Religião e tendências de democratização na África lusófona

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“ Espaço Lusófono” (1974 /2014)

Trajectórias Económicas e Políticas - Textos

Uma iniciativa

“ Espaço Lusófono” (1974 /2014)

Trajectórias Económicas e Políticas - Textos

Uma iniciativa CEsA - Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina CSG - Investigação em Ciências Sociais e Gestão Instituto Superior de Economia e Gestão / Universidade de Lisboa



FICHA TÉCNICA

Textos da Conferência Internacional “Espaço Lusófono” 1974/2014 - Trajectórias Económicas e Políticas 29 a 31 de Maio de 2014 Fundação Calouste Gulbenkian ISBN 978-989-96473 Coordenação Jochen Oppenheimer Joana Pereira Leite Luís Mah Edição CEsA - Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina CSG - Investigação em Ciências Sociais e Gestão Instituto Superior de Economia e Gestão / Universidade de Lisboa Fotografias, revisão e criação gráfica Ana Filipa Oliveira



ÍNDICE Introdução pp. 7 Lusofonias/Lusotopias MICHEL CAHEN pp. 13

““ PAINEL 1 Democracia, Governação e Estado pp. 33 Novo contexto mas velha política”: a evolução do sistema partidário moçambicano entre 1994 e 2014 EDALINA RODRIGUES SANCHES

pp. 34 Será que existiu em Moçambique uma transição democrática? JOAQUIM MALOA

pp. 84 Religião e tendências de democratização na África lusófona LUÍS PAIS BERNARDO E EDALINA RODRIGUES SANCHES

pp. 102

““ PAINEL 2 Mobilidades Cultura e Identidades pp. 135 A “Lusofonia” e as representações Luso-Tropicais na Literatura Feminina Colonial e Pós-Colonial sobre Angola ALBERTO OLIVEIRA PINTO pp. 136 Portugal and tropicality, a geographical imagination JOSÉ RAMIRO PIMENTA

pp. 158 Can Cabinda follow the example of South Sudan? The problem of secessionism in contemporary Africa in the context of the uti possidetis principle ROBERT KŁOSOWICZ pp. 169

““

““

PAINEL 3 Cooperação, Empresas e Investimento

PAINEL 4 Geopolítica Segurança e Defesa

pp. 187 Investimentos Diretos Estrangeiros no Brasil: uma análise do processo de concessão dos serviços públicos no período de 2007 a 2013 ANA MARIA F. MENEZES MANOEL J. M. DA FONSECA JOAQUIM RAMOS SILVA pp. 188 A territorialidade das redes hoteleiras portuguesas no Brasil LIRANDINA GOMES E JOAQUIM RAMOS SILVA

pp. 237 Das Caravelas a Cooperação Sul-Sul: o Atlântico lusófono em perspectiva comparada no âmbito da Defesa e da Segurança Internacional DANIELE DIONISIO DA SILVA pp. 238 Migration from the Horn of Africa in northern Mozambique: A real security threat or a problem of state dysfunctionality JOANNA MORMUL pp. 261

pp. 212 ““ REGISTO FOTOGRÁFICO DA CONFERÊNCIA pp. 280

INTRODUÇÃO Em 2014 celebrou-se o 40.º aniversário da queda do Estado Novo. Com a revolução de Abril de 1974, o fim da guerra colonial em África desencadeou importantes transformações em Portugal e nos antigos territórios africanos. Após a rápida independência das colónias africanas, acelerou-se a viragem europeia de Portugal: ainda que esta tivesse raízes anteriores, foi o 25 de Abril que abriu caminho à crescente internacionalização da economia e à democratização política que culminaram, em meados dos anos 1980, com a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). A vivência de um novo destino europeu pareceu impor-se, a partir de então, à sociedade portuguesa, empenhada no virar da página da sua longa história imperial. Porém, as mudanças operadas pelo 25 de Abril foram além quer da democratização política e integração europeia de Portugal, quer da independência e subsequentes trajectórias autónomas dos territórios africanos. Em particular, este momento de viragem histórica esteve na origem de uma significativa recomposição dos laços e fluxos que uniam e unem os diversos territórios que constituíam o antigo espaço imperial, entretanto reconfigurado como espaço lusófono. O retorno e gradual reintegração de cerca de meio milhão de cidadãos e cidadãs portugueses no contexto da descolonização; a emergência e consolidação de um sistema migratório pós-colonial, inicialmente polarizado pela ex-metrópole (e na qual o Brasil também participou durante algum tempo como país sobretudo emissor), mas que registou recentemente, e especialmente no contexto da actual crise económica portuguesa e europeia, uma complexificação – e por vezes inversão – dos fluxos migratórios (incluindo nomeadamente um afluxo significativo de migrantes portugueses em direcção

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ao Brasil, Angola e Moçambique); a crescente mobilização cruzada de investimentos directos e participações empresariais entre o Brasil, Portugal e a África lusófona; e um conjunto diversificado de trocas materiais e simbólicas entre os países em questão, do comércio de mercadorias à oferta cultural, ao longo destas quatro décadas –eis apenas alguns exemplos reveladores da multidimensionalidade e multipolaridade dos fluxos que caracterizam o chamado “espaço lusófono”. Numa fase de significativas mutações nos diversos pólos deste espaço – decorrentes, nomeadamente, da crise económico-financeira portuguesa; da fulgurante ascensão económica, ainda que a partir de condições muito diversas, do Brasil, Angola e Moçambique; e das transformações e/ou dilemas mais específicos que caracterizam as trajectórias recentes da Guiné-Bissau, de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe –, este 40.º aniversário constitui um momento de especial pertinência para uma reflexão em torno das trajectórias políticas e socioeconómicas dos diversos pólos deste espaço e, em particular, dos seus encontros e desencontros. E isto passa necessariamente por explorar e compreender a construção e reconstrução socioeconómica e identitária no seio do espaço linguístico comum euro-afro-brasileiro. Assim, esta conferência surgiu como uma resposta à necessidade de se analisar – numa perspectiva de abertura interdisciplinar, paradigmática e resistindo a qualquer tentação etnocêntrica (seja ela de matriz portuguesa, africana ou brasileira) – as trajectórias económicas e políticas prosseguidas neste amplo espaço de referência. Por isso, teve em conta a evolução socioeconómica e política comparada, entre 1974 e 2014, das diversas polaridades nacionais (Portugal, Brasil, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Moçambique), bem como as relações multidimensionais estabelecidas entre elas. Ao analisar estes percursos, a conferência pretende promover o debate e reflexão em torno das seguintes questões fundamentais:

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1) Será que existe um verdadeiro «espaço lusófono» para lá da representação imaginada de raiz lusotropical? 2) Quais as características e tendências principais, a nível económico, político e social e cultural, que marcam o relacionamento entre as diversas polaridades deste espaço ao longo destas quatro décadas? 3) Integração no «espaço lusófono», regional e global: exclusão ou complementaridade? Para responder a estas perguntas, a conferência foi estruturada em 4 painéis: • Painel 1 – Democracia, Governação e Estado • Painel 2 – Mobilidades, Cultura e Identidades • Painel 3 – Cooperação, Empresas e Investimento • Painel 4 – Geopolítica, Segurança e Defesa Esta publicação reúne 10 das comunicações submetidas e apresentadas na conferência que teve lugar na Fundação Gulbenkian entre os dias 29 e 31 de Maio de 2014. O evento foi muito concorrido, com um debate vivo e participativo. No entanto, importa reter algumas observações que ajudem a aprofundar os temas abordados. A problematização do «espaço lusófono» como objecto de estudo não é reflectida em si, mas enquanto dimensão particular das práticas económica, cultural e social. Esta constatação obriga-nos a questionar o porquê desta ausência de reflexão que apenas é desenvolvida pelo conferencista convidado Michel Cahen e pelo investigador de Estudos Africanos, Alberto Pinto. No nosso entendimento, estamos perante duas explicações possíveis: 1) Ou se trata de uma naturalização acrítica deste topos, associada a um

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predomínio não contestado e provavelmente inconsciente da ideologia lusotropicalista; 2) Ou, então, um olhar localizado que afasta a perspectiva crítica necessária para uma reflexão mais profunda sobre as raízes identitárias da suposta “excepcionalidade portuguesa”. Com efeito, de entre as práticas estruturantes deste espaço, as económicas são aquelas que aqui se apresentam mais afastadas de uma consciência crítica. Esta fixação, sempre renovada, na «especificidade portuguesa», que a ideologia luso-tropicalista inspira, conduz até à assunção de riscos económicos que de outro modo seriam considerados irracionais. Tal alienação torna-se hoje particularmente evidente após a rápida desaceleração da economia angolana na sequência da redução substantiva do preço do petróleo e que tem tido um impacto financeiro negativo e considerável junto de centenas de empresas portuguesas com actividades em Angola. Será que a perspectiva da crítica cultural e histórica estará melhor preparada para resistir a esta alienação? Será que esta fraqueza no campo do pensamento e da prática económica é específica de Portugal? Para ajudar a preencher estas e outras lacunas na reflexão sobre o «espaço lusófono» abordando paradigmas, trajectórias e identidades numa óptica de longo prazo, o ISEG lança este ano no quadro do seu consórcio de investigação – Investigação em Ciências Sociais e Gestão (CSG) – uma nova linha de investigação transversal precisamente intitulada «Espaço Lusófono»: Instituições, Identidades e Agência. A intenção desta linha de investigação será de responder a um desafio que se situa no domínio da análise social, nas suas múltiplas vertentes disciplinares (História, Cultura, Sociologia, Economia e Gestão), atenta às dimensões culturais e identitárias, na tradição dos Estudos Pós-coloniais. A sua focalização

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centra-se na revisão das relações históricas e no mapeamento de novos agentes de articulação geopolíticos e culturais. Desta forma, trata-se não apenas de conhecer os contornos e o conteúdo das “Lusotopias”, na diversidade das suas fronteiras, materiais e simbólicas, tal como elas se apresentam na actualidade, como também de reflectir sobre o seu potencial interventivo e de valorização no contexto da economia e sociedade globais em mutação. A coordenação da conferência agradece especialmente à Fundação Calouste Gulbenkian, à Fundação Ciência e Tecnologia, à Fundação Portugal-África, à Africa Today, à RDP Africa e à RTP Africa por todo o apoio na realização desta iniciativa. Jochen Oppenheimer Joana Pereira Leite Luís Mah Lisboa, Junho de 2015

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Lusofonias/Lusotopias

Michel Cahen - CNRS/Sciences Po Bordeaux, centro “Les Afriques dans le monde”

