Religião e cinema

May 30, 2017 | Autor: F. Pieper Pires | Categoria: Religion, Method and Theory in the Study of Religion, Cinema, Religião
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Religião e Cinema

índice

Introdução,

17

1. Abordagens

Teóricas da Relação entre Cinema e Religião, 25

1. Cinema e religião, 27 2. Religião através do cinema, 31 3. Cinema como religião, 37 II. Religião, cinema e subversão de mundos,

43

1. Por cinema e religião?, 43 2. Religião a partir do cinema: entre a construção subversão de mundos, 46

ea

Luz de Inverno de Ingmar Bergman IIl. Um Mundo

em Ruínas. Quando

as respostas falham ... , 63

1. Trilogia do silêncio, 69 2. Quando

as respostas falham ... , 7l

3. Silêncio de Deus e o sentimento 4. Possibilidades

de abandono,

76

de redenção, 80

A Vida de Brian do Monty Python IV. A Subversão pela Sátira e a Censura numa Cultura Secularizada, 93 1. Secularização

e o enfraquecimento

2. Religião, secularização

da religião, 93

e censura, 97

3. Monry Pythcn: humor subversivo nos interstícios da blasfêmia e da censura, 101 4. Até onde o subversivo é aceito ... A censura na produção distribuição de A vida de Brian, 110

3. O Jesus de Montreal,

192

4. Entre Nazaré, Roma e Montreal. hermenêuticas, 197

e

O conflito das

Teorema de Pier Paolo Pasolini

A Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese V Quando o Divino e o Humano 1. Ambiguidades,

se Encontram,

afinal tudo tem dois significados,

2. O caráter perturbado r do encontro e o divino, 123

VIII. A Religião e a Desconstrução do deserto), 205

119 119

139

Conclusão,

142

Referências,

Jesus Cristo Superstar de Norman Jewison VI. A Religião e a Ambiguidade

da Subversão,

1.0s anos rebeldes: a contracultura,

149

149

2. Jesus Cristo superstar e a estética dos anos 1970, 154 3. "Ele é perigoso. Sangue e destruição por causa de um homem": a ameaça ao establishment, 157 4. "Hosana hey, hosana ow. Superstar!'!": fama, 161

os seguidores e a

5. "Eu sempre quis ser um apóstolo. Quando nos aposentarmos, escreveremos os evangelhos": os discípulos do superstar, 162 6. "Eu o admirava e agora eu o odeio": Judas e o problema fama, 169

da

7. "Ele me assusta tanto. Eu o quero tanto". Maria Madalena o superstar, 171

Jesus de Montreal de Denys Arcarnd VII. A Subversão pelo Mítico, 179 1. O Jesus de Nazaré, 183 2. O Jesus de Roma, 187

205

2. O sagrado se manifesta e subverte um mundo, 3. O mítico e a realidade, 222

4. O furor que inversões e subversões provocam,

(ou sobre a religião

1. O sagrado se manifesta e ordena o mundo,

entre o humano

3. Inversões e subversões: símbolos reconsiderados,

do Mundo

e

227 231

209

v Introdução

(..) há momentos em que duvido se a vida

é mais real do que os meus poemas (August Srrindberg, Rumo a Damasco). Uma fita com furos laterais que se amoldam

a uma roda dentada.

À medida que a roda gira, a película vai se movimentando, fazendo com que cada fotograma seja submetido à forte luz de xenônio que sai de uma caixa escura. O revezamenro dos fotogramas diante da luz que se projeta na tela é muito rápido: em média, 24 fotogramas por segundo. É essa velocidade que cria no telespectador a sensação de movimento. O filme entra de cabeça para baixo, sendo necessária uma lente para ampliar o seu tamanho e inverter sua posição. Há também o condensador, cuja função é não permitir que a Íuminosidade ao redor dos fotogramas interfira na sua projeção, fazendo com que somente a imagem de um único fotograma seja vista a cada vez, evitando que os furos laterais ou outras imagens sejam projetados simultaneamente na tela. Ainda há o aparelho que, nos moldes das antigas fitas K7, lê as faixas magnéticas e faz com que haja som. Por fim, após percorrer esse caminho, a película volta a descansar na bobina, sendo novamente enrolada. Tecnicamente, antes dos cinemas digitais e das recentes tecnologias que tornam esses processos tanto mais complexos, a exibição de um filme nos primórdios do cinema seguia esses passos. O que se tem, a rigor, nada mais é do que projeção de imagens com som numa velocidade tão rápida que dão a ideia de movimento.

