de jargões e fragmentos de correntes políticas e teóricas que, em outros contextos, se digladiam – um caso típico é o uso brasileiro, principalmente na esfera governamental federal, mas também no mundo das ONGs, do republicanismo como fundamentação para políticas de diversidade de inspiração liberal! Fala-se recorrentemente em resgatar a “autoestima” das pessoas e de que isso é “promover a cidadania”. Então, ações educativas, ações lúdico-expressivas, dinâmicas de grupo, ações de organização coletivas, de formação, etc. são inscritas neste objetivo. Os grupos religiosos entram muito facilmente por esse campo do resgate da autoestima. Mesmo quando nada é feito do ponto de vista de ações de mobilização ou assistência social, o acolhimento nas comunidades locais e grupos e redes informais das religiões pode produzir este efeito: “Você é meu irmão, minha irmã; então, vem aqui. Nós somos membros da mesma fé”; ou “sinta-se bem-vindo(a); este lugar é sua casa”; ou ainda, como diz um cântico muito conhecido entre os pentecostais, “você tem valor, o Espírito Santo se move em você”. De fato, as pessoas têm encontrado tais lugares de acolhimento e reconhecimento intersubjetivo nas novas comunidades religiosas que se multiplicam nas periferias urbanas e nas pequenas cidades. Eu valorizo isso, mas para quantos esperávamos que a organização coletiva gerasse um novo tipo de sujeito social e político, resgatar a autoestima das pessoas é um projeto muito minimalista! É muito pouco para se pensar em termos de uma forma de sociedade em que esses valores de igualdade, de diferença, de reconhecimento, de democracia prevaleçam. Parece-me que, no máximo, quando se resgata a autoestima das pessoas, Vários autores, como Alain Touraine, Evelina Dagnino, Sérgio Costa, vêm se esforçando para equacionar o problema.

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instila-se nelas um senso de valor próprio e de auto-asserção (algo como “vou lutar para conquistar as minhas coisas”, “não vou deixar me puxarem para baixo”). Este senso pode ser um elemento psicossocial importante para o exercício de uma agência coletiva, mas não é necessariamente uma expressão da mesma. Ao mesmo tempo, a cultura dessa conjuntura estimula as saídas individuais muito mais do que as saídas coletivas, o que pode neutralizar a tentativa de conectar este “resgate” com a afirmação de uma identidade cidadã participativa ou crítica. Então, a tarefa das organizações que se propõem a promover a cidadania nestas condições torna-se árdua e cheia de pequenas e grandes armadilhas. Em suma, o saldo da observação e da escuta atentas de experiências em diferentes partes do país revela um impacto e tamanho dessas experiências ainda muito difícil de dimensionar, se nos colocarmos na perspectiva de mudanças macro. Por outro lado, é inegável que há muitas pequenas e não tão pequenas experiências nos lugares mais insuspeitados que já representam, em termos relativos, mudanças significativas, em termos locais, ou segundo certa transversalidade institucional que se expressa na circulação de determinadas demandas, valores e repertórios de ação através das fronteiras (analíticas, não esqueçamos) entre sociedade civil e estado, público e privado, religião e estado, religião e cultura, etc. Diferentemente de uma lógica da escolha ou da demarcação categóricas, muitos sentem o imperativo de admitir essas mudanças aparentemente moleculares, enquanto assumem a dificuldade de combinar a afirmação de direitos com a cultura de grupos (como os religiosos) onde nem sempre a igualdade é uma experiência já dada. Por minoritários que sejam, por oprimidos que sejam, há grupos onde (co)existem, às vezes, fortes elementos de desigualdade, de violência, de hierarquia que não se quer mexer. Quer dizer, mesmo quando o grupo demanda a igualdade de direitos, trata-se de ser reconhecido como igual pelos outros, mas com muito cuidado para isso não respingar “para dentro”, porque aí talvez as autoridades tradicionais vão começar a ser questionadas, certas formas de exercício do poder internamente a esses grupos vão precisar ser revistas, questionamentos da identidade vigente vão ocorrer. Aqui reencontramos os limites do multiculturalismo: se os agentes sociais se movem em espaços relacionais e crescentemente imbricados (isto é, de fronteiras porosas e politizáveis), não basta dar a cada um o seu lugar, ou 136

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imaginar que a participação “para fora” não trará demandas “para dentro”. Por outro lado, a abertura da fronteira entre religião e estado pode levar a propostas de pluralismo legal (reconhecimento da jurisdição de leis religiosas sobre comunidades religiosas que se guiam por elas, no interior do estado nacional laico, como ora se debate em relação aos muçulmanos no Reino Unido32). O traço de união entre religião e cidadania reserva surpresas não inteiramente mapeadas para crentes e analistas do fenômeno. Uma última reflexão sobre a “política das distinções”. No campo religioso, seja para afirmá-la, seja para condená-la, a distinção entre o plano espiritual e o plano social. No campo acadêmico, os temas da separação entre religião e política ou entre Igreja e mundo (embora essa última terminologia seja mais comum na teologia do que nas ciências sociais). Em ambos os casos, a “distinção de planos” (expressão popularizada pelos teólogos da libertação da primeira geração) visa a restabelecer as ideias claras e nítidas num mundo em que as iniciativas de certos grupos mais determinados a produzirem intervenções na política ou as pressões para que instituições religiosas se posicionem apontam sempre mais para a incerteza, a sombra, a ambiguidade e as ameaças. Em ambos os casos, o resultado é a reasserção da privatização da religião como único caminho seguro para a relação entre esta última e as instituições modernas. Ora, o discurso da separação entre religião e política, que a meu ver não é a mesma coisa que a separação entre religião e Estado, tende a acontecer entre aqueles que não só separam o espiritual e o social, mas também não estimulam a atuação social ou a existência de uma espécie de consciência crítica de cidadania por parte dos fiéis. Essa insistência em não se confundir as duas coisas também está associada à não-participação, a uma visão conservadora da política, da sociedade, etc. Por outro lado, há uma resistência ou uma reserva intelectual e política contra o que seria uma confusão indesejada entre o religioso e o político. Integrismo, fundamentalismo, o perigo da confessionalização da política são algumas das consequências temidas, na medida em que não reconhecem a repartição O arcebispo de Cantuária, Rowan Williams defendeu, em fins de 2007, algo nesta direção. O parlamento britânico aprovou, em 2006, uma medida que permitiu que organizações privadas sem fins lucrativos (igrejas, associações de pais, educativas, etc.) assumam a gestão de escolas públicas. A primeira ministra alemã, Angela Merkel, propôs no mesmo ano uma “aliança pela educação” com as igrejas Católica e Evangélica (Luterana), para difundir valores morais e compromissos éticos entre jovens como forma de recompor os vínculos sociais na Alemanha (cf. SHARIA LAW; MARCELINO, 2006).

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moderna de esferas e pretendem regular a esfera pública do debate e da política por meio de princípios e valores, quando não da direta interveniência das autoridades, da religião organizada. Tal reserva está presente em muitas análises e foi bastante reforçada pela proeminência internacional da “ameaça islâmica”. Por vezes, eu suspeito de um subtexto desta natureza nos comentários referentes ao perigo de abrir espaço aos “fundamentalistas” religiosos na política. Parece-me, contudo, que é exatamente a partir de certa forma de confusão que vamos poder perceber um vínculo entre religião e cidadania – seja como prática observável seja como posição normativa (referindo-me aqui às diversas avaliações feitas sobre tal vínculo). Se pensarmos em exemplos históricos, como a doutrina da “eleição”, para os puritanos; a “libertação”, para a Teologia da Libertação; o dístico da “justiça, paz e integridade da criação”, para o movimento ecumênico, veremos em todos esses casos uma assumida confusão entre o religioso e o político que legitima o vínculo entre religião e cidadania. Então, a pergunta é: qual o tamanho dessa confusão que pode ser legitimamente tolerado? Há, hoje, não apenas certas temáticas colocadas à esfera pública que vão além da forma estritamente estatal de pensar os problemas sociais, mas também remetem para dimensões onde nos defrontamos com visões de mundo, valores, muito mais densas do que acordos em relação a procedimentos. Questões que têm a ver com a vida, por exemplo: A autorização ou não para a manipulação genética de embriões; a questão do aborto; a união civil ou religiosa de pessoas do mesmo sexo; toda a questão da igualdade de gênero em suas diversas formas de manifestação, em termos de política pública, elas envolvem muito mais do que simplesmente valores políticos ou cívicos. Nessas temáticas, o discurso religioso é parte irredutível do debate público, quer com a pretensão de fundamentar uma intervenção ou simplesmente de marcar uma posição, quer usando um vocabulário religioso ou encontrando formulações aparentemente neutras para a discussão e deliberação com discursos laicos. Não me parece de forma nenhuma ilegítima – a não ser para a perspectiva secularista ou laicista – essa explicitação do vocabulário, das justificações religiosas, sobre aceitar ou não aceitar as propostas surgidas nessas discussões, na medida em que é simplesmente irrealis138

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ta, se não francamente desonesto, esperar que nenhum valor ou visão abrangente de mundo se expresse num processo de debate e deliberação públicos. Se tal posição se torna uma exigência aos agentes sociais, creio que transpomos mesmo o umbral de uma violação da democracia. Se se trata de um processo público plural e democrático, proposições, seus valores subjacentes e o vocabulário utilizado para defendê-las, tudo está em questão. Inclusive a boa ou má-fé dos interlocutores, a julgar por seu comportamento em outros espaços. Por último, se a relação – ou a confusão – entre religião e política, religião e cidadania se dá num contexto em que não só a identidade como também o rol e conteúdo das demandas postas à esfera pública se inscrevem numa condição relacional, o destino dessa relação não está dado de antemão. Não está dado pela posição original de cada ator, isto é, sua identidade, demandas e repertórios de ação, previamente a seu “encontro” na esfera pública – onde suas convergências e divergências em relação a outros se expressarão. Nem está dado pela gramática e semântica de seu vocabulário público. Não se trata de esperar pelo melhor, mas de assinalar que, no cenário contemporâneo, independentemente das credenciais democráticas dos atores, a relacionalidade lhes impõe uma série de condições a que não podem impunemente se subtraírem: a) precisam lançar mão do discurso do direito a existirem e a se expressarem, o qual, por sua vez, em princípio, é extensivo aos demais; b) precisam aprender a operar num terreno ocupado por múltiplos outros atores, com pretensões por vezes concorrentes, o que exige negociações e construção de alianças – frequentemente resultantes na alteração das demandas ou (ao longo do tempo) das próprias identidades; c) descobrem que as fronteiras que definem o pertencimento dos agentes individuais a tais atores sociais ou coletivos não dão conta da totalidade das lealdades, afiliações e assunção de valores daqueles agentes – o que frequentemente implica “deserções”, apoios ambíguos ou condicionais e questionamentos internos quando surgem demandas ou questões que se originam em outros lugares de lealdade e participação. Assim, relacionalidade é ao mesmo tempo uma condição de inclusão e exclusão, reconhecimento e questionamento, empoderamento e contenção das identidades coletivas em nosso tempo. Ninguém que ocupa os campos da religião e da cidadania está ao abrigo dela. 139

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Capítulo 5 – Religião e Cidadania: alguns problemas de mudança sociocultural e de intervenção política

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Capítulo 6 Ensino religioso na escola pública e algumas questões mais gerais sobre religião e sociedade Emerson Giumbelli

Introdução Procuro realizar uma articulação entre um tema específico e algumas questões de alcance maior. O tema é o ensino religioso na escola pública, algo que venho pesquisando desde 2004, sobretudo no que concerne à situação no Rio de Janeiro, que passou por uma série de redefinições desde 2001. Esquematicamente, coloco dois grandes pontos. O primeiro, que está contido nesse tema do ensino religioso na escola pública, é a dimensão legal. O ensino religioso é, em linguagem do Direito, “matéria constitucional”. Ele é um dos temas das Constituições brasileiras desde a primeira republicana de 1891, quando foi suprimido. E depois, em 1934, ele volta a aparecer. Desde então, sempre constou, com formas que variavam um pouco, mas mantendo o princípio de uma disciplina que seria oferecida em escolas públicas, de matrícula facultativa. Assim foi na Constituição de 1988. Depois da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996-97), houve em vários estados redefinições, não no sentido de implementar, porque ensino religioso existe há muito tempo, mas num movimento que já reflete um outro momento da discussão e da concretização desse tema. Essa dimensão legal, muito evidente no debate sobre ensino religioso, é um ponto importante desta nossa discussão sobre religião e cidadania. Primeiro, no sentido dos trâmites e mecanismos por que passam as definições jurídicas. A elaboração jurídica é constitutiva da ideia de cidadania. Como observadores desse processo, somos obrigados a entrar nos parlamentos pára ver como e por quem essas questões são discutidas. Esse é um

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exercício interessante que pode ser feito a propósito de outros temas que envolvem religião e política. Ele evidencia uma das formas da presença do religioso no espaço público. O segundo ponto é a discussão sobre o princípio da laicidade, que também é uma outra questão que me parece importante na discussão da relação entre religião e política, religião e cidadania. O tema da laicidade evoca o modelo de relação entre Igreja e Estado que se elaborou dentro do quadro da chamada modernidade e que, de alguma forma, continua servindo como referência para a organização dos Estados nacionais que tomam o Ocidente como marco. Então, a presença de uma disciplina de ensino religioso na escola pública de um Estado laico levanta uma reflexão sobre esse modelo, o modelo da separação ou a exigência da separação entre religião e política. Como esse modelo funciona na prática? Que variações ele comporta? Com o ensino religioso, temos a constatação de que a religião acaba entrando dentro de uma referência que é de espaço público, a escola. Como então pensar isso na vigência de um modelo que se define exatamente pela negação do religioso? Como esse modelo convive com uma série de medidas, de práticas, de situações em que as relações acontecem, em que o espaço público dialoga, abriga, aceita e até introjeta o religioso? Por outro lado (e ao mesmo tempo), o tema do ensino religioso incide sobre uma dimensão que parece ser inerente ao processo educativo, a saber, a formação dos sujeitos. Há aqueles que pensam que a religião deva ser constitutiva dessa formação; em um regime de laicidade, qual a forma alternativa para conceber essa formação? Ela exclui necessariamente a religião? Ou seria possível realocá-la dentro de ideais como pluralismo e diversidade? O segundo grande ponto, aliás, é a questão do pluralismo, que também pode ser discutida em várias dimensões. Para começar: como, nesses movimentos recentes pós-Constituição de 88, pós-LDB, os atores religiosos se articulam para atuar em relação à questão do ensino religioso? Todos sabemos que esse é um terreno em que a Igreja Católica praticamente atuou sozinha por muito tempo. É interessante perceber algumas transformações recentes, porque embora a Igreja Católica continue sendo o principal ator, nós constatamos a presença de outros agentes religiosos ou se posicionando mais claramente sobre o assuntou, ou mesmo querendo ter um espaço 146

Capítulo 6 – Ensino religioso na escola pública e algumas questões mais gerais sobre religião e sociedade

e uma participação dentro de alguma proposta de ensino religioso, com consequências, ou seja, propondo ou implicando alguma redefinição do que seja esse ensino religioso, pois até há pouco tempo havia uma espécie de característica ou de condição tácita que fazia com que o ensino religioso, embora definido de maneira bem genérica, fosse algo que tivesse como referência o catolicismo. Então, nós temos algumas transformações interessantes com a presença e intervenção de outros atores religiosos. Isso já coloca uma dimensão de pluralidade. O que não significa a dissolução de hegemonias, velhas e novas. Cabe-nos descrever os arranjos resultantes, mas também apontar possibilidades de ruptura abertas por situações de pluralidade. Continuemos a partir daí. Em alguns casos, essa pluralidade vai se servir do formato que existe para outras intervenções que vêm da sociedade civil, que é o mecanismo ou a instituição dos “conselhos”. Em alguns estados foram formados ou reativados conselhos envolvendo representantes de tradições religiosas em composições mais ou menos plurais. É muito interessante acompanhar como essas instituições funcionam e se posicionam. Outro domínio interessante é o da formação dos professores. Deparamo-nos com uma questão que se coloca nos termos de quem dirige essa formação. Essa formação parte de agentes religiosos, ou ela é retirada da órbita da influência religiosa? Considerando que os atores religiosos têm um peso importante na formação de pessoas que vão trabalhar nessa área, temos aí uma questão importante. Outra dimensão, mais ideológica, que se coloca nesse ponto é em relação às concepções de pluralismo que estão em jogo. Podemos perceber, por exemplo, que para alguns agentes religiosos essa questão do ensino religioso em escola pública tem sido vista como um terreno valioso de disputa. Há novidades inclusive para a Igreja Católica. Mesmo considerando o destaque que a Igreja Católica tem nesse campo, em termos de uma continuidade com o passado, a força com que isso se faz não pode ser entendida fora de um contexto em que a disputa, em que o pluralismo, em que projetos de sociedade diferentes estão colocados. Com relação a isso, há toda uma discussão sobre esse espaço do ensino religioso como espaço de proselitismo. Como fazer uma diferença entre ensino proselitista e uma abordagem que fale da religião sem ser partidária ou comprometida? É 147

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possível imaginar e efetivar uma discussão a propósito do religioso que alimente um projeto de compreensão e respeito das diferenças, de produção e promoção de igualdade social? Um ponto importante nesse âmbito, que vai também entrar em diálogo com o tema geral de nosso debate, é a recorrência com que aparece a ideia da religião como um componente necessário, até mesmo fundamental e primordial, da formação do cidadão. Se por um lado esse argumento toma como referência, para admiti-la, a noção de cidadania, ele, por outro, tende a reivindicar uma posição imprescindível para a religião na constituição dos sujeitos. Nesse sentido, aproxima-se de vetores que pretendem limitar um princípio inclusivo em uma interpretação excludente. Como os agentes religiosos se posicionam ou não diante desse discurso é outra questão interessante, que incide sobre as formas variadas de articulação entre religião e cidadania. Para concluir essa parte, desenvolvo dois pontos a propósito do ensino religioso. Primeiro, nós temos uma situação interessante dada pela diversidade de modelos e de configurações por conta da descentralização que ocorreu para normatizar e implementar o ensino religioso. Cada estado está fazendo o seu caminho. Isso nos obriga a uma abordagem comparativa, que ilustro brevemente mais adiante. Partindo daí: é importante considerar essa discussão brasileira tendo no horizonte uma preocupação comparativa, pois o tema “religião e escola” aparece também em outras situações – em países como os Estados Unidos via a discussão do criacionismo, ou na França com a discussão sobre os chamados signos religiosos. Não se trata, com certeza, de usar a discussão sobre religião e cidadania para perder de vista as especificidades das situações concretas e das culturas políticas em cada país. Por outro lado, não devemos desprezar as chances de aproximação que revelem coisas interessantes sobre os casos particulares e, inclusive, que nos levem a questionar noções – como a de “laicidade” – que, muitas vezes, produziram barreiras analíticas instransponíveis. Por fim, uma questão que fica para todos nós, sobre o lugar do saber acadêmico nessa discussão, uma vez que esse saber pode aparecer na posição de observador e na posição de participante. Afinal, os cientistas sociais não reivindicam competência para tratar do “religioso?” Como esse conhecimento pode, se é que deve, interferir naquilo que seria parte de 148

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um “ensino religioso”? É bem possível que uma das novidades do quadro pós-88 seja o aumento de demandas pela interferência do saber acadêmico na definição de conteúdos e mesmo na formação ou capacitação de professores. Os dilemas serão muitos. Por outro lado, defender a laicidade na escola também não vem a ser uma questão simples. Podemos imaginar, por exemplo, uma “laicidade estratégica”: não deve existir lugar previsto para o religioso na escola, o que torna inviável uma disciplina de “ensino religioso”, mas isso não significa negar que o religioso estará presente (e pode estar) sob diversas formas no ambiente escolar. Mesmo uma posição como essa, no entanto, pode não ser conseqüente, pois, na maioria das situações, não parece haver clima propício para a supressão legal do ensino religioso e, em muitas escolas, a implementação da disciplina já avançou bastante. A pergunta persiste: enquanto for esse o quadro, como devem se posicionar e agir aqueles(as) cuja profissão os/as candidata a algum tipo de contribuição e como fazê-la em consonância com os princípios da cidadania e do pluralismo? A seguir, apresento uma rápida comparação – seria mais propriamente um cotejo – entre as situações nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, tomando como ponto de partida as respectivas leis que servem para regulamentar o ensino religioso nas escolas públicas. O tom é predominantemente esquemático, remetendo para dados mais substanciais presentes em outros trabalhos, meus e de colegas, e ensejando aprofundamentos que virão com outras pesquisas. O cotejo entre as situações em São Paulo e no Rio de Janeiro não pode deixar de evocar, sobretudo à primeira vista, uma série de contrastes. É por aí que começo, arrumando-os em um conjunto de oposições. (i) No Rio de Janeiro, adotou-se para o ensino religioso em escolas públicas o modelo “confessional”, de acordo com o qual a disciplina é oferecida, seguindo conteúdos, por professores adequados a cada credo. Assim, os alunos que se dispuserem a frequentar a disciplina serão separados de acordo com a sua declaração de credo (ou de seus responsáveis, quando for o caso). Quando houve, em 2004, o concurso para professores de ensino religioso para a rede estadual, as quinhentas vagas foram divididas em “credo católico”, “credo evangélico” e “outros credos”. Já em São Paulo, definiu-se um modelo “supraconfessional”, supondo a possibilidade de se estabelecer um conteúdo comum e único para a disciplina. Enquanto 149

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que no Rio de Janeiro, as normas que prescrevem o modelo confessional prevêem sua aplicação ao ensino fundamental e médio, incluindo todas as modalidades de escolas, e em São Paulo, a disciplina de ensino religioso fica restrita ao fundamental. (ii) No Rio de Janeiro, a definição do modelo confessional foi estabelecida pela lei 3.459 de 2000. Dois decretos posteriores ratificaram os termos da lei e a Secretaria Estadual de Educação cuidou da sua implementação, fortemente condicionada pela efetivação do concurso de 2004, o qual, como se disse, esteve pautado na lógica confessional. O Conselho Estadual de Educação foi um ator omisso nesse processo de definição. Em São Paulo, a lei 10.783 de 2001, mesmo vetando “o estabelecimento de qualquer primazia entre as diferentes doutrinas religiosas”, não estipula nenhum modelo específico para a disciplina. A opção explícita por um modelo supraconfessional aparece por conta exatamente da intervenção do Conselho Estadual de Educação, oficializada alguns meses depois com uma deliberação (16/2001). Um decreto de 2002 ratifica essa opção (46.802). (iii) No Rio de Janeiro, a lógica confessional conferiu papel fundamental às “autoridades religiosas” (segundo expressão da lei de 2000) de cada credo. Cabe-lhes a definição dos conteúdos programáticos e o credenciamento dos professores. Por isso, o concurso, aberto em 2004, para detentores de diplomas de licenciatura plena, em quaisquer áreas, tinha como requisito adicional o aval de uma autoridade religiosa. A elaboração dos conteúdos do ensino religioso caberia às mesmas autoridades, mas é importante notar que a Coordenação de Ensino Religioso da própria Secretaria Estadual de Educação, a quem cabe implementar e acompanhar a disciplina, divide seus integrantes em católicos e evangélicos. Em São Paulo, o encaminhamento dado ao assunto pela Secretaria Estadual de Educação alijou os atores religiosos do processo de definição dos conteúdos do ensino religioso. Ao invés de se dirigir ao Conselho de Ensino Religioso do Estado de São Paulo, formado por representantes de vários credos em 1997, a Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas procurou a colaboração de professores do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas. O resultado dessa colaboração foi a produção de um material, reunido em cinco volumes, que serviu de base para a capaci150

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tação de docentes da rede estadual interessados em oferecer a disciplina de ensino religioso. A primeira capacitação ocorre ao longo de 2003. Preside a elaboração do material uma proposta de “ensino de religiões” (por oposição ao “ensino da religião”) e se exige dos professores interessados uma formação em história, filosofia ou ciências sociais, as mesmas abordagens que inspiram o material que os capacita. Depois de apontar esses contrastes e sem anulá-los, proponho observações complementares ao que já foi exposto até aqui, cujo sentido comum é produzir algumas aproximações entre as duas situações. Parece-me que assim que se tem um quadro mais adequado para acompanhá-las. A apresentação é novamente esquemática. (i) O papel da Igreja Católica no caso fluminense é bem claro. O projeto que deu origem à lei de 2000 sobre o ensino religioso foi proposto por um deputado com forte inserção na Renovação Carismática e com vínculos evidentes com a Arquidiocese da Cidade do Rio de Janeiro. Por parte desta, houve, nas intervenções de seu Bispo Auxiliar até 2005, um esforço no sentido de fundamentar ideologicamente o modelo confessional. Pressões católicas parecem ter sido decisivas para a realização do concurso de 2004 e, desde então, é a Igreja Católica, entre os atores religiosos, o “parceiro” mais recorrente da Secretaria Estadual de Educação em suas iniciativas no campo do ensino religioso. Vimos como no caso paulista os atores religiosos foram alijados do processo de definição sobre o ensino religioso. Isso só ocorre com a intervenção do Conselho Estadual de Educação nesse processo. Anteriormente, verificamos que a Igreja Católica não está ausente: quando a lei de 2001 foi promulgada pelo governo, os únicos representantes católicos presentes ao lado do autor do projeto eram figuras da alta hierarquia católica. Segundo Lui (2006), o próprio autor do projeto na Assembléia Legislativa era coordenador da Renovação Carismática e o apresentou sob a orientação de uma das regionais da CNBB. Embora não tenhamos acesso aos discursos com que a Igreja Católica apoiou os termos bastante gerais da lei de 2001, esse apoio pode ser explicado por duas razões. A primeira remete à vitória sobre as resistências do governo anterior em deliberar sobre o assunto. A segunda aposta em uma leitura favorável da recomendação contida na lei de que “para o estabelecimento do conteúdo programático do ensino religioso deverá ser ouvido o Conselho de Ensino 151

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Religioso do Estado de São Paulo e outras entidades civis representativas das diferentes denominações religiosas” – afinal, a Igreja Católica é que conduzia e hegemonizava o discurso do Coner. A Secretaria de Educação, como vimos, preferiu construir outras parcerias. Mesmo assim, permanece a ser investigado o papel e a força de agentes religiosos sobre as concepções dos professores de ensino religioso, algo que a formação em história, filosofia ou ciências sociais não necessariamente invalida. Por essas várias razões, precisamos procurar saber melhor o papel da Igreja Católica na situação paulista, sob a suspeita de que há muito mais para explicá-la do que as diferenças ideológicas (em termos de progressismo e conservadorismo) em relação aos correligionários do Rio. (ii) Uma das condições que caracteriza o ensino religioso, desde as provisões constitucionais, é a matrícula, por parte dos alunos, ser facultativa. Nesse caso, sugiro que podemos ver uma aproximação entre São Paulo e Rio de Janeiro pelo fato de que nos dois casos notam-se tendências que contornam o caráter facultativo. Dessa vez, comecemos por São Paulo. Cunha e Cavaliere (2005) notam com razão que a deliberação do Conselho Estadual de Educação paulista, ao estabelecer que o ensino religioso oferecido pelos professores de 1ª. a 4ª. séries (ensino fundamental) seria tratado como “tema transversal”, acaba por incorporá-lo ao conteúdo programático geral – o que invalidaria a condição facultativa enquanto disciplina específica. Algo semelhante ocorre considerada a solução encontrada para a oferta do ensino religioso em uma das séries da segunda metade do ensino fundamental. Pelo menos é o que podemos afirmar da leitura do relatório em que se baseia a mesma deliberação do Conselho Estadual de Educação (apud Lui, 2006, p. 106-113). Pois a abordagem escolhida, ao falar “sobre” as religiões, e não de seu ponto de vista, contornaria as recusas conhecidas para a não frequência à disciplina, sugerindo que ela pode e deve fazer parte da formação de qualquer aluno. Reforçando essa interpretação, há ainda a possibilidade prevista de que organizações e entidades religiosas utilizem o espaço das escolas para oferecerem voluntariamente atividades confessionais fora do horário curricular – essas sim, claramente facultativas aos alunos. Quanto ao Rio de Janeiro, já existem informações que mostram que, em várias escolas, não se anuncia que a matrícula na disciplina de ensino religioso é facultativa. Essa parece ser mais a regra do que a exceção. 152

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Igualmente significativo, porém, é o fato de a disciplina não estar sendo oferecida para muitos estudantes. Isso se deve, em parte, à própria lógica confessional que, em tese, deveria proporcionar, para cada turma, tantos professores quantos fossem os credos dos alunos. Isso corresponderia a um número enorme, impossível na prática de ser atingido. O próprio concurso de 2004 recorreu a uma simplificação, agrupando os credos em três classes (católicos, evangélicos e outros). Mesmo assim, e considerando a contratação de quinhentos professores, o déficit é evidente. Há escolas sem professor de ensino religioso. Há outras com professor(es) de apenas um dos credos. E mesmo onde há professores de mais de um credo, a regra é que as turmas só tenham acesso a um deles. Enquanto em São Paulo, a opção pelo modelo supraconfessional tende a tornar o ensino religioso obrigatório na formação dos alunos, no Rio de Janeiro a confessionalidade contribui para tornar inepta a obrigatoriedade da oferta da mesma disciplina pelas escolas. Trata-se, claro, de uma observação sobre a situação geral, que não impede de constatar seja que alunos, em São Paulo, continuem a apelar para o caráter facultativo para se recusar a frequentar o ensino religioso, seja que há escolas no Rio que tornam praticamente obrigatória a frequência a um curso definido em termos confessionais. (iii) Se continuamos a enfocar o caso do Rio de Janeiro, o que vimos percebendo é a predominância da seguinte situação: professores confessionais optando por conteúdos que eles próprios definem como não confessionais. Isso é justificado, em parte, pela não efetivação do modelo confessional, tal como vimos acima, mas pode vir também acompanhado de um discurso que destaca outro entendimento sobre o ensino religioso. Posso dar um exemplo com a entrevista que nos concedeu, em 2005, um professor de ensino religioso, católico, de uma escola de Duque de Caxias. Chama a atenção a ambiguidade de suas afirmações: “(...) eu me adequo muito mais à conjuntura prática [ou seja, a não implementação da lógica confessional], apesar de que quando tiver outra orientação, vou repensar e vou ver se esse [modelo confessional] é o caminho que devo trilhar ou se vou abrir mão desse caminho por não acreditar no confessionalismo dentro da escola pública por ser laica”.