Sempre que se propõe criticar o conceito e a realidade da lusofonia um autor francês deve ser cauteloso. Por um lado, devido à fama de arrogância dos franceses – tantas vezes merecida – e, por outro lado, porque as suas palavras poderão ser entendidas como “pro-francófonas” e, por isso, de desdém para com a lusofonia na rivalidade planetária das línguas. Sou precisamente francês. Assim, para atenuar essa minha etnicidade peculiar, digo desde já que muitos dos disparates que vou tecer sobre a lusofonia poderia tecê-los também sobre a francofonia e sobre todas as outras “-fonias”. No entanto, há certas especificidades com a lusofonia, que se devem estudar sem, no entanto, cair na tese frequente do excepcionalismo português. E por isso, vou começar por falar de uma iniciativa científica que ocorreu em França em julho de 19921. Em França, não havia, obviamente, e ainda não há, uma tradição forte de estudos sobre os países africanos de língua oficial portuguesa. Havia, e há, uma forte tradição de estudos brasileiros, mas sobretudo na etnologia e na antropologia. Quanto aos estudos portugueses propriamente ditos, houve um surto aquando do 25 de Abril de 1974, mas rapidamente a velha tradição de estudos literários retomou a sua hegemonia. O ponto fraco era sempre a análise política – não digo somente as ciências políticas, mas a análise política, quaisquer que 1 Esta palestra é uma versão adaptada de vários artigos que escrevi ao longo dos anos sobre o assunto, nomeadamente: “Um ponto de vista francês: Defender a língua portuguesa em África? Sim, mas...”, InformÁfrica Confidencial (Lisboa), n° 59, 20 de março de 1994, pp.46-47; “Des caravelles pour le futur? Discours politique et idéologie dans l’”institutionnalisation” de la Communauté des pays de langue portugaise”, Lusotopie (Paris) 1997, novembro de 1997, pp. 391-433 ; “La francophonie contre la France”, Politique Africaine (Paris), junho de 1998, n° 70, pp. 137-140 ; “Lusitanidade e lusofonia. Considerações conceituais sobre realidades sociais e políticas”, Plural Pluriel. Revue des Cultures de langue portugaise (Nanterre, França), outono-inverno 2010, 7 (online); ““Portugal is in the sky”. Conceptual considerations on communities, Lusitanity and Lusophony’», in Éric MORIER-GENOUD & Michel CAHEN (eds), Imperial Migrations. Colonial Communities and Diaspora in the Portuguese World, Basingstoke (R.-U.), Palgrave MacMillan, 2012, 368 p., pp. 297-315.

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fossem as disciplinas: história política, antropologia política, geografia política e geopolítica, etc. Ora, perante tantos acontecimentos de primeira ordem – a Revolução dos Cravos em Portugal e depois a integração do país na União Europeia, as independências dos PALOPs e as guerras civis pouco depois, a democratização no Brasil a partir de 1984, a guerra em Timor-Leste, etc. –, essa ausência do político não poderia continuar. Éramos então um pequeno grupo de investigadores, especialistas em ciências sociais, na altura ainda jovens, e decidimos criar uma revista de estudos políticos, num sentido muito lato da palavra, sobre todos os espaços contemporâneos oriundos da história e da colonização portuguesas. Sabíamos que título não queríamos para a revista, não queríamos uma “Revista de estudos lusófonos”, porque a relevância social da língua ia obviamente ser um dos pontos a estudar, mas apenas um entre outros e, de forma alguma, o principal. Queríamos estudar as relações sociais, os sistemas políticos, a construção do Estado, as ideologias, etc., na área pós-colonial portuguesa, para ver, de maneira comparatista, os desafios que isso trazia para as ciências sociais, estudando as heranças, mas todas as heranças e não só as heranças linguísticas. Por exemplo, em Goa, onde quase ninguém fala português, teria sido absurdo encarar este estado da Índia como lusófono. A mesma coisa podia ser dita da maior parte do território moçambicano: aliás, o 1° censo de Moçambique independente, de 1987, acabava de mostrar que somente 1,27% dos moçambicanos tinham o português como língua materna (são 9% hoje em dia). Em Cabo Verde, toda a gente fala crioulo, com certeza um crioulo de raiz luso-africana, mas ninguém fala português na vida diária. Inversamente, havia verdadeiras lusofonias desaparecidas, mas para os descendentes das quais este passado ainda tinha importância, como no caso dos Agudas do Benim, do Togo e da Nigéria, ou ainda de comunidades nas Ilhas das Flores ou das Celebes, no arquipélago indonésio, entre outros exemplos. Que conceito para encarrar tal heterogeneidade?

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Patrick Chabal, o nosso colega do King’s College London, muito recentemente falecido, na introdução do seu livro A History of Postcolonial Lusophone Africa2 chamava a atenção para uma caracterização frequente, mas perfeitamente eurocêntrica dos PALOPs, a de países “ex-portugueses”. Será que Moçambique é um país “ex-português”? Pode parecer óbvia a resposta positiva a esta pergunta, dado que nela reside uma parte de verdade: “Moçambique” como pedaço de terra cortado pela conquista colonial na parte sul-oriental do continente africano, um espaço aliás sem nenhuma relevância populacional, uma vez que 23 dos 25 grupos etno-linguísticos daquele território continuam do outro lado da fronteira, tal espaço foi sim uma produção portuguesa, ou, para ser mais exato, luso-britânica. Mas, o que dizer das sociedades inseridas nesta área? Para elas que é mais importante – serem bantas ou serem “ex-portuguesas”? Vê-se logo que a resposta à pergunta aponta obviamente para a trajetória de longa duração dos povos bantos e não para os 80 anos de domínio efetivo português, entre 1895 e 1975. Aliás, Eduardo Lourenço tinha detectado esse problema, e numa conferência em Paris em 19963, deu uma definição que achei muito interessante: a lusofonia não era uma área definida por um conjunto de “populações de língua portuguesa”, era uma área específica de intersecção com outras identidades. Lourenço cruzava, pois, o fator linguístico com as trajetórias longas das outras identidades. O problema, no entanto, não ficava totalmente resolvido, uma vez que há espaços gigantes onde ninguém fala português e assim a tal intersecção laurentina não podia funcionar. Nomeadamente, em Goa, ninguém fala português, mas pelo menos na zona das Antigas Conquistas, tropeça-se sobre heranças portuguesas a cada passo: 2 Patrick CHABAL (ed.), A History of Postcolonial Lusophone Africa, Bloomington (IN), Indiana University Press, 2002, 360 p. 3 Nunca li tal definição numa obra de Eduardo Lourenço, mas assisti à sua conferência. Primeiras Jornadas de estudos da revista Lusotopie, “Idéologies coloniales et identités nationales dans les mondes lusophones (études sur le lusotropicalisme)”, Paris, École Pratique des Hautes Études, 14-15 de dezembro de 1996.

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a arquitetura, os apelidos das pessoas, o direito de tradição romana, a minoria católica mais importante que no resto da Índia, o direito de beber álcool, etc. Isto é, tropeça-se sobre heranças não linguísticas que não se podem chamar de lusófonas! E há muito mais, apesar de ser difícil medi-lo. Por exemplo, defendi a hipótese de que o verdadeiro afastamento de Angola e Moçambique com Portugal não se deu aquando das independências e do “marxismo-leninismo”, mas na viragem neoliberal. Pode parecer estranho dizer isto, mas vejamos: por que é que as elites angolana e moçambicana que criaram o MPLA e a Frelimo foram captadas, embora superficialmente, por uma certo marxismo, isto é o dito “marxismo-leninismo”, a saber, a deturpação estalinista do marxismo? Não havia outras ferramentas culturais possíveis para exprimir a sua luta? Não tenho tempo aqui para entrar em detalhes, mas devemos lembrar alguns fatos históricos: foi uma particularidade da colonização portuguesa contemporânea ter travado consideravelmente a gênese de elites africanas, porque todo o espaço social estava preenchido pelas comunidades brancas, nomeadamente dos que chamo de “pequenos brancos”. Não havia empreendedores africanos, não havia classe operária estabilizada africana, havia um número muito reduzido de assimilados e mestiços que se empregavam na sua esmagadora maioria no setor terciário, nos escalões baixos dos serviços e da função pública. Isto é: viviam dentro ou na proximidade imediata do aparelho de Estado colonial, era o seu mundo, um mundo onde a ideia de nação era a de Portugal, muito homogénea, onde o Estado era o principal ator da economia, onde havia um partido único, onde havia corporativismo sindical, onde só havia uma língua, onde as cidades eram pequenas, ordeiras e pacatas, etc. Obviamente o objetivo político dos combatentes anticoloniais era oposto ao de Portugal, mas o modelo social, quase inconsciente, era muitíssimo próximo do modelo português. Essa microelite africana não era uma burguesia, ela tinha sido produzida dentro ou nas margens imediatas do poder colonial, precisava absolutamente,

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no momento da independência, do controle do Estado para a sua própria reprodução social. Isto é, essa microelite, com a sua gênese particular no contexto colonial português, quis criar absolutamente a nação, para a sua própria legitimação em espaços coloniais que não eram nações, e criar a nação pela mão do Estado, uma nação homogénea e unida à escala do novo país, pela via de partidos únicos. Quer dizer: não foi porque eram marxistas-leninistas que essas elites impuseram o partido único, é o contrário: é porque quiseram o partido único para criar rapidamente a nação homogénea que escolheram o dito “marxismo-leninismo”. Paradoxalmente, o “marxismo-leninismo” serviu para implementar um modelo de nação que muito tinha de português: homogénea e hostil às etnicidades, com uma só língua oficial, com um Estado como principal ator da economia, com corporativismo sindical, com um partido único – tudo isso correspondia bem ao que os jovens que iam produzir depois o MPLA e a Frelimo conheciam nas cidades coloniais dos anos cinquenta, antes da sua partida para o estrangeiro. Por outras palavras, o “marxismo-leninismo” também fez parte da herança do modelo português e, hoje em dia, esse modelo está a afastar-se, embora o imaginário nacional anterior permaneça como muito relevante. De uma maneira mais geral, quando se quer estudar as heranças portuguesas, deve ir-se muito para além da língua, até nos imaginários nacionais e nas culturas políticas dos novos países. Então estávamos nós, o pequeno grupo que queria criar uma revista que não ia chamar-se “Revista de estudos lusófonos”, mas não encontrávamos nome satisfatório e íamos fechar a reunião e adotar este mau título quando um dos participantes, Louis Marrou, geógrafo, perguntou: “Por que não Lusotopia?”, isto é todas as áreas, os lugares, os topos, que, de uma maneira ou outra, tinham sido moldados pela história e a colonização portuguesas, qualquer que fosse a sua língua na contemporaneidade. No início, foi mero título da revista que