Essa descrição faz justiça ao aspecto técnico do cinema (e não se pode esquecer que ele surge justamente como fruto do desenvolvimento tecnológico do século XlX - portanto, inserido na modernidade) e parece dizer muito pouco da experiência que se tem ao assistir um filme em uma sala de exibição. Quando as luzes se apagam e a máquina começa a funcionar na sua velocidade vertiginosa, tem-se a impressão de se tratar de outra coisa. Diante dos nossos olhos (numa objetivação que nada tem de fria ou de distante) despontam sonhos, desejos, dramas, alegrias, sofrimentos, esperanças, ideologias, dores, cores, angústias e tantas outras sensações e ideias que, no limite, o funcionamento técnico se torna quase irrelevante. A máquina dá a luz a mundos. A película se torna vida. As personas ali projetadas nos prendem com complexas identidades que nos fazem querer conhecê-Ias, entrar em seu universo e explorar seu mundo. Então, ficamos ali, sentados, presos, procurando juntar as peças e desvelar histórias. Por isso mesmo podemos assistir a um filme produzido em contexto histórico tão distinto daquele em que vivemos e, mesmo assim, ser capturado por ele. Não obstante a distância histórico-cultural, certos filmes têm o poder de nos enfeitiçar. Um exemplo do impacto dessa nova tecnologia nas sensibilidades pode ser visto já no início, logo após a invenção do cinema. A chegada de um trem na estação, dos irmãos Lumiére, causou perturbação em sua plateia. Diante daquela novidade que começava a se espalhar, há relatos de pessoas que se apavoraram ou mesmo correram desesperadas do cinema, temendo serem atropeladas pelo trem que parecia realmente vir em sua direção. Por mais ingênuas que essas primeiras plareias possam parecer, não se pode esquecer a novidade que o cinema representava. Aliás, ainda hoje, todos já presenciamos ou fomos protagonistas de reações engraçadas ao assistir pela primeira vez um filme em 3D. Há muitas hi.stórias de pessoas que desviaram de um projétil que vinha em sua direção ou mesmo tentaram não se molhar com a água que parecia sair da tela e encharcar toda a sala. De certa maneira, o cinema pode ser considerado expressão artística típica do século XX, tendo sido precursor de outras formas de mídia e de tecnologia. Isso significa dizer que o cinema é, de um

lado, expressão de uma forma de organização social pautada pela técnica e valorização da velocidade, da objetividade, da busca pelo real e da expectativa de dominar esse real. Mas, por outro lado, como forma artística ele não é somente reprodutor do que está '~Iá fora", mas é tentativa de intervir nessa realidade e de criação de outros mundos (por exemplo, G. Meliês, 1902 - Viagem à lua). O cinema é expressão da modernidade e da tecnologia, com todos os paradoxos que isso acarreta. Por outro lado, o cinema acaba se voltando para esses valores a fim de Ihes conferir novas dimensões, novos sentidos, inclusive questionando-os. Assim, se de um lado o cinema pode ser entendido como expressão de uma época, ele também pode ser aproximado da ideia de reflexão crítica sobre essa mesma época. De todo modo, ainda quando o cinema dava seus primeiros passos, já se colocava uma discussão que o acompanha até os dias de hoje. O cinema deveria retratar a realidade (tal como o trem dos Lumiere) ou seria sua função criar mundos claramente ficcionais (como na Viagem à lua de Melies)? Enquanto forma artística, por mais que pesassem desconfianças se os frutos dessa tecnologia poderiam ser considerados mesmo arte, ele não se deixa limitar a análises historicistas. Talvez, aqui esteja a mais importante face de sua dimensão como obra de arte. Os dramas da condição humana são ali tratados. A busca de sentido ou o reconhecimento da ausência de significado são tematizados.· Na composição dos quadros, no posicionamento da câmera, na narrativa que se desenvolve, na edição final do filme ... questões que parecem não reconhecer limitações históricas ou geográficas são tematizadas. Por isso mesmo, um dos mais geniais e completos nessa arte, Ingmar Bergman, pode dizer: "Quando um filme não é documentário, ele é sonho (...) Cinema como sonho, cinema como música. Nenhuma outra arte passa tão perto de nossa consciência diurna, indo diretamente até nossos sentimentos, até as profundezas do espaço obscuro da alma" (BERGMAN, 2013, p.85). Assim, por estar inserida num horizonte de sentido, mas por ser capaz de ultrapassá-lo e de questioná-lo, tem-se uma expressão artística que extrapola as grades dos contextos histórico e geográfico, sem negar a íinitude que marca todo einpreendimento humano.