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“A Lei Federal diz que é obrigatório para a escola e facultativo para o aluno, mas também diz na Constituição que faz parte da formação integral da pessoa humana. Se a pessoa humana tem que ser formada num todo (...), tem que ser trabalhada a questão da dimensão religiosa dentro de seu cerne, de seu princípio, que são os valores éticos e o transcendente. Tomando a cultura da realidade brasileira, o transcendente é Deus. Apesar de que devemos mostrar outras culturas, outras religiões...” “Trabalharemos a questão dos valores, dignidade humana, e também cidadania, trabalhando a questão da pessoa humana como um ser religioso, não somente como ser social, um ser político, e motivado por essa questão religiosa fazer seu papel. E existe um pedido por parte da coordenação de trabalharmos Jesus Cristo como paradigma de pessoa humana”. 1

Vê-se, nessas visões, como o argumento desliza entre a contestação e a aceitação da confessionalidade, entre a centralidade de Deus e a necessidade de mostrar “outras culturas”. Nelas, o ensino religioso é, ao mesmo tempo, facultativo e imperativo, conseguindo, ademais, conciliar princípios religiosos com outros tidos como seculares. Não tive acesso a nenhum exemplo correspondente para o caso de São Paulo, mas não é preciso entrevistar os professores para perceber também aí a existência de ambiguidades e a possibilidade de deslizamentos quanto ao sentido que toma o ensino religioso em escolas públicas. Se na definição dos professores que elaboraram o material que serviu à capacitação promovida pela Secretaria Estadual de Educação predomina um distanciamento compatível com a abordagem histórica e socioantropológica2, o tom já se modifica quando passamos à visão de duas pessoas que participaram da equipe de capacitação: A abordagem, em termos mais estritos, procura oferecer uma visão sobre o ‘fenômeno religioso’ considerado na sua pluralidade e no vínculo indissociável entre textos e práticas. As religiões devem ser



A entrevista foi realizada por Luciane Rocha, que atuou na pesquisa que venho coordenando. Uma visão mais geral sobre esse professor e a escola em que trabalha foi oferecida no seminário “Religião na Escola”, realizado em 6.12.2005 (GIUMBELLI, 2005) A Resolução 21, de 29.1.2002, do Conselho Estadual de Educação, estipula o conteúdo da disciplina em termos de “História das Religiões”, cf. LUI (2006, p. 114).

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Capítulo 6 – Ensino religioso na escola pública e algumas questões mais gerais sobre religião e sociedade

apresentadas como parte de um patrimônio cultural histórico coletivo e como constitutivas das identidades pessoais. Mas a proposta guarda ainda uma ambição maior: discutir ‘valores’ e ‘princípios éticos’, estimulando-se a ‘tolerância ativa’ e a ‘compreensão do outro’. Através do ‘conhecimento da religião do outro’ (e sem partir do pressuposto de que ‘todas as religiões são boas’), pretende-se ‘compreender a existência de pontos comuns éticos e de convivência em grupo nas mais diferentes culturas’. (VIANNA, BELLOTTI e BASSINI apud GIUMBELLI, 2004, p. 55).

Vejamos agora como o Secretário de Educação, ao apresentar o mesmo material, expressou sua visão. Os “valores e princípios éticos” aqui evocados ganham um acento mais moral, compatíveis com certas ênfases religiosas. O ensino religioso tem de ser uma ponte que conduza os estudantes ao caminho do bem, aos valores humanistas construídos com as bases sólidas do amor, da fraternidade, da bondade, da honestidade, da humildade e, principalmente, do respeito àqueles cujas opiniões divergem das nossas. São conceitos, infelizmente, cada vez mais escassos num mundo onde prevalece a coisificação provocada pelo materialismo. É papel dos educadores lutar para reverter esse quadro, sob pena de comprometermos a qualidade do futuro das novas gerações (CHALITA apud LUI, 2006, p. 74).

Por fim, vejamos os termos do decreto de junho de 2002, que ratifica o entendimento imprimido pelo Conselho e a Secretaria estaduais de educação e ao mesmo tempo introduz uma condição religiosa: O Ensino Religioso (...) terá caráter supraconfessional, devendo assegurar o respeito a Deus, à diversidade cultural e religiosa, e fundamentar-se em princípios de cidadania, ética, tolerância e em valores universais presentes em todas as religiões. (apud LUI, 2006, p. 121).

Enfim, parece que, ao considerarmos os casos de Rio de Janeiro e São Paulo, a questão dos “valores”, em toda sua ambiguidade e polissemia, 155

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vem se tornando crucial. Ela pode ser o ponto de encontro entre modelos diferentes de ensino religioso em escolas públicas. E ela se configura em um campo semântico que evoca uma relação necessária entre religião, moral, civismo, formação e cidadania. Eis aí um tema cujo entendimento precisamos aprofundar em nossas pesquisas.

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Capítulo 7 Um estranho no ninho: uma experiência protestante em escola laica no Recife Roberta Bivar Carneiro Campos

Introdução do problema: pluralismo e (in)tolerância A questão da intolerância tem sido objeto de reflexão de filósofos, cientistas políticos, sociólogos e antropólogos em todo mundo. Tal esforço intelectual não poderia se ausentar num mundo onde o pluralismo tem se tornado o contexto e o valor das mais diversas sociedades (BERGER e LUCKMAN, 2004). Com o pluralismo como valor, do contrário da pacificação e harmonia, surge a crise de sentido e a intensificação de conflitos raciais, religiosos e étnicos.  A análise dessa situação paradoxal tem se acompanhado da defesa dos direitos humanos e de uma agenda multicultural (WALZER, 1999). Nesta discussão, o papel da escola torna-se fundamental. Ensinar as crianças a tolerar/respeitar e de que o multiculturalismo pode dar certo é salientado por muitos cientistas sociais como Maybury-Lewis, 2003; Héritier, 1998, Taylor (1994) e Walzer (1999). Apesar de o Brasil ser entendido por muitos como paradigma de multiculturalismo bem sucedido (BRUMANA, 2002; MOTTA, 1998), muitos autores e líderes de movimentos sociais apontam para a fragilidade desta ideia (MOTTA, 1998). A suposta confraternização entre culturas no Brasil, expressa na ordem tradicional sincrética, significaria uma tolerância complacente e arrogante mais do que real respeito pela diferença. Ao mesmo tempo, a literatura sobre processos culturais e identitários informa que um dos efeitos da globalização é o reforço das referências culturais locais. Para o caso que abordarei aqui, interessa entender que o nordeste brasileiro, contrastando com o resto do país, é, talvez, a região mais católica do Brasil. Pernambuco se destaca por um processo de revitalização da cultura local expressa em manifestações culturais com forte tradição ca-

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tólica e afro-brasileira. Tais manifestações vêm sendo acionadas por diversos atores socais na valorização de uma memória histórica e cultural constitutiva de uma identidade local (pernambucanidade), onde tradições religiosas se apresentam como fonte identitária. Em outras regiões do país, como o sul e o sudeste, segundo relatos de pesquisadores, conflitos estariam sendo gerados no espaço escolar do setor público mediante a agenda multicultural do Estado, com enfoque na valorização das tradições de cultura popular, fortemente marcadas pelas tradições religiosas católicas e afro-brasileiras: professores evangélicos resistiriam incluir nos conteúdos programáticos das disciplinas as referências à cultura popular. Silva (2007) comenta sobre reações e ataques neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil em contexto escolar: Com a recente decisão do Ministério da Educação pela inclusão da temática ‘História e Cultura Afro-brasileira” no currículo oficial da rede de ensino, livros didáticos abordando o assunto começam a ser produzidos. Sendo as religiões afro-brasileiras parte dessa história e cultura, suas características têm sido abordadas de forma não sectária ou proselitista, como convém a um material didático destinado ao ensino laico, humanista e de difusão da tolerância à diversidade cultural. Colocar nos livros escolares, entretanto, as religiões de origem africana ao lada das religiões hegemônicas, como o cristianismo, dando-lhes o mesmo espaço e legitimidade destas últimas, têm gerado, por si só, protestos. Foi o que ocorreu com uma coleção de livros didáticos destinada ao ensino fundamental, lançada por uma editora de São Paulo. No volume indicado para a segunda série, no capítulo “Nossas Raízes Africanas”, a autora trata da formação das religiões afro-brasileiras, inclusive com exercícios pedindo para as crianças pesquisarem sobre a história dos orixás. Uma coordenadora pedagógica evangélica de Belford Roxo, Rio de Janeiro, protestou junto à editora alegando que o livro fazia apologia das religiões afro-brasileiras e que não seria adotado em sua escola, onde a maioria dos alunos e professores, segundo ela, era evangélica. A mesma coleção tembém gerou protesto na Câmara da cidade de Pato Branco, Paraná, onde um vereador e pastor evangélico denominou o “livro do demônio”e pediu a cassação da coleção. (2007, p.18-19) As transformações no campo religioso podem estar dessa forma trazendo conflitos e tensões para o espaço escolar. Burity (1997) já comentou 158

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que os (neo)pentecostais, no Brasil, vêm abalar a crença na relação entre nacionalismo e catolicismo. Sobre isso não é demais lembrar que muitos autores, na década de 1960, viam o pentecostalismo como “ameaça” à cultura popular, destaco aqui um trecho do cronista pernambucano e também sociólogo Carneiro Campos (1967, p.51-2)1 Pouco a pouco os trabalhadores vão abandonando a sua antiga “lei’. “Lei” que foi de seus pais e de seus avós. Aumenta, dia a dia, o número de espíritas e protestantes, estes muitos mais que aqueles. Desaparecem procissões com trabalhadores conduzindo o padroeiro pelas esplanadas dos engenhos. Procissões de pessoas das casas-grandes confundidas com os trabalhadores. Tornam-se raros os meses de maio, aproximando empregados e empregadores, passando um mês orando juntos. Diz Alfred Weber que a Reforma avexar de ter colocado o homem em contacto direto com Deus, sem intermediários, ligou-o, porém, com férrea cadeia à Escritura – à tradição e à doutrina contida nesta. (23) É o que observamos entre trabalhadores rurais em Pernambuco, entre os convertidos ao Protestantismo, homens via de regra trabalhadores, mas correndo o risco – possuidores que são de condições econômicas tão desfavoráveis – de serem colocados, como já foi dito, pela nova religião que adotaram, num mundo ainda mais sóbrio, cheio de restrições. Risco de se perderem expressões tão vivas de nossa cultura: festas de padroeiro, compadrio, ex-votos, bumbas-meu-boi, pastoris. São expressivos os versos do poeta popular Leandro Gomes de Barros, no folheto Debate do Ministro Nova-seita com o Urubu: Não achas mais poesia Na velha religião?jejuar pela quaresma Soltar fogos em S. João? Ir à missa do natal Ouvir a Santa Missão? É de se destacar que ao mesmo tempo em que o Protestantismo se apresenta como algo mais sóbrio em contrate com a cultura católica ligada às festas (carnavalização), no texto de Renato Carneiro Campos esta religião também se apresenta como uma revolta de caráter político-social e resposta à anomia. “O desenvolvimento do Protestantismo, entre trabalhadores, expressa, sociologicamente falando, a resposta a uma perda de valores culturais sofrida por uma grande parte da população rural da zona da mata. Queremos dizer: valores culturais perdidos pelo nomadismo do trabalhador, pela mentalidade do desenvolvimento industrial, pós-patriarcal, pelo declínio das estruturas e organizações tradicionais (...) O protestantismo, na zona canavieira, em grandes proporções, veio substituir um credo ligado ao patriarcalismo, introduzindo uma possibilidade opção ao mesmo tempo que se desmoronava, por causas diversas, as velhas estruturas conservadoras. (CARNEIRO CAMPOS1967, p.50)

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Patrícia Birman comenta sobre essa perspectiva nos estudos sobre afro-brasileiro mais recentes: Estou supondo que a motivação para estudar os cultos afro-brasileiros diminuiu na medida em que estes, pouco a pouco, deixaram de ser referência importante para pensar a articulação do religioso tradicional com a totalidade nacional. O “tradicional”, desse ponto de vista, estaria mais do que nunca em vias de desaparecimento, como conseqüência do crescimento dos evangélicos. A perda da ‘substância destes cultos teria engendrado outros efeitos; um enfraquecimento relativo da cultura negra, ou do Brasil mestiço cujos fundamentos seriam essencialmente religiosos (BIRMAN, 2007, p.189).

Saudosismos à parte, não podemos deixar de observar o declínio das religiões tradicionais no último censo, e de reconhecer que de fato a tradição protestante, de um modo geral, expressa-se através de um ethos e de uma visão de mundo bastante distinta, e até mesmo em oposição, à lógica sincrética, que se convencionou como a lógica cultural brasileira. É nessa tensão que o caso etnográfico que tratarei a seguir se realiza.

O caso etnográfico: convergências de categorias na fabricação da intolerância entre crianças A etnografia que se segue aborda uma experiência traumática de intolerância religiosa entre crianças do ensino privado e laico. O caso é abordado da perspectiva da vítima e de sua mãe que cacterizam a experiência como “perseguição” e bullying religioso. Trata-se de uma criança protestante, de família presbiteriana, hoje pré-adolescente, estudante, na época, de uma escola laica, construtivista e de classe média alta e alta da cidade do Recife2. A primeira vez que tive conhecimento dessa experiência traumática de intolerância foi através de um dos parentes da “vítima”, 2

As identidades dos envolvidos serão preservadas por questões éticas, os nomes das personagens envolvidas são, portanto, fictícios. Este caso foi a pista que segui na elaboração de um projeto de pesquisa, recentemente aprovado pelo CNPq, que está se iniciando.

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uma tia, pertencente ao meio acadêmico. Juliana é uma menina esperta e bem humorada, de personalidade forte e crítica. Hoje demonstra tranquilidade e aparente superação da experiência traumática, em contraste com forte sentimento de culpa que a mãe expressa. Relata os episódios que envolveram violência física, acusações e xingamentos, e abandono pela instituição escolar, com superioridade e ironia. Segundo os relatos da mãe e filha, Juliana seria a única evangélica do grupo, sendo os demais colegas e professores identificados por “católicos” ou “espíritas”, com a exceção de uma professora evangélica, que se destaca no relato por ter sido a única a intervir na situação, reconhecendo o sofrimento e o bullying. Não foram poucas as situações relatadas por Juliana, descritas por ela mesma como momentos de solidão, amargura, depressão, tristeza e revolta. Bastava o professor sair que vinham só os meninos para cima da minha banca pra ficar tirando onda comigo, ou xingando assim, pegando meu material, assim (...); E quando o professor chegava eu dizia pro professor, tudo se fazia de santinho, ele perguntava para a sala e a sala dizia que eles não fizeram nada, que eu tava inventando. (...) Eu era muito amargurada. Eu chorava todo recreio. Eu voltava todo dia pra casa chorando. Era... eu ficava assim deprimida, assim sozinha, me sentindo muito mal. No primeiro dia de aula da quinta série teve aula de história, aí eu cheguei lá e fiquei na porta, esperando lá, para quando abrir eu entrar. Aí o povo veio atrás, aí começaram a me espremer na porta. Assim, todo mundo assim, êêêê... Aí eu pêra aê!!!eu to na frente, né não?Na fila, pelo menos, né? Aí foi quando a professora abre a porta me derrubam no chão, pisam em cima de mim. Por que você acha que eles faziam isso? Porque eu era a mais nova da sala, porque eu era... eu sou evangélica, porque eu tirava muitas boas notas comparando com o pessoal. (...)

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Eu não tinha amigos, eu ficava o recreio todinho sozinha. Eu ficava... no início, antes de eu descobrir que tinha biblioteca lá, eu ficava andando sozinha, aí quarenta minutos de recreio e eu ficava doida que aquilo terminasse logo... (...) Eu chegava na hora do recreio, via o grupinho e eles “olha ela lá”, aí eu saía correndo, eles iam correndo atrás de mim pra fazer rodinha e ficar tirando onda comigo. _ E o que eles diziam nesta hora? Capeta! Coisa e tal, assim. (...)

Juliana certamente passou por aquilo que Taylor (1999, p.45) chama de reconhecimento incorreto. “O não reconhecimento ou o reconhecimento incorreto podem afetar negativamente, podem ser uma forma de agressão, reduzindo a pessoa a uma maneira de ser falsa, distorcida, que a restringe”. Um dos efeitos do não reconhecimento seria a indução à adoção de uma opinião depreciativa de si mesmo/a. De fato, Juliana chega a comentar que teve um momento que ela começou a acreditar que o problema estava com ela mesma: Às vezes eu achava que eu era chata mesmo. Aí eu jogava pra cima de mim às vezes. Eu devia ser chata e coisa e tal. Às vezes, pensava: vou tentar aguentar, mas assim aguentar, eu vou carregar um peso nas costas, uma eu hora eu... aí no dia que eu disse não aguento mais (imitando um grito), explodi de vez, eu não aguentava mais, eu tava no meu limite.

Para além da adequação da noção de intolerância religiosa ou, para usar as categorias empregadas pela mãe, perseguição e bullying religioso a este caso. Interessa, em especial, perceber como a categoria religião torna-se relevante para a interpretação e organização da experiência de sofrimento de Juliana no seu relato e no da mãe. Neste sentido, sigo a reflexão de Douglas e Hull (1992) sobre os escritos de Nelson Goodman quanto ao problema da indução. Para Goodman classifi162

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cação é organização e não simplesmente algo adicionado a posteriori. Importa ainda também levar em conta que organização pode ocorrer sem seleção consciente e a seleção de categoria ou tipos são feitas sem o conhecimento dos efeitos que a classificação terá sobre a organização. E sobre classificações de tipo humanos, Ian Hacking (1992), também refletindo sobre os escritos de Goodman, salienta os efeitos biográficos de categorias jurídicas como child abuse não só no presente e futuro mas na reinterpretação e reorganização biográfica do passado. A referência à categoria child abuse pode ser relevante para este contexto, pois nos relatos surgirão também uma categoria jurídica, recente no Direito brasileiro, “bullying”. Foi quando assistia, junto com a mãe, a uma reportagem sobre bullying que Juliana conseguiu convencer a mãe de seu sofrimento dizendo “É isso que tá acontecendo comigo”. Vamos ao caso. A família de Juliana é representativa das camadas médias urbanas, o pai bancário, a mãe pedagoga, moram em bairro também de classe média. Apesar da forte tradição confessional protestante na família, após algumas passagens em outras escolas, Juliana é matriculada numa escola laica, de classe média alta e de grande reputação na cidade por seu modelo pedagógico construtivista, combinado com responsabilidade ecológica e social. A mãe como pedagoga, se encantou pelo modelo e do que pretende oferecer em termos de valores e conhecimento. Eu fiz pedagogia, eu sempre gostei da linha construtivista, entendeu? Então eu sempre procurei colocar em escolas que tivessem mais ou menos essa linha. Ela estudou, fez o pré-escolar no Americano Batista, não por que era evangélico, mas porque tinha professores que faziam um trabalho muito bom. Eu sempre procurei ver mais o lado pedagógico que a questão religiosa. (...) O (******)3 era para mim a escola ideal. Para mim, era um sonho ter uma filha estudando no (******) (...) era tudo o que eu queria em questão pedagógica, entendeu? Tudo o que eu queria. (...) Eu vi que tava no céu. Vai sair daqui com uma coisa... vai sair sabendo tudo, com tudo, quer dizer: vai sair daqui pronta. 3 Referência à escola em tela. Por questões éticas omiti o nome da escola.

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Juliana é Filha de pais protestantes da igreja presbiteriana e neta de Pastor, da mesma igreja. A referência à “família do Pastor” é importante, pois como salienta Fernando Duarte, A diferença crucial em relação ao universo católico e a preeminência da vida congregacional, que põe em ação um controle muito mais direto e efetivo dos modos de atualização das carreiras pessoais e familiares. A exemplaridade da vida familiar se enriquece nesse universo da possibilidade do matrimônio dos sacerdotes. A família do pastor é um fenômeno importante desta configuração, contribuindo ainda mais fortemente para um liame imaginário ideal entre família do fiel e congregação (DUARTE, 2006, p. 33).

A exemplaridade do comportamento de Juliana será ponto de grandes conflitos entre seus colegas na escola. Juliana entra na escola em tela, na terceira série do ensino fundamental, mas os conflitos só se intensificarão na quarta e quinta séries. Observa-se que Juliana além de ser a mais nova da turma, é a mais aplicada e a única protestante. A exemplaridade de seu comportamento sempre foi obstáculo na socialização com os colegas independente da laicidade da escola. Tirar boas notas e não dar fila (cola), e ser de modo geral bem comportada, de fato não são atributos que fazem de uma garota ser popular, independente da religião que professe. É, no entanto, somente na escola laica que, de acordo com Juliana e a mãe, que ocorrerá uma convergência entre a exemplaridade do comportamento com a religião na configuração dos conflitos com os novos colegas. A mãe comenta: Estudou no Americano não teve nada, estudou a 1ª e 2ª série numa outra escola (..) as donas eram evangélicas e tinha um “cultinho”, tinha toda essa coisa. Juliana não teve problema nenhum. Tinha briga de crianças, essas coisas como sempre. Não era uma perseguição como existia no (****). Era briga mesmo de criança.

E acrescenta que o fato de não dar fila sempre foi um problema mas que nunca se configurou, como ela diz, em “perseguição”. 164

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Eu acho que isso (não dar fila) que isso piorava, como no Agnes (colégio confessional protestante) teve essa questão. Tanto que eu tive que conversar com ela essa questão de não dar fila. E assim, quando chegava a época de prova, todo mundo tava legal, maravilhoso com ela. Claro! No próprio Agnes, mas não era uma coisa que ela não conseguisse lidar.

O curioso, entretanto, é que na terceira série na escola laica a religião não era uma categoria relevante na interpretação dos conflitos ou de sua estruturação. É só mais tarde, na quarta e quinta séries que os atributos de comportamento exemplar de Juliana serão conjugados com outra categoria “ser evangélica”, tornando-se religião a categoria relevante para a interpretação da experiência e sua organização. Sobre isso Juliana tenta explicar e relata: O jeito dos alunos assim, é... eu não brincava. Eu não sei, eu era mais criança, então eles não tinham muita confiança, tiravam onda. Eu perguntava: eu posso brincar com vocês? “Não por que você é pirraia”, esse tipo de coisa. (...) Porque eu era a mais nova da sala, porque eu era, eu sou evangélica, porque eu tirava boas notas comparando com o pessoal... eu sei que me consideram muito inteligente. E tinha gente que não gostava disso. Muito feio, assim. É eu me lembro, assim eu perguntava pras meninas assim: por que é que elas não queriam andar comigo, porque eu ia atrás delas e elas iam logo... (...). Elas respondiam, ‘porque você é muito certinha, porque você não dá fila, porque você não fala palavrão, por que isso? Por que aquilo? É um saco isso, por que você tem de ser podre para ter que andar com as outras? Devia ser o contrário! Eu me lembro até de uma coisa, quando eu tinha oito anos, e eles tinham oito pra nove, na terceira série. Tava uma rodinha lá e eu tava fora, tavam conversando, aí falavam ‘pô fulano’ e eu “ o que é que vocês estão falando?’ , aí sabe o que é que eles estavam falando? Cada um tava dizendo de quem da sala, que tem oito anos para nove, iriam transar. Eu: “o que é isso?”

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E ainda eles me disseram, me disseram: Como você reagiu? Eu fiquei na mesma. Não entendi. É muito esquisito ouvir assim pá, pá, pá, tudo baixinho falando daquilo. Eu nem sabia o que era (risos). Aquilo ali eu contei pra minha mãe e ela ficou chocada com isso, porque oito pra nove, falando daquilo... e eu nem sabia o que queria dizer aquilo.

Um dos pontos que podem ser ressaltados no relato de Juliana para entendermos como se dá a convergência entre comportamento exemplar e religião na configuração do conflito no espaço escolar laico, é a diferença de nível entre as vivências de sexualidade entre ela e seus colegas. A sexualidade de seus colegas se apresenta como precoce para seus parâmetros de referência familiar e religiosa, somando-se a isto, há a questão da moral e costumes evangélicos em contraste com aquela das crianças de classe média urbana que assistem a novelas e vivenciam outras referências moralizantes da sexualidade infantil e de seu uso na linguagem. Não é por acaso que Juliana e a mãe reconhecem em suas falas que o conflito se intensificará da quarta para a quinta série, uma fase do ciclo de vida onde crianças não evangélicas, ou oriundas de famílias mais liberais passam a expressar mais abertamente sua sexualidade. A diferença de interesses e vivências parece ter contribuído na dificuldade de inclusão de Juliana na sociabilidade escolar. O ethos protestante de Juliana torna-se impedimento para a construção da confiança e da cumplicidade entre os colegas. Somando-se a diferença de maturidade ou precocidade afetiva e sexual (não quero entrar no mérito ou na questão técnica da apreensão da sexualidade infantil), tem-se ainda a diferença de interesses mais gerais que envolvem consumo de bens midiáticos, como filmes e novelas. Juliana chegou a ler um dos livros Harry Potter, inadvertidamente, pois ganhou de um tio-avô ateu e antropólogo. Mas com a orientação da mãe declinou a leitura e tem hoje uma visão crítica sobre esse tipo de literatura. Sobre como ver os colegas e seus interesses nesses assuntos, tem uma postura crítica e superior. Juliana, por exemplo, entende que seus colegas eram na maioria espíritas porque acreditavam em tudo que aparece nas novelas da Globo, e acrescenta: 166

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Eles são experts em novela das oito, pode ter certeza! Falando sobre Harry Potter, Eu tenho que dizer que eu acho a história muito criativa, muito interessante, muito atraente (...) Eu li o primeiro, eu achei incrível porque é um livro muito criativo e acentua assim aquela paz. Agora, passou uma coisa até na internet que ela escreveu esse livro no dia em que a mãe dela morreu (...) o personagem principal da história dela é a morte, no meio tem morte e termina com morte, aí tem que ver o que tem por trás dessas coisas porque tem gente que acha porque, para dizer assim, é legal, como e que pode ser ruim? Por que as pessoas pensam o quê: Que só o que não é legal é coisa do Satanás? Mas pelo contrário, ele só vai fazer as coisas que atraiam as pessoas, não é? Assim que chame atenção, porque senão não tinha ninguém que ia querer coisa ruim. O mundo ia ser Santo.

Acrescenta, em tom crítico: Eu achei engraçado: os bruxos lá que faz as magias são bruxos. E quem não faz é trouxa! Quem não é bruxo é trouxa! Ele vivia com trouxas. A mãe dela (se refere à Hermione, personagem de uma menina filha bruxa filha de não bruxos) é trouxa. Os pais dela são trouxas. Trouxa, trouxas, é isso!

Interessante aqui perceber a possível identificação de Juliana com a personagem Hermione, como se fosse essa a representação dela pelos colegas, na visão permitida pelo livro Harry Potter. A mãe então comenta: “aí eu li um livro também falando sobre Harry Potter, aí foi que eu proibi. Não vai ler mais, não vai ler”. Fica claro que muitos dos interesses e objetos consumidos pelos colegas de Juliana são interpretados como magia, seja no sentido de bobagem, besteira como as novelas da Globo, seja como algo ligado a Satanás. De fato, as muitas igrejas evangélicas no Brasil satanizaram Harry Potter, apesar da autora do mesmo ser da Igreja Episcopal Escocesa. Interesses comuns são realmente elementos da tessitura do laço de amizade, permitem a construção da confiança, sentimentos de cumplicidade 167

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e camaradagem. A ausência de compartilhamento de interesses e vivências parece ter tido papel importante na fabricação do conflito. No caso em tela, outro fato relevante ganha verdadeiro destaque na carreira moral da experiência identitária de Juliana e de sua experiência traumática. (GOFFMAN, 1975). A declaração de sua identidade religiosa parece ter tido crucial importância na definição da situação, no sentido goffmaniano, estruturando a interação de conflito, como religioso, e o seu desencadear como “perseguição” e bullying religiosos, tal qual se apresenta nos relatos da mãe e da vítima. A gente conversando, aí eu ia falando, eles gostavam de fazer certas coisas erradas, assim, né: Aí pediam para eu fazer também essas coisas erradas, já notavam assim que eu não falava palavrão, que sempre eu não falava, e eu não gostava ter uma pessoa falando o tempo todo perto de mim, aí eu saía e eles perguntavam porque. E eu não ia repetir. Aí aquilo ali começava a estressar eles, assim. Aí já perguntavam por que é que eu era assim, aí eu dizia: eu sou evangélica. Isso explica tudo. Aí eles, pronto! Porque na terceira série eu não falei direto: eu sou evangélica, aí eles... foram percebendo e perguntavam por quê.

Não fica difícil imaginar que toda situação passe a ser organizada a partir da categoria evangélica, na sua perspectiva, e como no seu relato é representada a perspectiva das outras crianças. A diferença ganha um nome, é organizada e lhe é dado sentido, visto que Juliana é branca e de classe média tal qual eles. Do ponto de vista de de raça e de classe social, Juliana não divergiria do restante, ou pelo menos da maioria do grupo, apesar de que pelo perfil da escola (valor mensalidade, etc.), o poder aquisitivo de sua família não parece ser assim tão equivalente ao da maioria das outras famílias. Entretanto a mãe faz questão de reforçar que, mesmo não tendo o mesmo poder aquisitivo, essa diferença não seria visível para os colegas, visto que por Juliana, na época, ser filha única, tinha tudo do bom e do melhor, talvez o melhor caderno, mochila, borrachas, lápis e canetas. Muito desse material fora trazido por uma tia que morava no exterior. Como diz Juliana: 168

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É só por causa de religião mesmo. ...vão tentar achar qualquer coisinha, foi assim comigo, tentavam pegar qualquer fiozinho pra dizer que eu era evangélica, coisa e tal, e começar a ficar falando coisa comigo. Por exemplo, na quarta série chegou na sala um novato, um menino e nos primeiros meses ele foi meu melhor amigo lá no colégio. Super bacana comigo, onde ele ia eu ia junto. Onde eu ia, ele ia também. A gente ficava o tempo todo junto. Aí, do nada, o pessoal começou a tirar onda, falando coisa assim, né? Aí ele resolveu virar meu pior inimigo lá do colégio. Muito chato. Aí como eu, pelo menos eu era a única que dizia que era evangélica na sala. Aí ele começou a dizer que a minha religião era do demônio, coisa assim, e o apelido que ele me botou era de capeta e ele só me chamava daquilo. Ele não me tratava nem como “ela tá vindo”, ele falava “ele”. Aí não é só assim, por exemplo, professor saía da sala, eu não entendo porque essa marcação, porque bastava o professor sair que vinham só os meninos pra cima da minha banca pra ficar tirando onda comigo, ou xingando assim, pegando no meu material, assim, eu achava que ficavam fazendo babaquice, desde a terceira série assim. Saía, eu tava com um livro, aí ficava tirando onda comigo “Ô Satanás”, puxava meu livro, derrubava meu estojo, ficava mexendo assim na minha cadeira. E quando o professor chegava e eu dizia pro professor, tudo se fazia de santinho, ele perguntava pra sala e a sala dizia que eles não fizeram nada, que eu tava inventando. A sala toda? A sala se unia contra mim.