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começou a sair dois anos mais tarde – em francês Lusotopie. Mas, rapidamente, percebemos que aquela expressão era também um conceito e permitia ir mais longe que a definição dada por Eduardo Lourenço: assim podíamos estudar uma área específica de intersecção com outras identidades mesmo em regiões ou comunidades onde ninguém falava português. Desta forma, estávamos a romper de vez com a ideologia da lusofonia, não para negar uma realidade, mas muito pelo contrário para a poder estudar melhor. Foi bom ter esta revista, que durou 17 anos – de 1994 até 2009 – e publicou milhares de páginas. Uma revista não portuguesa (isso era importante para desnaturalizar a lusotopia), mas em que participaram muitos portugueses, brasileiros, africanos e de outros lugares, publicada em três línguas, francês, português e inglês e conseguiu assim fugir à hegemonia inglesa das revistas internacionais (por isso, também nunca se vendeu suficientemente e desapareceu...). Disse “ideologia da lusofonia”, retomando a análise deste grande sábio que foi Alfredo Margarido4. Porque, se em França como em Portugal, para não falar do Brasil onde a lusofonia quase não interessa a ninguém, o conceito de lusotopia foi facilmente aceite entre cientistas sociais, não foi sempre a mesma coisa entre especialistas de literaturas de língua portuguesa e sobretudo entre políticos e medias portugueses. Por exemplo, a fórmula “Países africanos de expressão portuguesa”, copiada da “Áfrique d’expression française”, é completamente inadequada para exprimir a realidade desses países, integrando-os numa expressão portuguesa. Aliás, foi recusada por eles e foi adoptada uma fórmula que também é imperfeita mas melhor: “Países africanos de língua oficial portuguesa” – “Estados africanos de língua oficial portuguesa” ou mesmo “Estados africanos de língua portuguesa” (visto tratar-se somente dos Estados e não dos países ou dos povos) teria sido 4 Alfredo MARGARIDO, A Lusofonia e os Lusófonos: novos mitos portugueses, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000, 88 p.

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melhor, mas pelo menos a fórmula exprimia o fato de uma expressão poder ser dita em português, mas permanecendo a expressão africana. No entanto, a expressão lusocêntrica “Países africanos de expressão portuguesa” continua a ser utilizada. Outro exemplo. Acompanhei com muito interesse a formação da CPLP a 17 de Julho de 1996, mas reparei numa contradição forte entre os discursos durante a preparação e a sua instituição como tal. Com efeito, houve uma “gravidade” ideológica muito forte que apenas se pode constatar através da análise das letras C, P, L, P. Ora, não é assim tão frequente nas relações internacionais ver nascer uma organização chamada “Comunidade” quando, do que se trata, afinal, é de uma organização de Estados: Organização dos Estados Americanos, Organização da Unidade Africana, depois União Africana, Organização do Tratado do Atlântico Norte, Associação dos Estados do Sudeste Asiático, União Europeia (que é, aliás, mais do que uma mera organização de Estados), etc. Aqui, foi “comunidade”. E não foi “comunidade dos Estados”, foi “comunidades dos países” (e uma versão inicial propunha “comunidade dos povos”). E não foi “comunidade dos países de língua oficial portuguesa”, o que era, no mínimo, verdade para os sete fundadores, mas “comunidade dos países de língua portuguesa” tout court, o que é altamente problemático. E, nos discursos do embaixador do Brasil em Portugal, José Aparecido de Oliveira, ou de políticos como Mário Soares e tantos outros, nem se falou da “criação” ou da “fundação” da CPLP, mas da mera “institucionalização” da CPLP, visto, segundo eles, a CPLP, na realidade, existir há séculos... Os discursos sobre os “séculos de fraternidade”, sobre o “sangue comum”, no limite, podiam ser aceites no Brasil com a “pequena” exceção dos 49% de brasileiros negros ou pardos, mas eram inaceitáveis para os africanos tanto mais que houve debates acérrimos nos PALOPs sobre a eventualidade e a oportunidade da adesão5. Quer dizer: do lado português, e do lado 5 Michel CAHEN, «Que faire du Portugal quand on est africain ?», in «Le Portugal et l’Atlantique», Arquivos do Centro cultural Calouste Gulbenkian (Paris–Lisbonne), XLII, déc. 2001 : 53-70.

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brasileiro no pequeno sector da opinião pública que se interessava por esta questão, houve um neolusotropicalismo flagrante, não estando ausentes também toques de nacionalismo. Lembro-me, por exemplo, de um pequeno artigo no Expresso a propósito do pedido de adesão da Guiné Equatorial à CPLP (já em 1996!), cujo título era: “A Guiné espanhola quer aderir à comunidade portuguesa”: estão a ver, se a Espanha, ou quase, queria aderir a Portugal, ou quase, não era isso uma vitória retumbante?6 E quantas vezes não ouvimos nessa altura (e continuamos a ouvir) a famosa frase de Fernando Pessoa, “Minha pátria é a língua portuguesa”, cujo sentido é quase totalmente invertido no seu uso propagandístico? Vale a pena citar a passagem quase inteira: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.” 7

Assim, esta declaração de amor do escritor à sua língua, ao indicar que vive na e pela sua língua, de modo completamente desconectado de um território ou de uma identidade nacional ou pluri-nacional, é desviada do seu sentido nos inumeráveis discursos, artigos. Para estes usos já não se trata dizer, tal como o faria 6 “Guiné espanhola quer aderir à comunidade portuguesa. Movimentações da Galiza no mesmo sentido”, Expresso, 13 de julho de 1996. No entanto, isso não mudava nada, nesta Guiné, a situação de miséria e de abandono completo da população da única ilha que fala um crioulo de raiz portuguesa, a ilha de Anobom. 7 Bernardo SOARES (heterónimo de Fernando Pessoa), Livro do Desassossego, ed. de Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982, vol. I, p. 16-17.

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uma pessoa bem específica, como é o caso de um escritor, “Minha pátria é a língua portuguesa” mas, de inverter a frase para “A língua portuguesa é uma pátria” o que sugere a partilha de uma identidade comum entre muitos espalhados pelo mundo. Ora, obviamente, não só essa super-pátria não existe, como também essa visão da lusofonia como mera dilatação de lusitanidade condensa três realidades sociolinguísticas bem diferentes: – o português, como qualquer língua, pode ser a língua materna, isto é afetiva e identitária: é esse o caso para os portugueses e a grande maioria dos brasileiros, mas tal apenas respeita minorias em África e em Timor-Leste; – pode ser uma segunda língua, isto é, não identitária, ainda que não seja verdadeiramente estrangeira: por exemplo, em Cabo Verde, ninguém fala português na vida diária, mas a proximidade do crioulo torna o português uma língua de aproximação mais fácil; nas elites africanas ou populações antigamente urbanizadas, pode ser também a língua mais utilizada em casa, embora não materna para os pais, masapenas para os filhos; – pode ser, por fim, uma língua completamente estrangeira, como em vastíssimas áreas do interior da Guiné-Bissau, de Angola, de Moçambique, de Goa e de Timor-Leste. Ora, geralmente, a política de cooperação linguística não tem em conta essas diferenças e, por isso, assemelha-se muito a um imperialismo cultural. Assim, pouco tempo após o drama de Timor-Leste em 1999 e depois do formidável movimento de solidariedade que levantou a totalidade da nação portuguesa8, o Comissariado de Apoio à Transição em Timor-Leste, que era um órgão interministerial português9, realizou uma grande campanha de angariação de fundos sob 8 Para uma análise deste «levantamento», ver Miguel Vale de ALMEIDA, «O epilógo do Império. Timor-Leste e a catarse pós-colonial portuguesa», in M. Vale do Almeida, Um mar da cor da terra: raça, cultura e política de identidade, Oeiras, Celta, 2000, pp.205-225. 9 Comissariado para o Apoio à Transição em Timor-Leste, .

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o slogan “Neste Natal contribua para que os meninos de Timor aprendam a falar português”. Mas, porquê “... aprendam a falar português”? Não era isso um desvio de solidariedade? Uma política de cooperação linguística que teria somente como fim a expansão da língua portuguesa (ou francesa) não só seria muito contestável, como também, muito provavelmente, condenada ao fracasso. É bem conhecido que a alfabetização, para ser conseguida, deve ser feita na língua materna e isso facilita a aprendizagem, posteriormente, de qualquer outra língua, como o português. Também se deve evitar a mera instrumentalização das línguas africanas, como se faz hoje em dia em Moçambique, onde a 1a classe se faz em língua materna, a 2a nesta língua e em português e logo a partir da 3a classe tudo em português: veja-se bem aqui que o objetivo não é chegar ao bilinguismo oral e escrito, mas à “portuguização” de Moçambique, com enorme fenómeno de discriminação social para quem não tem o português como língua materna. Aliás, vale a pena citar de novo Alfredo Margarido, que lembrava as palavras fortes do escritor moçambicano Mia Couto, frente a reações negativas em Portugal aquando de debates linguísticos em Moçambique: “... Mia Couto preveniu os portugueses em dois momentos significativos. Em primeiro lugar: mesmo falando português um moçambicano estará sempre mais perto de um sul-africano ou de um zimbabueniano [sic] do que dos portugueses, brasileiros ou caboverdeanos [...]. [A esta] informação, acrescentou Mia Couto uma segunda, sublinhando o facto de a língua portuguesa ser a sua língua portuguesa, confirmando uma regra que me parece necessário reforçar constantemente: a língua deve sempre pertencer àquele que a fala. As consequências só serão penosas para quantos associam a língua a uma forma de dominação subtil, que se pode exercer mesmo estando ausente o agente da dominação”10 [grifo no texto]

Mas, voltando à CPLP, o que se criou de facto foi, longe dos discursos neolu10 Alfredo MARGARIDO, A lusofonia e os lusófonos. Novos mitos portugueses, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000, p. 71. A. Margarido não dá a referência, precisa das citações de Mia Couto.