Introdução • 19 18 • Religião e Cinema

Dentre os diversos temas contemplados pela vasta produção cinematográfica, a religião se configura como assunto que contínua e repetidamente aparece nas películas. A ideia de que o cinema seria filho da modernidade e, portanto, trataria apenas de temas considerados "seculares" (ou não religiosos) não se sustenta ao mais superficial olhar. Mais do que filmes sobre religião, há de se considerar que há filmes religiosos (não somente por seu tema, mas por seu estilo). Aliás, o estreito vínculo entre modernidade e secularização é bastante ambíguo. Pode-se estar inserido na modernidade, cultivando alguns de seus valores (como a tecnologia, por exemplo) e, ao mesmo tempo, ser profundamente religioso. Na história do cinema, não são poucos os casos que ilustram isso. Essa pujante presença de temas religiosos no cinema se dá sob as mais variadas perspectivas e, enrrernenres, indicam o quão moderna pode ser a religião, seja nos usos que as instituições religiosas fazem de novas linguagens para comunicar seu conteúdo ou mesmo na constatação de que a religião nunca saiu da tela. Os temas, as questões, as tradições religiosas tratadas etc. se mostram tão multiformes que a tarefa de tipologização dessa produção é, senão irrelevante, quase impossível de ser feita.

É de 1913 a produção indiana Raja Harishchandra, que toma por base um trecho do Mahabharata. Como o D. C. Phalke, responsável pelo filme, narra, a ideia surgiu quando assistiu ao filme A vida de Cristo em Bombay. Desde então, perguntou-se se não seria possível filmar os deuses de sua tradição a fim de que os indianos pudessem ver a si mesmos projetados na grande tela. Com muita dificuldade, o projeto foi levado adiante e realizado (PHALKE, 2007, p.25-26). No caso do Ocidente, há inúmeros filmes que têm por objetivo retomar símbolos religiosos que moldam essa tradição, especialmente a figura do fundador do cristianismo. Os textos sagrados para o cristianismo se tornaram uma das fontes ele inspiração para roteiristas e diretores. Impressiona a lista, que parece só se avolumar com o passar dos anos, de produções que tratam da figura de Jesus. Desde a Vues répresentant Ia vie et Ia Passion de [ésus-Christ (1897 ~8) de Georges Hatot ou de Passion du Christ (1897) de Anthelme Lear ou mesmo da Vie et passion du Christ de Ferdinand Zecca (1902),

20 • Religião e Cinema

para ficar apenas no início do cinema, inúmeras são as tentativas de se trazer para a tela representações do judeu camponês do mediterrâneo. Estima-se que foram produzidos mais de 100 filmes relacionados à figura de Jesus. Para entender esse movimento, é importante considerar o debate em torno do Jesus histórico, que se alastra desde, pelo menos, fins do século XVIII. Um princípio básico dessa pesquisa é a distinção entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. O Jesus ao qual se tem acesso é aquele retratado nos textos dos evangelhos e dos apócrifos que, por sua vez, são expressão de como seus fiéis o concebiam a partir da fé. Os relatos que se têm nos evangelhos (cujo texto mais antigo foi redigido provavelmente 40 anos depois da morte de Jesus) nos dizem mais sobre como as primeiras comunidades concebiamJesus (Cristo da fé) do que propriamente sobre a figura daquele judeu que andou pela Calileia no primeiro século de nossa era (jesus histórico). Há, dessa maneira, uma distância entre o elemento histórico e o seu registro. De certa maneira, aqueles que narraram sobre os feitos e ditos de Jesus, à maneira dos diretores, deram a ele seu enquadramento próprio, fizeram também seus cortes e edições. Não se pode esq\lecer que os filmes que tratam sobre a figura de Jesus têm de fazer certas escolhas que acabam incidindo sobre a imagem que se cria dele. P9r exemplo, como retratar Jesus? Ele é o homem loiro dos olhos azuis da iconografia ocidental? É o Jesus magro e sofredor da Idade Média? Uma vez que os textos do primeiro século possuem perspectivas bem diferentes, em qual se basear? O Jesus bélico de Mateus ou a figura quase gnóstica de João? Em geral, os filmes nunca são totalmente fi~is nem sequer aos evangelhos. Em alguns casos, seleciona-se um dentre os vários existentes. Em outros, fazem-se opções para se resolver algumas contradições encontradas nas fontes canônicas. Enfim, aqui há seleção, corte, edição ... Algumas falas e ações de Jesus são acrescidas, omitidas, deslocadas, reelaboradas, inseridas em sequência diferente dos textos canônicos etc. De todo modo, nesse livro, ao se considerar os filmes que possuem um caráter ficcional mais alargado quer se dizer simplesmente que eles não seguem linearmente aquilo que os primeiros escritores disseram que Jesus falou ou fez. Aliás, cabe lembrar que esses textos també~'são interpretações interessadas. Para tanto, basta comparar