A categoria satanás, tal qual nos contextos de conflito religioso entre adultos, funciona como moeda nas trocas linguísticas entre as crianças, de acordo com Bourdieu, (1996), favorecendo acusações mútuas, legitimação de si e humilhação do outro. Da mesma forma que Juliana associa comportamentos e produtos midiáticos consumidos por seus colegas ao mal, a categoria “satanás” é usada por seus colegas para humilhá-la. Situações como de uma apresentação de dança em uma escola laica, anterior a do caso em tela, que disseram para Juliana: “você não é para tá 169

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aqui, porque você é crente e crente não dança. Sai daqui, vai, sai! Sai! Sai! Eu fiquei tão magoada com aquilo, aí todas as vezes que tinha essa aula de dança eu ficava de fora ....” O que se destaca também é o ambiente relativamente homogêneo em termos de classe. No Recife, parece haver uma coincidência entre classe média alta e catolicismo ou sem religião, de forma que a catolicidade parece ser algo que fica implícito, subentendido no espaço escolar laico no contexto do ensino privado. Ronaldo Almeida (2007) sugere a noção interessante de efeito de invisibilidade do catolicismo no Brasil por este ser coextensivo à ordem cultural. Nesse contexto, a religião de Juliana é a visível, pois declarada em função das tensões, diferenças de interesses e vivências, em contraste com a dos outros colegas, cujas religiões não se apresentam de forma clara, ou declarada. Talvez porque a catolicidade é algo implícito, mais hegemônica nesses contextos e vivenciada com naturalidade, ao mesmo tempo, que é reiterada, através das celebrações das festividades de cultura popular. Como, por exemplo, na festa de São João, que a mãe de Juliana prefere chamar de Junina, mas que é celebrada como São João. Situação que desagradou à mãe, que se surpreendeu em ver nesta festa Juliana numa procissão onde se carregava uma bandeira de São João, quando imaginava que a festa seria junina, de celebração folclórica da colheita do milho. O conflito religioso também se estabelece em função das crenças de Juliana, que, em seu relato, parecem ter sido interpretadas como afirmação de sua superioridade sobre os outros colegas. Porque ao mesmo tempo reclamam porque você é certinha, ao mesmo tempo querem mostrar você como se você fosse um monstro. E é muito esquisito isso. É uma coisa que qualquer um sente ser venenosa, né não? Ó, teve até um menino, éh.... que disse lá que porque eu sou evangélica, aí eu tava lá, aí eu disse assim, “só quem crê em Jesus é que se salva”, não é verdade? Porque Jesus é o salvador. Ele veio dizer uma coisa assim que eu disse que ele ia pro inferno porque ele não era crente, que só evangélico ia. É, ele falou que ele não é evangélico, e que só evangélico ia pro céu. Quem é que disse isso? Eu não falei evangélico, eu falei crente. O pessoal confunde. Aí fica... né não? (...)

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Ainda em outra situação, agora com uma colega: No início eu não ligava porque elas eram católicas ou espíritas. Não. Eu só queria ser amiga delas, né? Mas elas botavam isso mais à frente do que qualquer coisa, quer dizer, dizem que o evangélico é preconceituoso com os outros, mas pelo que eu notei é o contrário, porque o evangélico liga menos, assim, no meu caso, pelo menos. Eu não ligava se eles eram católicos ou espíritas, mas elas ligavam porque eu era evangélica. E depois ficavam como se eu não quisesse porque elas eram espíritas ou católicas, como se, elas diziam que “ela é evangélica, coisa e tal, aí ela acha que a gente vai pro inferno, coisa assim, aí por isso ela é toda assim” (em tom bastante irônico). Eu só queria andar com eles. Eu não ia pregar pra eles, né? Eu num sou pastora. (risos)

A literatura informa que o conflito/a hostilidade horizontal (entre iguais) seria mais presente nas camadas menos favorecidas que nas abastadas (SOARES, 1993; MARIZ; MACHADO, 1998). Muitos autores observam que a situação compartilhada de exclusão não levaria à união, mas à disputa pelo reconhecimento social (WALZER,1999). Há que se observar aqui que as camadas sociais mais favorecidas seriam mais homogêneas, em termos religiosos, ao mesmo tempo, elas adotam, como observam Mariz e Machado (1998), uma visão de mundo mais holista (representada pela Nova Era) e sincrética, e, portanto, maleável e ambígua. Acrescentaria ainda que quando as classes mais abastadas, que coincidiria com uma elite católica, experimentam a diferença, esta se localiza numa posição inferior na estrutura social e de classe, e, portanto, não é vista como ameaça e assim tratada com complacência, o que não significa que seja tratada com respeito. O caso de Juliana sugere que a sociabilidade entre crianças pode não reproduzir o ethos de classe social de seus pais, a complacência, como é descrito pela literatura, nem tão pouco respeito, que se esperaria de numa escola laica com engajamento em projetos de formação da cidadania. Apesar da mãe negar a diferença de classe, por considerar e definir a situação de classe da filha pelo consumo, outros elementos podem ter dado visibilidade à tal diferença, como modelo e ano do carro 171

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dos pais, etc.4 No relato de Juliana, de fato, aparece comentários de um dos colegas sobre o carro de seu pai. Portanto entendo que o confronto pode ter se dado verticalmente. Fazendo mais uma vez duas categorias se entrecruzarem, classe e religião; anteriormente já foi comentado o entrecruzamento entre ethos religioso familiar e sexualidade. Estaria eu dizendo que as crianças de classe média são mais intolerantes do que seus pais o seriam? Não, mas, talvez, a complacência, que não é respeito, seja do ponto vista de um desenvolvimento emocional mais elaborada e apreendida, próximo à hipocrisia que talvez, seja ainda estranha às crianças nessa fase. Ou ainda que a interação experimentada como horizontal, em vista da inexistência de uma real diferença de classe (se levarmos em conta a interpretação da mãe), não suportasse a imposição de uma suposta superioridade das crenças de Juliana e de seu comportamento exemplar, fazendo coincidir aquelas com este. Certamente tudo que ouvimos indica que o catolicismo ou a catolicidade presente em nossa cultura não nos garante a docilidade preconizada na visão freyriana, Na interpretação freyriana o catolicismo português além de ser caracterizado como tradicional e representado pelo culto aos santos, e de forte teor sincrético, é também fundamentalmente representado por um imaginário de gênero, uma religião mais feminina, acolhedora e dócil contraposta à religião da Lei do Pai, violenta e segregadora que, é, por sua vez, em geral, identificada com o Protestantismo.

Mais que conclusões, indagações O relato de Juliana indica a importância de se investigar como crianças de contextos mais heterogêneos e mais homogêneos experimentam e representam a diversidade religiosa, acredito que esta investigação pode indicar a importância de tais contextos na construção da (in) tolerância. Destaca-se, portanto, a relevância dos casos de intolerância na esfera cotidiana, por muitas vezes considerados como “episódicos” e “sem grandes repercussões”, fazendo com que os cientistas sociais deem 4

Agradeço os comentários de Patrícia Birman e Cecília Mariz sobre a relevância da diferença de classe social entre as crianças como fator estruturante do conflito, ainda que negado pelas informantes, mas sutilmente presente no relato da própria Juliana.

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Capítulo 7 – Um estranho no ninho: uma experiência protestante em escola laica no Recife

enfoque mais sociológico ao fenômeno, privilegiando a esfera pública, processos criminais, etc.5 Por outro lado, entender como crianças vivenciam a diferença no espaço escolar brasileiro torna-se fundamental para percebermos se elas estão reproduzindo valores tradicionais hierárquicos ou não, e se o comportamento efetivo das crianças reflete atitudes de respeito e inclusão da diferença ou se expressaria intolerância. Seriam as crianças das escolas públicas mais (in)tolerantes que as das escolas privadas? Em que medida existe continuidade entre o universo das crianças pesquisadas e o que afirma a literatura baseada nas falas e observações de práticas socais e culturais de adultos? Que representações e sentidos são construídos sobre a diferença religiosa em cada um desses contextos? Quais as categorias acionadas? A maneira como essas categorias se apresentam, estruturando uma hierarquia simbólica da (in)tolerância parece variar segundo os contextos sociais,  e assim o vetor da agressividade pode mudar de direção e de objeto.  Poderíamos ainda achar que Juliana estava no lugar errado.6 Aqui me alinho a Bauman (2004), quando comenta que o real respeito só pode ser construído se convivemos, se nos encontramos com o outro em algum lugar. Neste sentido, a escola laica pode ser um desses lugares de encontro e convivência para que o respeito seja construído na vivência e não abstratamente. E como define Amy Gutmann, O respeito mútuo implica, por sua vez, a vontade e capacidade generalizadas de conciliar os nossos desentendimentos, de defendê-los perante aqueles de quem discordamos, de discernirmos entre divergência respeitável, e de abrirmos e sermos receptivos à mudança quando precedida de crítica fundamentada. A garantia moral do multiculturalismo depende da prática destes méritos de deliberação (GUTMANN, 1994, p. 43).

Agradeço a Emerson Giumbelli por chamar a atenção e reconhecer, em conversa pessoal, na Oficina Religião e Cidadania, a importância do caso de Juliana como pista para futuras pesquisas. Agradeço a provocação de Patrícia Birman sobre o papel da escola laica e de qual seria o grau de laicidade que queremos nas escolas. Este mesmo ponto foi pontuado por André Ricardo de Sousa. Júlia Miranda também chamou atenção como problema correlato ao caso de Juliana a presença de estudantes carismáticos católicos nas universidades. Lamento a limitação da discussão que ofereço para tais questões, mas as reconheço como sendo, sem dúvida alguma, como relevantes para o debate.

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A pergunta fundamental, já feita por Amy Gutmann, é o que todos nós estamos tentando responder: O que significa para nós, cidadãos com diferentes identidades culturais, muitas vezes fundamentadas em etnia, na raça, no sexo, ou na religião, reconhecermo-nos como iguais na maneira como somos tratados em política?”E na maneira como nossos filhos são educados nas escolas? O problema deve ser posto só para as escolas oficiais? (GUTMANN, 1999, p. 21).

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Parte 3

Religião, Caridade e Ativismo Social

Capítulo 8 Horizontes Prático - Teóricos do Cristianismo de Libertação na Pós-Modernidade Degislando Nóbrega de Lima

Introdução Parece que, olhando assim de longe, da perspectiva da teologia cristã e da filosofia, a promoção da cidadania tornou-se condição de cidadania para os atores religiosos. Isso talvez seja sinal de um processo de redução da fé à moral no interior das próprias religiões que obtêm reconhecimento mais por seus posicionamentos éticos do que por suas doutrinas. Merecem reconhecimento de cidadania do Estado quanto maior for sua capacidade do exercício de guardiãs da ética e de adesão a uma espécie de religião civil. A partir dessa tela, minha abordagem se ocupa mais com as correntes libertadoras do interior do cristianismo. Observo com curiosidade e tento refletir sobre esse deslocamento de práticas e de reflexões fundadas ou pelo menos preocupadas com a transformação sistêmica, com algo radical em termos de transformação para um tipo de atuação mais de integração, participação num cenário cultural de afirmação da diferença. Interessa-me, sobretudo, a cogitação quanto às reservas de sentido e de significado da própria tradição cristã que poderão dar suporte performativo aos atores do cristianismo de libertação em tempos pós-modernos.

O peso da cristandade em face do espírito emancipatório da modernidade e ao postulado de legitimidade das diferenças na pós-modernidade Pressupondo o importante papel da religião para a estrutura de plausibilidade das sociedades, entendo ser relevante para a reflexão no

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interior do cristianismo sobre a performance de correntes mais identificadas com a Teologia da Libertação na cultura pós-moderna, pincelar, mesmo que brevemente, os traços e peso que representa a configuração cristã em termos de cristandade para o cristianismo em geral e, especificamente, para as tentativas de inculturação num universo que não é mais “naturalmente” cristão. Recorro a uma reflexão de Segundo (1968, p. 88) sobre a cristandade, especialmente no que diz respeito ao contexto sociocultural que possibilitou a configuração da mesma como sistema. Segundo propõe a existência de três pilares que garantem a estrutura social de plausibilidade da cristandade: o primeiro é que o período é pré-individualista. Isso significa que a pessoa se autodefine por uma categoria geral, pela sua pertença a um grupo, a uma raça, a um povo, etc. Em tal situação, o grupo funciona como um mundo fechado, que simultaneamente limita e protege, reprime e dá segurança. O segundo pilar refere-se ao isolamento em que vivem os diversos grupos humanos, fazendo com que o marco geográfico do indivíduo restrinja-se ao ambiente da vida cotidiana. Dado que, neste contexto, a dependência é muito grande tanto em relação à natureza como ante à sociedade com suas severas normas, o resultado é a redução do espaço de liberdade do indivíduo. O terceiro e último pilar diz respeito à diferenciação e à hierarquização que caracterizava a estrutura social naquela situação, de modo que tal estrutura chega a ser considerada tão imutável como as leis da natureza. Nesse contexto, quatro fatores caracterizam a dinâmica eclesial. O primeiro diz respeito à forma de acesso ao cristianismo cujo crescimento ocorre de maneira vegetativa e não por conversão pessoal. O segundo fator diz respeito à finalidade da comunidade cristã. No contexto de institucionalização, o fim principal da Igreja passa a ser o de edificar uma permanência estável no tempo à nova vida comunicada por Cristo. Isso não é em si mesmo um problema ou uma mácula para a Igreja, uma vez que consiste num pressuposto da sobrevivência de todo grupo humano. O problema aparece quando a estabilidade da instituição torna-se um fim em si mesmo, ou seja, exclusivo. É exatamente isso o que ocorre no processo de institucionalização da Igreja que, ao acentuar a estabilidade da instituição, passa a ter como finalidade a redução da margem de elementos imprevisíveis na conduta dos seus membros a formas estabelecidas e rotineiras que, por sua vez, oferecem ao cristão uma forte segurança interior. 180

Capítulo 8 – Horizontes Prático - Teóricos do Cristianismo de Libertação na Pós-Modernidade

O terceiro fator refere-se ao instrumento utilizado pela Igreja para realizar uma socialização uniforme dos seus membros e salvaguardar a homogeneidade na expressão da fé. Esse instrumento consistiu em reproduzir sua institucionalização interna no campo de sua presença na ordem temporal. Quando a Igreja passa a ser religião de Estado, a partir da declaração de Constantino, ela introduz o poder na sua dinâmica que constituirá uma fonte de ambiguidades para todo o resto de sua história. A partir deste novo elemento, a visibilidade da Igreja se expressará por intermédio de instituições civis nos diversos âmbitos da sociedade, tendendo acentuadamente a converter-se numa antecipação do reino de Deus escatológico e, portanto, numa ideologia solidária e defensora do regime estabelecido. O quarto e último fator trata da coincidência entre os limites do mundo cristão com os limites políticos do Império Romano, fenômeno pelo qual a unanimidade da fé cristã deixa de se dá num espaço limitado e passa a ser algo extensivo a toda cultura ocidental. Isso implica que a missão não será mais uma tarefa própria de cada cristão, pois o entendimento prevalecente é de que a atividade missionária deve ser exercida no universo pagão, já que no mundo ocidental todos são cristãos (ãs). Por esse entendimento, fica totalmente minimizada (ou quase anulada) a necessidade de evangelização no Ocidente e, por outro lado, fica também justificada a relação de conquista com o mundo pagão. Cristianização e ocidentalização tornam-se, assim, inseparáveis e onde as velhas culturas resistem ao esforço de ocidentalização a cristianização fracassa. Se a modernidade já minou as bases do substrato sociológico que deu plausibilidade ao fenômeno da cristandade, imagine-se o que resta desse substrato na pós-modernidade? A ausência desse substrato sociológico não condena o cristianismo à extinção, mas demanda novas formas de encarnação e uma reflexão diferente sobre sua essência. Essa tarefa será dificultada, porém, pelo mecanismo de elevação da cristandade, tanto enquanto regime social como no pensamento teológico que daí surgiu, a um ideal que deve ser conservado devido à prosperidade que a Igreja experimentou naquele contexto. Tal situação configura uma longa transição, marcada pelas tensões e conflitos entre os elementos da cristandade que ainda resistem nas estruturas da Igreja, na sua ação pastoral e, em especial, nas mentes dos fiéis, e as iniciativas de encarnação renovadas na vida de cada cristão e na 181

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face com que a Igreja se apresenta ao mundo atual. Das tensões dessa longa transição também não escapam os cristianismos de libertação.

Pós-modernidade: crise de posse da identidade e desconstrução A modernidade postulou fornecer o sentido absoluto da existência humana com seu projeto emancipatório. A razão adulta tornou-se ao mesmo tempo seu protagonista e sua meta. Tal razão tem sede de totalidade: Tudo deve ser referido à norma e à medida da razão, de modo que nenhum resquício de sombra permaneça e toda resistência ao processo emancipatório do espírito seja vencida: na equação especulativa entre ‘ideal’ e ‘real’ se refletem tanto o projeto prático de reconduzir o mundo e todos os seus relacionamentos ao homem como único sujeito do futuro histórico, quanto à ambição de um pensamento solar, para o qual tudo seja claro e evidente, sem resquícios e posterioridades. (FORTE, 2005, p.265)

A totalidade cede lugar ao fragmento, ao fluido, ao descontínuo, à interrupção. É o tempo do adeus às certezas. Esse esgotamento da totalidade foi levado as suas últimas consequências no século XX, por meio de uma dupla via, a saber: uma de corte existencialista que foi de Heidegger a Wittgenstein e Derrida; a outra mais fenomenológica passando por Levinas e Ricoeur. Em seu seio, a totalidade levava já o germe de sua própria superação, como o mostram os constantes movimentos culturais de resistência e afirmação da diferença em momentos de afirmação da totalidade. O desencanto pós-moderno surgido em face da crise das utopias da ciência, da revolução social e da tecnologia midiática na sociedade globalizada tem conexão com esse germe de superação presente no próprio interior da perspectiva totalizante. Tal germe emerge com força quando se percebe que algo ficou comprometido no pensamento da identidade e da plena presença, ...descobriu-se a necessidade de ‘caminhos sem o risco da presença e da plenitude. No tempo, é um deixar valer a noite, na qual não

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se sabe que hora é e a espera, sem pontos de referência, não sabe que aurora vai vir, nem o saberá a não ser talvez no final, além do desespero; no espaço, é um dar relevo às interrupções, aos vazios, às paradas, ao imprevisto de itinerários em que o movimento revela mais do que aquilo que o olho abrange; na palavra, é um escutar a música e os silêncios, os jogos de palavras, mais que os seus significados definidos; na ação, é um respeitar o desmotivado, o esboço, o provisório, a tentativa; quanto às incertezas, as do eu e daquilo que ele se representa ou se imagina, é um renunciar a ele pura e simplesmente em favor da espera de um presente que deve ser restituído depois de o haver recebido [...].’ Encontrar o valor e a dignidade da morte, redescobrir o sentido da interrupção e o peso da ausência, significa certamente renunciar ao sonho emancipador de uma totalidade onicompreensiva, mas significa também respeitar a verdade da vida, os muitos ‘caminhos interrompidos’ que nos fatos se opõem à pretensão iluminista de uma realização a qualquer preço. Nesta volta da morte, a crítica ao iluminismo se liga àquela revolta a todo sistema fechado, presunçosamente exaustivo e acabado, em favor da realidade, na qual a noite, a estagnação e o silêncio não exercem um papel menor que a luz do dia, do movimento e da palavra. (FORTE, 2005, p.191-192)

Já desde finais do século XIX, Nietzsche vislumbrou o umbral da agonia do Ocidente no que ele denominou dramaticamente a “morte de Deus”, como vaticínio do ocaso de uma civilização baseada na construção todo poderosa da ideia de Deus, do cosmos e do ser humano, ligados todos por sua vontade de totalidade e unicidade. Morte de Deus como morte dos ídolos, símbolos da inautenticidade humana e, portanto, inibidores da religiosidade do verdadeiro diálogo com Deus como explica Vattimo: “Portanto, é somente com a morte do Deus metafísico, guardião das leis da natureza, fiador da matemática (e dos comércios que se fazem também à base do cálculo) que podemos nos transformar em religiosos, abrir um diálogo com Deus, seja lá o que Ele for, além da pura aceitação admirada da ordem do mundo. Deus é a desordem do mundo, é aquele que nos chama a não considerar como definitivo nada disto que já está aqui. Deus é projeto, e 183

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nós o encontramos, quando temos a força para projetar” (IHU online 88ª). A desconstrução de todos os sistemas referenciais de sentido parece a base comum no pensamento pós-moderno que em Derrida, Vattimo aparecem destituídos do poder de designar a transcendência. Vattimo elabora um discurso que elege o niilismo como ponto de chegada da modernidade e também da metafísica, por meio de uma elaboração das ideias de Nietzsche e Heidegger. Em Vattimo, metafísica é identificada como “pensamento forte”, isto é, um pensamento possuidor de um fundamento último ao qual se reporta uma perspectiva absolutista, portanto, já detentor da verdade plena e tendente a um sufocante dogmatismo. No correr da história, esses discursos metafísicos vestiram diversas máscaras: Deus, Natureza, Razão. No entender de Pecoraro, estudioso da obra de Vattimo, “o que está em jogo é o surgimento de uma nova forma de racionalidade – a racionalidade depois da ‘morte de Deus’, a racionalidade do amanhecer do ‘niilismo consumado’ – que encontra no pensamento de Nietzsche o seu símbolo, o seu guia, as suas perspectivas” (PECORARO, 2005, p.23). Já de Heidegger, é extraída a noção de ser não mais como ente (posição clássica das formulações metafísicas) e sim como evento, acontecimento. Os autores pós-modernos propõem uma ontologia hermenêutica que permita dirimir a difícil questão da ontoteologia e suas derivações secularizantes, de modo que possa emergir das profundidades do ser o ente em seu devir mesmo. Assim, a fenomenologia moderna da subjetividade passou da clara postulação da ideia de Deus como garante da intuição e da percepção em Husserl, para a designação de Deus como horizonte ético (Levinas) e de sentido (Ricoeur) no território da imanência assumida como modo de vida e compreensão onde irrompe o infinito no humano. Daí a crítica, tanto à totalidade como ao totalitarismo de qualquer natureza: ideológico ou político, religioso ou sexista, de classe ou étnico.1 Trata-se, com efeito, de afirmar a realidade divina enquanto origem sem origem do ser, quer dizer, enquanto Dasein. Não um deus ex machina enquanto motor imóvel, mas sim ausência ontológica como ser em devir. Em seu significado teórico, tal postura implica a afirmação de uma ausência de Deus enquanto ator Devo ao teólogo dominicano do México, Carlos Mendoza Álvarez, a abertura de horizonte para recepção de uma pósmodernidade em circuito com elementos fundamentais da mensagem cristã (cf. ÁLVAREZ, Carlos Mendoza. Alter Deus. La experiencia de lo sagrado en el mundo posmoderno. 13 p. – Curso ministrado no Mestrado em Ciências da Religião da Unicap, sobre a crise e renovação da pertença religiosa no mundo atual).

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imediato na criação como causa, mas tolera em si mesma a afirmação dessa realidade última como horizonte hermenêutico no qual “flutua o ser”, cada ser, no seu devir imanente. Nessa postura fica potencializada a aposta na responsabilidade que se torna uma questão ainda mais urgente e inevitável e a renúncia a totalidade. Não seria a hermenêutica da libertação, a partir dos pobres e excluídos, uma via de acesso a essa subjetividade? Talvez por esta via teórica se possa ampliar a noção de sujeitos pós-modernos, muito além do narcisismo, da indiferença ao outro e do consumo infinito (COMBLIN, 1998, p. 212-223). Há um viés de práxis transformadora dos sujeitos pós-modernos que fizeram de sua exclusão uma palavra de interrupção e interpelação aos sistemas de dominação e totalidade, uma palavra de desmascaramento dos sistemas de totalidade (ÁLVAREZ, 1993).

Cristianismo de libertação e pós-modernidade Ao agir e elaborar um discurso sobre Deus a partir do sofrimento das vítimas, o cristianismo e a teologia da libertação representam um ensaio de configuração nos horizontes abertos pela pós-modernidade na medida em que colocam em primeira mão a humanidade de Deus que toma o partido dos pobres e oprimidos, que sofre com os que sofrem e que, portanto, não pode ser representado com imagens de um Deus imparcial e impassível. A pós-modernidade, entretanto, parece ir mais além uma vez que renuncia completamente a toda tentativa de identificar a transcendência divina com a imanência humana. Abre-se, então, um questionamento para o cristianismo e a teologia da libertação: até que ponto se processou em ambos “a diferença entre o Deus que assume a história para libertá-la e os projetos elaborados pelas ideologias modernas para mudar essa mesma história?” (DE MORI, 2007, p. 404). Impulsionados e sustentados pela convicção da fecundidade humanizadora da fé cristã, a teologia e o cristianismo de libertação não driblaram a força das repercussões da realidade contemporânea sobre a fé, realidade marcada permanentemente pelo movimento da história. Daí que a tarefa da teologia é oferecer à visão ampla da realidade envolvida na práxis os elementos correspondentes da fé. Essa íntima relação entre teologia e práxis confere 185

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ao diálogo uma posição especial na teologia. Mais que um instrumento ele é a condição de uma teologia libertadora. Como pode a teologia travar esse diálogo, condição da sua relevância libertadora? Recorro mais uma vez ao próprio Segundo que identificou no círculo hermenêutico o método para uma teologia em diálogo e, portanto, libertadora. Refletindo sobre o objetivo central do círculo hermenêutico da teologia, Segundo afirma: ...temos que recuperar a soberana liberdade da palavra de Deus, para poder dizer em cada situação o que é criativamente libertador em tal situação.[...] o único que pode manter indefinidamente o caráter libertador de uma teologia, não é seu conteúdo mas seu método. Neste está a garantia de que qualquer que seja o vocabulário usado, e quaisquer que sejam as tentativas do sistema para reabsorvê-lo, o sistema mesmo vai continuar aparecendo no horizonte teológico como opressor. E nisto está a maior esperança teológica para o futuro (SEGUNDO, 1978, p. 46).

O círculo hermenêutico comporta, portanto, dois momentos fundamentais no seu funcionamento: o da libertação da teologia e o de uma nova hermenêutica criadora. Para a concretização do círculo hermenêutico, Segundo propõe duas condições relativas à profundidade e riqueza das questões do presente e à nova interpretação da escritura: Penso que existem duas condições necessárias para termos um círculo hermenêutico em teologia. A primeira é que as perguntas que surgem do presente sejam tão ricas, gerais e básicas, que nos obriguem a mudar nossas concepções costumeiras da vida, da morte, do conhecimento, da sociedade, da política e do mundo em geral. Somente uma mudança tal ou, ao menos, a suspeita geral acerca de nossas idéias e juízos de valor sobre essas coisas, nos permitirão alcançar o nível teológico e obrigar a teologia a descer à realidade e colocar a si mesma perguntas novas e decisivas. A segunda condição está intimamente ligada à primeira. Se a teologia chegar a supor que é capaz de responder às novas perguntas sem mudar sua costumeira interpretação das Escrituras, já terminou o círculo hermenêutico.

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Capítulo 8 – Horizontes Prático - Teóricos do Cristianismo de Libertação na Pós-Modernidade

Além disso, se a interpretação da Escritura não muda junto com os problemas, estes ficarão sem resposta ou, o que seria pior, receberão respostas velhas, inúteis e conservadoras. (SEGUNDO, 1978, p. 11)

Não é supérfluo acrescentar que a obtenção de uma nova interpretação bíblica baseada na articulação complementar dessa presença simultânea de passado e presente pressupõe duas premissas complexas: compreensão da revelação como processo pedagógico pela qual a revelação não se reduz a uma síntese de doutrinas atemporais e universais à qual se possa aceder passando por cima dos processos históricos e existenciais. O fundamental não consiste na comunicação de verdades objetivas, mas na apropriação pessoal de dados transcendentes que se tornam fontes de sentido num processo de aprendizagem que não enfatiza a mera acumulação dos dados transmitidos, mas sim a sua reinterpretação criativa e constante, conforme as exigências de cada nova situação. (SEGUNDO, 1978). “Aprendizagem de segundo grau” porque ela permite um avanço gradual e dinâmico em direção à verdade através de um “aprender a aprender”.2 A segunda premissa consiste na ortopráxis como critério último da ortodoxia que ...não tem em si mesma um último critério, porque ser ortodoxo não significa possuir a verdade final. Só se chega a esta última pela ortopráxis, e assim a ortopráxis se torna o critério último da ortodoxia não só na teologia mas também na interpretação bíblica. A verdade é só verdade quando for a base de atitudes verdadeiramente humanas. ‘Fazer a verdade’ é a fórmula revelada desta prioridade da ortopráxis sobre a ortodoxia quando se trata da verdade e da salvação.3

Este“aprender a aprender”, significa para Juan Luis Segundo, uma leitura“meta-histórica”dos acontecimentos literários, sejam estes históricos ou míticos. Isto implica, por sua vez, compreender que a verdade mais profunda que o acontecimento transmite não consiste na obtenção de uma informação exata sobre cada acontecimento e sobre sua interpretação isolada, mas sim naquela informação que se obtém num processo educativo. Dizer processo educativo inclui a concepção de que a aprendizagem não é feita através da soma de verdades e da subtração de erros, mas sim pela multiplicação de fatores, de modo que a descoberta de um novo fator multiplica a informação, converte o resto não num erro, mas numa compreensão insuficiente que urge ser mais cabalmente elaborada. 3 SEGUNDO, J. L. Libertação da Teologia, p. 41. Essa prioridade da ortopráxis sobre a ortodoxia implica assumir uma parcialidade no processo de aproximação com a palavra de Deus. Para Segundo, essa parcialidade é justificada na medida que se deve encontrar e chamar palavra de Deus a parte da revelação que seja mais útil para a libertação na situação concreta atual. Isso não significa, porém, uma relativização arbitrária das outras partes da revelação. Para superar uma eventual imagem de relativização de partes da revelação evocada pela proposição de Segundo, deve- se ter em conta o caráter processual e educativo/pedagógico da proposição de Segundo para uma aproximação aos dados revelados. Dentro deste entendimento, as outras partes da mesma revelação, quer dizer, aquelas que não entraram na nossa aproximação parcial da palavra de Deus, complementarão e corrigirão no amanhã o caminho seguido hoje em direção à liberdade. 2

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As referências feitas até aqui quanto à importância do círculo hermenêutico para libertação da teologia foram no intuito de, em primeiro lugar, resgatar a atualidade permanente de uma teologia em diálogo para a qual as profundas perguntas do dinamismo humano são momentos imprescindíveis da busca da verdade libertadora, pois carregam em si, mesmo que de forma não professa, uma abertura teônoma. Em segundo lugar, as referências ao círculo hermenêutico proposto por Segundo, esclarecem o parâmetro a partir do qual vislumbramos um circuito producente entre cristianismo/teologia de libertação e pós-modernidade. Tal parâmetro consiste no reconhecimento que está em curso uma virada hermenêutica da teologia (GEFFRÉ, 2001, p. 7) que, por sua vez, norteará a razão teológica no pensamento contemporâneo como desdobramento da “necessidade de a teologia tornar inteligível para cada época de sua história a linguagem da revelação, reatualizando-a em diálogo com a cultura do momento.” (LIBÂNIO, 2003, p. 161). O pressuposto, portanto, não é de que a pós-modernidade, ou seja, o clima cultural atual represente, em si mesmo, o desvelamento do rosto do Deus vivo, mas sim o circuito da perenidade histórica: Palavra de Deus acolhida em situação de tempo e espaço dos crentes. Entre os monoteísmos, o cristianismo tem sido a religião que mais levou a cabo o processo de desmantelamento da carga de totalidade implicada na afirmação da intervenção de Deus na história, por meio de sinais prodigiosos e de iluminação profética, própria das religiões abraâmicas. Esse desmantelamento do sagrado violento afirma-se por um movimento de superação de si mesmo como sistema religioso na escatologia ou sua presença aberta ao futuro. O messianismo cristão denota uma fissura no sistema judeu de totalidade à medida que comporta a morte de seu mestre. Sua pregação na Galiléia, assim como seu enfrentamento com os poderes religiosos de sua época, seu julgamento como bode expiatório e sua morte de crucifixão, representam o desmantelamento do messianismo de poder e de suas correlativas leituras providencialistas conforme a lógica da prosperidade e retribuição divina. O túmulo vazio denota a inauguração de uma religação na graça, de um significado de vida eterna a partir da desconstrução de um corpo histórico. Que possibilidade se abre à teologia e ao cristianismo de libertação a partir desta perspectiva? O que se pede de uma religião e de uma teologia que se recusam a ocultar o rosto do Deus da vida? Refletindo sobre o futuro 188

Capítulo 8 – Horizontes Prático - Teóricos do Cristianismo de Libertação na Pós-Modernidade

da religião num diálogo com Richard Rorty, Gianni Vattimo propõe que entre desconstrução pós-moderna e cristianismo há muito mais do que um mero vínculo essencial que a reflexão sobre a interpretação sempre teve com a leitura dos textos bíblicos: Em outra ocasião, insisti na importância da reconstrução da história da metafísica que Dilthey apresenta em sua Introdução às ciências do espírito (Einleitung in die Geisteswissenschaften, 1883). Para ele, é o advento do cristianismo que torna possível a progressiva dissolução da metafísica, issolução essa que, em sua perspectiva, culminará em Kant, mas que é também o niilismo de Nietzche e o fim da metafísica de Heidegger. O cristianismo introduz no mundo o princípio da interioridade, em base no qual a realidade ‘objetiva’ perderá pouco a pouco o seu peso determinante. A frase de Nietzsche ‘não há fatos, apenas interpretações’ e a ontologia hermenêutica de Heidegger não farão mais que levar tal princípio às suas conseqüências extremas. [...]. O que proponho aqui é, ao contrário, que a hermenêutica, em seu sentido mais radical, expresso na frase de Nietzsche e na ontologia de Heidegger, é o desenvolvimento e a maturação da mensagem cristã. (ZABALA, 2006, p. 66-67).