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sotropicalistas, uma organização de Estados, e não uma agência apoiada pelos Estados concernidos. Provavelmente, não se podia fazer de outra maneira, mas foi desde logo uma das fraquezas da instituição. Com efeito, cada um dos Estados tinha a sua agenda própria e podemos já aqui estabelecer duas grandes categorias. Em primeiro lugar, não há dúvida alguma que, para Portugal, a criação da CPLP era identitária: com efeito, como já escrevi várias vezes, Portugal é um país que nunca conseguiu viver tranquilamente pequeno. Ora, isso é um caso quase único na Europa: países de tamanho equivalente ou ainda mais reduzido, como a Bélgica, a Holanda, a Dinamarca, sem falar do Luxemburgo, ou de população igual ou menor como a Noruega, a Irlanda, etc., não têm esse problema. Portugal tem, sim, e obviamente por causa da história e da profunda integração na cultura nacional da ideia, outrora colonial, hoje em dia de uma necessária projeção fora do rectângulo europeu. Ora essa projeção só pode ser de Portugal ele próprio, isto é da lusitanidade em vez da lusofonia (acrescento, para não me fazer de arrogante, que a França adopta o mesmo esquema: nunca aceitará ser um país médio, tem que ser uma “grande potência” e o papel da “defesa da língua” é fundamental nesta ideologia). Em segundo lugar, para os PALOPs, a paisagem era completamente diferente: a adesão à CPLP era instrumental. É bom lembrar que Cabo Verde, a Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe se juntaram à CPLP depois de terem aderido à francofonia, e Moçambique depois de ter aderido à Commonwealth. Quanto a Angola, o país recusava-se a entrar na CPLP enquanto Mário Soares fosse presidente – note-se que ele deixou o lugar a 9 de março de 1996 –, por suposta simpatia dele com a UNITA. Para o governo angolano, a decisão de se juntar ou não à CPLP era de mera oportunidade política e, já nessa altura, a política de Angola para com Portugal era de uma intransigência muito maior do que para com qualquer outro país. O caso brasileiro foi intermediário: a adesão foi identitária só dentro de um pequeno sector entusiástico, porque, fora deste, o caso não foi de grande importância, embora Portugal, agora membro da União Europeia, tenha ganho

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novo interesse. Mas é claro que se, para Portugal, o Brasil era muito importante, para o Brasil, Portugal não era tão importante. Basta lembrar a declaração de um governante brasileiro sobre o primeiro orçamento da CPLP, depois de Portugal ter anunciado a sua comparticipação, quando disse: “Nós vamos dar somente dez vezes mais”, sublinhando com pouca elegância a modéstia portuguesa. Mas sobretudo, numa organização de Estados, não se vota, trabalha-se para o consenso. Ora ainda hoje uma parte desses Estados é constituída por regimes de partidos que já não são únicos, mas ultra-hegemónicos, onde não houve e não há separação do partido e do Estado, etc. Isto provoca uma paralisia. Basta atender ao exemplo das missões de observação eleitoral da CPLP, que parece não verem o pouco que as missões da União Europeia, ou da Fundação Carter, veem. E amanhã, o que será de uma missão de observação eleitoral na Guiné Equatorial, com este país membro da CPLP, missão cujo relatório deverá ser aprovado em consenso? Assim, há uma contradição flagrante entre o que se pode chamar de “luso-inter-estadismo” e uma política de cooperação entre os povos dos Estados que têm o português como língua oficial, ou seja uma lusotopia popular. Com certeza o caso da Guiné Equatorial é o culminar desta prática “inter-estadista”, mas sublinhe-se que a CPLP não é uma comunidade, mas uma clássica organização intergovernamental, tão distante da tentação ideológica neolusotropicalista do seu batismo como da lusotopia popular. Vou tentar ser mais concreto. A visão estadista da lusofonia para com África toma como dado adquirido que o português é a língua do país, e que, se assim ainda não for, tal se deve a um atraso – e não a uma diferença –, atraso esse que deve ser recuperado pela via do desenvolvimento. Trata-se da clássica ideologia da modernização. Neste quadro, importa formar ou para lá enviar cada vez mais professores de português. A França faz o mesmo, e numa escala ainda maior, incluindo nos países africanos ditos lusófonos. Em Moçambique, rios de dinheiro foram gastos para reintroduzir o ensino do francês nas escolas secundárias, que tinha sido suprimido aquando da

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independência. Globalmente, isto não serve de nada porque o que se desenvolve é a oferta de francês, não a procura de francês. Obviamente os moçambicanos aceitam essa ajuda, mas o resultado na sociedade é próximo de nada. Muito mais eficaz, em vez de defender a francofonia, seria defender a francofilia: como assim? Em primeiro lugar, desenvolvendo a demanda do francês, oferecendo numerosas bolsas de estudos em medicina, agronomia, informática, linguística africana, muito mais do que para estudos da língua francesa per se; de volta ao país natal, esses quadros formados em França serão os melhores propagandistas de França e precisarão de manter contato com a língua francesa, por motivos de atualização profissional. Em segundo lugar, com uma política de defesa dos direitos humanos muito mais audaciosa, que trará com certeza a curto prazo um nervosismo a certos governos, mas mais francofilia na juventude, nas mulheres – isto pode fazer-se também através de ONG bem orientadas, isto é, que não se substituíssem ao que deveria fazer o Estado, construindo poços, escolas e hospitais, mas de apoio ao movimento social pela formação de quadros sindicalistas ou de animadores de ligas camponesas, etc. Posso dar um exemplo trágico do impasse da “francofonia de Estado” sob forma de pergunta: o que é que em 1994 pôs em perigo, tal como nos dias de hoje, o lugar do francês no Ruanda: foram os “Tutsi anglófonos” rebeldes da Frente patriótica ruandesa, ou o apoio incrivelmente prolongado de França ao regime genocidário? A “obsessão de Fachoda”11 – o nosso ultimato de 1891 – fez considerar que era melhor apoiar um regime “francófono” do que aceitar o governo de rebeldes anteriormente refugiados e formados no Uganda anglófono... mas vejamos outro exemplo: ao mesmo custo, o que é que é mais eficaz: treinar uma guarda presidencial num Estado africano “francófono” ou criar uma universidade francesa em Winnipeg, capital da província canadiana do Manitoba, onde uma minoria histórica de língua francesa, os “franco-manitobenses”, para a qual o francês é a língua identitária, está em dificuldade? Mais um exemplo: aquando 11 Memória traumática da França uma vez confrontada com hegemonia britânica no contexto da ocupação europeia da região do Sudão Oriental, em finais do século XIX

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da breve guerra civil na Guiné-Bissau, em 1998, e da intervenção de soldados senegaleses em apoio ao ditador local Bernardo Vieira, também suportado pela França, foi o centro cultural francês a ser queimado pela multidão... Tudo indica que a francofonia de Estado faz esquecer as verdadeiras francofonias populares. Estou convencido, por um lado que a defesa da francofilia é o melhor método para defender a francofonia nas áreas onde o francês não é língua identitária e, por outro lado que a defesa das francofonias populares é mais importante que a francofonia de Estado. Penso que o mesmo acontece para a lusofonia. Voltando à questão da língua de escolarização em África, paradoxalmente, a melhor maneira de defender, a longo prazo, a língua portuguesa ou francesa, isto é minorando os processos de discriminação social, é ajudar na formação de professores em línguas africanas. Mesmo nas cidades, não é saudável educar gerações de jovens africanos sem conhecimento real das línguas do seu próprio país. Por outras palavras, a defesa linguística da língua é condenada ao fracasso; o que se deve fazer é a defesa social da língua, porque qualquer língua só vive se tiver uma utilidade social. A questão da utilidade social é de uma importância considerável e podemos tomar alguns exemplos históricos. Toda gente conhece o mito dos “cinco séculos de colonização”. Com certeza, durante cinco séculos, houve um império português, mais exatamente três de seguida. Mas mesmo no caso do Brasil, a conquista do interior foi feita principalmente no século XVIII e terminou apenas no início do século XX. Quanto à África, 95% da superfície que viria a constituir os PALOPs foi conquistada ao mesmo tempo que todos os impérios europeus, entre 1895 e a Primeira Guerra Mundial. Mas houve dois lugares que conheceram realmente os tais “cinco séculos”: Goa (pelo menos a capital, Panjim, e a área das Antigas Conquistas) e Macau. Ora a língua portuguesa sempre foi fraquíssima nesses territórios – em Goa, no último censo colonial de 1960, 1% da população, incluindo os portugueses residentes, tinham o português como língua materna. É bem possível que Goa tenha sido mais lusófona

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nos séculos XVIII e XIX do que no século XX. É possível que o lento declínio do Estado da Índia12 tenha forçado grande parte da sua elite a migrar para Bombaim ou para algumas áreas da Índia britânica, tanto mais que a coroa britânica procurava recrutar indianos que dominassem o alfabeto latino. Isto explica que se encontrassem goeses (geralmente não lusófonos13) em toda a administração colonial britânica na África Oriental, e que, de migração em migração, existissem comunidades goesas, numerosas e persistentes em Londres ou no Canadá, enquanto foram desaparecendo, por integração, em Portugal. Não se pode senão constatar que a língua portuguesa não foi socialmente útil a esses goeses para a sua atividade profissional e para sua coesão identitária. Pode-se, sem dúvida, dizer o mesmo de Macau, cidade na qual a língua portuguesa nunca foi mais do que uma fina camada de verniz. Mas o que dizer então de Malaca, cidade portuguesa somente de 1511 a 1641, conquistada por uma tropa de cerca de mil soldados portugueses e algumas centenas de mercenários chineses ao serviço de Afonso de Albuquerque? Como se conseguiu que um portuguese settlement (“bairro português”) se tenha mantido e que um papia kristang (português crioulo) tenha sobrevivido até à primeira metade do século XX (com tentativas de revitalizá-lo hoje)? Tem-se muito para pensar que a combinação de uma identificação profissional (comunidade de pescadores), religiosa (católica) e linguística (crioulo de origem portuguesa) tenha sido o coração da coesão social de um pequenino grupo humano14. 12 Nome oficial do território de Goa, cuja capital é Panjim. 13 Aqueles que não eram considerados lusófonos em Goa, não tinham menos razão de sê-lo na África britânica. Entretanto, havia algum conhecimento do português nos poucos goeses que mantinham sua nacionalidade portuguesa. Portugal utilizou-os para povoar, durante décadas, e até ao início dos anos 1960, os seus consulados e vice-consulados na África oriental britânica (Zanzibar, Mombassa, Dar Es-Salam, Pemba...) com vice-cônsules e cônsules honorários. Os centros diplomáticos oficiais estavam somente em Nairobi e Salisbury. 14 Em 1999, pude perguntar a Gerard Fernandis, intelectual kristang, se ele pensava que a sua comunidade, tão pequena, poderia sobreviver. Ele estava descansado sobre esta questão, pois disse-me: “o governo compreende que é bom para o turismo...”.