Introdução • 21

como os diferentes evangelistas narram episódios similares, o que um relata e o outro não, a que público se dirige etc, Aliás, como se observou, a força dos filmes não está em serem espelhos do real, Antes, sua capacidade de fundar ou desestabilizar mundos reside justamente no seu aspecto ficcional. No caso da produção cinemawgráfica da primeira metade do século XX, Jesus é tratado como figura épica, desempenhando papel similar ao dos heróis das mitologias religiosas antigas. Observa-se também a construção romântica, na qual ele é visto como um ser humano superior aos demais, dotado de maior virtude. Em outra tendência de representação, bastante recorrente a partir da década de 1970, ele aparece como herói e líder, mas as suas limitações são constantemente reconhecidas por ele próprio ou lembradas por seus discípulos. Há a sátira, que, em geral, pane da perspectiva de que a ele é atribuída uma missão absurda ou ainda destaca-se a incornpreensão de sua mensagem por parte de seus seguidores. Ainda, há releiruras, que tentam atualizar traços da figura de Jesus para o período contemporâneo, trabalhando com a hipótese de como seria alguém ou como seriam as reações das pessoas se um indivíduo resolvesse agir nos moldes de Jesus. Em suma, Jesus é apresentado como redentor, revolucionário, sábio, líder, camponês ou palhaço (cf REINHARTZ, 2013). Nessa direção, esse livro toma como um dos seus eixos centrais filmes que de maneira mais ou menos incisiva se referem à figura de Jesus. Esse recorre não quer dizer que filmes que abordem temas de outras tradições religiosas sejam menos importantes. Trata-se apenas de uma delimitação para se pensar certas problemáticas. E mais, essa delimitação também se dá no âmbito geográfico e histórico. Os filmes aqui analisados foram produzidos na segunda metade do século XX no continente europeu e no cinema da América do Norte (Estados Unidos e Canadá). Em parte, isso se deve ao faw de que se observa na produção desse período a presença mais pujante do elemento mais claramente ficcional na abordagem do fundador do cristianismo. Não que todas as outras não o sejam. Todo diretor dialoga com dois mil anos de recepção da figura de Jesus e tem de fazer edições dos textos normativos do cristianismo ... enfim, rein-

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ventam Jesus. Mas, no caso desses filmes escolhidos, isso se dá de maneira del iberada. Por fim, cabe ressaltar que o objetivo central do livro é notar em que medida os filmes, reconhecida certa autonomia da linguagem cinematográfica, podem auxiliar a pensar a religião. Isso não significa ignorar os contornos próprios da linguagem cinematográfica. Antes, o que se busca é ampliar seu alcance. Em outros termos, a pergunta é: o que os filmes aqui selecionados nos dizem sobre a religião? O que se pode aprender com eles no sentido de pensar as teorias da religião? Em geral, as teorias da religião colocam em relevo o aspecto de fundamentação e construção de sentido que o discurso religioso estabelece. Assim, a religião é tida como fixação de urna ordem frente ao caos, de um sentido frente ao vazio, de um abrigo frente ao desamparo ... enfim, religião tem a ver com construção de mundo. Na contramão dessa percepção, o traço comum dos filmes aqui analisados é apontar para o aspecto de abismo que constitui a religião. Ela não somente desempenha esses papéis, mas também pode ser aquilo que desestabiliza, por meio do qual o caos emerge, sendo crítica de si mesma e a desconstrução do mundo constituído. Isto é, a religião pode ser também subversão de mundo. Dessa maneira, nos filmes aqui aludidos, o fundador do cristianismo acaba desempenhando importante papel. A partir deles, ao invés de vir à tona a compreensão da religião como abrigo do caos, surge justamente a religião como questionadora do mundo instituído. A religião subverte mundos. A aproximação dos filmes não é feita por um especialista em técnicas cinematográficas. A minha motivação aqui é a pergunta de como e em que medida o cinema pode auxiliar a se pensar sobre a religião. Isso não significa que pretendo fazer mero uso dos filmes, instrumentalizando-os. Mas é bom colocar esses interesses claramente no início a fim de deixar explícita a motivação na abordagem dos filmes. A escolha do cinema se pauta em certa intuição. Devido a certos pressupostos que marcam nossa perspectiva ocidental, a ficção sell)pre foi colocada sob suspeita ou corno forma de linguagem menos digna que a cienrifica ou a analítica. No entanto, a ficção