Abre-se à teologia e ao cristianismo a possibilidade de uma acolhida mais constitutiva da kénosis articulada com a escatologia como dinâmica humano-divina possibilitada graças a experiência de Jesus cuja divindade se manifesta no esvaziamento de sua condição divina. Tal experiência comporta uma carga crítica no tocante a toda representação objetivante de Deus e de suas promessas e introduzem o cristão em uma dimensão de ausência-presença como o horizonte de vida e compreensão em que adquire força o dinamismo da fé cristã (ÁLVAREZ, 1993). A consequência disso na teologia é a emergência de uma outra relação com a verdade da mensagem efetivada nas coordenadas de um modelo hermenêutico de teologia (GEFFRÉ, 1989, p. 63) que nos convida a uma distância tanto da concepção metafísica de verdade como do pressuposto de verdade do historicismo, pois em ambas prevalecem a ideia de adequação entre sujeito e objeto. A primeira, aplicada na teologia, leva ao desconhecimento da historicidade radical de toda verdade, também da verdade revelada; e a segunda conduz à crença de que é possível 189

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estabelecer relação imediata de textos e de fatos na origem, identificados com a verdade. Uma teologia hermenêutica contribui para a libertação porque não nega a condição exodal de uma história que seguirá por escrever-se na rememoração de todo o acontecido em Galiléia, no compartilhar o pão, na prática das bem-aventuranças e dos conselhos evangélicos e na abertura aos sinais dos tempos, a um futuro incerto em suas formas específicas, porém lançado ao devir de fraternidade universal compreendida como gratuidade, dom, oferenda, reconciliação. Se a era da globalização está dominada principalmente pelo poder avassalador da monovalência do mercado potenciada pela sociedade teledirigida e pelo absolutismo da civilização tecnológica, então o papel profético e anamnético do pensamento judaico-cristão não pode entender-se senão na chave de desconstrução da totalidade fechada. Não será pela regressão a práticas performativas da religião próprias dos sistemas patriarcais, agrários e autoritários que o cristianismo e a teologia contribuirão para o bem do mundo. Jesus de Nazaré não prescreve para seus discípulos(as) o lugar de guardiões e juízes de sistemas ortodoxos de ordem religiosa ou sociocpolitica, ou seja de uma cosmovisão. Num mundo pluralista, a relevância e legitimidade do cristianismo e de suas teologias se expressarão no serviço profético, denunciando toda e qualquer violência objetiva, de qualquer ordem, como companheiros na aventura da liberdade responsável compreendida na diversidade de identidades e línguas, animadas pelo Espírito, ressuscitadas pela memória das vítimas e nos relatos dos sobreviventes, únicos sinais-promessa de um futuro escondido em Deus para sua criação. Companheiros, portanto, na caminhada exodal do humano aberto ao advento. O que se pede do cristianismo e de sua teologia no mundo de hoje, marcado pela ressaca da embriaguez do sentido da razão moderna e pelas aventuras da diferença é que fale narrativa e analogicamente de Deus sem seduções de acabamento e de posse, mais confiante no amor que nos foi contado por Jesus Cristo do que no apelo a provas de força que violentam a liberdade. A exigência é, portanto, de uma práxis e de uma teologia como tão bem descreve Bruno Forte, ...como pensamento da interrupção, memória do advento do Outro que vem para falar dele nas palavras dos homens sem se resolver

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Capítulo 8 – Horizontes Prático - Teóricos do Cristianismo de Libertação na Pós-Modernidade

nelas, subvertendo e revolucionando do fundo e de dentro a história do mundo, emancipando o homem dos ídolos, não apenas pelo grande “não” pronunciado por Deus sobre as grandezas do mundo, mas também pelo conjunto daqueles humildes “sim” que a sua Palavra narrada, pensada e vivida, é capaz de suscitar nas histórias pequenas e grandes, do esforço deste tempo “penúltimo” (FORTE, 2005, p.197).

Referências ÁLVAREZ, Carlos Mendoza. El Dios otro. Acercamiento a lo sagrado en el mundo postmoderno. México: UIA/Playza y Valdés, 1993. DE MORI. Geraldo Luiz. “O ‘enfraquecimento’ de Deus no atual panorama religioso e teológico’”. In: Sociedade de Teologia e Ciências da Religião-SOTER (Org.) Religião e transformação social no Brasil hoje. São Paulo: Paulinas, 2007. FORTE, Bruno. Nos caminhos do uno: metafísica e teologia. São Paulo: Paulinas, 2005. GEFFRÉ, C. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989. ______. Crer et interpréter. Le tournant herméneutique de la théologie. Paris: Cerf, 2001. LIBÂNIO, João B. “Desafios da pós-modernidade à teologia fundamental”. In: TRASFERETTI, José; GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. Teologia na pós-modernidade. Abordagens epistemológica, sistemática e teórico-prática. São Paulo: Paulinas, 2003. SEGUNDO, Juan L. Teología abierta para el laico adulto. V. I: Esa comunidad llamada iglesia. Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1968. ______. O dogma que liberta: fé, revelação e magistério dogmático. São Paulo: Paulinas, 1991. ZABALA, Santiago; RORTY, Richard; VATTIMO, Ginni (Org.). O futuro da religião. Solidariedade, caridade e ironia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. 191

Capítulo 9 Caridade, conservação e mudança social1 André Ricardo de Souza

Introdução Todas as religiões têm pelo menos três noções, ou três elementos básicos comuns: a transcendência, a comunidade e o compromisso. O caráter transcendente, que denota algo extrafísico e superior ao ser humano, pode ser conceitual e moralmente difuso – como no panteísmo e no politeísmo – ou ser muito bem demarcado na figura de um único e sublime Deus, do monoteísmo. Ainda nesse campo transcendental, está a relação com a morte, ou sob outra interpretação, com os ciclos da vida, que podem se dar através da transmigração de almas, da ressurreição para a vida eterna ou das reencarnações sucessivas. Em todas essas vertentes, com explicações pormenorizadas ou não, há sempre um componente de mistério. Em relação à noção de comunidade, ela pode ser basicamente étnica, regional ou simbólica. Se étnica, costuma estar relacionada com a ideia de nação ou país, com reconhecimento político internacional ou não. Nessas circunstâncias, ser de uma determinada religião é fazer parte e ter que defender uma pátria. Os casos mais eloquentes na atualidade são os dos rivais Israel e Palestina. A maioria das comunidades étnicas e religiosas, porém, vive em diáspora, adaptadas culturalmente aos países de migração. Nessa condição, ganham gradativamente feições de comunidade regional. Fazer parte de uma religião implica encontros rotineiros com pessoas moradoras de uma mesma área geográfica. Além dessas comunidades Trabalho apresentado na mesa redonda sobre religião, caridade e ativismo social, do Seminário Religião e Cidadania, ocorrido no Recife. Anexa a este artigo está a apresentação feita na Oficina Religião e Cidadania, ambos eventos sob os auspícios da Fundação Joaquim Nabuco e da Universidade Federal de Pernambuco.

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regionais, os adeptos de uma religião podem compor uma comunidade simbólica, baseada na comunicação à distância ou nos encontros em locais de culto ou sessões, a despeito do lugar onde residem. A relação de compromisso do seguidor com um conjunto de ensinamentos morais, ideológicos e litúrgicos, é o terceiro aspecto comum a todas as religiões. Significa basicamente a internalização de valores, colocados em prática cotidianamente. Esse compromisso nasce com o chamamento inicial, ou o despertar para uma determinada fé. Desenvolve-se por meio de um processo de iniciação e acaba por se traduzir em exercício religioso pleno. Da consciência da vocação – termo cunhado por Martinho Lutero – alguns seguidores de religião chegam a assumir a perspectiva de missão, uma incumbência transcendental para cumprir determinadas tarefas que marcam sua vida. É interessante notar a vulgarização do termo missão, hoje apropriado não só por órgãos públicos e não-governamentais, mas também por corporações mercantis. A sociologia da religião explica o processo de desenvolvimento das comunidades religiosas, desde o seu início, pela liderança carismática dos profetas ou fundadores até a chamada rotinização do carisma, com sua organização institucional e burocrática (WEBER, 1991, p. 139-198). Isso inevitavelmente implica complexificação interna e aprofundamento das relações de poder e até de opressão. Não por acaso, nota-se o crescente uso do termo espiritualidade, em detrimento de religião, dado o crescimento volumoso do contingente de pessoas que se frustram com as instituições religiosas. Há um atributo quase universal das religiões: a compaixão. Os irmanados numa determinada fé – principalmente se membros da mesma comunidade – tendem a se ajudar mutuamente, auxiliando sobremaneira os mais necessitados entre eles. A compaixão pode transcender os limites comunitários e religiosos e se tornar, indiscriminadamente, benevolência humanitária. No Ocidente, esse sentimento é geralmente traduzido em caridade, palavra originariamente cristã. Ela advém de dois termos gregos do cristianismo antigo: o eros (desejo, paixão) e o ágape (refeição de paz e festiva entre amigos). O pensador grego que melhor trabalhou o conceito de eros foi Platão (428-348 a.C.), que no escrito O Banquete, afirma ser o amor físico o pri194

Capítulo 9 – Caridade, conservação e mudança social

meiro passo ou degrau para o amor espiritual. Daí a difundida expressão: amor platônico. Já o ágape, inevitavelmente nos remete à imagem da última ceia de Jesus Cristo, embora apareça pela primeira e marcante vez na Bíblia em um versículo da primeira carta de João (1 Jo 4,8): “Deus é ágape”. Na tradução para o latim (língua oficial da igreja romana), ágape se torna caritas. Em português, caridade. Ao longo do Novo Testamento bíblico, a caridade é esmiuçada como amor desinteressado entre as pessoas. Seria algo decorrente do mesmo sentimento pela divindade, de quem primeiro elas o teriam recebido. Nos evangelhos, a conhecida parábola do bom samaritano talvez seja a que melhor ilustre uma ação caridosa: o socorro e o auxílio entre estranhos e estrangeiros. A distribuição igualitária, ou amorosa, de recursos e bens entre os membros das primeiras comunidades cristãs, retratada em Atos dos Apóstolos, não só ficou marcada como experiência comunitária e caritativa modelar, como chegou a inspirar pensadores socialistas, cristãos ou não (SOUZA, 2002; LUXEMBURGO, 2002). Caridade, portanto, é o termo cristão que se difundiu como um componente de vertentes religiosas diversas. Ela expressa o dever moral de amparo aos mais necessitados, algo que se concretiza através de ações múltiplas, sendo muitas delas chamadas de obras sociais. Esse dever religioso se manifestou historicamente, de uma forma ou de outra, em todos os povos, como um componente essencial de coesão social. Como ocidentais, naturalmente vemos esse fenômeno, sobretudo, pela ótica da religião prevalente, o cristianismo, em suas ramificações institucionais. Na primordial delas, o catolicismo, os clérigos assumiram o cuidado das pessoas mais carentes de suas áreas de atuação na Europa, dos séculos IV e V. Os bispos instituíram a diaconia – termo que se tornaria bastante caro também aos protestantes – que designava um serviço específico de amparo aos miseráveis das cidades, feito em determinadas regiões por religiosos designados. Esse serviço se desenvolveu gradativamente até somar-se no século XII, a uma mobilização mais ampla pela criação de instituições que mais tarde seriam chamadas hospitais, onde os pobres eram acolhidos, tratados e também confinados. Albergues, asilos e orfanatos também decorrem desse processo de projeção do valor da caridade cristã na sociedade abrangente (MOLLAT, 1989, p. 39; CHIZOTTI, 1991, p. 15-16; ROSEN, 1994, p. 67-68). 195

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Visceralmente ligada ao poder temporal, a Igreja Católica, de alguma forma e ao menos em parte, redefiniria culturalmente sua relação com os pobres através das inovadoras ordens mendicantes, iniciadas por Domingos de Gusmão (1170-1221) e Francisco de Assis (1182-1226). Cinco séculos depois, a igreja teria em Vicente de Paulo (1581-1660) aquele que ficou conhecido como patrono de todas suas obras de caridade, pelas várias que conduziu. Seu nome batizou uma associação beneficente, também francesa, em meados do século XIX, que se tornaria a maior expressão mundial em termos de práticas caritativas católicas, sobretudo através da coleta e entrega de alimentos a pessoas carentes. Frédéric Ozanam (1813-1853), fundador da Sociedade São Vicente de Paulo, viria a ser beatificado em 1997, como símbolo jovem católico de compromisso com a vida caritativa (RIVIÈRES, 1986; LABORIE e DUTHOIT, 1997; DUARTE, 1987; SIX, 1991). Ao se tratar de práticas beneficentes católicas no Brasil, devemos nos remeter às corporações medievais, que na então colônia do século XVII, tomaram o nome de irmandades, confrarias e ordens terceiras. Entre elas se destacaram as Irmandades da Misericórdia, das quais surgiram em diversas cidades brasileiras as Santas Casas de Misericórdia, hospitais voltados à população mais pobre, e também as Confrarias dos Homens Pretos, que garantiam sepultamento a escravos e arrecadavam recursos para a obtenção de alforrias (AZZI, 1994). Historicamente depois da Igreja Ortodoxa, o protestantismo se formou, no século XVI, como grande corrente cristã. Liderado por Lutero e Calvino, essa vertente se alastrou pela Europa, vindo depois à América do Norte e de lá para os demais continentes. Foi trazido ao Brasil pelos imigrantes luteranos alemães, ao se instalarem no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, entre 1823 e 1824. Com a vinda de pastores ingleses e estadunidenses presbiterianos, batistas e metodistas, na segunda metade do século XIX, o protestantismo aqui não seria somente o chamado histórico ou de imigração, mas também missionário e de conversão. E no século XX, a partir da vinda de missionários pentecostais das igrejas Congregação Cristã do Brasil e Assembléia de Deus –respectivamente, 1910 e 1911 – os membros desse segmento religioso gradativamente deixariam de ser chamados protestantes para se tornarem evangélicos. Entre as contribuições dos evangélicos pioneiros, para a modernização da sociedade brasileira, destaco 196

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a questão da educação, tanto pelo impulso à alfabetização, motivada pelo desejo difundido de leitura da Bíblia; quanto pelas iniciativas voltadas para a formação e a qualificação profissional com vista à concorrência no mercado, conforme a teoria de Weber (2004). Em termos de práticas assistenciais, eles se caracterizaram pelas iniciativas de ajuda mútua, essencialmente no interior de suas próprias comunidades, sobretudo as que tinham também caráter étnico (MENDONÇA, 1984; SOUZA, 1969; CAMARGO, 1973; FRESTON, 1993; MARIANO, 1999). Na segunda metade do século XX, os evangélicos formariam o movimento Igreja e Sociedade na América Latina (Isal), de caráter ecumênico e impulsionador de ações de responsabilidade social, cuja semente fora plantada em 1932, com a criação da Conferência Evangélica Brasileira (CEB). Esse segmento evangélico comporia, com setores do catolicismo latino-americano, nos anos de 1970, aquilo que Löwy (2000) chamou de cristianismo da libertação2. Com o desenvolvimento autóctone pentecostal, as chamadas igrejas de cura divina, surgidas a partir da década de 1950, teriam um caráter muito mais proselitista e massivo, através do uso de locais públicos de concentração popular e do rádio. Posteriormente, passados os anos de 1970, a igrejas neopentecostais com sua teologia da prosperidade intensificariam as práticas expansionistas, através da televisão e das ações político-eleitorais e mercantis. Ambas “ondas” pentecostais desenvolveram e promovem práticas beneficentes, como doação de alimentos e roupas, que são consideravelmente propagandeadas por algumas dessas igrejas, como explícita peça de marketing institucional e eleitoral (MACHADO, 2006; BURITY e MACHADO, 2006). A terceira vertente cristã, socialmente significativa neste país, é o Espiritismo, fundado, em 1857, pelo pedagogo francês Allan Kardec, com a publicação de O livro dos espíritos. Tendo como principal elo com o cristianismo a obra O evangelho segundo o espiritismo (1964), esse movimento chegou oficialmente ao Brasil com a fundação do primeiro centro espírita ,em 1965, na cidade de Salvador. O principal líder dessa fase pioneira – também considerado o responsável pela unificação do movimento – foi o médico e político cearense Bezerra de Menezes, presidente da Federação Além deste sociólogo, alguns teólogos analisaram tal fenômeno para além das fronteiras institucionais das igrejas (ALTMANN, 1994; BOFF et alii, 1996; COMBLIN, 1996; SUNG, 2008).

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Espírita Brasileira por duas vezes, de 1889 a 1900. No século XX, o médium mineiro Chico Xavier se tornou a grande referência, não só no país, mas também internacional do movimento espírita. A legitimação e o respeito do espiritismo, na sociedade brasileira, deve- se, em grande, parte à criação e manutenção de várias entidades de assistência social, algumas delas de significativo porte (CAVALCANTI, 1983, GIUMBELLI, 1997; LEWGOY, 2000; STOLL, 2003; SILVA, 2005). No Rio de Janeiro da década de 1920, o espiritismo viria a compor com o catolicismo e o candomblé – termo hegemônico no Brasil entre os cultos às divindades africanas e que tem grande importância simbólica para a população negra – uma importante tradição religiosa, também com feições cristãs: a umbanda. Bastante chamada de “religião brasileira por excelência”, por seu forte sincretismo, a umbanda é uma tradição religiosa explícita e assumidamente mágica, que se preocupa com a caridade. Busca promovê-la através de pontuais práticas assistenciais, mas principalmente por meio de suas entidades espirituais, com receitas de cura e fórmulas manipulativas, contrapondo-se a males provocados aos frequentadores dos terreiros, tendas ou templos. Na interpretação dos umbandistas, ao desfazer e reagir à chamada “demanda” dos consulentes, imersos num mundo conflituoso, esses espíritos estariam promovendo não só a justiça, mas também a caridade (CAMARGO, 1961; ORTIZ, 1978; NEGRÃO, 1996). Internacionalmente, o cristianismo multieclesial viveu um momento interessante em meados do século XX. O Concílio Vaticano II – ocorrido entre 1962 e 1965, portanto após a 2ª Guerra Mundial e a Declaração Universal dos Direitos Humanos – marca o início das relações ecumênicas entre as igrejas cristãs. O termo ecumenismo vem do grego (oikoumene, sendo oiko casa e mene, habitar). É semelhante à palavra economia (que significa “cuidado da casa”). Remete, portanto, à ideia de muitos moradores numa mesma “casa”, que seria o próprio planeta Terra. Foi com esse mote que 3 mil pessoas de 25 correntes religiosas diferentes se reuniram e celebraram, no Rio de Janeiro, durante a reunião internacional que ficou conhecida como ECO 92. Naquela ocasião, ambientalistas, entre eles ativistas religiosos, já expressavam a preocupação com o processo que viria ser conhecido como aquecimento global. Aquele encontro no Rio foi um marco, não só do ponto 198

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de vista das questões ambientais, mas também da prática supra-institucional do chamado diálogo inter-religioso3. Embora a Igreja Católica venha tomando rumo nitidamente contrário a esse entendimento, sob o comando de Bento XVI, algumas iniciativas ecumênicas de base prosseguem. A preservação do meio ambiente se somou a outras importantes questões internacionais –como a pacificação de conflitos, o respeito aos direitos humanos e a distribuição de renda – no discurso e na busca de práticas comuns de ativistas religiosos diversos. Esses seriam os temas prevalentes nos debates inter-religiosos dos Fóruns Sociais Mundiais, iniciados em Porto Alegre, em 2001. A perspectiva teórica e militante do diálogo inter-religioso propicia a ampliação do sentimento de fraternidade, a partir do raciocínio de que “se somos todos irmãos, temos o dever de nos ajudar uns aos outros”, ou seja, o suposto compromisso com uma cidadania universal. A palavra “esmola” significa originariamente a entrega de dinheiro à igreja e, através desta, aos pobres. É esse o sentido que a caridade popularmente ganhou na Idade Média, com as instituições cristãs romana e ortodoxa, já fortemente organizadas e prósperas. No mundo moderno, a igreja foi essencialmente substituída pelo Estado, em termos da obrigação moral de amparo aos mais pobres ou socialmente necessitados. Assim se deu na Inglaterra, primeiro país onde o capitalismo industrial se desenvolveu. Através da Poor Law (Lei dos Pobres) o governo britânico formou uma política de proteção social desde o século XVI até a formação de seu Estado de Bem Estar Social, no século XX (THOMPSON, 1987). Gradativamente, o indivíduo materialmente desprovido ou carente vem adquirindo status de cidadão, digno não mais de piedade, mas de direitos sociais. No entanto, as práticas caritativas religiosas permaneceram e passaram a conviver com iniciativas semelhantes, guiadas por motivações ideológicas não explicitamente religiosas e chamadas de filantrópicas. Estatais, multilaterais, privadas, religiosas ou não, todas as formas de ajuda simples e pontual a pessoas necessitadas foram genericamente designadas assistencialistas. A organização de operários e intelectuais em sindicatos e movimentos sociais – nutridos por ideais primeiramente republicanos, depois Outros dois relevantes eventos ecumênicos ocorreram em 27 de outubro de 1986 e 24 de janeiro de 2002. Na simbólica cidade italiana de Assis, o papa João Paulo II promoveu atos celebrativos com outros líderes religiosos mundiais.

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anarquistas e socialistas – produziu uma crítica radical da religião como grande fator de manutenção da ordem social piramidal, afirmando que era preciso trocar a ideia de merecimento da graça divina pela de conquista de direitos sociais. De um lado, a sociedade moderna rotulou pejorativamente determinadas práticas assistenciais, sobremaneira religiosas, rejeitando o tradicional tratamento paternalista aos pobres; do outro, procurou formular alternativas para uma possível solidariedade cívica. Nesse contexto, além da legislação social, sobretudo trabalhista e previdenciária, surgiram sociedades mutualistas e cooperativas. Em contrapartida, foi a partir de igrejas em alguns países da Europa e dos Estados Unidos que o serviço social se desenvolveu entre os séculos XIX e XX, tornando-se uma profissão reconhecida. No Brasil, ela começou a ser ensinada em 1937, sob os auspícios da Igreja Católica (IAMAMOTO e CARVALHO, 1982; CASTRO, 1987). Ainda é controversa a relação entre Estado e religião em muitos países. A separação jurídica e política é uma premissa entre os ocidentais. No mais potente deles – os Estados Unidos, cuja constituição republicana de 1787 é a mais antiga em vigor – tal separação começou a sofrer questionamentos na década de 1980. Algo que se acentuou no governo do George Bush filho, a partir de 2001. Através de um órgão específico da Casa Branca, igrejas e organizações religiosas começaram a receber tratamento especial, quanto à destinação de recursos para a implementação de políticas sociais, mediante parcerias. Entretanto, a arraigada cultura pluralista americana – com destaque para as questões religiosas – somada à oposição parlamentar e à autonomia constitucional dos estados federativos, de alguma forma frearam aquilo que os críticos chamaram de “conservadorismo compassivo”, ou retrocesso cultural e político, uma vez que a assistência religiosa privada tendia a discriminações (LUPU & TUTTLE, 2002; BURITY, 2006). No Brasil, oficialmente católico até a Constituição de 1891, só começou a haver pluralismo religioso de fato a partir da segunda metade do século XX. O declínio numérico e político católico tem como outra face a ascensão de modalidades religiosas, com grande prevalência dos evangélicos pentecostais. Nas últimas décadas, vem crescendo também o segmento populacional dos chamados sem reli200

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gião – em parte apenas afastados de uma religião institucionalizada – o que denota na verdade um aumento do pluralismo cultural4. O Estado brasileiro vem tendo que se adaptar a essa mudança sociocultural, preservando espaços de representação e interlocução com a hierarquia católica, mas abrindo novos canais para outras lideranças religiosas, sobejamente, pentecostais. Em termos de assistência social, o Estado também vem implementando significativas mudanças. A Legião Brasileira de Assistência (LBA)5, criada em 1942 por Getúlio Vargas e conhecida como “primeirodamismo estatal” – ruiu em denúncias de corrupção até vir a ser substituída na prática pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), instituído em 1993 pelo governo de Itamar Franco. No mesmo ano, foi aprovada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), cuja essência era prevista na Constituição de 1988. Completando a substituição institucional da LBA, O governo de Fernando Henrique Cardoso instituiu em 1995 o Ministério da Previdência e Assistência Social, contendo uma Secretaria Nacional de Assistência Social. Tal órgão ganharia status ministerial em 1999. Por sua vez, o governo de Lula criou em 2003 o Ministério da Assistência e Promoção Social (MAPS), para ser coordenado pela adepta da presbiteriana, senadora e ex-governadora do Rio de Janeiro, Benedita da Silva6. Em 2004, o MAPS foi substituído pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), também responsável pelo importante programa de transferência de renda chamado Bolsa-Família, chefiado pelo militante católico, deputado federal e ex-prefeito de Belo Horizonte, Patrus Ananias. Representantes de instituições e lideranças religiosas têm assento no Consea, no Conselho de Desenvolvimento Econômico Social (CDES) e também em outros órgãos consultivos de políticas públicas sociais em âmbitos federal, estadual e municipal. Através de Zilda Arns, a Pastoral da Criança tem sido uma entidade bastante presente nesses conselhos e Mais que os evangélicos, foi esse segmento o que mais cresceu, passando de 0,8% em 1970 para 7,3% em 2000, conforme os censos do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Os ditos sem religião se inserem no contexto de individualização e privatização da chamada experiência religiosa (PIERUCCI e PRANDI, 1996; JACOB et alii, 2003; PIERUCCI, 2004; NOVAES, 2004). 5 Cujo nome inspirou o radialista espírita Alziro Zarur a fundar, em 1950, uma instituição filantrópica e religiosa, chamada Legião da Boa Vontade (LBV). Sob a liderança de José de Paiva Netto, em 2001, tal entidade tornou-se alvo de denúncias de desvio de recursos originariamente arrecadados para as atividades assistenciais (PAULA, 2003). 6 Após um ano à frente de sua pasta, Benedita deixou o cargo devido à acusação por ter participado de um evento evangélico na Argentina, com viagem custeada pelo governo federal. Seria nomeada, em 2007, secretária de Ação Social do governo estadual fluminense de Sérgio Cabral. 4

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também num conjunto heterogêneo de entidades não-governamentais que cresce substancialmente, chamado terceiro setor. Composto por fundações, institutos, centros e núcleos das mais variadas espécies – em parte oriundos de movimentos sociais – o terceiro setor conta também com entidades ligadas a corporações privadas que se autodeclaram comprometidas com princípios de responsabilidade social e praticam filantropia empresarial. Num outro polo desse grande conjunto, tal como a Pastoral da Criança, há outras entidades explicitamente religiosas ou ao menos com origem confessional (LANDIM, 1988; FERNANDES, 1994; NOVAES, 1995; IOSHPE et alii, 1997; CABRAL, 2006). Como afirma Burity (2006), as religiões reabilitaram, em parte, seu espaço e importância, em termos de mobilização social e proposição de políticas públicas. E nesse contexto de expansão do terceiro setor a caridade se ressignificou. O marco desse processo de reabilitação das religiões e da própria caridade, como haviam diagnosticado Emerson Giumbelli, Leilah Landim e outros pesquisadores do Instituto de Estudos da Religião (ISER) foi a Campanha contra a Fome, a Miséria e pela Cidadania, iniciada, em 1993, pelo sociólogo Herbert de Souza (LANDIM, 1998). Nascida no Rio de Janeiro, a chamada Campanha do Betinho contou inicialmente com o apoio de segmentos espíritas e católicos, ganhando popularidade e adesão de instituições religiosas diversas. Por outro lado, a caridade ganhou notável reinterpretação num importante organismo católico, que, aliás, a tem em seu próprio nome: a Cáritas. Fundada em Roma, em 1897, ela foi instituída aqui pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1956, a partir da mobilização para a distribuição de alimentos doados pelo organismo estadunidense Catholic Relief Services (CRS). A Cáritas Brasileira começou praticando o que ela própria designa caridade assistencial, algo voltado pontualmente para pessoas tidas como necessitadas e indefesas. Com o fim daquele programa, em 1974, a Cáritas começou a desenvolver um novo modelo de prática caritativa chamada por ela de promoção humana ou promocional. Já no contexto de expansão das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), esse segundo e intermediário modelo se caracterizou pela crítica ao assistencialismo anterior e pela ênfase na educação popular, voltada para o desenvolvimento comunitário. Finalmente, por ocasião do 12º congresso 202

Capítulo 9 – Caridade, conservação e mudança social

latino-americano da entidade, ocorrido em Santo Domingo (República Dominicana) em 1986, a Cáritas começou oficialmente a desenvolver seu terceiro modelo, o da caridade libertadora. A despeito da chamada restauração conservadora, iniciada pelo papa João Paulo II e exacerbada pelo pontífice atual, essa nova fase é bastante influenciada pela Teologia da Libertação, com uma proposta politizante e de estímulo aos próprios agentes da Cáritas e aos membros de comunidades e grupos assistidos para participarem de processos de formulação e fiscalização de políticas sociais públicas. Não se deve perder de vista o fato de o bispo que a preside desde 1991, dom Demétrio Valentini, permitir e até estimular essa linha de ação, uma vez que compõe o catolicismo politicamente progressista (CÁRITAS BRASILEIRA, 1991; SOUZA, 2006). Tal como a Cáritas, outras entidades religiosas – também com reconhecida utilidade pública – vêm promovendo reavaliação das suas práticas assistenciais, associando-as cada vez mais com formas de educação e luta popular por ampliação e validação de direitos cidadãos. Essa mudança cultural vem se dando gradativamente, sobretudo através dos debates com outros atores sociais, religiosos ou não, no âmbito de redes e fóruns criados para propor, fiscalizar e também implementar políticas sociais, em parceria com órgãos públicos. Em meio a práticas paternalistas e clientelistas, de aplicação arraigada e explícita lógica do favor – como ocorreu emblematicamente nos governos do casal Garotinho no Rio de Janeiro7 – a religião ainda se presta ao papel de viabilizar enriquecimento ilícito e a conservação piramidal da sociedade brasileira8. A caridade, como manifestação de socorro e auxílio a pessoas necessitadas, prossegue no âmbito de diversas organizações religiosas, como prática tradicionalmente assumida e propalada. Por outro lado, Anthony Garotinho e Rosinha (Rosângela) Matheus, sucessivamente, governaram aquele Estado de 1999 a 2006. Radialistas e adeptos da Igreja Presbiteriana, também tiveram auxiliares diretos evangélicos, dentre os quais se destacou o pastor da Assembléia de Deus Everaldo Dias, que foi subsecretário do Gabinete Civil. Dias conduziu o programa de transferência de renda Cheque Cidadão, realizado em controvertida parceria com igrejas. Muitas e graves denúncias de corrupção e desvio de recursos públicos vem sendo feitas às gestões do casal Garotinho. 8 Neste sentido, há dois casos explícitos. Primeiro o do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), proprietário da Rede Record de Televisão, que chegou a ficar preso por 12 dias, em 1992, por acusação de charlatanismo, curandeirismo e estelionato. O outro é o do apóstolo Estevão e da bispa Sonia Hernandes, casal de empreendedores da Igreja Apostólica Renascer em Cristo (IRC) e proprietários de empresas ligadas à sua instituição religiosa, que foram condenados e cumprem pena de prisão nos Estados Unidos, desde agosto de 2007, por contrabando de dinheiro. Ambas igrejas praticam e divulgam amplamente atividades assistenciais, promovidas principalmente pela Associação Beneficente Cristã (ABC), vinculada à Iurd, e pela Fundação Renascer, da IRC. 7

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ela se apresenta, sob novas interpretações e formas, como um valor que impulsiona seus praticantes à busca de alguma transformação social. Eis a complexidade que envolve esse traço religioso.