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Quanto a Timor-Leste, não há dúvida alguma de que a invasão indonésia fez um grande favor à língua portuguesa. Não apenas o governo de Timor-Leste declarou o português como língua oficial (em 2002, com o tétum como uma das línguas locais) como também o utilizou como instrumento de independência face à Indonésia e à Austrália. Importa contudo sublinhar que o complexo “catolicismo/língua portuguesa” foi um inegável vetor de resistência cultural e social contra a opressão indonésia e a difusão do bahasa (javanês). Mas, tratarse-ia aqui de uma herança? Na realidade em Timor-Leste fala-se hoje pouco português, mas no entanto, bem mais do que em 1975! De facto verificou-se um processo de expansão da língua de Camões devido à sua utilidade social e política: é a língua da Igreja católica e principal instrumento de resistência civil. O que sempre se manifesta nos casos de expansão como também de declínio ou desaparecimento de línguas, não é o critério de uma herança linguística em si, mas o critério de utilidade social da língua ao longo da história. Visivelmente, o português não era útil aos brâmanes goeses para manterem a sua identidade social, porque dispunham do konkani e do marathi, línguas indo-iranianas, e também por causa das suas migrações e da influência do inglês. O português, então, não foi o cimento da sua atividade económica e profissional, e a situação letárgica da Goa salazarista não restabeleceu a situação. No entanto, um colega do Instituto Superior de Economia e Gestão, Jochen Oppenheimer, a quem expus o teor desta minha palestra, poucos dias antes da apresentação, fez-me um reparo que me obrigou a pensar. Concordava em larga medida comigo, mas trazia uma importante nuance. Disse que a criação da lusofonia, mesmo de pendor estadista, mesmo com as fraquezas da CPLP, tinha provocado uma “sub-globalização lusófona” ao nível das grandes empresas. Por exemplo, a indústria hoteleira portuguesa, aproveitando as privatizações e depois o forte crescimento, instalou-se no Brasil, mais do que noutros países onde decorriam os mesmos processos, porque era mais fácil por causa da língua.

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Isso provocou um “treino” à gestão global, a projetos estratégicos cada vez mais alargados e, depois, fora do próprio Brasil. Isto é, a criação de grupos sub-globalizados à escala “lusófona” permitiu ganhar dimensão, autorizando, depois, a prática da globalização mesmo fora da lusofonia, mas sem a esquecer. Não posso senão concordar. De uma maneira diferente, pode dizer-se a mesma coisa com os ditos “Donos angolanos de Portugal”15 que investem mais-valias, produzidas em Angola, em sectores estratégicos portugueses. No entanto, lembro que sou historiador, e para mim, nada de estabilizado existe antes de três gerações. É óbvio que o objetivo dos investidores angolanos não é ficar em Portugal, mas servir-se de Portugal para entrar no “centrão” do capitalismo que é a City de Londres ou Wall Street, em Nova Iorque. Deve pensar-se no exemplo da grande empresa metalúrgica de origem indiana, Arcelor Mittal: hoje em dia, com sede na Holanda, cotada na bolsa de Londres, será que ainda é uma empresa indiana? Pode discutir-se os conceitos de centro e periferia do capitalismo, e o centro não é um conceito geográfico, pode estar em vários lugares, mas as grandes empresas capitalistas querem sempre aproximar-se do centro, onde quer que ele esteja. Por isso, não sei se o indubitável crescimento do investimento direto “intra-lusófono” vai, a prazo, criar a base estabilizada de uma sub-globalização especificamente lusófona. Com certeza mais modestas, mas de grande importância, são todas as associações profissionais, culturais e desportivas criadas independentemente da CPLP, mas no âmbito daquela tomada de consciência lusófona: engenheiros, jornalistas, médicos, cientistas sociais, etc. têm hoje as suas associações inter-lusófonas. E não vou citar as telenovelas brasileiras. Mas aqui, veja-se, aproxima-se da prática de uma lusofonia popular que eu citava há pouco. Antes de acabar com dois reparos finais, queria citar uma vítima colateral da versão estadista da lusofonia, aqui mesmo, em Portugal. Trata-se da língua mirandesa. Apesar da lei n° 7 de 29 de Janeiro 1999, pode dizer-se que o Estado 15 Jorge COSTA, João TEIXEIRA LOPES, Francisco LOUÇÃ, Os Donos Angolanos de Portugal, Lisboa, Bertrand, 2014, 144 p.

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português não fez absolutamente nada para promover essa língua. Com certeza a situação de crise não ajuda a revitalizar um concelho nos confins de Trás-osMontes, cuja população envelhece e diminui permanentemente. Aliás isto é mais um exemplo que demonstra que não se pode defender a língua apenas de maneira linguística. Mas, por outro lado, não seria muito dispendioso tomar iniciativas fortes num concelho que hoje em dia agrupa pouco mais de 7000 habitantes. No entanto, não há nenhuma instituição, no Estado português, que se encarregue de apoiar o que a vontade de alguns ativistas mirandeses faz. É que, na concepção estadista da lusofonia, não podem entrar outras línguas, senão o português. Já evoquei as línguas africanas, mas vale a pena também lembrar o mirandês16. Assim, Portugal está a perder a sua única minoria linguística territorializada17. Para acabar, queria partir de novo do uso e abuso da famosa frase de Fernando Pessoa. Critiquei-a. Mas será que o facto de falar português não cria uma certa identidade partilhada? Penso que sim, cria, mas nunca será uma pátria comum e devem ver-se os limites. Por isso, vou comparar com a... União Soviética. A antiga URSS foi uma União de numerosas nações, oficialmente reconhecidas (o que não quer dizer livres, obviamente!). Mas não será que havia também uma identidade “soviética”? Já devem ter reparado que a URSS nunca se definiu como nação, nem como nação de nações: era definida como a “pátria do socialismo”, isto é uma “pátria” a-nacional de teor político, de facto uma comunidade política, uma cidadania não nacional. No entanto, havia uma ligeira identidade, uma supra-identidade leve, que nunca superava as identidades nacionais, mas que existia18. Todos perceberão agora a comparação: a lusofonia, não para a totalidade das populações de todos os Estados de língua portuguesa, 16 Veja o meu livro Le Portugal bilingue. Histoire et droits politiques d’une minorité linguistique: la communauté mirandaise, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2009, 212 p. 17 O caso de Barrancos é diferente: o “barranquenho” faz parte dos fenómenos de falas raianas e não constitui, como o mirandês, uma língua independente. 18 Conversas pessoais várias com Georgui Derluguian.

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longe disso, mas para uma certa proporção delas, com certeza proporciona essa “leve supra-identidade”. Leve mas importante. Digo isso porque, apesar de todas as minhas críticas, não diria, como António Pinto Ribeiro, que é preciso “acabar de vez com a Lusofonia”19. Aliás, quando se lê com atenção o artigo de título provocador que ele publicou em 2013, veja-se que não é bem da lusofonia de que se trata, mas da ideologia da lusofonia, enraizada no passado imperial20. Ora, será que a lusofonia é somente uma ideologia? Em parte é, e justamente isso prejudica a lusofonia popular, como tentei demonstrar e a tomada de consciência que muitas vezes, do que se trata é de lusotopia e não de lusofonia. De qualquer maneira, são também duas realidades que nem têm a mesma geografia: Goa não faz parte da lusofonia, mas da lusotopia e a comunidade portuguesa de Newark faz parte da lusofonia, mas não da lusotopia. No entanto, a lusofonia é muito importante, porque pode participar ativamente da democracia linguística, se não sucumbir a uma política de poder e de saudade colonial. Queremos, amanhã, que as nossas crianças falem só inglês ou chinês? Obviamente que não, o mundo precisa de diversidade linguística, e devemos erguer a internacionalização contra a globalização. Por isso, pelas mesmas razões que me fazem defender o mirandês e as línguas africanas, defendo a língua portuguesa ou, talvez seja mais justo dizer, todas as línguas que são faladas e escritas em português. 19 António Pinto RIBEIRO, “Para acabar de vez com a Lusofonia”, supl. “Ipsilon”, Público, 18 de Janeiro de 2013. 20 Essa ideologia esconde o que é a realidade social da lusofonia, porque designa como “lusófonas” populações que nem falam ou entendem português, como já foi dito. Mas há outro problema. Com efeito, na realidade, não faz sentido dizer que os portugueses são lusófonos ou os franceses francófonos. Trata-se para esses de línguas maternas, afetivas, identitárias. Ora, justamente, as “-fonias” foram inventadas ao início para designar comunidades para quem a língua concernida não era a língua identitária mas uma língua tornada segunda por razões históricas (nem materna, nem estrangeira), para quem é capaz de ouvir, de entender o francês ou o português. Paradoxalmente, os únicos verdadeiros lusófonos são os angolanos, os moçambicanos, os timorenses, etc., que entendem e praticam frequentemente o português. Mas esses recusam-se denominarem-se lusófonos porque, na ideologia colonial e pós-colonial portuguesa, a lusofonia tem estado demasiado ligada ao lusotropicalismo ou até mesmo a uma mera dilatação de lusitanidade. Assim se pode perceber a declaração de Joaquim Chissano, antigo presidente moçambicano, quando disse uma vez: “Falo português, mas não sou lusófono”.

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PAINEL 1 Democracia Governação e Estado



“Novo contexto mas velha política”: a evolução do sistema partidário moçambicano entre 1994 e 2014

Edalina Rodrigues Sanches - ICS/ULisboa, IPRI/ULisboa, CSSR/U. Cape Town

Resumo Mais de 20 anos após o início da vaga de democratizações em África, os sistemas de partido dominante constituem o modelo mais comum encontrado na região subsariana. Atualmente, contam-se duas dezenas de países com sistemas de partido dominante em que os partidos que assumiram o governo no momento da independência ou que lideraram os processos de transição (gradual) para a democracia continuam a ser os mais votados. No entanto, existem características importantes que distinguem estes sistemas entre si, nomeadamente o tipo de instituições políticas, os níveis de participação eleitoral e a performance democrática. Enquanto no Botswana, África do Sul e Cabo Verde as eleições decorrem num ambiente que envolve maior participação eleitoral e a salvaguarda dos direitos políticos e das liberdades civis, na Guiné Equatorial, Chade ou Gâmbia registam-se as piores práticas nestes domínios. Enquanto na Guiné-Bissau e no Burkina Faso vigoram regimes semipresidenciais que empregam fórmulas eleitorais proporcionais, na Nigéria e na República do Congo vigoram regimes presidenciais que empregam fórmulas eleitorais maioritárias. Estas diferenças indicam que para melhor entender de que forma emergem e se mantêm ao longo do tempo estes sistemas partidários é preciso ter em conta as conjunturas críticas que os propulsionam, as instituições formais e informais que os delimitam, e as escolhas e estratégias dos atores políticos chave (agência). Este capítulo investiga estas