Introdução·

23

não pode ser mais real (e nesse sentido, mais crítica) do que aquelas expressões que se querem objetivas? Não se pode ignorar o poder que o cinema tem de criar mundos. E, mais. Como esses mundos criados nos permitem habitar o mundo fora dos filmes. O mundo ficção não somente permite encontrar modos de habitar o mundo real, mas como expressão artística, nos levam a colocar em suspensão o mundo dado, encontrando novos significados para ele.

I Abordagens Teóricas da Relação entre Cinema e Religião

Assim como o cinema desde cedo se interessou pela temática religiosa, essa relação também não passou imune aos olhares e aproximações teológicas, religiosas e acadêmicas. É possível perceber algumas tendências que marcam essa relação entre religião (não somente cristianismo) e cinerna-Há, por exemplo, posturas de desconfiança, recusa, precaução, diálogo, apropriação, oposição etc. E isso, por arribas as partes. De maneira mais estrururada, verifica-se uma aproximação acadêmica mais incisiva em torno do tema a partir da década de 1970, especialmente no cenário de fala inglesa. Com isso, não se diz que não ocorreram proposições anteriores sobre o tema. Mas, elas eram mais pontuais, não chegando a construir propriamente um âmbito de investigação. Para indicar alguns caminhos das tendências de abordagem dos estudos em torno da imbricada relação entre religião e cinema, esse capítulo está dividido em três momentos que, de certa maneira, apontam de modo fragmentado para tendências no discurso acadêmico sobre o tema, ainda que esteja longe de esgotá-Ias. Parte-se de uma ligação entre religião e cinema. Nesse e cabem as aproximações e distâncias, com o traço comum de certa exterioridade entre dois campos de saber que se relacionam, mas não entram em efetivo diálogo. Cada área busca se manter incólume à possível influência da

24 • Religião e Cinema

v 11 Religião, Cinema e Subversão de Mun

1. Por que religião e cinema? l'or que estudar um tema como esse, religião e cinema? A pergunta é menos óbvia do que parece.

O interesse aqui em se abordar os filmes é claro: trata-se de ~Ies ajudam a pensar a religião. Mais do que isso. A intenção é perceber como das telas pode emergir elementos que ajudem a pensar esse complexo e mulrifacetado fenômeno. Para tanto, alguns cuidados são necessários. Usualmente se está acostumado a buscar teorias nas letras dos livros. Mas e as imagens do cinema, o que elas podem nos dizer sohrc esse tema? Não se trata de isolar uma linguagem da outra. Ao se .ibordar os filmes, o intérprete traz consigo certa compreensão prévia e delineadora do que seria religião. Não é possível se aproximar de um filme de maneira neutra, especialmente quando o assunto (' a religião. Do mesmo modo que filmes são constituídos a partir da edição de vários outros textos e imagens, nossa percepção sobre determinados temas se assenta sobre compreensões prévias, como . onstancernente a filosofia nos lembra por meio da noção de círculo licrrnenêutico. Dessa maneira, os próprios filmes, para serem consrruídos, se articulam com textos. Entretanto, isso não significa que eles sejam pura e simplesmente textos. Eles são mais do que isso: são notar em que medida