A modo de um apêndice Minha pesquisa atual trata da relação de diferentes vertentes cristãs com formas diversas de economia, e respectivas implicações políticas. Levarei em consideração alguns pontos do debate que fizemos no contexto da Oficina sobre Religião e Cidadania9. Parto do questionamento sobre o lugar da religião hoje. Que espaço a religião ocupa atualmente na sociedade brasileira? Lembremos que ela não tem um formato jurídico precisamente definido, ou seja, não se tem de modo bem demarcado o que é uma igreja, um movimento religioso ou uma comunidade religiosa. São coisas que se misturam, tanto institucionalmente, quanto no imaginário coletivo. Consideremos também o fato de a religião se revestir do pressuposto de um ideal de busca do bem público. No mundo moderno, a religião foi essencialmente substituída pelo Estado, em termos de obrigação moral de amparo aos mais pobres ou socialmente necessitados. Gradativamente, o indivíduo, materialmente desprovido ou carente, vem adquirindo status de cidadão, merecedor não mais de piedade, mas de direitos sociais. Embora ainda persista certa confusão entre efetivação de direitos e assistencialismo. Por outro lado, as ações caritativas religiosas prosseguiram e passaram a conviver com iniciativas semelhantes, com motivações ideológicas laicas, chamadas de filantrópicas. Com isso, as entidades religiosas se colocam ao lado de organismos seculares, também praticantes de assistência social nesse conjunto chamado Terceiro Setor. Como seus pares, elas têm assento em conselhos e fóruns de acompanhamento de políticas públicas, nessa área. Um outro questionamento que se desdobra é quanto ao tipo de relação que o Estado deve ter com a religião, de modo a garantir o pluralismo e a democracia, em termos de igualdade de condições entre as diversas 9

Um dos eventos referidos na nota 1.

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formas religiosas e o direito à diferença. Como deve ser o posicionamento do Estado frente a esse universo plural e, muitas vezes, conflitivo? O que está em questão é a diversificação religiosa, bem como os alcances e limites do procedimento religioso no país. Este é um processo em curso, que implica basicamente em declínio do catolicismo, crescimento de outras vertentes religiosas – sobretudo do pentecostalismo – e também de um segmento social mais recente, que é dos ditos sem religião. Nesse universo, ainda há predominância maciça do cristianismo, porém com uma substituição notória dos chamados cristianismos da tradição popular e da libertação por um cristianismo da concorrência ou da competição. Trata-se de concorrência por adeptos, por eleitores – na medida em que há candidatos religiosos e até alguns partidos políticos com conotação confessional – e também concorrência por recursos financeiros. Tal faceta cristã é a que mais cresce atualmente. Essas mudanças no cenário religioso ocorrem em um contexto social específico de valorização do mercado, em detrimento do Estado. Evidentemente, não se trata aqui de demonização de um e deificação do outro, mas efetivamente o chamado neoliberalismo provoca o uso cada vez mais generalizado de termos como gestão, eficiência, competência, caracterizando-se, no fundo como um processo de dupla face: de um lado, despolitização da sociedade, e do outro, certa “mercantilização da política”. Entidades religiosas e outras laicas disputam entre si recursos públicos para promoverem projetos assistenciais em parceria com o Estado, que por sua vez, vale-se da legitimidade social delas. Nesse quadro, tais entidades costumam deixar de lado qualquer perspectiva de contestação, orientando-se por um ideal de cooperação. Em grande medida, elas são também instrumentalizadas por suas corporações religiosas, servindo muitas vezes para alavancar carreiras políticas. O caso mais explícito é o do senador pelo Rio de Janeiro e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), Marcelo Crivella, alicerçado nos projetos assistencialistas daquela denominação10. Nesta mesma Oficina, Arnulfo Barbosa disse algo contundente: está em curso uma espécie de movimento antiecumênico, com feições institucionais. Ele deu o exemplo do rompimento da Igreja Metodista com o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic). Nesse sentido, Agradeço a Joanildo Burity pelas contribuições a respeito da relação entre religião e políticas públicas na sociedade brasileira contemporânea.

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lembremos que, internacionalmente, o último gesto ecumênico relevante foi uma celebração que reuniu João Paulo II e outros líderes, inclusive não cristãos, na cidade italiana de Assis, em 1988. Desde então, nada significativo voltou a ocorrer. Tal atitude antiecumênica é mais notória na Igreja Católica, por ela estar se fazendo mais rigidamente autocentrada, sob o comando de Bento XVI. Exemplo disso é o documento pontifício recente que praticamente desconsidera o estatuto das outras igrejas. Trata-se de uma espécie de retrocesso ao período pré-Concílio Vaticano II. Devemos considerar uma nítida distinção entre certo “ecumenismo de base” e o diplomático discurso das instituições religiosas. Aliás, no âmbito dos ativistas religiosos isso é até mais amplo, trata-se do chamado diálogo inter-religioso, algo para além do cristianismo. Esse “ecumenismo de base”, marcado por voluntarismo, por vezes, produz experiências interessantes, como essa da articulação de entidades civis em favor do Semiárido nordestino, relatada aqui pelo Arnulfo Barbosa. Tal “movimento antiecumênico” tem como outra face uma organização mercadológica das religiões, sobretudo das igrejas cristãs. Elas vêm deixando de lado o diálogo e as práticas comuns, optando pela concorrência, pela competição entre si. Disputam adeptos, espaço e legitimidade na sociedade abrangente. Isto é algo notadamente contraditório, uma vez que o cristianismo prega conciliação, respeito e aproximação entre as pessoas, não só cristãs. A compaixão, Esse atributo quase universal das religiões, muitas vezes, transcende limites comunitários e religiosos, tornando-se indiscriminadamente benevolência humanitária. No Ocidente, tal sentimento religioso é geralmente traduzido em caridade, isto é, amor desinteressado entre pessoas, em decorrência do suposto amor divino. A fraternidade religiosa e laica, no entanto, parece sucumbir ao conflituoso “politeísmo de valores”, apontado por Max Weber. Dado que as vertentes religiosas competem entre si – no já amplamente reconhecido mercado religioso – e estão muitas vezes extrapolando suas ações ao universo religioso propriamente dito, nós voltamos ao questionamento inicial. Deveria haver algum tipo de regulação estatal para as religiões, no sentido de definir, por exemplo, que tipo de atividades deve ou não estar isentas de fiscalização pública e de cobrança de tributos? Isso nos inquieta, na medida em que algumas igrejas e movimentos religiosos 206

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se envolvem e prosperam com atividades econômicas lucrativas. Algumas denominações detêm de modo dissimulado, mas concretamente, empresas de médio e até de grande porte. Tais empreendimentos não são ligados juridicamente às entidades religiosas, mas sim a seus líderes, fundadores e também “gestores”. O caso mais evidente, outra vez, é o da Iurd, com seus vários negócios, dentre eles o maior e mais significativo, a Rede Record de Televisão, pertencente ao bispo e assumidamente empresário, Edir Macedo. Comprada em crise, em 1989, por 45 milhões de dólares, tal emissora vem crescendo muito rapidamente, tornando-se já, em 2007, a segunda maior do país. Oficialmente, a Record lida com a Iurd apenas com uma “cliente”, que paga muito caro pela veiculação de programas religiosos apenas nas madrugadas, mas a promiscuidade comercial é evidente. Essa não é uma empresa qualquer, uma vez que, além de ser uma concessão pública, veicula bens simbólicos e contribuindo significativamente para a construção do imaginário popular no país. Afinal de contas, o que diferencia a religião de outras organizações que também estão nesse mesmo contexto mercadológico? Como o Estado deveria se colocar em relação a isso? Tal dilema fica explícito, por exemplo, no caso de acusações de membros de igrejas contra suas próprias denominações por se julgarem enganados, terem feito doações sob coerção psicológica e propaganda enganosa e dizerem-se lesados. O problema é patente também no caso de pastores, que procuram a justiça trabalhista contra suas ex-igrejas empregadoras. Essas contradições se tornam explícitas, uma vez mais, em outras formas de conflito que vêm à tona na mídia. Como uma igreja pode ter status diferenciado em relação a outras organizações que atuam em mercados, na medida em que ela também adota práticas comerciais? Essas questões emergem em um contexto visível de prosperidade de algumas denominações, com alguns flagrantes de enriquecimento criminoso de seus líderes, fundadores, ou proprietários. A punição judicial à delinquência de Estevam e Sonia Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo (IRC), constitui o caso mais explicito no momento. Vale dizer que Edir Macedo já viveu constrangimento semelhante, mas sua Iurd parece ter superado tal empreendedorismo econômico e judicialmente aventureiro, e hoje prospera solidamente. Talvez seja também o destino da IRC. 207

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O pragmatismo dessa nova face do cristianismo assume feições competitivas, corporativas, políticas e econômicas. Algumas igrejas adotam práticas comerciais, explicitamente buscando lucro e crescimento institucional. E a política partidária parece ser mais um instrumento dessa estratégia expansionista. Parlamentares religiosos, sobretudo evangélicos, agem deliberadamente a serviço do crescimento econômico e institucional das denominações que os elegeram. O pragmatismo aí se traduz em lobismo. Tais contradições colocam em questão o fato de a instituição religiosa se pretender como organização que promove ou deveria promover utilidade pública e cidadania, que é o tema desta oficina. Como a religião, revestida desse ideal, pode assumir tais feições impunemente? Eis um problema bastante inquietante para cientistas sociais e cidadãos de qualquer país que se pretenda laico.

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PARTE 4 RELIGIÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS

Capítulo 10 Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate Josadac Bezerra dos Santos

Introdução Uma característica dominante do nosso tempo, em relação às igrejas e a sociedade ocidental é o conflito proveniente do surgimento das reivindicações dos grupos de mulheres a favor do aborto, de pessoas cujas preferências sexuais incluem as relações homoafetivas, pelo reconhecimento moral e legal das uniões entre pessoas do mesmo sexo e, seguindo-se a essa tendência inesperada nos primórdios da modernidade, a reivindicação do direito de interromper a vida de pessoas que padecem de grande sofrimento físico e psíquico em decorrência de moléstias degenerativas gravíssimas, como certos tipos de câncer, por exemplo. O fato da existência do conflito, tanto no Brasil como no resto do mundo, por causa de tais pressões no meio social contemporâneo em função de tais bandeiras, implica, evidentemente, que os Estados estão encarando, queiram ou não, a pressão sobre as políticas públicas como forma adequada de resposta do Estado a tais demandas, independentemente das “colorações” político-ideológicas, de seus governos. O diálogo ocorrido entre o papa Bento XVI e o presidente Luís Inácio Lula da Silva, por ocasião da visita do pontífice ao Brasil em 2006, é bem ilustrativo desse conflito. Duas coisas ficaram claras em relação ao cenário acima exposto: primeiro, o posicionamento do papa sobre questões tais como a educação religiosa em escolas públicas, o aborto, a eutanásia e os problemas advindos das reivindicações dos movimentos LGBT, em função da chamada diversidade sexual. Segundo, as mudanças ocorridas no âmbito do próprio governo brasileiro, pelo menos do ponto de vista das

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expectativas políticas das feministas, em se tratando de um governo petista. A inexistência de novidades na Igreja, nas posições já históricas é um fato. A Igreja Católica tem se colocado absolutamente contra o aborto e contra a eutanásia, ambos em qualquer situação, por causa de sua defesa intransigente e radical da vida biológica, desde antes de sua concepção, isto é, enquanto ainda apenas uma condição de possibilidade, até a sua extinção natural, por ser considerada absolutamente sagrada, uma vez que o homem é uma criatura de Deus. Criador este que lhe deu a vida biológica, não tendo, portanto, a criatura qualquer direito ou autonomia sobre a vida como ela é. É também por essa mesma razão que a Igreja se coloca absolutamente contra o uso de qualquer meio artificial de contracepção, isto é, evitar a natural possibilidade da vida, uma vez que esta é sempre uma dádiva de Deus, mesmo no caso de uma gravidez advinda de um estupro. Ora, em se tratando de uma dádiva de Deus, não pode o homem pretender impedir que a livre vontade de Deus se realize em alguém, ainda que de forma aviltante, como é o caso de um estupro. Em relação ao Estado brasileiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro para a sociedade que seu governo não iria patrocinar qualquer iniciativa em relação ao poder legislativo, no sentido de propor a legalização do aborto, como esperava o Movimento Feminista no início do governo. À semelhança de Pilatos diante de Cristo, o presidente resolveu lavar as mãos solenemente, deixando toda a responsabilidade política para o Congresso Nacional.

As duas naturezas do conflito O embate inerente a este processo social pode ser didaticamente dividido em duas naturezas distintas: um conflito propriamente político e o outro, epistemológico. No primeiro caso, o objetivo é a identificação de estratégias de ação utilizadas pelos movimentos sociais, pelo o Estado e pela Igreja, cada um desses atores interessados em impor ao conjunto da sociedade suas convicções. No segundo caso, o conflito epistemológico implica reconhecer-se que, por trás dos discursos, há sempre um posicionamento prévio quanto à concepção que atores sociais têm da teoria do 216

Capítulo 10 – Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate

conhecimento, consciente ou inconscientemente, por causa da natureza das demandas em jogo: a vida, a morte, o corpo, a crença na existência de Deus e a consequente responsabilidade pessoal para com a vida diante dessa crença, entre outras coisas.

O conflito político No nível político, interpretamos o conflito como inerente a toda realidade social democrática, reconhecendo com Mouffe (2003) a existência de um pluralismo agonístico, isto é, uma vasta quantidade de conflitos devido à existência de particularidades diversas que eventualmente podem se articular em busca de uma posição hegemônica na sociedade. De acordo com essa concepção, o político não está previamente em uma instituição em si, com uma identidade fixa e estável, mesmo que tal instituição esteja na esfera do Estado; mas nas construções identitárias dos atores coletivos em uma determinada sociedade. Como sintetiza Mouffe, O poder não deveria ser concebido como uma relação externa que acontece entre duas identidades pré-constituídas, mas antes como constituintes das próprias identidades. A prática política numa sociedade democrática não consiste na defesa dos direitos de identidades pré-constituídas, mas antes na constituição dessas identidades mesmas, num terreno precário e sempre vulnerável (2003, p. 14).

O “terreno precário e sempre vulnerável” a que a autora se refere aponta para uma segunda pressuposição desta percepção do político: o espaço público ou o lugar dos atores coletivos que atuam nesse cenário sociocultural não pode ser previamente dado e nem também se pode tomar a identidade de tais atores como portadoras de identidades fixas. Portanto, se estamos falando de atores sociais tais como movimento feminista, igreja, políticas públicas e consequentemente ação do Estado, ou qualquer outra posição de sujeito, lembremo-nos que tais atores estão em constante criação de suas identidades ao longo da história, e que só contingentemente essas identidades podem ser reconhecidas como fixadas. É o processo de 217

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luta política e de seu conflito inerente que permite o reconhecimento do momento hegemônico de um determinado discurso que consegue impor ao conjunto da sociedade o seu querer. Atores diferentes querem coisas diferentes, pois têm suas particularidades. Muitas vezes, porém, entram em uma articulação política que implica na necessidade de abrir mão de sua própria demanda particular, para associar-se a outra demanda cujo discurso tem maior capacidade de aglutinação e maior capacidade de tornar hegemônico o seu discurso num claro ato de representação do todo, impondo assim a sua vontade ao grupo contrário. O leitor, que está acostumado a pensar o Estado em uma perspectiva liberal, isto é, considerando-o em toda a sua singularidade e, portanto, um ente absolutamente único e o mais abrangente de todos os grupos humanos, poderá sentir certa dificuldade em admitir que o político possa existir no Estado com a mesma natureza que existe na sociedade civil em geral. A esta dificuldade argumentamos que embora se possa reconhecer, em certo grau, as singularidades do Estado, não é possível deixar de afirmar que, à semelhança do que ocorre na sociedade civil, o poder do Estado é também um poder que resulta da articulação de determinados atores com suas particularidades, e que também, em algum momento, passaram pelo mesmo processo político de encontrar um discurso que melhor aglutinasse um conjunto de interesses, e que, em determinado momento, tornou-se hegemônico e por isso mesmo impõe sua vontade à totalidade da sociedade em geral. Em outras palavras, se estamos reconhecendo que no Brasil, de acordo com a lei, o aborto é um crime, e isso está imposto ao conjunto da sociedade como um todo, é porque forças diversas que se articulam politicamente entre si, tornam hegemônica esta posição jurídica sobre o aborto, mantendo em campo oposto os que pensam o contrário. Como esta hegemonia não é eterna, mas sim contingente, na medida em que o processo político ocorre, a posição inversa poderá vir a consolidar-se, também contingentemente, como hegemônica.

O conflito epistemológico Ao tratar-se da questão do aborto, na verdade estamos tratando de um conjunto mais amplo de questões. Estas podem ser denominadas questões 218

Capítulo 10 – Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate

de politização da vida e da morte porque se articulam em uma cadeia de significados polêmicos que reportam as pessoas a valores muito arraigados nas sociedades mais tradicionais e de formação cristã. Também nos reportam aos fundamentos da modernidade. Quando nos lembramos da filosofia política do século XVIII, não é difícil perceber que a vida já havia sido tratada de forma política muito especial, na medida em que ela se constituía no bem mais fundamental e mais valioso do estado de natureza a ser preservado e garantido para todos os homens pelo Estado, no estado de sociedade civil, tornando-se o principal motivo de legitimação do Estado moderno e do contrato social que o funda, segundo os liberais. Com maior ou menor ênfase, este valor está presente em diversos pensadores modernos, sobretudo nos contratualistas1, tanto os absolutistas quanto os não absolutistas. Ora, esta peculiaridade traz consigo uma inevitável sensação de que questões como aborto, eutanásia, manipulação de material genético vivo como as células-tronco, entre outras questões, sejam reconhecidas como uma afronta direta aos nossos fundamentos, aos fundamentos da modernidade, causando assim um sentimento generalizado de que estamos entrando em uma zona cinzenta de instabilidade política e de angústia existencial em busca de uma nova revelação que toque o real, isto é, nos transportando para um outro patamar onde um novo manto se fez, e uma nova necessidade de revelação se impõe (TIBURI, 2004), fazendo com que o político acabe se tornando profundamente transversal, colocando no mesmo lado atores sociais que por outros valores políticos e/ou simbólicos, no passado recente, estavam em campos opostos; e em campos opostos antigos aliados. A causa mais profunda desse conflito, a meu ver, é uma diferença radical no ponto de partida na esfera da epistemologia. Sem dúvida, todo o fundamento argumentativo da Igreja gira em torno da ideia de que existe uma separação entre natureza e cultura, em oposição ao argumento das feministas que gira em torno da ideia de que não existe separação entre natureza e cultura. Autores que aceitavam a ideia de que o Estado tem como fundamento um contrato social firmado entre os homens para transferir o poder natural de cada indivíduo para o Estado em troca da garantia da vida, já que no estado de natureza esse direito fundamental não podia ser garantido.

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Documentos oficiais da Igreja dão ciência desse conflito. Por exemplo, ao se discutir a rejeição da categoria “gênero” em oposição à categoria “sexo”. Em minha tese de doutorado, argumentei que para que se entenda esta rejeição, “é necessário compreender que a crítica da Igreja se faz no pressuposto de que, em última instância, a defesa da categoria ‘gênero’ quer propor a substituição do ‘sexo’ como categoria válida de descrição e análise da realidade humana no que diz respeito à sexualidade, da qual se deve sempre partir” (SANTOS, 2006). A Cogregação para Doutrina da Fé, no documento intitulado “Sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo”, ao criticar a defesa da categoria “gênero” no pensamento feminista, diz que: Para evitar qualquer supremacia de um ou outro sexo tende-se a eliminar as suas diferenças, considerando-as simples efeitos de um condicionamento histórico-cultural. Neste nivelamento, a diferença corpórea, chamada sexo, é minimizada, ao passo que dimensão estritamente cultural, chamada gênero, é sublinhada ao máximo e considerada primária (CARTA, 2004, p. 7)

Para a Igreja Católica, esta posição nas teorias feministas tem sérias conseqüências na medida em que para elas “a natureza humana não teria em si mesma características que se imporiam de forma absoluta” (CARTA, 2004, p. 8), pressuposto basilar nos documentos e posições oficiais da Igreja. Ora, se a natureza corpórea é tão sagrada assim, em coerência com seu discurso mais geral da separação entre natureza e cultura, onde os valores desta última não podem suplantar o valor da primeira, implicando em uma associação entre o “corpo” e a “vida”, é fácil deduzir que para Igreja, o corpo e consequentemente o sexo se impõem sobre a categoria gênero, já que esta última é uma mera expressão cultural. O ato médico e da mulher em rejeitar qualquer ato abortivo, seja porque motivo for, se impõe sobre a interpretação contrária. Em outras palavras, as razões epistemológicas pelas quais a Igreja rejeita o aborto e a eutanásia são exatamente as mesmas pelas quais ela rejeita a diversidade sexual e a categoria gênero. 220

Capítulo 10 – Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate

Perspectiva histórica do problema: do Estado Autoritário (1964) ao Estado Democrático (1985-2006) O Estado Autoritário Não resta dúvida de que a redemocratização formal do país, já há um bom tempo ocorrida, se constituiu em um marco histórico importante para o surgimento de novas reivindicações das mulheres, iniciando-se nos idos dos anos de 1970 pela luta a favor do divórcio e pela democracia no Brasil. A partir dos anos de 1980, é inserida na pauta das demandas feministas a luta pelo aborto, tornando a questão mais visível. De acordo com Rocha (2006), a redemocratização vem significar a possibilidade de algum avanço na área de políticas públicas e reações favoráveis no judiciário: A redemocratização do país, em meados dos anos 80, teve peso fundamental para tornar a questão do aborto mais visível, criando condições para ampliação do debate e elaboração de novas normas e políticas públicas, bem como novas decisões no âmbito do Judiciário (ROCHA, 2006, p.369).

Superada a primeira fase anterior a meados dos anos de 1980, caracterizada pela necessidade de se priorizar a luta pela redemocratização do país (BURITY, 1994; MURARO, 1975), passa-se a ter como principal sujeito ou ator social o Movimento Feminista, já bem articulado. Este passa a liderar mais visivelmente, não só a articulação do movimento social em si, como também passa a preocupar-se com as políticas públicas em relação às mulheres. Rocha (2006) continua nos dando uma ideia mais clara do que ocorrera nos chamados anos de chumbo. Ela os subdivide em dois períodos porque eles têm características diferentes em momentos diferentes da nossa história sobre a questão do aborto. O primeiro de 1964 a 1979 (anos de chumbo), e o segundo de 1979 a 1985, na chamada abertura política. De acordo com a autora, o regime militar tenta impor um novo Código Penal no qual se mantinha a incriminação do aborto, com exceção dos dois permissivos do código anterior, mas alterava as punições, introduzia controles do Estado para o aborto permitido por lei e aumentava a pena para a

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mulher que provocasse o auto-aborto, ou que permitisse que alguém o fizesse, embora a reduzisse na situação da denominada defesa da honra. Refletia, assim, a ausência de um debate democrático sobre o tema (ROCHA, 2006, p. 370).

Para ela, naquele período, a Igreja Católica prefere se colocar de forma mais defensiva a expressar propósitos sobre o assunto, uma vez que não havia no âmbito da sociedade civil para além dos muros eclesiásticos, uma mobilização política visível em defesa do aborto.

Transição Democrática Surge no Ministério da Saúde, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) em 1983, período da abertura política que vai 1979 a 1985. Trata-se da formulação de políticas públicas de interesse das mulheres, inclusive com a participação de representantes feministas. O referido programa, porém, limitava-se apenas a reconhecer a necessidade de informar-se adequadamente a população para se evitar o aborto provocado mediante a prevenção da gravidez indesejada. Ainda neste período, a referida autora registra a realização de um encontro nacional que aconteceu no Rio de Janeiro no ano de 1983, convocado por um conjunto de 57 entidades e grupos feministas sobre saúde, sexualidade, contracepção e aborto; numa clara demonstração de mobilização da sociedade civil naquele período ainda não democrático. Conforme o documento final desse encontro, o aborto foi considerado um direito e demandava informações para as mulheres e serviços públicos para atendê-lo, já que se começava a falar sobre políticas públicas nessa área (ROCHA, 2006). Note-se que, embora essas referências a respeito de políticas públicas e até da própria organização da sociedade civil neste período sejam bem sucintas, elas nos dão uma dimensão do quanto a luta era incipiente e “dançava-se de acordo com a música”, isto é, acompanhava-se o grau de pouca vivência da democracia, ainda por se firmar na sociedade brasileira daqueles anos. Só mesmo, a partir da promulgação da Constituição de 1988, é que os movimentos sociais se vêm fortalecidos e em condições de lutarem com todas as armas por políticas públicas que favoreçam seus representados. 222

Capítulo 10 – Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate

A Constituinte Este momento histórico também é subdivido pela autora em dois períodos distintos. O que antecede a Assembléia Nacional Constituinte (1985 a 1988), e o período pós-constituinte. O primeiro período, exatamente por anteceder a Constituinte, é marcado por uma grande mobilização de diversos movimentos sociais e a sociedade civil como um todo, entre estes, o Movimento Feminista. Com o advento da Constituição de 1988, novos direitos foram garantidos, o que possibilitou maior visibilidade à identidade do Movimento Feminista, e a especificidade de suas reivindicações. Com o fim do regime militar em 1985 e, no intervalo entre o fim do regime militar e o início do período democrático é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), para atuar na esfera do poder executivo. Em seus primeiros anos, o CNDM exerce um importante papel político na mobilização das mulheres em função da Constituinte, mas, pouco tempo depois, perde sua força e é desativado. O período da Constituinte apresenta ao país um quadro que indica o quanto acirrado seria o embate dali para frente, e o quanto será antagônico o confronto envolvendo a Igreja Católica, apoiada, em muitos dos temas de interesse das mulheres, pela chamada bancada evangélica, e o Movimento Feminista. As reivindicações mais radicais das mulheres, como a questão da despenalização da prática do aborto, eram usadas como “moeda de troca” entre os dois lados, já que fora pela mão da Igreja Católica que a questão do aborto ganhara mais importância na medida em que a Igreja desejava um retrocesso propondo a retirada das duas situações em que a prática do aborto tem amparo legal: no caso de a gravidez ser originária de estupro e em caso de risco de vida para gestante. A Igreja propusera a proibição do aborto em qualquer situação.