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condições a partir de uma análise longitudinal e neo-institucional do sistema partidário moçambicano e argumenta que o tipo de clivagens sociais, a natureza da transição, as práticas neopatrimoniais e o sistema eleitoral permitem explicar os padrões de competição interpartidária entre 1994 e 2014. Introdução No início dos anos 90, dois acontecimentos em específico marcaram o arranque dos processos de democratização em África: no Benim, os protestos populares conduziram à organização da Conferência Nacional das Forças Vivas da Nação1 que culminou na destituição de Mathieu Kérékou, após quase 20 anos de autoritarismo; e na África do Sul, o regime do Apartheid, debaixo de forte pressão internacional e doméstica, liberta Nelson Mandela e levanta a proibição contra o African National Congress (ANC) (Diamond and Plattner 1999). As mudanças que depois se seguiram foram espetaculares. Um pouco por toda a região subsariana, os regimes de partido único foram sendo substituídos por sistemas multipartidários, as ditaduras militares dando lugar a regimes civis e os direitos políticos e liberdades civis progressivamente ampliados. Apesar destas mudanças, uma distância de 20 anos demonstra que os processos de democratização estão longe de estarem completos. Muitos países permanecem numa “zona intermédia” ou híbrida (Morlino 2009), combinando atributos democráticos e autoritários. Mais especificamente, mantêm o requisito mínimo de eleições multipartidárias, porém reprimem vários direitos e liberdades fundamentais como a liberdade de associação, de oposição e de imprensa (p.e. Gâmbia, Guiné-Bissau, Lesoto, Quénia, Nigéria e Zimbabué). Neste quadro, apenas uma minoria de países parece ter conseguido prosseguir com as suas tarefas de consolidação democrática (p.e. Benim, Botswana, Cabo Verde, Senegal e Maurícias). 1 O modelo de conferência nacional viria a ser seguido por outras ex-colónias francesas – Mali, Níger, Madagáscar, Gabão, República do Congo, República Democrática do Congo e Togo

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No que diz respeito às características dos sistemas partidários, vários estudos têm demonstrado que as eleições multipartidárias tiveram um resultado inesperado, que apontam para uma certa excecionalidade do contexto africano. Concretamente, as eleições originaram na maioria das ocasiões sistemas de partido dominante em que os partidos históricos – que desempenharam um papel crucial na independência e na transição do autoritarismo para a democracia – continuam a ser os atores políticos chave, capturando grande parte do apoio popular (Doorenspleet 2003; Salih 2003; Bogaards 2004; Bogaards 2008; Carbone 2007; Bogaards and Boucek 2010). Este capítulo estuda o desenvolvimento dos sistemas de partido dominante focando o caso moçambicano a partir de uma perspetiva longitudinal recortada entre 1994 e 2014 e de uma abordagem neo-institucional. Esta abordagem teórica tem raízes profundas na ciência política e é útil na medida em que permite o estudo das instituições enquanto estruturas formais e informais, e explica a sua mudança quer em termos das conjunturas críticas que criam possibilidades de alteração das trajetórias políticas, quer em termos da agência, isto é, salientando a reflexividade dos atores políticos e a sua capacidade para reinventar as estruturas em que estão inseridos (Hall and Taylor 1996; Immergut 1998). Neste sentido, adequa-se à nossa argumentação principal de que a estrutura das clivagens sociais, a natureza da transição, as práticas neopatrimoniais e o sistema eleitoral explicam a evolução do sistema partidário moçambicano. Este argumento é desenvolvido ao longo de quatro secções. A secção 1 parte da definição de Sartori (1976) para identificar sistemas de partido dominante na África subsariana. A secção 2 faz uma contextualização histórica de Moçambique e apresenta os resultados das eleições gerais entre 1994 e 2014. A secção 3 apresenta as dimensões explicativas do sistema partidário moçambicano considerando fatores históricos e sociais (clivagens territoriais), conjunturas críticas (natureza da transição), o neopatrimonialismo e o sistema eleitoral. Finalmente, a secção 4 apresenta as principais conclusões extraídas deste estudo.

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1. Sistemas de partidos dominante em África: quantos são? A definição seminal Sartori (1976) classifica os sistemas de partidos dominante como aqueles em que um único partido vence mais de 50% dos lugares em três eleições consecutivas, e distingue-os sumariamente dos sistemas de partidos predominantes na medida em que estes são encontrados em sistemas estruturados e aqueles em sistemas não-estruturados. Assim, na generalidade das novas democracias falaríamos de sistemas de partido dominante uma vez que os sistemas partidários são formações mais recentes e tendencialmente mais fluídos. No entanto, esta definição minimalista de Sartori está longe de ser consensual. Doorenspleet (2003) argumentou que uma simples reeleição pode ser suficiente para rotular um sistema de partidos como dominante enquanto para Ware (1996) seria suficiente que um partido conseguisse obter mandatos suficientes para formar um governo maioritário. Revendo as definições existentes Bogaards (2004, 175-176) considera que elas podem ser arrumadas num continuum, na medida em que apresentem um, alguns ou todos os atributos que se seguem: escala do domínio; inclusão ou exclusão da oposição; em sistemas presidenciais: se o governo é ou não divido; e período de tempo considerado. Face a estes critérios Bogaards (2004) acaba por considerar a definição minimalista de Sartori (1976) como sendo a menos ambígua e a mais precisa; contendo tanto um limiar a partir do qual domínio é evidente (50%) como um período de tempo durante o qual o domínio se observa (três eleições consecutivas). Estas razões levam-no a optar por esta definição nos seus estudos sobre os sistemas partidários africanos (Bogaards 2004; Bogaards 2008; Bogaards and Boucek 2010). Neste capítulo também adotamos a definição de Sartori (1976) para saber quantos países têm sistemas de partidos dominante, atualmente (Novembro 2014). O quadro 1 revela que 40% dos Estados da África Subsaariana, equivalentes a 20 sistemas partidários, cabem nesta categoria. Na maioria dos casos (N=15) o partido dominante está no poder desde a independência (p.e. MPLA em Angola, Freli-

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mo em Mozambique, BDP no Botswana, SPPF nas Seicheles, CCM na Tanzânia e SWAPO na Namíbia) ou assumiu o governo durante o período autoritário e desencadeou as reformas de transformação do modelo autoritário no início dos anos 1990s (p.e. ZANU-PF no Zimbabué, RPT no Togo e RDPC, nos Camarões). Existem ainda casos de partidos que perderam as eleições fundadoras do multipartidarismo e que recuperaram depois o seu domínio eleitoral (p.e. PAICV em Cabo Verde) ou que foram derrotados somente uma vez (p.e. PAIGC na Guiné-Bissau). Apenas cinco sistemas de partido dominante são liderados por partidos que se formaram a partir da década de 1990; eles pertencem ao Burkina Faso, Djibouti, Chade, Gâmbia e Nigéria. O PDP e o APRC, partidos dominantes da Nigéria e da Gâmbia respetivamente, surgiram em contextos semelhantes. O PDP foi fundado em 1998 no rescaldo de 16 anos de regime militar e de mudanças constitucionais profundas que alteraram a dimensão da assembleia e a natureza dos poderes executivos na Nigéria. As primeiras eleições após estas mudanças decorreram em 1999 e foram ganhas pelo PDP que também saiu vencedor das eleições de 2003, 2007 e 2011. O APRC da Gâmbia foi formado em 1996 por Yahya Jammeh, que em 1994 havia conduzido um golpe militar contra Dawda Jawara, Presidente da Gâmbia desde 1970. Desde a sua formação o APRC tem vencido todos os atos eleitorais. O CDP do Burkina Faso surge em 1996 a partir de uma fusão entre a Organization for Popular Democracy - Labor Movement e vários partidos de menor dimensão; a UMP do Djibouti é uma coligação de cinco partidos, formada em 2004; e finalmente, o MPS do Chade formou-se em 1990 e venceu todas as eleições desde 1997. À luz da definição minimalista de Sartori (1976) todos estes países têm um sistema de partido dominante, no entanto isto não significa que compõem um conjunto homogéneo. Com efeito, o quadro 1 também apresenta alguns indicadores que dão conta de diferenças importantes. Assim, em alguns destes países os níveis de participação eleitoral são os mais elevados (p.e. África do Sul, Guiné-Bissau, Seicheles e Angola) enquanto noutros os mais baixos (p.e. Botswana, Moçambique

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e Gâmbia). Em alguns casos o partido dominante perdeu uma proporção substancial de lugares nas últimas três eleições (p.e. Djibouti, Burkina Faso e Tanzânia) enquanto noutros registou ganhos importantes (p.e. Seicheles e Guiné Equatorial). No que diz respeito às instituições políticas a nível nacional, o quadro 1 indica que a forma de governo mais comum é a semipresidencial. Assim, 10 países têm um sistema em que há um presidente eleito por voto popular direto, um primeiro-ministro e um governo que é responsabilizado perante o parlamento (Elgie 2005); estes são Cabo Verde, Burkina Faso, Guiné-Bissau, Tanzânia, Togo, Gabão, Camarões, Djibouti, Chade e Moçambique. As formas ditas “puras”, nomeadamente o parlamentarismo – vigente no Botswana, Angola, Namíbia e África do Sul – e presidencial – vigente na Nigéria, Seicheles, Gâmbia, Zimbabué, República do Congo, Guiné Equatorial – são menos frequentes. No que concerne as instituições eleitorais, a maioria dos países emprega fórmulas de representação proporcional (N=12); enquanto seis utilizam a fórmula maioritária – Nigéria, Gâmbia, Zimbabué, República do Congo, Tanzânia e Gabão – e dois a fórmula mista – Seicheles e Camarões. Finalmente, há variação no estatuto global da democracia em cada país. As pontuações da Freedom House sobre os níveis de liberdade na região pintam um quadro francamente negativo – note-se que os valores mais próximos de 1 indicam maior liberdade e os mais próximos de 7 menor liberdade. Os dados revelam que apenas quatro países – Botswana, Cabo Verde, Namíbia e África Sul – são classificados como “livres” em 2014. Com efeito, o conjunto mais numeroso (N=9) é constituído por países classificados como “não-livres” que combinam as pontuações mais baixas de garantia das liberdades civis e dos direitos políticos. Os cenários mais negativos estão na Guiné Equatorial, que obtém uma pontuação de 7 nos dois índices; seguido do Chade, Gâmbia e Camarões. Finalmente, sete países estão na categoria “parcialmente-livre” com as Seicheles e a Tanzânia a apresentarem a margem mais baixa para a categoria “livre” e a Guiné-Bissau e a Nigéria a mais curta para a “não-livre”.

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Fontes: IDEA Voter Turnout (http://www.idea.int/vt/); African Elections Database (http://África nelections.tripod.com/); The semipresidential one (http://www.semipresidentialism.com/?cat=61).

Notas: 1. Forma de Governo: PAR = Parlamentar, SPRE = Semipresidencial, PRE = Presidencial 2. Sistema Eleitoral: RP = Representação Proporcional, MAI = Maioritário, MIS = Misto *Dif. = Diferença entre a primeira eleição e a terceira eleição. ** FH = Freedom House; LC = Liberdades Civis; DP = Direitos Políticos. Pontuações entre 1.0 e 2.5 = “livre”; entre 2.5 e 5.0 = “parcialmente-livre”, maior do que 5.0 = “não-livre”.