linguagem. A narrativa, ainda que seja central para os objetivos que esse livro se propõe, conjuga-se com imagem, som, movimento ... O tempo e o espaço adquirem contornos próprios na tela do cinema. Isso também deve ser considerado. Dessa maneira, não se trata, portanto, de ignorar que os filmes são também textos. Por outro lado, eles não podem ser reduzidos a isso. Nesse sentido, o que se busca aqui é desenvolver um diálogo com esses filmes sobre a temática da religião, partindo de uma compreensão de início abrangente de religião e, simultaneamente, respeitando as peculiaridades da linguagem cinematográfica. Ainda insistindo nesse ponto, há duas questões que a tarefa de se perseguir elementos para se pensar a religião nos filmes coloca. Em primeiro lugar: em que medida pode-se tomar o cinema, enquanto forma de arte, como meio de conceituação da religião? Nesse caso, ainda que de maneira sorrateira, não se estaria transformando o cinema em discurso (filosófico ou da ciência da religião), ao se buscar nos filmes elementos para se pensar teorias da religião? O leitor identifica claramente aqui o debate com uma perspectiva sobre arte que se colocou com bastante força na modernidade. Uma discussão bastante acirrada no século XX que teve por intenção justamente defender a autonomia da obra de arte. Para essa concepção de obra de arte, um filme é um filme. Ele diz o que quer dizer. Ele possui sua linguagem própria de modo que toda tradução para Outro jogo de linguagem é, no mínimo, LIma traição. Desse modo, para essa tendência que defendia a independência da arte, dever-se-ia de início reconhecer o caráter autorreferenciado da obra de arte. No entanto, vale pensar um pouco sobre esse entendimento da obra de arte. Será que essa ótica, que busca acentuar a independência do cinema e de sua linguagem, não acaba por reduzir a importância dos filmes? Aparentemente, essa perspectiva teórica sobre a arte parece recuperar para ela o seu devido valor, na medida em que circunscreve a arte em seus termos próprios, libertando-a das amarras que as diversas funções que se atribui a ela imputam.Tàssim, a arte não tem função pedagógica, moral ou de qualquer outra natureza. A arte se possui alguma função, seria uma "função" esté-

44 • Religião e Cinema

tica. Afinal, o que faz de um filme uma obra de arte é justamente o elemento estético presente (e não o que ele diz, sua ideologia, moral etc.). O ponto é resgatar a obra de arte de uma visão meramente utilitarista, que a concebe como utensílio destinado a outros fins que não a fruição. E, nesse sentido, sua contribuição foi fundamental. No entanto, entendo que não obstante os traços estéticos que fazem de um filme uma obra de arte (e que lhe são específicos), não se pode negar o impacto que ele tem. Os filmes não são autorreferenciados, mas abordam temas de preocupação do ser humano: a vida e a morte, o bem e o mal, o herói, a dor e a alegria, etc. Nesse _sentido, é preciso trabalhar, sem negar a especificidade da linguagem cinematográfica, com uma compreensão ampliada de arte, visto que ela não se fecha sobre si mesma. Enfim, reconhecer que, apesar de sua especificidade, a linguagem cinematográfica impacta e se relaciona com coisas para além dela. Isso quer dizer que ela é autônoma (no sentido de dar a si mesma suas próprias regras), mas não é independente, afinal ela se constitui num diálogo e na dependência de diferentes dimensões socioculturais. Isso, ao contrário do que parece, não restringe a obra de arte, mas acaba por trazer uma visão que a amplifica. Quer dizer: reconhecer que a arte não é autorreferenciada ao invés de limitá-Ia ou distorcê-la, torna-a mais relevante, tendo em vista seu importante impacto, especialmente na fundação ou no abalo de mundos construídos. É claro que desde que a obra de arte seja respeitada em seus traços mais peculiares. Outra objeção se coloca do lado contrário, interpelando a pertinência de se valer do cinema para pensar a religião. Não seria mais sensato buscar interpretações teóricas da religião em livros de C. da Religião, de filosofia, de teologia, de antropologia ou de história? Aqui, não estariam elas mais completas, mais bem elaboradas e sistematizadas? Por que se utilizar da linguagem cinematográfica para se pensar a religião? Devido à constituição própria do cinema, ela não atinge apenas o intelecto, mas se refere também aos sentidos c às emoções. Essa linguagem está muito mais próxima do sonho e do mito do que o discurso analítico das teorias. Nesse quesito, sem dúvidas, mais avizinhado ao discurso religioso. Enfim, o impacto da Iinguàgem cinematográfica se faz sentir de maneira mais ampla.