Processos Políticos e Sociais mais recentes: a busca de novas estratégias Após esse processo Constituinte e, levando-se em conta que, a partir da Constituição de 1988, novos direitos e mais atenção política é dada à mobilização da sociedade civil organizada, o Movimento Feminista e outros 223

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grupos voltam a sua atenção para que se faça cumprir em várias esferas do executivo a aplicação do direito ao aborto legal, conforme o que acabou ficando garantido no texto constitucional. Hoje é parte da luta a busca pela efetiva execução deste preceito constitucional, isto é, a efetiva execução do aborto legal em hospitais públicos credenciados, assim como o chamado alargamento dos permissivos, como é o caso da interrupção da gravidez em caso de anecefalia; para ampliação e consolidação da luta. Antes de analisarmos as ações do Movimento Feminista e de ONGs a ele vinculadas, é necessário registrar uma ação de governo e, portanto, uma política pública posta em prática. Trata-se da Norma Técnica Atenção Humanizada ao Abortamento2, de Março de 2005 do Ministério da Saúde, ainda no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando a pasta ainda pertencia ao Partido dos Trabalhadores, e quando ainda se acreditava que o presidente estava disposto a apoiar iniciativas políticas controversas, mas, consideradas pelo Movimento Feminista como “progressistas” em relação às suas lutas. Nesse período, as feministas estavam e ainda estão muito bem representadas dentro do governo pela ministra Nicéia Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. A ministra liderava uma estratégia política interna no governo intitulada informalmente de “projeto de fortalecimento do estado laico”, que orientava um conjunto de ações visando colocar em prática políticas públicas desde que com base na lei, e que sempre se constituíram em motivo político de contestação judicial e política por parte da Igreja Católica, como tem sido o caso específico do aborto legal. As Organizações Não Governamentais (ONGs), sobretudo aquelas que ideologicamente estão vinculadas ao Movimento Feminista, têm exercido um papel político muito importante na mobilização das mais diversas entidades da sociedade civil na luta pela legalização do aborto no Brasil. Para Ventura3 (2005), do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), os anos 2003 e 2004 foram muito proveitosos para o Movimento Feminista por haverem criado, por exemplo, as “Jornadas Brasileiras para Legalização do Aborto” uma mobilização de caráter nacional para pres Esta Norma Técnica substitui uma outra anterior, de 1998, do Ministro José Serra, onde se exigia que as mulheres em situação de abortamento por violência sexual apresentassem um boletim de ocorrência (BO) fornecido pela polícia como condição para o atendimento. 3 O texto de onde se tiram essas referências foi escrito no Jornal da CFEMEA, Jornal Fêmea, nº 6, Janeiro de 2005. 2

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Capítulo 10 – Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate

sionar o Congresso Nacional a aprovar projetos de interesse da luta pela legalização do aborto, tendo havido manifestações em estados diferentes de norte a sul do país. Como o foco principal da atividade da CFEMEA é junto a ações que envolvem a justiça, a autora centraliza sua análise no importante trajeto percorrido pelo Movimento Feminista e por seus adversários nos últimos anos, principalmente a Igreja Católica: a estratégia de recorrer ao judiciário na esperança de que se consiga importantes vitórias para um ou para o outro lado. A questão política que talvez valha a pena avaliar é se o judiciário se coloca como um eficiente instrumento de conquistas ou avanços sociais em substituição ou alternativa ao sistema político, já que, pelo menos no nível do Congresso Nacional, não tem sido fácil para as feministas contabilizar vitórias. No balanço feito pela a autora, sobre os confrontos no judiciário a respeito desse novo caminho estratégico para ambos os grupos, e, sobretudo no que se refere ao propósito de ganhar espaço político com vistas a uma futura legalização do aborto voluntário, Ventura contabiliza vitória significativa das feministas em detrimento dos conservadores no caso da derrota sofrida pela Igreja no julgamento Ação Popular (AP) nº 2003.51.01.023477- 8 que tramitou na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Para a autora essa seria uma das evidências desta vitória. A AP pretendia suspender os serviços de aborto legal nos hospitais públicos federais, alegando a ilegalidade da norma técnica do Ministério da Saúde de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes como base de sustentação jurídica à aplicabilidade da lei, no caso dos permissivos legais do abortamento, isso ainda em sua versão de 1998. Com a derrota da AP, confirma-se a legalidade da norma técnica. Em 2007, saiu a mais recente versão da Norma Técnica “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes”. Nela não se exige que para seu cumprimento a mulher, vítima de violência, tenha que se apresentar primeiro à polícia para a obtenção de um boletim de ocorrência, embora a Lei n.º 10.778, de 24 de novembro de 2003, estabelece a notificação compulsória, no território nacional, dos casos de violência contra a mulher, atendidos em serviços públicos e privados de saúde. 225

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De acordo com o Ministério da Saúde, as reivindicações da sociedade civil por direitos à saúde, justiça e cidadania culminaram nas Conferências das Nações Unidas que tratam do tema saúde e direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres e jovens. No que se refere à violência, destaca-se a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará/ONU, da qual o Brasil é signatário, que traz como foco principal o reconhecimento de que a violência doméstica, sexual e/ou psicológica contra a mulher é uma violação dos direitos humanos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005, p. 7).

A importância política deste comprometimento do país no nível internacional assegura a entrada definitiva do Brasil no grupo de nações que adotam e reconhecem as questões pertinentes às mulheres como um alargamento da compreensão dos direitos humanos, a partir de agora não mais restrito ao universo masculino, na avaliação das feministas. Outro caso digno de registro em face da grande repercussão na mídia nacional foi a liminar concedida pelo ministro Marcos Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, permitindo a realização do aborto em gestantes que tenham fetos com anecefalia, com base no permissivo legal para a prática do aborto nos casos em que exista risco de morte para gestante. A liminar acabou cassada pelo Supremo Tribunal Federal, mas o mérito ainda está para ser julgado. De qualquer forma, do ponto de vista político, só o fato da concessão da liminar em si, já representou uma vitória das feministas no embate contra a Igreja. Pela primeira vez na história da República a questão do aborto foi tratada pela mais alta corte do Brasil. Isso contribui enormemente para a visibilidade da questão, visibilidade esta muito importante politicamente.

As pesquisas em busca da opinião pública Outro fato relevante em toda esta questão referente à contemporaneidade da luta pelo aborto no Brasil, tanto no que se refere à 226

Capítulo 10 – Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate

mobilização da sociedade civil quanto no que se refere à criação de políticas públicas do interesse das mulheres, é a aferição de tendências da opinião pública em relação a temas controvertidos através de algumas pesquisas. Datada de 2003, a pesquisa da Comissão de Cidadania e Reprodução CCR-IBOP questiona a ampliação do direito ao aborto no Brasil. De acordo com essa pesquisa, seis, em cada dez brasileiros, são contrários a ampliação do aborto, 63% não querem retrocesso na atual legislação, 53% apoia o aborto vigente e somente 10% querem a ampliação do direito ao aborto no país. Estes números, por si, já apontam haver, por parte dos entrevistados, uma posição equidistante dos dois polos. A maioria se mostra contra as intenções da Igreja em eliminar qualquer tipo legalidade do aborto, mas também uma considerável maioria não deseja uma legalização do aborto amplo, geral e irrestrito, como quer o movimento feminista. Uma instituição representativa do movimento feminista a ong Católicas pelo Direito de Decidir, realizou duas pesquisas. Essas pesquisas referem-se a um curto período de tempo em que o Ministério da Saúde havia iniciado uma série de procedimentos administrativos para implantação em hospitais públicos, o serviço gratuito e de qualidade para o abortamento em casos previstos em lei. Atualmente essas iniciativas estão proibidas pela justiça, aguardando julgamento final. As pesquisas versam sobre Serviços de Aborto legal em Hospitais Públicos Brasileiros. A primeira realizada em 2005 e a segunda em 2006. Já na pesquisa de 2005 era clara a situação de “invisibilidade” do aborto como prática legal no país, com consequências sobre a situação de legalidade existente e possível. Segundo os dados da pesquisa, desde 1989, quando foi implantado o primeiro serviço de aborto legal no país, até 2005, somente 1606 casos de atendimento por parte deste serviço foram registrados. A pesquisa Ibope/CDD realizada em Julho de 2006, com o objetivo de investigar a efetiva colocação em prática, na rede pública de saúde, as resoluções e normas técnicas do Ministério da Saúde, que visavam o cumprimento da constituição no que se refere à prática do aborto legal, se deu em 143 municípios, com 2002 pessoas entrevistadas. Nela se concluiu que quase metade da população brasileira, 48%, desconhece 227

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as situações em que o aborto pode ser feito legalmente. Mostrou também que, apesar de todo o ataque dos que se colocam contra o aborto em qualquer situação, 56% tinham consciência clara de que o aborto é legal, quando a mulher é vítima de estupro. E que quanto maior for a escolaridade e a renda familiar, quanto maior for o município e se tem serviço público implantado para o atendimento das mulheres, maior a consciência deste direito há. No que se refere ao conhecimento da população do nome das instituições hospitalares onde o atendimento estava ativo, 95% dos entrevistados disseram não saber, não opinaram, ou responderam que nenhum hospital poderia realizar o atendimento4. Em termos do que se pode chamar de política pública, o desconhecimento da população da possibilidade desse serviço aponta para uma clara omissão das autoridades em divulgar amplamente a existência desse serviço. Isso também pode indicar eventual influência da Igreja Católica para que se evite essa divulgação, ou uma eventual omissão por parte dos próprios agentes públicos, (administradores, médicos, enfermeiros, etc) assolados pessoalmente por convicções religiosas ou de outra natureza, que os coloca em tal estado de espírito. Em 6 de Abril de 2008, A Folha, diário paulista, divulga pela internet5 os resultados da última pesquisa feita em março, pelo Instituto Datafolha, sobre o aborto no Brasil, na qual se conclui que 68% dos brasileiros querem que o aborto siga como crime. De acordo com a matéria, esse número é maior em relação às duas outras últimas pesquisas do instituto, sendo em 2006 de 63% e em 2007 de 65%, confirmando uma tendência crescente observada desde 1993. De 1993 a 2008 o apoio à manutenção da lei como está, cresceu 14%. A máxima observada nas pesquisas anteriores, inclusive de outros institutos de pesquisa, de que quanto maior a escolaridade e quanto maior for a renda familiar, maior o apoio a mudanças na lei para ampliação do direito ao aborto, está presente na atual pesquisa, confirmando a regra geral de que o cidadão brasileiro se mantém equidistante às duas posições polarizadas da Igreja e das feministas. Pesquisa Ibope/CDD, p. 3 Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI2729472-EI306,00.html. Acesso em: 6 de Abril de 2008, às 16h30.

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Capítulo 10 – Políticas públicas, aborto e religião no Brasil: uma atualização do debate

Considerações Finais Foi nosso propósito nesse texto, buscar uma síntese da atualidade do debate sobre as políticas públicas, o aborto e a relação dessas duas temáticas com a interferência da religião, debate este que se trava na sociedade através da imprensa e de outros meios de informação e formação. Iniciamos falando do conflito existente no Brasil e no resto do mundo, procurando identificar os principais atores sociais nele envolvidos, a saber, o Governo Federal, a Igreja Católica e o Movimento Feminista, fundamentalmente. Percebemos que, ao tratar-se de uma dimensão específica como a questão do aborto, (uma particularidade no discurso feminista), na verdade nos encontramos envolvidos na arena mais ampla de uma determinada quantidade de discursos e particularidades que se relacionam entre si, na medida em que o conflito político se evidencia na sociedade e a necessidade de apoios mútuos acaba acontecendo, formando uma cadeia de equivalências entre essas diversas particularidades, reunindo forças a serem vencidas naquele ponto em que um novo sentido de liberdade e/ou igualdade é requerido. Assim, percebemos que na luta pelo aborto amplo, geral e irrestrito, o movimento feminista acha necessário se solidarizar com a causa LGBT, ou associar-se a lutas específicas na área de implantação de serviços de saúde pública que ajudem as mulheres em suas diversas manifestações de necessidades, e assim por diante, sempre no propósito de construir uma prática política articulatória que as leve a uma situação de vitória. As pesquisas de opinião, tão necessárias para a questão da visibilidade da luta pelo aborto, fazem-nos perguntar por que os discursos opostos, tanto os das feministas como os da Igreja, estão tão longe das aspirações da maioria da população brasileira, que em uma singular convergência de todas as pesquisas, demonstra, com clareza, que a população rejeita ambos os extremos: a luta da Igreja pelo retrocesso e a criminalização de toda forma de aborto, e a luta das feministas pelo aborto amplo, geral e irrestrito. Será o caso de ambas as instituições estarem lutando por causas inexistentes no plano da sociedade em geral? 229

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Referências BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Área Técnica de Saúde da Mulher. 2005. Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes: norma técnica. 2. ed. atual. e ampl. Brasília: Ministério da Saúde. BURITY, Joanildo. 1994. Radical religion and the constitution of new political actors in Brazil: The Experience of the 1980s. Tese (Doutorado em Ciência Política). Colchester, Inglaterra: University of Essex. CARTA aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na igreja e no mundo. São Paulo, Paulinas, 2004. MOUFFE, Chantal. Democracia, cidadania e a questão do pluralismo, Política e Sociedade: Revista de Sociologia Política. UFSC Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, Florianópolis, v. 1, n. 3, Ed. Cidade Futura, 2003. MURARO, R. Maria. Sexualidade, libertação e fé. Petrópolis: Vozes, 1985. ROCHA, M. I. B. A discussão política sobre o aborto no Brasil: uma síntese, Revista Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 369374, jul./dez., 2006. SANTOS, Josadac Bezerra dos. Conflito e novas identidades no campo religioso brasileiro: feminismo, aborto, homossexualidade e eutanásia. (Tese de doutorado, PPGS). Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2006. TIBURI, Márcia. Filosofia cinza: a melancolia e o corpo nas dobras da escrita. Porto Alegre: Escritos, 2004. VENTURA, Miriam. A política governamental e o direito da mulher ao aborto voluntário, Jornal Fêmea, nº 6, Janeiro de 2005. Disponível em: http://www.cfemea.org.br/jornalfemea/detalhes.asp?IDJornalFemea=1248. Acesso em: 10 de janeiro de 2008.

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Capítulo 11 As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e Bahia: Desenvolvimento, Cultura e Relações Étnico-Raciais Ronaldo Sales Jr.

Introdução O objetivo do presente artigo é apresentar os resultados parciais da pesquisa “Negritude e Africanidade: identidade negra e candomblé nas políticas públicas em Pernambuco e Bahia”, que procura evidenciar as relações entre os diversos projetos de civilização/progresso/modernização/ desenvolvimento na formulação de políticas e a articulação de demandas sociais por atores sociais conforme a identidade étnico-racial, que se constituíram em um campo político de disputas, na instituição da República brasileira. Em outras palavras, as relações entre políticas públicas e políticas de identidade nos movimentos étnico-raciais. Isso se faz, apresentando a presença irredutível de formas de religiosidade na identidade compósita de muitos dos participantes, simpatizantes ou antagonistas daqueles movimentos. Desenvolvemos um estudo comparativo entre os estados de Pernambuco e Bahia, dadas as formas diferenciadas com que os elementos “negros” e “religiosos”, “raciais” e “culturais” foram articulados às identidades culturais, históricas e geopolíticas destes estados. Nosso olhar está sendo lançado sobre a atuação coletiva dos atores religiosos, em termos políticos e culturais, entre as fronteiras da política e da cultura. Pretendemos estudar tais processos no âmbito da apresentação das demandas, da formulação e implementação das políticas de ações afirmativas voltadas para o combate às desigualdades e discriminações étnico-raciais vivenciadas pelas pessoas negras e para valorização de seu modo de vida, numa articulação contingente, instável e tensa, por um lado, entre “negritude” e “africanidade” e, por outro, entre “cultura” e “raça”,

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buscando evidenciar o papel que as religiões afro-brasileiras, em especial, o candomblé, tiveram e têm neste processo. Indagando, assim, sobre os vínculos entre a experiência identitária dos movimentos religiosos afro-brasileiros e os valores e práticas republicanos e democráticos como o pluralismo e a tolerância. Os atores religiosos afro-brasileiros são abordados em, pelo menos, três aspectos: a) como elemento do discurso identitário dos movimentos sociais negros na formação da agenda pública brasileira; b) como sujeitos políticos autônomos envolvidos (stake holders) na formação da agenda pública; c) como conteúdo ou objeto das políticas públicas.

O conteúdo das demandas sociais, assim constituídas, implica não apenas a elaboração de uma carência ou desejo, mas, também, a designação de um agente social, a delimitação de um espaço de referência, um território (geopolítico: terreiro e África), e um repertório de ações consideradas legítimas e vistas como adequadas à natureza das demandas e dos agentes (BURITY, 1997, p. 12).

As Políticas de Ações Afirmativas Um marco importante na constituição de uma agenda pública direcionada para as relações étnico-raciais foi a realização da 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Este processo alia-se ao ciclo de Conferências realizadas pelo Governo Federal, no período de 2003 a 2004, destacando-se a 1ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres (15 a 17 de julho de 2004) e a Conferência Nacional de Direitos Humanos (29 de junho a 2 de julho de 2004). Resta, portanto, valorizar os esforços de aproximação e garantir a incorporação das formulações relativas à igualdade racial produzidas nestes eventos. A 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (1ª Conapir), convocada pelo Presidente da República a partir do Decreto de 23 de julho de 2003, representa um marco para o debate sobre as relações 232

Capítulo 11 – As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e Bahia: Desenvolvimento, Cultura e Relações Étnico-Raciais

étnico-raciais no contexto nacional, vinculado às deliberações internacionais, e constitui-se num momento privilegiado para a unificação de esforços entre Estado e sociedade civil na busca de superação das desigualdades étnico-raciais. A 1ª Conapir dar-se-ia num cenário inédito das políticas públicas brasileiras, pois 2005 foi instituído como o “Ano Nacional da Promoção da Igualdade Racial”. A Conapir apresentava-se como etapa para elaboração do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, contando com a representação de representantes de diversos grupos étnico-raciais como os “negros”, “indígenas”, “comunidades quilombolas”, “judeus”, “árabes e palestinos” e “ciganos”. Durante a abertura da Conferência, com a participação do Presidente da República, lideranças religiosas realizaram uma manifestação, quebrando o protocolo. Vários babalorixás e ialorixás, com suas vestimentas religiosas, entraram de braços dados entregando ao governo um documento de denúncia e reivindicação. Dentre os desafios apontados para a construção de políticas públicas, o texto-base da 1ª. Conapir destacou os seguintes temas para intervenção: a) trabalho e desenvolvimento econômico da população negra; b) educação; c) saúde; d) diversidade cultural; e) direitos humanos e segurança pública; f) comunidades remanescentes de quilombo; g) população indígena; h) juventude negra; i) mulher negra; j) religiões de matriz africana e comunidades de terreiro; l) fortalecimento das organizações antirracismo; m) política internacional. Dentre os desafios relativos à “Diversidade Cultural”, podemos destacar a preservação do patrimônio imaterial, material da cultura afro-brasileira e a intensificação do intercâmbio entre a Diáspora e a África. Nos desafios relacionados às religiões de matriz africana, encontram-se propostas para o resgate e a legalização dos espaços ocupados pelas comunidades de terreiros; o reconhecimento da participação das comunidades de terreiros no cenário político e social do país, combatendo a intolerância religiosa; o desenvolvimento de políticas públicas que ampliem a sustentabilidade das comunidades de terreiro; e o reconhecimento das funções de sacerdote e sacerdotisa das religiões de matriz africana. A terceira proposta aponta para o direcionamento de políticas públicas para as comunidades de terreiro que garantam o seu funcionamento e a manutenção de seus membros (“sustentabilidade”). 233

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Não fica evidente o que legitimaria a proposição de políticas públicas especiais para sustentabilidade de uma modalidade religiosa, porém, parece identificar tais políticas às políticas de preservação do patrimônio material e imaterial e às políticas de desenvolvimento local ou “etnodesenvolvimento”. Neste último caso, as comunidades de terreiros seriam, mais do que espaços religiosos, territórios étnicos, coletividades residenciais com características sociais e econômicas próprias, e geopoliticamente delimitados por aquelas políticas. Já no plano da política internacional, destaca-se a necessidade de intensificar as relações étnico-raciais com os países do continente africano, com os países latino-americanos e caribenhos fortalecendo seus processos de autodeterminação e sua luta contra o racismo, desenvolvendo intercâmbio e ações políticas com as populações da Diáspora. Como etapa preparatória para 1ª. Conapir, realizaram-se em todo Brasil Conferências municipais, regionais e estaduais, que acabaram por provocar ou consolidar um conjunto de ações públicas direcionadas às relações étnico-raciais locais.

Agenda Negra em Pernambuco e na Bahia Pernambuco Em Pernambuco, podemos destacar a Conferência Municipal do Recife, Conferência Regional Metropolitana, realizada no município de Paulista e a Conferência Estadual de Pernambuco, realizada no município de Olinda, em maio de 2005. A Conferência Estadual propunha para construção de diretrizes e propostas de políticas os seguintes grupos de trabalho: 1. Educação e Cultura; 2. Trabalho e Desenvolvimento Econômico; 3. Assistência Social e Saúde; 3. Religião; 4. Acesso à Justiça e Segurança Pública; 5. Questão Agrária e Reforma Urbana; 6. Controle e Participação Social. No início da Conferência Estadual, por reivindicação dos movimentos de mulheres, acresceu-se um grupo para discutir as questões relativas às mulheres negras. Após uma intensa discussão, decidiu-se separar o grupo de trabalho sobre religião do grupo relativo à cultura. 234

Capítulo 11 – As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e Bahia: Desenvolvimento, Cultura e Relações Étnico-Raciais

Apesar de alguns membros da comissão organizadora, formada por representantes dos movimentos sociais e do governo, entenderem que, numa discussão republicana para traçar diretrizes e propostas de políticas públicas, não faria sentido um grupo direcionado para religião, outro segmento da comissão defendia que a religiosidade afro-brasileira não deveria ser tratada no interior das políticas culturais, insurgindo-se contra o que consideravam uma orientação “folclorizadora” das religiões de matriz africana. As propostas feitas pelo grupo de trabalho “Religião”, aprovadas, em plenária, e constantes no documento final da Conferência Estadual são as seguintes: 1. O Estado deve reconhecer a importância da cultura religiosa de matriz africana, objetivando o resgate, a preservação, a guarda e a defesa de todo patrimônio cultural afro-descendente [sic] nos seus aspectos materiais e imateriais. Para tanto deve cuidar que seus agentes não cometam violências contra cultos e crenças professadas pela população negra – perseguições e agressões a símbolos, signos, patrimônios culturais materiais e imateriais. 2. O Estado deve envidar esforços na defesa e na preservação dos territórios patrimoniais da população negra e indígena para resguardar seus saberes milenares nas diversas áreas de conhecimento. 3. Promover estudos e pesquisas com o objetivo de mapear o número de Terreiros existentes em Pernambuco. 4. Promover, no Estado de Pernambuco, o mapeamento e as condições que assegurem o tombamento das casas religiosas (Terreiros), classificadas de acordo com o tempo de existência a partir de critérios estabelecidos em parceria com a comunidade, objetivando a guarda e proteção da territorialidade cultural das religiões de matriz africana. 5. O governo do Estado deve empenhar-se na superação de estereótipos que ainda perseguem as religiões de matriz africana, contribuindo para a superação de todas as formas de racismo, preconceito e intolerâncias. 6. Prestar assessoria jurídica para que atos discriminatórios (violência verbal contra cultos e crenças religiosas de matriz africana, por exemplo) sejam punidos na forma da lei.

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7. Isentar de tributos as instituições religiosas de matriz africana, implementando lei já existente. 8. Extinguir a lei de funcionamento dos Terreiros concedendo iguais poderes de difusão da sua tradição tal qual as outras religiões. 9. Utilizar, em eventos e produtos oficiais, o termo “religião” ao invés de “religiosidade”, pois esse último é usado pejorativamente para diminuir as religiões de matriz africana. 10. Garantir direito à aposentadoria para Babalorixás e Yalorixás. (esta proposta deveria ser remetida à Conferência Nacional). 11. Fornecer orientações e esclarecimentos à sociedade civil, através de materiais didáticos e instrumentos de comunicação, para que conheçam e respeitem os cultos e as liturgias das religiões de matrizes africanas e indígenas, enquanto patrimônio histórico do nosso povo [grifo nosso]. 12. Elaborar e divulgar materiais didáticos com informações sobre saúde e religião [grifo nosso]. 13. Capacitar os Agentes da Saúde para que reconheçam e respeitem os espaços das religiões de matriz africana e possam orientar melhor sobre as doenças e suas causas, assim como suas formas de prevenção. 14. Garantir junto ao poder público municipal e estadual apoio logístico aos Terreiros nas suas atividades externas. 15. Garantir o cumprimento da lei 7.716/89 coibindo os abusos praticados por religiões neopentecostais em relação às religiões de matriz africana. 16. Imortalizar Zumbi como ícone da resistência afro-descendente e não como soldado escravo [É interessante esta referência a Zumbi, num grupo trabalho para propor uma agenda pública para as religiões afro-brasileiras; grifo nosso]. 17. Empenhar esforços para que juízes reconheçam casamentos realizados em Terreiros. 18. Criar um Conselho Estadual para a questão religiosa [grifo nosso].

Note-se que apesar da distinção temática dos grupos de trabalho de Cultura e Religião, as ações voltadas para as comunidades religiosas são 236

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entendidas como parte da política de preservação do patrimônio cultural “afro-descendente”. É a preservação deste valor patrimonial que proíbe a prática de violências físicas ou simbólicas por agentes de Estado. Aquela política de preservação do patrimônio cultural nas religiões afro-brasileiras dá-se mediante políticas de mapeamento, tombamento e reconhecimento oficial (com isenção de tributos, apoio logístico, direito à aposentadoria dos sacerdotes, reconhecimento civil de casamentos realizados em terreiros, criação de conselho político para a questão religiosa) destas modalidades religiosas. É importante notar, também, a referência à intolerância religiosa imputada às “religiões neopentecostais”, qualificada como crime conforme tipificado pela Lei 7.716/89, lei que criminaliza a prática de racismo. Nessa perspectiva, os “abusos praticados por religiões neopentecostais” são identificados com o crime de racismo. Entre as diversas representações presentes na Conferência Municipal de Promoção da Igualdade Racial estavam várias lideranças religiosas afro-brasileiras, em sua maioria de terreiros de candomblé, e de entidades culturais. Um dos resultados daquela Conferência municipal foi a criação da Diretoria da Igualdade Racial na Secretaria de Direitos Humanos e Defesa Cidadã da Prefeitura da Cidade do Recife que assumiu a coordenação do Programa de Combate ao Racismo Institucional no interior da Prefeitura. A Diretoria compõe, também, o Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial, Coordenado pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A Conferência do Recife foi a primeira das conferências municipais que ocorreram no país e tornou-se referência para a construção participativa de políticas públicas de Promoção da Igualdade Racial no Estado de Pernambuco e no Brasil, colaborando para a qualificação e ampliação dos debates sobre ações afirmativas e construindo propostas, a exemplo da Diretoria da Igualdade Racial, vinculada à Secretaria de Direitos Humanos e Segurança Cidadã, criada em agosto de 2005. Da Conferência Municipal saíram os seguintes compromissos políticos: 1. Fortalecer a Participação e o Controle Social das Políticas, através de diversos mecanismos, priorizando a Plenária e o Fórum Temático de Negros e Negras do Orçamento Parti-

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cipativo e da Criação do Conselho Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; 2. Incluir a Dimensão Racial nas Políticas Municipais; 3. Realizar estudos e pesquisas sobre racismo e desenvolvimento humano; 4. Promover ações de valorização da Identidade Racial Negra, fortalecendo as datas de referência da história e cultura da população negra; 5. Promover políticas de ação afirmativa com enfoque de raça e gênero; 6. Promover ações de Combate ao Racismo Institucional; 7. Implementar a abordagem do quesito cor nos formulários da Prefeitura; 8. Fortalecer a intersetorialidade das Políticas Municipais de Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial. 9. Combater todas as Formas de Preconceito e Intolerância Religiosa; 10. Estímulo à realização de encontros e seminários de valorização das religiões de matriz africana; 11. Inclusão das lideranças religiosas de matriz africana, nas ações de fortalecimento e resgate da cidadania dos recifenses; 12. Criação do Fórum Municipal de Combate à Intolerância Religiosa; 13. Promover no município o tombamento das casas religiosas de matriz africana. 14. Fortalecer a Articulação Intergovernamental das Políticas de Promoção da Igualdade Racial na Cidade e no Brasil; 15. Promover o Debate sobre Identidade Racial e Fortalecimento das Comunidades Negras do Recife.