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2. Sistema Partidário Moçambicano 2.1 Origens e desenvolvimentos políticos antes da mudança de regime Moçambique ganhou a independência em 1975, no seguimento dos Acordos de Lusaka assinados entre o governo de transição português e a Frelimo a 7 de Setembro de 1974. A Frelimo foi a única força política moçambicana que participou nas negociações2; não houve consulta pública ou eleições (Krennerich 1999a; Brito 2009) ao contrário do que aconteceu, por exemplo, nas ilhas de São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde. Nesta sequência, Joaquim Chissano foi nomeado primeiro-ministro, a constituição da independência foi proclamada pelo Comité Central do partido a 25 Junho de 1975 e Samora Machel tornou-se o primeiro Presidente da República de Moçambique. Logo depois a Frelimo instalou um regime de partido único socialista, em que o presidente do partido era automaticamente declarado presidente da república e o corpo legislativo supremo – a Assembleia Nacional Popular – era indiretamente eleito através de plebiscitos organizados por todo o país (Krennerich 1999a, 648). No seu III Congresso, ocorrido em Fevereiro de 1977, a Frelimo assumiu, pelo menos do ponto de vista discursivo e dos seus conteúdos programáticos, uma orientação marxista-leninista vanguardista; bem como a sua missão de liderar, organizar e educar as massas, e de combater o capitalismo. Este congresso também marcou a evolução da Frelimo de “frente de libertação”3 para partido político e o subsequente desenvolvimento de organizações democráticas de massas para assegurar o controlo do partido sobre o território e a socie2 A Frelimo era o único movimento anticolonial moçambicano reconhecido como legítimo pela Organização da Unidade Africana (hoje União Africana) e pelas Nações Unidas 3 O primeiro congresso da Frelimo teve lugar entre 23 e 28 de Setembro de 1962, e estruturou a frente de acordo com os princípios do centralismo democrático (Estatuto da Frelimo de 1962). Nos estatutos de 1977 a frente apresenta-se pela primeira vez como um partido vanguardista marxista-leninista

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dade4. Estas medidas implicaram o desaparecimento dos Grupos Dinamizadores, que eram as estruturas mais próximas dos cidadãos5 (Rupiya 1998; Brito 2009; Krennerich 1999b; Carbone 2005). Paralelamente, a Frelimo levou a cabo reformas políticas profundas que incluíram nacionalização, aldeamento forçado, implementação de campos de reeducação e de medidas políticas com vista a limitar a influência da igreja e da oposição política na sociedade (Carbone 2005, 424). Neste sentido, o projeto de construção de um Estado-nação independente moderno implicava a dissolução das clivagens regionais, religiosas e étnicas, a legitimação da Frelimo enquanto partido único, a exclusão de habitantes rurais e de chefes tradicionais (régulos) e o desmantelamento dos sistemas tradicionais de poder, por sua vez conotados com o indirect rule português (Granjo 2007; Florêncio 2007). Apesar da centralização do poder, o governo da Frelimo enfrentou várias frentes de destabilização cujas origens são anteriores à independência. Ainda durante os anos 60, Moçambique foi um ator importante na luta de libertação dos chamados Estados da Linha de Frente6 e acolheu ainda movimentos insurgentes que ameaçavam o poder de Ian Smith na Rodésia e o regime do Apartheid na África do Sul. Esta posição levou a que os rodesianos e as forças especiais da África do Sul e do Malawi se unissem para formar e dar apoio material à Resistência Nacional Moçambicana (Renamo)7, que em 1977 iniciou atividades armadas contra o governo da Frelimo (Morgan 1990; Manning 1998; 4 Organizações de massa criadas ou reestruturadas foram: Organização da Mulher Moçambicana fundada em 1973; Organização da Juventude Moçambicana fundada em 1977 e a Organização dos Trabalhadores Moçambicanos fundada em 1983. Na mesma linha foram criados grupos representativos de setores estratégicos da vida social, nomeadamente a Organização Nacional dos Professores e a Organização Nacional dos Jornalistas. 5 Os grupos dinamizadores eram constituídos por militantes do partido e eram hierarquicamente dependentes das estruturas distritais do partido. Enquanto estruturas de base do partido desempenhavam uma série de funções administrativas e políticas (Brito 2009). 6 Angola, Botswana, Moçambique, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabué. 7 Inicialmente conhecido pelo seu acrónimo em inglês MNR = Mozambican National Resistance.

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Weinstein 2002; Hirsch 2009; Emerson 2014). Ainda que formada fora do território moçambicano, a Renamo conquistou apoio interno, durante os anos da guerra, apelando ao apoio dos líderes tradicionais e dos habitantes das áreas rurais que haviam sido marginalizados pelo projeto de modernização autoritária implementada pela Frelimo (Carbone 2003; Manning 2008). Estas incursões territoriais forjaram divisões artificiais entre as zonas controladas pelo governo (no sul, Maputo e Gaza) e as controladas pela Renamo (no centro, Manica, Sofala, Zambézia, Tete e, no norte, Nampula), que se foram cristalizando durante a guerra civil. O desfecho deste conflito começou a ser ensaiado a partir dos finais dos anos 80 e seria influenciado por fatores externos (internacionais e regionais) e internos (Rupiya 1998; Hirsch 2009). No plano externo, o fim da Guerra Fria significou a retirada de apoio internacional aos beligerantes já que durante a guerra civil a Frelimo contou com apoio militar e financeiro da União Soviética, Cuba e outros países comunistas, enquanto a Renamo foi apoiada pela Administração norte-americana de Reagan (Rupiya 1998, 22). A nível regional os padrões de apoio também se alteraram quando o Zimbabué, um dos mais importantes aliados do governo de Moçambique8, conseguiu a independência em 1980 e os acordos de Nkomati foram assinados com a África do Sul em 1984. Estes acordos formalizaram um pacto de não-agressão entre os dois países, e a retirada de apoio às atividades de guerrilha da Renamo por parte da África do Sul9. Internamente, causas naturais, nomeadamente a seca e a fome no início dos anos 80, a exaustão das tropas, o agravamento das condições económicas (Armon, Hendrickson, and 8 De acordo com Gonçalves (1998, 20) a Zimbabwean National Liberation Army (ZANLA) de Robert Mugabe operava em Moçambique desde o início da década de 1970, na base de um alegado acordo entre a ZANU e a Frelimo que ficou definido antes da independência do Zimbabué 9 A retirada da Africa do Sul não foi imediata e total, uma que vez que esta continuou a apoiar a ação da Renamo (Rupiya 1998).

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Vines 1998, 83-84), e os apelos dos líderes religiosos10 para um fim negociado da guerra foram determinantes para o começo das negociações de paz a partir de finais da década de 1980. Neste mesmo período a Renamo organizou o seu primeiro congresso na Gorongosa entre 7 e9 de Junho de 1989, no qual Dhlakama se apresentou preparado para efetivamente negociar o fim do conflito com a Frelimo, com apoio da comunidade internacional. O líder da Renamo reafirmou ainda o seu compromisso com a democracia multipartidária e a economia de mercado, que, de resto já fazia parte dos documentos do partido desde 1981 (Manning 1998, 180). As negociações de Nairobi entre a Frelimo e a Renamo (em Dezembro 1989) foram as mais significativas durante este período, na medida em que inauguraram uma série de encontros que levariam à assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP) a 4 de Outubro de 1992. Ao longo dos seus sete protocolos, o AGP incluiu medidas autorizando a Operação das Nações Unidas em Moçambique (ONUMOZ11) e o reconhecimento da Renamo enquanto partido político com plenos direitos de participar na vida política do país. As primeiras eleições multipartidárias foram inicialmente agendadas para Outubro de 1993, no entanto devido a problemas técnicos foram adiadas para Outubro de 1994.

10 O Conselho Cristão Moçambicano (CCM) e a Igreja Católica tiveram um papel central no processo de paz moçambicano. Em 1984 o CCM criou uma comissão para a paz e a reconciliação que encetou os primeiros passos para o diálogo. De 1988 em diante o CCM e a Igreja Católica combinaram forças para fazer dialogar o governo e a Renamo (Armon, Hendrickson, and Vines 1998). 11 O mandato da ONUMOZ iniciou a 16 de Dezembro de 1992 e terminou a 9 de Dezembro de 1994 http://www. un.org/en/peacekeeping/missions/past/onumozM.htm.

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2.2 As eleições multipartidárias entre 1994 e 201412 As primeiras eleições gerais moçambicanas foram realizadas entre os dias 27 e 29 de Outubro de 1994 e desde então, quatro atos eleitorais adicionais ocorreram, em 1999, 2004, 2009 e 2014. Nestas duas últimas, em particular, para além de elegerem os deputados e o Presidente da República, os cidadãos puderam ainda escolher os membros das Assembleias Provinciais. Durante 10 anos os resultados eleitorais traduziram uma divisão territorial entre os apoiantes da Frelimo e da Renamo; estes sobretudo localizados nas províncias do centro e do norte do país e aqueles maioritariamente representados nas províncias do sul. No entanto, as eleições de 2004 desafiaram claramente a ideia de uma bipolarização política e territorial, com a Frelimo a conseguir a maioria dos votos nos distritos habituais da Renamo. Esta tendência tornar-se-ia, de resto, ainda mais evidente nas eleições seguintes. Com efeito, os resultados eleitorais têm demonstrado um crescente domínio da Frelimo e um enfraquecimento da Renamo em termos de votos e de mandatos quer a nível nacional quer sub-nacional. Para além da Renamo, apenas um terceiro partido político conseguiu eleger deputados: o Movimento Democrático de Moçambique (MDM) em 2009 e 2014. Do ponto de vista da sua génese e das suas âncoras de competição política, os partidos políticos que participaram nestes atos eleitorais diferem em alguns pontos. A raiz da legitimidade da Frelimo tem a ver com o facto de ter conduzido o país à independência e de ter sido partido do Governo desde então. A Renamo mobiliza um eleitorado descontente com o governo da Frelimo desde o período de multipartidarismo (Pereira and Shenga 2005, 53) e reclama legitimidade sobre o AGP e o processo de democratização13. O MDM também deve 12 Grande parte desta investigação foi realizada no âmbito da minha investigação de doutoramento intitulada “Explaining Party System Institutionalization in Africa: From a Broad Comparison to a Focus on Mozambique and Zambia”. 13 Excerto da página do partido “A RENAMO lutou pela democracia e venceu a guerra que durou cerca de 16 anos, obrigando a FRELIMO a negociar o acordo de paz que culminou com a eliminação do sistema marxista-leninista e as suas notáveis formas de repressão do povo, nomeadamente, as aldeias comunais, os campos de reeducação, os