Religião, Cinema e Subversão de Mundo • 45

Isso se deve, não exclusivamente, porque, do ponto de vista da narrativa, contam-se histórias concretas e por meio dela se propõem perguntas universalizáveis sobre a condição humana enquanto tal. Ela não fala do ser humano em geral (de modo abstrato), mas da angústia de um personagem específico. Esse personagem, por sua vez, possui traços que podem ser universalizados. Por isso a identificação com certos personagens ao se assistir aos filmes. Há de se reconhecer que no tocante a esse pOnto não se está a muitas léguas do discurso mítico da religião. Por fim, parece bastante óbvio que os filmes, uma vez que articulam em linguagens próprias, podem ajudar a pensar questões sobre a religião de modo diferente dos textos, enriquecendo o debate. Os filmes não são apenas ilustrações ou exemplos de teorias da religião que se encontra em livros. Antes, eles formulam, à sua maneira e em diálogo com esses conceitos, suas concepções bem próprias. E, de certa maneira, assim como ocorre em alguns textos, os filmes tratam de temas da religião com boa dose de liberdade. Nesse sentido, trazem importante contribuição.

É de se perguntar se o interesse pelos vínculos entre religião e cinema não passam também pelo fato de que se está diante de uma forma d~ tratar da religião sem as amarras das instituições religiosas e seus discursos enrijecidos. Parece que, em muitos dos casos, essa motivação existencial também move alguns intérpretes. Considerando essas pressuposições, de onde partimos para a abordagem dos filmes aqui selecionados? O que se intenciona com as análises propostas? Dado que texto e imagem, livros e filmes não se dão de maneira isolada (são autônomos, mas não independentes), propõe-se um diálogo entre eles, partindo de explicações que intencionam teorizar sobre a religião. 2. Religião a partir do cinema: entre subversão de mundos

a construção

ea

Mais especificamenre, o se que pensa aqui pela referência.à teoria da religião? Não se tem em mente uma teoria específica. Antes, busca-se pensar um elemento que permeia teorias das mais diversas tendências. Mas, haveria um elemento subjacente às mais numerosas

46 • Religião e Cinema

teorias sobre a religião, por mais discrepantes que sejam os marcos rcóricos que as orientam? Seja numa perspectiva crítica, ou que conccba a religião como portadora de uma função social ou de constiI uição de sentido, constantemente ressalta-se o papel da religião na construção de sentido. Em outros termos, é como se fosse designado ~ religião o papel de estabelecer uma ordem diante do caos, C0115I ruindo um mundo de sentido onde o ser humano possa habitar. Mundo aqui não tem o significado de uma imediatidade que se apresenta. Muito menos, o sentido ascético que opõe mundo e igreja, mundo e religião, etc. Também não se deve entender mundo como se ele fosse pura e simplesmente a totalidade das coisas, isto é, a soma de tudo o que existe. Portanto, mundo não é simplesmente uma somatória de tudo que nos cerca. Antes, mundo significa a relação que o ser humano estabelece com as coisas como um todo. Dessa maneira, em primeiro lugar, mundo é totalidade de significância. Enquanto estrutura prévia a partir da qual as coisas podem se mostrar a nós, mundo não revela como elas são em si mesmas, mas as desvelam de um determinado modo. Em outros termos, o mundo se configura corno um modo de doação das coisas, de se conferir sentido a elas. De um ponto de vista mais hermenêutico, o mundo permite certo acesso aos entes, constituindo-se como uma visada interpretativa. Em segundo lugar, o mundo se constitui como totalidade de sentido. As coisas não se dão isoladamente, mas pressupõe uma relação, constituindo uma totalidade. Uma parte remete para a outra, estando em relação. Trocando em miúdos, mu~do é a constituição de uma toialidade dotada de sentido, que permite ordenar nossas experiências e tornar significativa nossa vida, as relações com outras pessoas e com a natureza de um determinado modo. Em outros termos, mundo é o espaço de sentido que determina o modo como se habita. Há mundos historicamente construídos que nos fornecem os parâmetros para interpretar e organizar as coisas e, antes, um modo de experienciar essas coisas. É somente porque habitamos um mundo que podemos ter a experiência das coisas. Sendo assim, ele é anterior às cosias enquanto tais, de modo que elas somente se .... mostram porque já estamos inseridos numa totalidade de sentido.

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