De um total de 15 compromissos retirados da Conferência Municipal, cinco compromissos estão diretamente relacionados à questão das religiões afro-brasileiras, aqui denominadas “religiões de matriz africana”. Além das ações voltadas para o enfrentamento do preconceito e da intolerância religiosa, destacam-se os compromissos de “inclusão das lideranças religiosas 238

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nas ações de fortalecimento e resgate da cidadania dos recifenses” e o “tombamento de casas religiosas”. Este último compromisso demonstra que o foco de tais políticas é o candomblé, tido como patrimônio histórico da cidade. É importante ressaltar, também, que a pessoa indicada para ser o Diretor da Diretoria de Promoção da Igualdade Racial do Recife é iniciado na nação jêje de Candomblé, ainda que, aparentemente, tenham sido suas relações com os movimentos sociais negros (fora membro do Movimento Negro Unificado de Pernambuco), e com o Partido dos Trabalhadores (além de ser membro do partido, fizera parte do “Núcleo Afro” da Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife) as principais razões para sua indicação ao cargo pela prefeitura. O Recife sediou, através da Secretaria de Direitos Humanos e Segurança Cidadã, o Fórum Nordestino de Políticas de Promoção de Igualdade Racial organizado pela Seppir – Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Governo Federal. A partir dessa articulação surgiu o Fipir, que vem a ser o Fórum Inter-Governamental de Promoção da Igualdade Racial. A Diretoria de Igualdade Racial também articulou a criação do Fórum de Combate à Intolerância Religiosa. O colegiado do fórum está fortalecendo as religiões de matrizes africanas, a partir da inclusão dos terreiros de candomblé no programa de promoção da igualdade racial, que está acontecendo por adesão dos grupos religiosos. A Diretoria de Igualdade Racial ainda organiza a Plenária Temática de Negros e Negras no Orçamento Participativo da Cidade do Recife. Em novembro de 2005, com a criação da Diretoria da Igualdade Racial, o Programa de Promoção da Igualdade Racial passou a ser coordenado por ela, realizando-se ações de sensibilização nas diversas secretarias e empresas públicas municipais, prioritariamente nas áreas de educação, saúde, trabalho, cultura, legislativo e justiça. Realizou-se uma campanha para o aprimoramento da coleta de dados do Quesito Cor, que deverá ser preenchido em todos os documentos utilizados nos sistemas de informação do Ministério da Saúde, como o objetivo de identificar as doenças e agravos que atingem mais a população negra, planejar as ações e organizar os serviços de saúde. Em 2001, foi instituído o Grupo de Trabalho em Anemia Falciforme, que passou a funcionar a partir de 2002 e que se converteu, em 2005, em Grupo de Trabalho da Saúde da 239

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População Negra. Em 2006, foi criada a Gerência Operacional de Atenção à População Negra, aprovada no Conselho Municipal de Saúde. As Secretarias de Saúde e de Cultura do Município do Recife, a Diretoria da Igualdade Racial e a equipe do Programa de Combate ao Racismo Institucional trabalharam para incluir os espaços de culto das “religiões de matriz africana” na campanha de vacinação contra a paralisia infantil, realizada no dia 26 de agosto de 2006, demonstrando reconhecimento desses locais como promotores de saúde da população. Neste dia, 11 terreiros, distribuídos entre os seis distritos sanitários da cidade, foram transformados em postos de vacinação. Segundo a Gerência Operacional de Atenção à Saúde da População Negra, além de facilitar o acesso a serviços de saúde, ações como essa tem como objetivo possibilitar a troca de conhecimentos, informações e saberes entre o SUS e as comunidades de terreiro. Na área de educação, 250 professores da rede pública municipal participaram de um curso sobre História e Cultura Afro-brasileira, realizado em 2005 e 2006, contribuindo para o cumprimento da Lei 10.639/03. Constitui-se o Grupo de Estudos de Relações Raciais na Educação, formado por professores da rede municipal que atuam nas gerências de ensino e na formação de professores da rede municipal. O Núcleo da Cultura Afro-Brasileira é um setor da Fundação de Cultura Cidade do Recife, vinculado ao Departamento de Documentação e Formação Cultural. Foi criado em 2001, para atender à demanda de valorização das manifestações culturais de matrizes africanas, implementando e apoiando projetos e ações que valorizem as expressões dessa cultura. Desde a sua criação, o Núcleo desenvolve um trabalho de fortalecimento das ações de entidades de cultura negra, acompanhando reuniões e apoiando os encontros; além de realizar Curso de Gestão Cultural para lideranças de grupos afro-brasileiros, entre outras atividades de formação. Promoveu o Mês da Consciência Negra e organizou a tradicional Noite dos Tambores Silenciosos, transformando o Pátio do Terço, localizado no histórico bairro de São José, num polo de cultura afro, durante o carnaval. As ações realizadas primaram pelo diálogo permanente com o movimento cultural afro da cidade e, dessa forma, assumiu um papel importante na articulação das várias “categorias” que fazem as manifestações culturais afro-brasileiras no Recife. Assim, o Núcleo Afro se atribuiu o papel de 240

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mediar conflitos entre as “nações” culturais, articulando as diferenças e o antagonismo interno do campo cultural e religioso afro-brasileiro sob o discurso da “diversidade”. As diferenças “selvagens” e “nômades” entre as práticas rituais e simbólicas são “domesticadas” e “sedentarizadas” no convívio pacífico da “diversidade cultural”. Esta valorização da diversidade é vista como parte de políticas de inclusão social: “E é dessa forma que a Prefeitura do Recife implementa uma política que promove a inclusão e a igualdade racial: por meio da cultura”. Além disto, a cultura “afro-brasileira”, a “herança africana” é essencialmente negra: “É sob esse aspecto que o Núcleo da Cultura Afro-Brasileira vem procurando cumprir o seu papel de valorização da cultura local e de fortalecimento da autoestima dos homens e mulheres negros”. Mais do que uma herança cultural, a cultura afro-brasileira, sobretudo, o candomblé, é uma herança de luta. Segundo o texto de apresentação do Núcleo da Cultura afro-brasileira: A herança africana, trazida por milhões de negros e negras vítimas do tráfico transatlântico, com uma enorme diversidade de grupos étnicos, fez do Brasil a segunda maior população de negros do mundo fora da África. Vivendo em condições desfavoráveis, essa população negra brasileira, ao longo de sua história, utilizou-se de mecanismos diversos para resistir à escravidão, que mesmo depois de um século abolida, faz amargar frutos que geram a necessidade de uma resistência permanente. Essa herança de luta está representada nas formas singulares de manifestações culturais, artísticas e religiosas. O sonho de liberdade e dignidade do povo negro expressa-se de forma marcante na dança, na música, nas artes plásticas e, sobretudo, na religião do Candomblé, que tanto ajudou a preservar a memória ancestral do povo negro brasileiro. No Recife, as diversas manifestações culturais afro-brasileiras têm papel fundamental na rica cultura local. São de matrizes africanas, em sua grande maioria, as manifestações populares que colorem os quatro cantos desta cidade”[grifo nosso].

Por isso, as políticas culturais são vistas como importantes instrumentos, não apenas de inclusão social, mas de mobilização e ação políticas. Os objetivos elencados pelo Núcleo são os seguintes: 241

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* Fortalecer a cultura afro-brasileira no Recife, implementando e apoiando projetos e ações que valorizem as expressões dessa cultura; * Participar, por meio da cultura, da luta contra a discriminação racial; * Estimular, nos grupos culturais afro-brasileiros, a consciência de cidadania, utilizando sua expressão cultural como vetor de desenvolvimento econômico.

Entre as ações desenvolvidas pelo Núcleo estão o Seminário “Religiões afro-brasileiras e Saúde”, em parceria com a Fundação Cultural Palmares, em 2004, e, mais recentemente, em 2006, o Seminário “Religiões de Matriz Africana: combatendo a intolerância religiosa”. Neste seminário, foram discutidos os temas “diversidade das religiões de matriz africana” e “intolerância religiosa”, através dos grupos de trabalho de Legislação, Educação, Juventude e Saúde. O peso dado às religiões de matriz africana, expresso pelo advérbio “sobretudo” na citação a anterior, deve-se à compreensão de que tais religiões são a “base” das manifestações culturais. Neste sentido, entre os grupos de afoxé e maracatu, foram privilegiadas as expressões culturais que tivessem fundamento religioso, mantendo a reverência aos preceitos rituais e simbólicos dos cultos de matriz africana. Os grupos musicais ou de dança sem vínculo iniciático não foram contemplados nas ações do Núcleo, a não ser os grupos de samba, reggae e hip-hop. Em Pernambuco, destaca-se, também, a Coordenadoria de Negros e Negras de Olinda, ligada à Secretaria Municipal de Políticas Sociais, com ações de articulação de políticas em diversos setores do poder público municipal. Dados da Secretaria de Saúde de Olinda mostram que do total de 370 mil habitantes, 57% são negros (pretos e pardos). Em 2001, foi criado o Programa de Prevenção e Assistência Integral às Pessoas Portadoras do Traço e da Anemia Falciforme. Em 2005, foi publicada no município a Política de Atenção à Saúde da População Negra. Foi criado, também, o Grupo de Trabalho em Saúde da População Negra, constituído por várias áreas da Secretaria de Saúde e por representantes dos movimentos sociais organizados. No mesmo ano, foi publicada em 21 de novembro a Lei Municipal no. 5.462 que determina a coleta do Quesito Cor em todas as fichas cadastrais dos órgãos da administração municipal. Destaca-se, também, a 242

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parceria com entidades culturais e religiosas de “matriz africana” sediadas na cidade de Olinda.

Bahia Em 18 de abril de 2003, foi criada a Secretaria Municipal da Reparação – Semur, com a finalidade regimental de formular, coordenar e articular políticas e diretrizes para a promoção da Reparação, em especial, no que se refere ao combate à prática do racismo e às desigualdades sociais dele provenientes. Deve-se notar que diferentemente da cidade do Recife, onde a instituição responsável pela política antirracista é uma diretoria, em Salvador foi constituída uma Secretaria de governo. Ademais, optou-se pela adoção da noção de “reparação”, em vez da noção de “promoção da igualdade racial”. Talvez esta diferença deva-se ao fato da Seppir ter sido criada apenas um mês antes, não influenciando a formulação da Semur, ao contrário do que aconteceria com a Diretoria de Promoção da Igualdade Racial de Recife, visivelmente influenciada pela denominação da Seppir. A Diretoria foi resultante de demandas apresentadas na I Conferência Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Recife, preparatória da I Conapir. Ao contrário, será a Semur que realizará a I Conferência Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Salvador. Dentre as ações estratégicas e catalizadoras elencadas pela Semur, entre 2005 e 2006, estão as seguintes: a) Revisão do decreto no. 15.330/04, que dispõe sobre a constituição, estruturação, competências e funcionamento do Conselho Municipal das Comunidades Negras; b) Fortalecimento, ampliação e estruturação de políticas de ação afirmativa na educação: * Apoio a programas de permanência de estudantes cotistas na Universidade Federal da Bahia; * Apoio a núcleo de estudantes negros de faculdades e universidade públicas e privadas; * Implantação do Programa de Fortalecimento dos Quilombos Educacionais. 243

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c) Estímulo e desenvolvimento do empreendedorismo e do associativismo de referência étnica e cultural: * Realização das I e II Feiras de Empreendedores Afrodescendnetes de Salvador; * Criação da Associação de Cultura e Arte – Cultuarte/BA; * Implantação do Projeto Curuzú – Corredor Cultural da Liberdade. d) Implementação de Políticas de Preservação do Patrimônio Ambiental e Cultural Afro-brasileiro: Implementação do Programa de Regularização Fundiária dos Templos Religiosos de Matrizes Africanas [grifo nosso]. e) Criação do Observatório da Discriminação Racial no Carnaval de Salvador; f) Estudo e elaboração do Estatuto Municipal de Promoção da Igualdade Racial. Em 18 de novembro de 2004, foi criado o Conselho Municipal das Comunidades Negras (CMCN) com a finalidade de deliberar sobre políticas públicas de promoção de igualdade racial, promover a igualdade de oportunidades e propor medidas de natureza compensatória, inclusive através de ações afirmativas. Tendo sido criado após a Seppir, o conselho municipal articula em seus objetivos a noção de “promoção da igualdade racial”. O conselho, porém, restringe-se à “comunidade negra”, não incorporando, como no Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a representação de outras populações étnico-raciais. Ao CMCN compete: I. desenvolver estratégias de inclusão da dimensão racial em todas as políticas públicas desenvolvidas no Município e articular instrumentos e mecanismos de acompanhamento, avaliação e fiscalização, objetivando o combate à discriminação racial, à discriminação religiosa e demais manifestações correlatas[grifo nosso]; II. fomentar a disseminação e exigir o cumprimento de Convenções Internacionais de Combate ao Racismo e Promoção da Igualdade Racial, bem como a implementação, no âmbito municipal, das resoluções adotadas em fóruns internacionais; III. fomentar a disseminação e exigir o cumprimento das normas jurí-

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dicas anti-discriminatórias e anti-racistas previstas na Constituição Federal, nas leis federais infraconstitucionais, na Constituição do Estado da Bahia, nas leis estaduais, na Lei Orgânica Municipal e nas leis municipais, bem como a implementação, no âmbito municipal, das resoluções adotadas nas Conferências Nacional, Estadual e Municipal de Promoção da Igualdade Racial; IV. propor ações de reparação que promovam o resgate da cidadania e o reconhecimento dos direitos dos afro-descendentes através de políticas, elaboração de estudos e disgnósticos sobre as desigualdades raciais, bem como ações estratégicas junto a instituições públicas, instituições privadas e os movimentos negros; V. participar da implementação do Programa de Combate ao Racismo Institucional – PCRI, desenvolvido na esfera municipal; VI. articular iniciativas para ampliar a cooperação interinstitucional e estabelecer estratégias comuns para a implementação de propostas de políticas públicas de promoção da igualdade e medidas de ações afirmativas; VII. zelar pelos direitos culturais da população afro-descendente, especialmente pela preservação da memória e das tradições africanas e afro-brasileiras, bem como pela diversidade cultural constitutiva da formação histórica e social do povo brasileiro; VIII. acompanhar e participar das proposições de medidas de defesa de direitos dos indivíduos e grupos étnico-raciais afetados por discriminação racial, intolerância religiosa e demais formas de discriminação correlatas; IX. desenvolver iniciativas de combate ao racismo ambiental, realizando,em parceria com os movimentos negros e instituições universitárias de pesquisa, levantamento das situações existentes no município; X. formular política de fortalecimento da tradição civilizatória de valorização ecológica presente nas manifestações religiosas de matriz africana e elaborar plano de recuperação, preservação e valorização dos sítios sagrados, com especial destaque para o Parque do Pirajá e Parque de São Bartolomeu; [grifo nosso...]

O CMCN conta com significativa participação de lideranças ligadas a terreiros de candomblé. Nas competências do CMCN constantes em seu 245

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decreto de criação, a intolerância religiosa é apresentada como manifestação correlata à discriminação racial. Por outro lado, as políticas direcionadas às religiões de matriz africana são vistas como políticas de preservação da memória e da tradição africana e afro-brasileira e da diversidade da cultura brasileira. Confirma-se, assim, a tese de que a articulação das religiões afro-brasileiras à agenda negro-africana (de reparação, promoção da igualdade racial ou ação afirmativa) constitui-se ora pela valorização da religião afro-brasileira como patrimônio histórico e cultural regional, nacional e, mesmo, internacional; ora pela luta contra a intolerância religiosa, considerada como uma modalidade da discriminação étnico-racial. É interessante notar que o Programa de Regularização Fundiária dos Templos Religiosos de Matrizes Africanas, implementado pela Semur e citado acima, é parte de uma Política de Preservação do Patrimônio Ambiental e Cultural Afro-brasileiro. As Secretarias Municipais da Reparação e da Habitação, em parceria com o Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, realizaram uma extensa pesquisa sobre as religiões de matrizes africanas na cidade de Salvador, com o objetivo de conhecer os terreiros da cidade: quantos são, onde estão localizados, suas condições de documentação regularização fundiária e infraestrutura, entre outros aspectos socioculturais e demográficos. Essa pesquisa compôs o Programa de Valorização do Patrimônio Afro-Brasileiro e constituiu-se no ponto de partida para uma série de políticas públicas a serem adotadas nas comunidades, colaborando para a legalização e regularização fundiária desses espaços, diminuição do preconceito, reforma e manutenção dos espaços, fortalecimento institucional e, principalmente, preservação e valorização da cultura afro. Mais uma vez, a fundamentação para políticas públicas voltadas para comunidades de terreiros é inscrevê-las como “políticas de preservação do patrimônio cultural”. Esta importância da “preservação do patrimônio cultural” parece decorrer da preponderância dos terreiros de candomblé tidos como tradicionais ou históricos na organização do campo das religiões afro-brasileiras, na atribuição do conteúdo semântico da categoria “religiões afro-brasileiras”. Os terreiros são considerados, segundo material de divulgação do projeto de “Mapeamento de Terreiros de Candomblé de Salvador”, “verdadeiros espaços de resistência cultural, coesão social e afirmação das identidades 246

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negras recriadas no Brasil. Um universo que se constitui em um dos mais importantes patrimônios culturais e religiosos da cidade”. Pode-se notar que a denominação do projeto de mapeamento restringe-se aos terreiros de candomblé. Interrogados quanto a este aspecto, os assessores da Semur responderam que se tratava de um equívoco já corrigido. O mapeamento teria, pois, mapeado todos os terreiros ou centros de religião afro-brasileira: nações de candomblé Angola, Ketu, Jeje, Jeje-Nagô, juntamente com centros de Caboclos, Rodas de Gira e Umbanda. Contudo, segundo os resultados preliminares da pesquisa apresentados no material de divulgação: a) Foram cadastrados 1.139 terreiros em todas as áreas administrativas da cidade, incluindo a ilha da Maré; b) Os bairros de maior concentração de terreiros são: Plataforma (56), Paripe (39), Cajazeiras (38), Cosme de Farias (36) e Liberdade (33); c) A maioria dos terreiros é liderada por mulheres (61,4%); d) Dos terreiros pesquisados, 60% são da nação Ketu e 22% da nação Angola; e) Segundo o critério Cor/Raça, o percentual de pais e mães-de-santo é: 59,1% de negros [sic], 31,6% de pardos, 4,7% de brancos, 1,0% de amarelos, 3,7% de indígenas; f)

Em Plataforma, as comunidades pesquisadas são assim classificadas: Angola (24), Ketu (26), Ijexá (2), Ketu-Ijexá (1), Ketu-Angola (2) e Jeje Savalu (1).

Entre 26 e 28 de setembro de 2003, foi realizado o I Seminário de Saúde da População Negra de Salvador, promovido pelo Terreiro Ilê Axé Nassô Oká (Casa Branca), pelo Movimento Negro Unificado, o Grupo Hermes e o Programa de Saúde da População Negra da UFBA, com o apoio da Secretaria Municipal de Saúde. O Seminário ocorreu no Salão Nobre da Reitoria da UFBA. Simultaneamente, realizava-se a I Feira de Saúde da Casa Branca, no dia 28 de setembro, na Praça de Oxum do Terreiro da Casa Branca. Essa Feira tornar-se-ia anual, com diversos outros terreiros de candomblé realizando suas próprias feiras, congregando terreiros vizinhos. Já ocorreram Feiras nos Terreiros da Casa Branca, Gantois, Mansu Dandalunga Cocuazenza, terreiros de Cosme Farias, dentre outros. 247

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A Secretaria Municipal de Saúde de Salvador vem desenvolvendo ações em parceria com os grupos de religiões de matriz africana do município: a) mapeando os terreiros de Salvador por Distrito Sanitário; b) diagnosticando as necessidades de saúde destas comunidades; c) realizando Feiras de Saúde nos terreiros; d) promovendo palestras, oficinas de saúde, conferências e encontros; realizando seminários; e) desenvolvendo oficinas de combate ao racismo institucional; f) incentivando a participação das religiões africanas no controle social através dos conselhos; g) promovendo a interação entre conhecimentos da medicina tradicional de matriz africana e a biomedicina; h) produzindo material educativo e informativo sobre o tema; i) contribuindo para o desenvolvimento de projetos e programas de saúde que contemplam aqueles saberes. Tais ações foram definidas de acordo com as deliberações da VIII Conferência Municipal de Saúde de Salvador, em 2006, além de terem sido aprovadas pelas Conferências Municipal, Estadual e Nacional de Promoção da Igualdade Racial, em 2005. O item f) aponta para o reconhecimento das “religiões africanas” como sujeitos políticos que podem participar dos conselhos de saúde. Os três últimos itens expressam a concepção de que as políticas étnico-raciais de acesso às políticas de saúde não se limitam a uma inclusão em políticas pré-definidas, mas o diálogo com e a rearticulação a partir de outras práticas curativas não-oficiais. Em um material de divulgação intitulado “Religiões de Matriz Africana e Saúde: diálogos para a promoção da equidade”, a Secretaria de Saúde, em parceria com a Secretaria Municipal de Reparação afirma: A tradição religiosa afro-brasileira é parte do legado deixado por homens e mulheres que contribuíram de forma significativa para a diversidade do país que vivemos. A sabedoria das religiões de matriz africana é um expressivo elemento da cultura brasileira, que foi mantido e recriado por gerações. Esse saber inclui formas próprias de lidar com a saúde física e psíquica, tudo isso permanece vivo, funcionando de forma paralela ao sistema oficial de saúde. Dessa maneira, um dos pontos essenciais para o desenvolvimento de ações de promoção da saúde da população negra é trabalhar com as religiões de matriz africana.

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As políticas de saúde da população negra não são compreendidas apenas como ações de universalização quantitativa do acesso à saúde, mera política redistributiva baseada no princípio de universalidade, mas se trata de ações de universalização qualitativa que implica o reconhecimento de novos sujeitos políticos, como diferentes modos de existência possíveis tomados como aspectos qualitativos. Universalizar a “saúde” não é apenas atender cumulativamente mais corpos, mas apreender novos sujeitos com seus saberes. Estes sujeitos são definidos, por sua “tradição”, como “parte do legado”, “sabedoria” que compõe a “cultura brasileira”, com seus modos particulares de produção e reprodução de suas formas de existência, ou seja, de sua “saúde física e psíquica”. As religiões de matriz africana, porém, como forma própria de lidar da saúde, são compreendidas como “um dos pontos essenciais” para a promoção da saúde da população negra. Nesta afirmação ambígua, permanece equívoco qual a extensão desta promoção: se visa incluir parte limitada da população negra, compreendida nas comunidades de terreiros como apenas modo particular de uma diversidade de formas de lidar com a saúde, ou se visa atingir toda a população negra. No segundo caso, a “terapêutica” dos terreiros é considerada “sabedoria” de toda população negra. Afirmação profundamente problemática. O informativo, ao contrário, parece optar pelo primeiro caso, ao afirmar a importância de conhecer a diversidade de atividades desenvolvidas pelos terapeutas populares e pelos terreiros, as necessidades de saúde “destes” territórios, de “suas” famílias, qualificando os profissionais de saúde para o atendimento adequado a “esta” população, respeitando “seus” valores. Nessa direção, entre as diretrizes tiradas na Conferência Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Salvador, realizada entre os dias 9 e 11 de maio de 2005, o Grupo de Trabalho de Saúde (GT-Saúde) formulou algumas políticas direcionadas às “religiões de matriz africana”: *

Criar, fortalecer e ampliar programas e projetos de Segurança Alimentar e Nutricional, com ênfase nas experiências das práticas terapêuticas de matriz africana e indígena;

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Implantar um programa municipal de fitoterapia, valorizando as experiências e o conhecimento acumulado pelas religiões de matriz africana e dos povos indígenas, incluindo a capacitação para for-

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mação de multiplicadores e a criação de reservas/hortos de plantas medicinais; *

Integrar à rede municipal os terreiros de candomblé, enquanto espaços de promoção da saúde, incluindo-os na realização de campanhas educativas e também capacitando os seus adeptos em primeiros socorros e conhecimento das doenças mais prevalentes na população negra;

A importância das plantas medicinais e a relação com as reservas ambientais ou áreas verdes como espaços sagrados para os terreiros de candomblé têm sido uma das principais portas de entrada, senão a única, para a pauta ambiental na agenda negra brasileira. A preocupação ambiental tem se demonstrado, juntamente com a questão da saúde, uma demanda de peso apresentada pelas organizações que articulam as lideranças religiosas afro-brasileiras. Tais demandas foram formuladas no Grupo de Trabalho de Cultura e Religiões Afro-brasileiras da I Conferência de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. No GT Cultura e Religião, Valdina Pinto, Makota do Tanuri Junçara, representante do Movimento Contra a Intolerância Religiosa e uma das mais expressivas lideranças religiosas atuais, afirmou o seguinte: Quando temos que fazer alguns rituais de Mukondo, Axexê, Azerin, às vezes torna-se necessário viaja,r pois a cidade já não comporta este tipo de atividade religiosa. Se não se tomar medidas para conter o desmatamento, a poluição dos rios, das nascentes, não tem sentido fazer imagens dos Orixás e colocar para enfeitar o Dique e outros espaços mais. Os fiéis das RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS precisam ser convidados para discutir o plano diretor da cidade, para ver a questão do meio ambiente.

Em consequência, a Semur tem dedicado atenção especial ao Parque São Bartolomeu, reconhecendo a importância histórica, ambiental e religiosa daquele espaço localizado no Subúrbio Ferroviário. A Prefeitura de Salvador conseguiu da Fundação Cultural Palmares/Minc a liberação de R$ 4 milhões para investimento em obras de revitalização do Parque. Também, foram conseguidos R$ 2,2 milhões para recuperação de quarenta terreiros de Candomblé da cidade. 250

Capítulo 11 – As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e Bahia: Desenvolvimento, Cultura e Relações Étnico-Raciais

O GT Cultura e Religião da Conferência Municipal de Salvador apresentou as seguintes demandas: 1 - A preservação, por parte da Prefeitura Municipal e demais esferas governamentais, de todos os espaços de mananciais hídricos de áreas verdes, além do Parque São Bartolomeu, viabilizando o livre acesso aos religiosos de matrizes africanas. 2 - Assegurar a participação diversificada de RELIGIOSOS DE MATRIZES AFRICANAS na capacitação dos profissionais da educação para a aplicação da Lei 10.639/2003. 3 - A construção de um Seminário para se discutir RELIGIOSIDADE DE MATRIZES AFRICANAS, seus fundamentos e a difusão do sagrado no carnaval da Bahia, assim como a distorção representada pela utilização e comercialização desses fundamentos no Carnaval e em outras festas congêneres. 4 - A garantia de recursos da Lei de Diretrizes Orçamentárias do Município de Salvador e do Estado da Bahia para reformas a TEMPLOS RELIGIOSOS DE MATRIZES AFRICANAS. 5 - Fixar mecanismos de fiscalização das baianas de acarajé, para que as mesmas só possam comercializar os seus produtos com a indumentária adequada às RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS. 6 - À Prefeitura Municipal de Salvador compete criar e sustentar um espaço onde os indígenas possam estar alocados quando vierem para Salvador em trânsito. 7 - Solicitar uma Moção de apoio à Câmara Municipal, com o objetivo da aprovação por parte da Assembléia Legislativa Federal do Estatuto da Igualdade Racial formulado pelo Senador Paulo Paim. 8 - Elaboração do Estatuto Municipal da Igualdade Racial. 9 - Competem à Câmara Municipal e à Assembléia legislativa fixar recurso a ser destinado para a cultura Afro-brasileira. 10 - Propõe a criação de cartilhas educativas para se difundir os valores das RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS, contando com a participação diversificada de religiosos de matrizes africanas para a auxiliar tecnicamente na elaboração da mesma. 11 - Garantir espaço televisivo na mídia televisiva, escrita e de radiodi-

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fusão para que seja feito um programa educativo utilizando como consultores fiéis dos diversos segmentos das RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS. 12 - Encaminhar as resoluções da Conferência Municipal, na que tange à religiosidade, para serem apresentadas à Câmara técnica de Combate à Intolerância às RELIGIÕES DE MATRIZES AFRICANAS, do Conselho Nacional de Combate a Discriminação. 13 - Compete à Secretaria Municipal de Reparação (SEMUR), implantar o Conselho Municipal de Política da Igualdade Racial, garantindo dotação orçamentária. 14 - À Prefeitura do município compete dar maior relevância à criação de estátuas e bustos a heróis relacionados à história do povo negro. 15 - Solicitar da SEMUR (Secretaria Municipal da Reparação) um mapeamento dos TEMPLOS SAGRADOS DE RELIGIOSIDADE DE MATRIZES AFRICANAS, considerando itens sócio-econômicos, culturais e de gênero. 16 - Cabe ao poder público municipal garantir recursos orçamentários em todas as Secretarias para as ações voltadas para o povo negro. 17 - Promoção do Hip-hop como instrumento de intervenção pedagógica para a aplicação da Lei 10.63/2003, incentivando a produção de títulos fonográficos independentes mediante a viabilização de ilhas de edição e estúdios para os segmentos da juventude negra, historicamente excluída da indústria turística-cultural, buscando assim um contraponto a política que confina o povo negro nos presídios. Os meios necessários são a viabilização da casa do Hip-hop através da interação da Rede Aiyê e os poderes públicos, aprovação da emenda parlamentar de incentivo da cultura negra na esfera federal e um projeto de extensão junto aos Núcleos de Estudantes Negros. Buscando também, implementar uma política de apoio material e institucional aos artistas e eventos de Reggae oriundos das camadas populares de Salvador, preocupando-se ainda, na inclusão do rastafarianismo como elemento de interesse da cultura local, promovendo e apoiando palestras, debates, seminário e cursos, colocando em prática a Lei 5.817/2000. 18 - Compete aos Órgãos Públicos Municipais, Estaduais e Federais elaborarem campanhas contra a Incitação ao Ódio Religioso, através da

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Capítulo 11 – As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e Bahia: Desenvolvimento, Cultura e Relações Étnico-Raciais

suas secretárias ou coordenações de Direitos Humanos e Combate a Discriminação.

O dia 21 de janeiro de 2006 foi declarado o Dia de Combate à Intolerância Religiosa, com a realização de um ato que reuniu representantes de diversas religiões na reitoria da UFBA. Foi promovido pela Prefeitura, através da Semur e da Secretaria da Educação, um culto ecumênico em nome da paz universal, em protesto contra o racismo e a intolerância religiosa.

Conclusão Em sua luta contra-hegemônica, os movimentos sociais negros buscam postular uma unidade de base do “mundo negro” que inclua não só a diáspora, mas os diferentes povos africanos. Essa vocação foi encarnada nas comunidades religiosas que preservaram “os sistemas simbólicos e rituais que elas herdaram”: Como o negro no Brasil é evidentemente um mestiço, fruto de diferentes contatos culturais, acaba-se buscando os elementos comuns aos diferentes cultos religiosos de origem africana, “a analogia de seus conteúdos estruturais básicos comuns e a continuidade – com saltos e vazios – de um sistema que inovou elementos essenciais de uma herança mística ancestral”. (CAPONE, 2004, p. 315).

A evocação de uma “africanidade” vaga dá-se como tentativa de sobrepujar a ambiguidade das identidades étnico-raciais. As comunidades religiosas tradicionais tornam-se fonte “pura” de autenticidade, pontos de nucleação em uma ancestralidade africana difusa. Naqueles pontos singulares, condensam-se e cristalizam-se elementos antes fluidos e difusos, pontos que são gérmenes “ancestrais” a partir dos quais a “africanidade” pode irradiar-se para além da esfera religiosa: formam-se como “centros organizadores de resistência cultural” na filosofia, na literatura, na música, na dança, nas artes plásticas, na organização social... Através da “ancestralidade difusa”, todos os pontos do campo social relacionam-se com aqueles 253

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centros mesmo sem um vínculo local, ritual ou iniciático. Na “africanização”, o campo social comporta-se como um todo, como se cada elemento estivesse “informado” do estado do conjunto: a “africanização” integra as diversas práticas (religiosas ou não) como pontos singulares numa “série integral” de sentidos, vetores tangentes à linha de força dos discursos políticos que atravessa o campo social. A “africanização” atua como um vetor que atravessa e conecta os seus diversos elementos (culturais, religiosos, políticos etc.) num discurso político, como linha de força, unidade contínua de sentido. Uma ancestralidade comum, mesmo que difusa, é o que estabeleceria uma relação de solidariedade entre o “povo negro” e o “povo de santo”, ainda que sem um vínculo iniciático ou ritual. Ancestralidade comum que os faz alvos de modalidades distintas das “mesmas” práticas racistas contra, de um lado, características físicas aparentes, e, de outro, elementos culturais, ou seja, um adepto, ainda que branco, de um culto de matriz africana seria objeto de discriminação por sua “crença”, assim como uma pessoa negra por sua “cor”. Existe, pois, um vínculo originário, ainda que contingente e perdido, entre “cor” e “crença” e revelado pelas próprias práticas discriminatórias. Os movimentos sociais negros incorporam, então, em suas narrativas políticas, as comunidades religiosas de matriz africana como parte relevante das lutas históricas de emancipação negro-africana no Brasil. A identidade “afro-popular” ou “negro-africana” implica a equivalência entre as diversas identidades sociais, políticas ou religiosas, do campo afro-brasileiro, e, nesse caso, o inimigo global a ser enfrentado passa a ser muito menos evidente. Na versão mais forte dessas relações de equivalência, o candomblé é advogado como a religião oficial do povo negro, para além do qual só há branqueamento cultural ou biológico. Em sua versão mais fraca, afirma-se apenas a aliança contingente, ainda que imprescindível, entre vítimas de um mesmo sistema racista, ainda que sem um vínculo necessário entre “negritude” e “africanidade”. Dessa forma, ao estabelecer relações e categorias de equivalência, a agenda “negra” constitui-se da conjunção de duas estratégias distintas: de um lado, a valorização da religião afro-brasileira como patrimônio histórico e cultural regional, nacional e, mesmo, internacional, diaspórica; por outro lado, a luta contra a intolerância religiosa, considerada como uma modalidade da discriminação étnico-racial. A primeira estratégia parece conduzir à consolidação de uma rede antirrracista transnacional, pan-africana. A 254

Capítulo 11 – As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e Bahia: Desenvolvimento, Cultura e Relações Étnico-Raciais

referência à África permitirá articular as agendas nos diferentes contextos global, nacional e local. Por exemplo, como vimos acima, na adesão da delegação negra brasileira à demanda africana pela reparação, ao mesmo tempo em que se afirma como patrimônio próprio da história e cultura brasileira (esta articulação de um duplo pertencimento é expressa no hífen da cultura “afro-brasileira”). A segunda estratégia apresenta uma versão secularizada e pública da reverência à ancestralidade dos e nos cultos religiosos de matriz africana. A própria utilização recorrente do termo “matriz africana” nos discursos oficiais ou não oficiais, escritos ou orais, públicos ou privados marca a referência (e a reverência) à “origem”, à “memória”, à “ancestralidade” como valor importante na formulação e legitimação das políticas públicas. Tais estratégias, porém, dificultam a articulação e mobilização de religiões como a umbanda, em especial, a umbanda branca, porquanto, a subordinação da intolerância religiosa como modalidade da discriminação antinegro torna-se inconveniente para religiões com grandes contingentes de pessoas brancas como o kardecismo e a umbanda branca. Ademais, a estratégia de preservação do patrimônio ou da tradição não contempla, respectivamente, os terreiros novos ou os centros de religião afro-brasileira que nunca zelaram pela tradição. Um seguidor da umbanda está longe destas preocupações. Tais estratégias são decorrentes, pois, da hegemonia do candomblé na articulação do campo religioso afro-brasileiro. Por outro lado, uma identificação na opinião pública nacional entre os movimentos sociais negros e o campo religioso afro-brasileiro vem acompanhada de uma maior resistência de setores “cristãos”, católicos ou evangélicos, onde está a maior parte da população negra, àqueles movimentos, com consequente perda do poder de mobilização social em torno da agenda negra, apesar de grande parte daquele poder de mobilização estar ligada às manifestações culturais, em especial, às musicais, desde que “laicizadas”. Talvez, por isso mesmo, haja uma forte pressão para que as religiões afro-brasileiras sejam abordadas como uma “expressão cultural Afro”, manifestação da cultura popular, como, por exemplo, nas oferendas à Iemanjá nos rituais de passagem de ano, na estilização artística das danças e dos ritmos “afro”. Não sem resistência daqueles setores, em especial, ligados aos terreiros que denunciam tal tendência como processo de profanação, banalização e reificação do sagrado pela indústria cultural. Em outras 255

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palavras, a estratégia de incorporação dos terreiros às políticas culturais impõe-se como limite não as transformar em mercadorias da indústria cultural. Segundo estes discursos, pode-se pôr em suspenso (nas políticas de preservação cultural e histórica), mas não eliminar (como na indústria cultural) o conteúdo sagrado dos elementos rituais e simbólicos dos terreiros: são patrimônio histórico e cultural enquanto patrimônio religioso. Ademais, a articulação da “africanidade” à agenda pública da “negritude” nas ações afirmativas corresponde a uma articulação, não sem tensão, do discurso da tradição (e de sua preservação) com um discurso do desenvolvimento, oscilando entre as retóricas da autenticidade (nas quais o “negro” afirma sua diferença, como “povo negro”) e do reconhecimento (em que o “negro” busca ser aceito como igual, como “povo brasileiro”).

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Capítulo 11 – As Políticas de Ações Afirmativas em Pernambuco e Bahia: Desenvolvimento, Cultura e Relações Étnico-Raciais

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Capítulo 12 Algumas reflexões sobre religião e luta pela cidadania Cecília Mariz

Introdução David Martin (1978), em seu livro A General Theory of Secularization, chama a atenção para a diversidade de processos históricos pelos quais a religião tem se retirado do espaço público no mundo ocidental. Compara especialmente a situação do Reino Unido e de países da Europa do Norte, onde oficialmente o Estado se encontra vinculado a uma igreja nacional, com aquela dos países do sul da Europa e também dos Estados Unidos. Para compreender os impasses enfrentados pelo pentecostalismo nas nações da América Latina em seu livro Tongues of Fire (MARTIN, 1990), esse autor retoma a comparação entre o modelo norte-americano e o francês e discute a relação entre secularização do Estado e a da cultura e sociedade civil em cada um desses modelos e na América Latina em geral. Em sua análise, Martin aponta os fatores históricos que na França e nos Estados Unidos contribuíram para o desenvolvimento de não apenas um tipo específico de República, mas também uma atitude distinta em relação à integração entre religião e política na vida pessoal. A comparação dessas duas concepções e experiências é importante porque ambas têm influenciado a forma de se pensar a República no Brasil. O primeiro tipo, ou seja, a experiência republicana francesa teria historicamente sido gestada pelo pensamento iluminista e se constituído formalmente pela primeira vez com a Revolução de 1789. Tanto no contexto do Iluminismo como durante essa Revolução, a luta contra a religião se identificava basicamente com a luta contra o a Igreja católica. Essa Igreja não queria abrir mão nem repassar para o Estado republicano os amplos poderes que sempre tivera na esfera pública desde o surgimento da nação francesa.

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Como detinha praticamente o monopólio da religião, a Igreja Católica, na França, era identificada e se identificava como “a religião”. Atacar a Igreja católica era atacar a religião. Defender a religião e os valores religiosos era defender essa instituição, ou seja, era defender o poder político da Igreja Católica. Em sua luta por autonomia, o Estado republicano francês negará toda e qualquer religião. Sua defesa do laicismo era um instrumento na batalha contra o catolicismo cujas características são identificadas como da religião em geral. Dessa forma, o Estado se coloca em oposição a qualquer fé e pensamento religioso. Nesse modelo, defende-se a República atacando a Igreja Católica e a religião em geral, como se defende a razão atacando a fé. Religião e fé são identificadas como falta de razão. A experiência republicana dos Estados Unidos é bem distinta. Formada por membros de pequenas igrejas cristãs, que já tinham sofrido perseguição religiosa de uma igreja estatal, essa República não se constitui tendo que combater uma Igreja como na França. Por outro lado, a República se constitui simultaneamente à nação, que se forma republicana e cristã. Sem ter experimentado o monopólio religioso, os Estados Unidos surgem como terra da liberdade religiosa, a terra de igrejas que, como já foi dito, tinham vivenciado, na Europa, lutas contra restrições legais e perseguições por parte de estados que se identificam com igrejas nacionais, como era o caso da Inglaterra. Uma das grandes motivações dos imigrantes europeus para os Estados Unidos era a busca de liberdade religiosa. A República norte americana tem como uma das metas a defesa da liberdade religiosa. O Estado se pretende autônomo em relação às igrejas para tratar todas elas de forma equânime. A autonomia política do Estado republicano norte-americano não se justifica por um discurso de crítica à fé, às religiões em geral, nem às igrejas, mas pela defesa de tratamento igualitário. Nesse caso, o Estado não é contra a religião, mas contra o monopólio religioso. As diferentes igrejas cristãs têm interesse em defender a autonomia desse Estado, já que nenhuma delas teria força política para dominá-lo. Pode-se interpretar a busca desse tipo de autonomia do Estado como fruto de um “contrato” de igrejas. Não há aí uma oposição entre o Estado e as igrejas, mas uma aliança; Desde a sua formação, esse Estado se diz autônomo em relação a todos os credos e igrejas por causa da pluralidade religiosa e de credos 264

Capítulo 12 – Algumas reflexões sobre religião e luta pela cidadania

existentes na nação que ele representa. Portanto, destaca-se como que o fato de ter se constituído como país, por populações que fugiam de guerras religiosas, permitiu aos Estados Unidos esse tipo de experiência republicana que defende um Estado sem religião, acima das igrejas, mas em defesa delas. Um Estado que deve respeitar as diferentes religiões, credos e igrejas. Embora se diga teoricamente desprovido de religiões, o espaço público, nesse contexto, está perpassado por discurso cristão compartilhado pelas igrejas que formaram essa nação. Resumindo, a experiência republicana francesa surge em uma nação marcada pelo monopólio religioso, já a norte-americana revela uma nação caracterizada pela pluralidade religiosa. No primeiro tipo a religião deve ser banida do espaço público e no segundo o espaço público deve defender o direito das religiões de se expressarem sendo assim aceito que valores religiosos ocupem o espaço público desde que não haja monopólio de nenhuma igreja, nem haja opressão de uma igreja sobre outra. No caso francês, a separação foi impulsionada por discursos antirreligiosos, já no caso dos Estados Unidos, ela foi gerada por discursos de grupos religiosos excluídos do Estado e perseguidos. Enquanto na França a religião ameaça o Estado e é vista como uma potencial inimiga, nos Estados Unidos, o Estado é defensor da religião na medida em que essa é um direito do cidadão. A religião aí é vista como um valor para o cidadão, por isso é preciso que se defendam os valores e religiões diversas. Compreendidos a partir dos contextos históricos distintos onde se desenvolveram, as diferenças entre esses modelos se expressam não apenas nas leis que regulam a vida pública e o Estado, mas também nos projetos que orientam a prática política das igrejas ligadas a esses países, e também na forma como os cidadãos integram sua vida religiosa à vida política e pública. Com o Estado independente de uma igreja, os grupos religiosos e igrejas as mais diversas têm que dialogar entre si, procurando alianças para formar uma maioria e assim poder influenciar o Estado. Nesse caso, nenhuma religião deve buscar o controle do Estado. As igrejas optam por defender a independência do Estado em relação a uma determinada igreja, mas demandam a proteção do Estado para as diferentes igrejas e religiões de forma democrática; lutam então para que o Estado defenda o direito de cada igreja a ocupar uma parte do espaço público ou que as igrejas, democraticamente, o dividam. 265

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Como no Estado francês, questiona-se toda e qualquer ingerência de prática e crença religiosa no espaço público, cria-se uma oposição entre religiões e Estado. Tradicionalmente a luta da Igreja Católica era de reação a esse modelo, na busca por retomar o controle do Estado. Posteriormente, a Igreja procura novas formas de reaver seu quinhão no espaço público, seja se colocando como partido, seja diante das correntes de esquerda e comunistas, apresentando movimentos católicos operários, e ainda, na França, dando impulso a um nacionalismo católico, identificando a raiz católica da nação francesa com Carlos Magno. A luta pelo controle do espaço público, ora aparece como luta entre a esfera do religioso e do Estado, ora como luta também pela cultura e pela identidade nacional. Na Igreja católica, dessa forma, tem sido tradicionalmente mais legítimo que valores religiosos motivem lutas políticas e ocupação do Estado. Em contraste, nos Estados Unidos, prevalece uma aversão a ideia de uma igreja dominando o Estado o que pode implicar a rejeição mais comum no mundo protestante de assumir explicitamente a união de interesses religiosos aos políticos. Dessa forma, esses dois processos de criação da república se refletem também nas atitudes políticas das igrejas protestantes e da católica, ou seja, na legitimidade de permitir que a esfera religiosa se “colonize” a política. Como religião da modernidade, o discurso protestante defende a legitimidade da separação entre as esferas políticas e religiosas. Todo esse preâmbulo, porém, era apenas para levantar as questões: Estaria o caso do Brasil mais próximo do modelo dos Estados Unidos ou da França? De quais desses modelos a experiência brasileira se aproxima mais? Em que modelo o Estado brasileiro se inspirou? Teria o modelo que inspirou a República no Brasil se efetivado em nosso país de fato? O forte monopólio da Igreja Católica sugere, sem dúvida, uma similaridade com a França. Historicamente essa similaridade está clara seja nos eventos ocorridos já durante o império, seja na implantação do governo republicano. A chamada “crise religiosa”, deflagrada com a prisão de D. Vital durante o Segundo Império, e a consequente separação entre Estado e Igreja católica no Brasil, acompanha sem dúvida o padrão francês. A seguir, surge uma República brasileira, em termos teóricos, totalmente inspirada no positivismo francês. O Estado brasileiro, no entanto, não tinha recursos materiais, sociais, culturais para competir com a Igreja católica. Com capital 266

Capítulo 12 – Algumas reflexões sobre religião e luta pela cidadania

mais capital simbólico e cultural do que a emergente nação brasileira e sendo formada pela experiência da Igreja Católica europeia, especialmente francesa, consegue reverter esse processo e o Estado brasileiro se estabelece oficialmente separado da igreja, mas na prática depende dela. A Igreja católica era a responsável pela educação da elite, ao mesmo tempo que marcava presença em todo território nacional de forma mais ampla que o próprio Estado brasileiro. O Estado brasileiro necessitava mais da aliança da Igreja católica do que vice-versa. Dessa forma, embora oficialmente Estado e Igreja estivesse separados, na prática havia uma integração. Havia missa na posse dos presidentes, crucifixos, ensino religioso católico, nas escolas, padres capelães nas forças armadas, capelas católicas nos hospitais. Nem o modelo francês, nem o americano de república tinham se estabelecido. A partir das décadas de 1970, com o crescimento do pentecostalismo e também com as revisões das posturas políticas assumidas por várias vertentes da própria Igreja católica, durante o regime militar, a relação entre Estado brasileiro e a Igreja Católica muda. Interesses distintos surgem e esses continuam a se distanciar com a democratização, a nova constituinte e a maior presença dos evangélicos na sociedade civil e entre políticos eleitos. As igrejas evangélicas, com efeito, questionam o favoritismo que a Igreja Católica sempre recebera do Estado brasileiro, mas não defendem a laicidade do Estado e sim a repartição entre as diferentes igrejas cristãs do apoio estatal antes privilégio católico. Nesse momento, a pluralização do campo religioso e o fim do monopólio religioso institucional da Igreja católica poderiam criar um contexto que fomentasse uma secularização do Estado similar ao que acontece nos Estados Unidos. Pode-se argumentar que ainda é cedo para se afirmar que isso não acontecerá. Até o momento, os resultados parecem ter sido diversos. No caso do projeto aprovado sobre o ensino religioso, na Escola Pública do Estado do Rio de Janeiro, a religião continua presente, mas se questiona a hegemonia católica repartindo o número de professores entre as diferentes religiões encontradas no Estado. O critério de que o percentual dos professores corresponda ao percentual da população que declara aquela religião buscaria combinar democracia com “não secularização”. Projetos distintos, em termos de ensino religioso, mas também no caso de doações de terrenos públicos, apoio a obras e eventos religiosos, isenções de impostos etc, são experimentados 267

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em outros estados da federação. Até agora, parece haver um consenso geral de que se deva procurar manter o religioso no espaço público, mas obedecendo-se aos interesses religiosos plurais que demanda a sociedade civil, definindo a importância desses pela proporção de adeptos de cada fé ou igreja nessa sociedade. Observa-se, por outro lado, também que nas décadas de 1970/80, a reflexão intelectual sobre a relação entre religião e Estado dava ênfase à atuação política de setores da Igreja Católica, afirmando um processo de dessecularização na medida em que valores religiosos estavam motivando a luta no espaço público. Alguns desses estudos comparavam a motivação católica, especialmente setores vinculados à Teologia da Libertação, como as comunidades de base (CEBs), para luta política com uma aparente indiferença protestante, tanto pentecostal quanto histórica, em relação a essa questão. Além de comparar como cada igreja ou movimento religioso via o mundo da política, analisavam-se ideologias e comportamentos políticos que cada um desses movimentos estaria fomentando. Em geral se criticava a pouca importância dada pelos pentecostais e pelos protestantes em geral à política (embora essa pouca importância apenas se destacasse quando eram comparados aos movimentos católicos inspirados pela Teologia da Libertação). Nesse período histórico, os cientistas sociais valorizavam religiões que motivassem o crente à participação política, assumindo, dessa forma implícita, a defesa de uma religião influenciando ou agindo sobre o Estado e espaço público. Defendia-se, de certa forma, um projeto não secular. Essa visão se explicitava no fato do pentecostalismo ser visto de forma negativa por não estimular os pobres para a militância política, em geral, especificamente para a militância de esquerda. Atualmente as análises no mundo acadêmico da relação entre religião e política tomam outra direção. Em geral, se não a consideram totalmente negativa a grande mobilização política eleitoral dos pentecostais, a veem com certo incômodo ou desconfiança. Por que essa mudança de atitude e esse desconforto com o crescente número de evangélicos no espaço público, nos últimos anos, no Brasil? Seria devido à atuação específica da Igreja Universal? O debate, no entanto, sobre o papel da questão da religião no espaço político do Brasil se integra agora a um debate internacional de crítica também em termos mundiais a mobilização religiosa para a luta 268

Capítulo 12 – Algumas reflexões sobre religião e luta pela cidadania

política que é decorrente dos movimentos fundamentalistas especialmente o islâmico. Essa junção entre religião e política tem sido criticada como uma ameaça à república e à democracia. O discurso laico critica os aspectos autoritários do discurso religioso, argumentando que religião em geral, não permitiria uma “cosmovisão cidadã”, ou democrática na medida em que lideranças e regras, “verdades” religiosas são reveladas e não consensualmente ou serem democraticamente construídos. Assim, no mundo religioso, a legitimidade não é definida pelo voto ou pela maioria, mas depende da tradição ou de “carismas”. Esse tipo de cosmovisão é mais forte na tradição católica onde é grande a força da hierarquia e a centralidade de uma única autoridade. Nos grupos religiosos, o acesso ao poder pela escolha da maioria, ou seja, pelo voto de todos os membros do grupo, não seria prática legítima em todos os casos. As religiões em geral não seriam experiências de democracia já que cada religião se julga portadora da verdade. A crítica democrática e republicana ao discurso religioso pode ser aproximada daquela que é feita também a grupos autoritários e comunistas, que querem subir ao poder pela democracia para destruir a própria democracia Cada religião pode participar da república e da experiência democrática possuindo também objetivo de suprimir essa prática. Poderia uma religião motivar a criação da república e de democracias? Não se pode negar a dimensão religiosa da motivação da republica norte-americana. Também se pode identificar mudanças, na vida privada, promovidas por religiões que assim fomentariam a luta pelos direitos individuais. Seria essa uma próxima questão a se levantar em medida mudanças fomentadas pela religião na vida privada, ou seja, no seu comportamento dentro da família, ou em outros aspectos mundo privado, poderiam fomentar atitudes em prol da república do indivíduo no espaço público? A distância entre o espaço privado e público pode ser questionada. A separação entre esses espaços é um “projeto” da modernidade, é um modelo uma proposta, mas não é necessariamente uma realidade concretamente vivenciada da mesma forma pelos diferentes grupos sociais. Podem ser colocadas então questões como: De que maneira mudanças individuais, tais como a “melhora de autoestima” do fiel, afetaria a vida política e o espaço público? De que maneira questões do espaço privado 269

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levam à luta no espaço público? Por ganhar mais consciência de seu valor como indivíduo, ter melhor autoestima, o indivíduo passa a lutar pelos seus direitos à cidadania plena. Por isso, pode-se argumentar que inclusive religiões voltadas apenas ao espaço privado podem gerar impactos no espaço público, mesmo que de forma diferenciada do tipo do impacto gerado por religiões explicitamente politizadas. Nesse sentido, pode-se recordar que quando as ciências sociais criticavam nos anos 1980, os pentecostais por serem avessos à política, tentava-se amenizar essa crítica, argumentando que apesar de não assumirem bandeiras políticas, as igrejas pentecostais podiam indiretamente estimular mobilizações políticas quando melhoravam a autoestima dos indivíduos. Com a adesão à nova fé, os indivíduos da camada popular se atribuíam um maior valor como indivíduo, reconhecendo seus direitos e importância como ser humano. Sua fé legitimava assim aspirações de vida melhor que poderiam resultar em lutas políticas. Sem dúvida, a vida religiosa, mesmo restrita à vida privada, vai afetar de várias formas o espaço público. A pessoa usa símbolos religiosos, sua vestimenta pode refletir sua fé. Por isso pode-se argumentar que a laicidade tem sua dimensão utópica, mas reconhecer essa dimensão não significa abrir mão dessa utopia. Por exemplo, no caso da escola pública, efetivamente é inadequado que um Estado republicano assuma o ensino religioso. Mesmo tendo clareza disso, é preciso reconhecer, contudo, que ao se retirar o ensino religioso da escola pública não significa que essa escola se torne totalmente laica e livre da religião. A cultura de uma nação, mesmo a nação das mais laicas como quer ser a francesa, têm sido sempre impregnada de uma religião. Da mesma forma, a total separação entre a vida pública e a privada é mais um projeto político, que se defende, do que uma realidade de se vive. Por isso, a república e a democracia necessitam mais do que a retirada do religioso, o desenvolvimento de regras de convivências entre religiões (como pensaria o modelo norte-americano) no espaço público. O compartilhar de regras e valores universais de convivência da diversidade religiosa é fundamental para se pensar a democracia. Esses valores precisam ser aceitos pelas diferentes cosmovisões religiosas para serem assumidas pelo Estado. Por isso, para se pensar em um estado republicano e democrático, temos que refletir também sobre como convivem as diversas religiões que, 270

Capítulo 12 – Algumas reflexões sobre religião e luta pela cidadania

por vezes, possuem valores e práticas não apenas diferentes, mas conflitantes. Como indivíduos que se julgam portadores de uma verdade superior, podem defender a igualdade e o direito de outros a quem julgam estar moralmente errados? Para que isso ocorra é necessário um diálogo entre religiões, mas, não apenas no nível do discurso religioso propriamente dito, mas em termos políticos. Recentemente o diálogo inter-religioso é um tema importante dentro das próprias Igrejas, até mesmo numa Igreja como a Católica que se julga a portadora exclusiva da Revelação. Esse tipo de discussão tem reflexos importantes em projetos políticos em sociedade religiosamente plurais. Um último ponto que gostaria de levantar é sobre a relação entre política social, religião e cidadania. Antes da ideia de política social republicana e defesa de direitos sociais pelo Estado, a ajuda aos mais pobres era responsabilidade de grupos religiosos. No mundo pré-moderno, a questão do apoio material aos mais necessitados era de cunho moral e religioso. No mundo cristão, a ajuda aos órfãos, viúvas, doentes e pobres, em geral, era uma “obra de caridade” religiosa. A doação de alimentos e agasalhos aos mais necessitados, oferecendo a eles serviços de saúde e educação, ficava a cargo das igrejas. Os mais pobres recebiam essa ajuda como uma dádiva. No sistema de dádiva, quem recebe se torna devedor. Não recebe por direito. O fato de receber cria obrigações e dever. O doador não teria obrigação de dar, e o que recebe passa ter obrigação de retribuir. Ao contrário, quando se instaura o conceito de cidadania e a ideia de direitos básicos. A “caridade” ou ajuda religiosa é substituída por políticas públicas que passam a ser obrigação do Estado. O cidadão teria direito ao mínimo para sobrevivência e também direito a reivindicar esse mínimo, que passa a ser concedido através de políticas públicas que são implementadas pelo Estado. Enquanto a ajuda social, ou “caridade”, realizada pelas igrejas, obedece à lógica do “dom” (ou da “dádiva” no sentido dado por Mauss) reforçando o sentimento de gratidão, dívida, dependência e submissão às hierarquias sociais. O que recebe não teria necessariamente direito de receber, por isso se torna eternamente devedor. Já as políticas sociais, fruto de um estado republicano, reforçam o discurso sobre direito à cidadania. O sistema da dádiva aparece mais fortemente na religião católica. 271

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Em contraste ao católico, o discurso evangélico de cunho individualista questionaria o valor da caridade tradicional. No mundo evangélico, a salvação do indivíduo se faz por sua fé, sua santificação via trabalho. Dessa forma, viver de caridade não é virtude. Não há o discurso de aproximação da santidade com a situação de pobreza. O aspecto mais individualista do discurso protestante evangélico o aproxima mais da modernidade e a valorização dos direitos individuais. Dessa forma o significado político da ajuda ao mais necessitado é bastante distinto do significado religioso. Quando o Estado instrumentaliza grupos religiosos para que realizem os projetos sociais desse Estado, estará contribuindo para fortalecimento daquele grupo religioso criando uma dívida em relação a esses grupos por parte dos beneficiados pela ação social. Além do mais, reforça-se a ideia de dádiva em detrimento ao sentimento de cidadania e de luta por direitos do cidadão.

Referências MARTIN, David. 1979. Blackwell.

. Oxford, Basil

______. 1990. Tongues of Fire. The Explosion of Protestantism in. Latin America. Oxford, Basil Blackwell.

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sobre os autores

Sobre os autores André Ricardo de Souza possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1998), mestrado e doutorado em Sociologia, também pela USP (2001 e 2006), tendo feito um estágio de doutoramento na ENS/Paris (2004). É organizador de duas coletâneas de ensaios, autor de um livro e de mais de duas dezenas de textos publicados como artigos em periódicos especializados e capítulos de livros. Seus trabalhos tratam sobremaneira da interface entre religião, economia e política, bem como da organização de empreendimentos econômicos com inspiração autogestionária. Atua na área de Sociologia, com especialização em Sociologia da Religião. Atualmente, é professor Adjunto I da Universidade Federal de São Carlos e vice-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores de Economia Solidária. Cecília Mariz possui graduação em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal de Pernambuco (1977), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (1982) e doutorado em Sociology of Culture and Religion (Phd) – Boston University (1989). Atualmente é professora adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia da Religião e da Cultura. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1C Degislando Nóbrega de Lima possui graduação em Teologia pelo Centro de Estudos de Filosofia e Teologia do Seminário Imaculada Conceição da Arquidiocese da Paraíba (1992), graduação em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1991) e doutorado em Teologia da Missão – Westfälische Wilhelms Universität (2001). Atualmente é professor assistente II e Coordenador de Pós-graduação da Universidade Católica de Pernambuco. Tem experiência na área de Teologia e Ciências da Religião, é docente no Mestrado em Ciências da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: pluralismo, libertação, hermenêutica, mediação socioanalítica e cristianismo e modernidade. Drance Elias da Silva possui graduação em Teologia pelo Instituto de Teologia do Recife (1989), graduação em Licenciatura Em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1989), mestrado (2000) e douto273

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rado (2006) em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor adjunto da Universidade Católica de Pernambuco – Mestrado em Ciências da Religião e Bacharelado em Teologia. Assessor Pedagógico da área de Ensino Religioso da Secretaria de Educação do Município Jaboatão dos Guararapes. Tem experiência na área de Teologia e Sociologia da Religião. Atua principalmente nos seguintes temas: Teoria da dádiva, Sociologia da Religião, Sociologia do dinheiro e sua relação com a religião, Pentecostalismo Protestante, Mudança Social e Religião. Emerson Giumbelli possui graduação em Ciencias Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992), mestrado e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995 e 2000). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro, atuando no Departamento de Antropologia Cultural e no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, ambos no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. É co-editor da revista Religião e Sociedade. Tem experiência em Teoria Antropológica e Antropologia da Religião, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, espiritismo, ensino religioso, pentecostalismo e modernidade. Autor dos livros “O Fim da Religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França” (2002) e “O Cuidado dos Mortos: uma história da condenação e legitimação do espiritismo” (1997). É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Joanildo Burity possui bacharelado em História pela Universidade Federal da Paraíba (1985), mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (1989), doutorado em Ideology and Discourse Analysis (Ciência Política) pela University of Essex, Inglaterra (1994), com pós-doutorado na University of Westminster, Inglaterra (2003). É professor e diretor do Programa sobre Religião e Globalização na Escola de Governo e Relações Internacionais e Departamento de Teologia e Religião da Universidade de Durham, Inglaterra; pesquisador titular da Coordenação Geral de Estudos Sociais e Culturais da Fundação Joaquim Nabuco; e professor colaborador dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Ciência Política e Sociologia, com ênfase em Comportamento Político, atuando principalmente nos seguintes temas: religião e política no Brasil e em perspectiva comparada, cultura e identidade, religião e sociedade, gestão e políticas sociais, movi274

sobre os autores

mentos sociais, globalização e teoria política contemporânea. Foi Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2 de 2003 a 2009. Josadac Bezerra dos Santos possui graduação em Licenciatura Plena em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1989), Mestrado em Ciência Política (1998) e Doutorado em Sociologia (2006), ambos pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Sergipe. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Comportamento Político, e na área de Sociologia atuando como pesquisador nos seguintes temas: religião, novos movimentos sociais, gênero, sexualidade e politização da vida e da morte. Júlia Miranda possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (1971), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (1985), doutorado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1994 – com estágio de dois anos na Université de Montréal) e pós-doutorado em Sociologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris. Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Ceará, pesquisadora do CNPq, membro da equipe de pesquisadores do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex) e do Procad UFC/ UFRJ. É pesquisadora na área de Sociologia, com ênfase nas temáticas de Religião e Política, Imaginários Sociais e Cultura e Sociedade. Coordena o Núcleo de Estudos de Religião, Cultura e Política (Nerpo) da Universidade Federal do Ceará. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Patricia Birman possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1980) e doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988). É professor titular de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Como antropóloga especializou-se no domínio dos estudos sobre religião, tendo realizado pesquisas sobre cultos afro-brasileiros, pentecostalismo no Brasil e religiões no espaço público. Atualmente desenvolve trabalhos de pesquisa sobre territórios, identidades e formas de segregaçao no espaço urbano. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 1B. Péricles Andrade possui graduação em Licenciatura em história pela Universidade Federal de Sergipe (1998), mestrado em Sociologia pela 275

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Universidade Federal de Sergipe (2000) e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2006). É sócio da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). Atuou como bolsista Prodoc/CAPES e como bolsista-pesquisador pela Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe) junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. Atualmente é professor-Adjunto II na Universidade Federal de Sergipe, lotado no Departamento de Ciências Sociais, professor do Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (NPPCS-Mestrado em Sociologia), Editor da Revista TOMO, membro do Conselho Editorial da UFS. Roberta Bivar Carneiro Campos possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (1992), mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (1995) e doutorado em Antropologia Social – University of St. Andrews (2001). Atualmente é professora adjunto III da Universidade Federal de Pernambuco, pesquisadora do Fages e vice líder do Núcleo de Pesquisa sobre Religiões Populares do PPGA da mesma universidade, e membro da comissão editorial da Revista Anthropológicas. Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em emoções, atuando principalmente nos seguintes temas: religião, cultura e identidade, emoções, teoria antropológica, corpo e sociedade. Ronaldo Sales Júnior possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (1998), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2001) e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2006). Atualmente é professor da Universidade Federal de Campina Grande (Paraíba). Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Políticas Públicas, atuando principalmente nos seguintes temas: relações étnico-raciais, movimentos sociais negros, ações afirmativas e direitos humanos.

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