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a sua força à dimensão territorial, uma vez que os seus apoiantes estão, principalmente, concentrados nas principais cidades das províncias de Maputo e de Sofala. No âmbito das coligações União Democrática (UD) e União Eleitoral (UE), outros pequenos partidos políticos conseguiram entrar no parlamento entre 1994 e 2004 no entanto estes são partidos organizacionalmente fracos, que gravitam em torno do carisma do líder (Pereira and Shenga 2005; Sanches 2014). A figura 1 e o quadro 2 mostram os resultados para as eleições parlamentares realizadas entre 1994 e 2014. As eleições de 1994 tiveram um significado especial por várias razões. Em primeiro lugar pela primeira vez na história do país os moçambicanos tiveram o direito de escolher os seus líderes políticos para os próximos cinco anos; em segundo lugar tratava-se do primeiro embate dos ex-beligerantes nas urnas; em terceiro lugar estas eram as primeiras eleições após a assinatura do acordo de paz e acarretavam por isso o risco de retorno à guerra (Almeida e Sanches 2010). Cahen (1998) qualificou estas eleições como as “Eleições do Silêncio”, uma vez que foram marcadas pelo “desejo de reconciliação” e pela vontade de “revitalizar” politicamente a sociedade (Cahen 1998, 3). Apesar do sentimento de incerteza que cercou estas eleições, os níveis de participação foram notáveis; um total de 12 partidos políticos, duas coligações e 2637 candidatos participaram nestas eleições e cerca de 88% do eleitorado votou. Os resultados deram uma maioria estreita, mas suficiente à Frelimo, que recolheu 44% dos votos e 129 dos 250 mandatos possíveis. A Renamo ficou em segundo lugar com 38% dos votos e 112 mandatos. Por fim, a coligação UD recebeu 18% dos votos e nove mandatos (ver figura 1 e quadro 2). fuzilamentos, as guias de marcha, as machambas do povo, a opressão da imprensa, etc. Graças à luta da RENAMO, hoje Moçambique é um país de democracia multipartidária. A vitória da RENAMO é certa e inquestionável, mas continuaremos a lutar para que a democracia conquistada seja traduzida e vivida na prática por todos os moçambicanos, do Rovuma ao Maputo.” Ver página oficial da Renamo: http://www.renamo.org.mz/index.php/about-us (acedido em 25-11-2014).

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Em termos de geografia eleitoral, a Frelimo ganhou a maioria dos mandatos em seis províncias; quatro no sul do país (Inhambane, Gaza e Maputo Cidade e Maputo Província) e dois no norte (Cabo Delgado e Niassa), enquanto a Renamo foi maioritária nas restantes quatro províncias - Manica, Sofala e Zambézia, no centro, e Nampula, no norte. Estes resultados refletiram as divisões territoriais que emergiram durante os anos da guerra, e que foram estrategicamente ativadas por Dhlakama nestas eleições (Chichava 2008). Por exemplo, o ressentimento sentido pelos Zambezianos Macua-Lomé (maior grupo étnico nesta província e no país) relativamente aos Changana, grupo mais representativo nas províncias do sul foi mobilizada por Dhlakama para conquistar apoio na província da Zambézia (Chichava 2008a). Em Nampula, o comportamento do eleitorado das aldeias costeiras de Angoche, Ilha de Moçambique e Nacala Porto espelhou as perceções de exclusão desta parte do país face ao processo de construção do Estado-nação (Rosário 2009). As eleições presidenciais também foram positivas para o candidato presidencial da Frelimo, Joaquim Chissano, que derrotou o candidato da Renamo, Afonso Dhlakama, por uma margem confortável (53% contra 34% dos votos). A Renamo não aceitou os resultados e reivindicou medidas de partilha de poder e a formação de “um governo de unidade nacional”, porém o presidente Chissano não acedeu a estas revindicações (Manning 2008, 58). As eleições gerais de 1999, realizadas entre os dias 3 e 5 de Dezembro, tiveram um desfecho semelhante, embora com algumas diferenças: a Frelimo manteve a sua posição maioritária no parlamento (49% dos votos e 133 mandatos) e Joaquim Chissano (52 %) foi reeleito para um segundo mandato. A coligação Renamo-UE ficou a uma magra distância da Frelimo e aumentou a sua representação para 117 mandatos; e o seu candidato presidencial Afonso Dhlakama ficou quatro pontos percentuais abaixo (48%) do candidato vencedor. Embora os resultados tivessem sido substantivamente os mesmos, estas

51

eleições tiveram nuances diferentes. Em primeiro lugar, houve uma queda considerável nos níveis de participação eleitoral (descida de 88% para 70%). Em segundo lugar, a Renamo mudou sua estratégia de competição, reunindo uma dezena de pequenos partidos na coligação UE. Em terceiro lugar, esta aliança conseguiu conquistar a maioria dos votos em seis das 11 províncias do país, incluindo todas as províncias do centro e duas províncias do norte – Zambézia e Nampula. O fato de a Renamo-UE ter conquistado a maioria das províncias, mas no final ter perdido as eleições desencadeou uma série de petições sobre a natureza do sistema eleitoral, agravada por acusações de fraude e de má administração do processo eleitoral por parte da Comissão Nacional de Eleições (CNE). A Renamo contestou os resultados no Tribunal Supremo e ameaçou boicotar o parlamento recém-eleito. No entanto, foi pressionada a integrar o parlamento pelos seus parceiros de coligação na UE. A Renamo continuou sem aceitar os resultados e insistiu para que fossem iniciadas negociações com vista a garantir o direito do partido nomear os governadores nas províncias em que tinha obtido a maioria dos votos. Estas negociações foram tidas com Raúl Domingos, na altura líder parlamentar da Renamo, e tiveram um desfecho negativo para a Renamo que não conseguiu levar adiante as suas condições (Manning 2008, 58; Brito 2008, 6-7; Chichava 2008, 23-25; Sanches 2014, 139-180). As eleições gerais de 2004 tiveram quatro diferenças relativamente às anteriores. Em primeiro lugar, enquanto os resultados das eleições de 1994 e de 1999 revelaram um relativo equilíbrio entre a Frelimo e a Renamo, as eleições de 2004 expuseram uma diferença significativa entre elas: a Frelimo ganhou a maioria qualificada de votos e de mandatos (62% dos votos e 64 % dos mandatos da Frelimo contra 29% dos votos e 36% dos mandatos da Renamo) e o seu candidato presidencial, Armando Guebuza, impôs uma derrota contundente a Afonso Dhlakama, que perdeu sua terceira corrida presidencial com a maior diferença votos de sempre (32% contra 64%). Em segundo lugar, os resultados

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destas eleições foram marcados por uma reviravolta importante na liderança da Frelimo. A quase derrota eleitoral em 1999 e a saída inevitável de Joaquim Chissano da liderança do partido levou a que o partido procurasse um candidato que conseguisse revitalizar as bases do partido novamente. Na linha de sucessão estava Armando Guebuza, Secretário-Geral desde 2002. A sua eleição como Presidente da República, em 2004, e como líder do partido em 2005, foi uma novidade, dado que (i) foi a primeira passagem em vida da liderança do partido e (ii) foi a primeira vez que um candidato oriundo de uma província do norte, mais concretamente de Nampula foi eleito líder; os antecessores eram todos de Gaza. Apesar de se poder argumentar que toda a socialização política de Armando Guebuza tenha sido feita no sul, a verdade é que do ponto de vista simbólico esta escolha contem também uma mensagem importante uma vez que a cúpula do partido esteve sempre mais representada pela elite do sul (Chichava 2008b). Em terceiro lugar, em termos de geografia eleitoral o domínio da Frelimo era agora mais difuso. Conseguiu a maioria em nove das 11 províncias do país: como em 1999 obteve a maioria dos votos e dos mandatos nas províncias do centro, mas foi capaz de superar a Renamo nos seus círculos eleitorais tradicionais, nomeadamente em Nampula e Niassa no norte; e em Manica e Tete no centro. Em quarto lugar, estas eleições foram marcadas por uma queda dramática nas taxas de participação, que caíram de 70% para 36%. De acordo com Brito (2010), as causas do aumento da abstenção (que permanece alta em 2009) não se prendem exclusivamente com problemas técnicos no recenseamento eleitoral, sendo antes um sintoma de um crescente distanciamento do eleitorado em relação ao processo político (Brito 2010, 4-5). Nas eleições gerais de Outubro de 2009, a Frelimo repetiu o seu triunfo por margens ainda mais expressivas: conquistou a maioria qualificada de votos (75%) e de mandatos (191) e reelegeu Armando Guebuza (75% dos votos), para um segundo mandato presidencial. A Renamo (com 20% dos votos e 51 manda-

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tos) e o seu eterno candidato presidencial Afonso Dhlakama (com 16% dos votos) foram novamente derrotados. Estas eleições foram ainda marcadas por um ligeiro aumento nos níveis de afluência (de 36% para 44%) e pelo surgimento de um novo partido parlamentar – o MDM – que elegeu oito representantes: cinco em Sofala e três em Maputo. O MDM beneficiou de uma campanha eficiente nas áreas urbanas que visou principalmente os mais jovens, e da supressão da cláusula barreira de 5% em 2006. No entanto, o MDM não conseguiu mandatos suficientes para formar uma bancada parlamentar14 (Hanlon and Nuvunga 2009). Este impedimento só foi superado com a intervenção da comunidade internacional, em particular os doadores do G-19, que são responsáveis por 50% do orçamento do Estado, que pressionaram a Frelimo para aceitar a revisão do regimento da Assembleia Nacional para permitir que o MDM formasse uma bancada parlamentar com apenas oito deputados (Chichava 2010a, 18). Os resultados do MDM foram importantes por várias razões (Sanches 2014). Em primeiro lugar, um novo partido político interferiu no cenário bipolar dominado pela Frelimo e pela Renamo, podendo potencialmente ameaçar a posição solitária da Renamo como principal partido da oposição. Em segundo lugar, o MDM tinha apenas seis meses de existência quando concorreu às eleições parlamentares. Com efeito, o partido tinha sido criado em março de 2009, na cidade da Beira, capital da Sofala, após a decisão de Afonso Dhlakama de apoiar a candidatura de Manuel Pereira, um dos líderes históricos da Renamo, nas eleições municipais desse município, em vez de Daviz Simango presidente em exercício desde 2003. Daviz Simango decidiu então concorrer às eleições como candidato independente, e acabou sendo expulso do partido em conjunto com uma ala intelectual que estava ativa principalmente nas áreas urbanas do país (Chichava 2010a; Chichava 2010b; Nuvunga and Adalima 2011). Finalmente, estes resultados foram significativos porque a participação do MDM foi seria14 Em 1994 os grupos parlamentares eram formados com nove membros e desde 2001 com 11.

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mente condicionada nestas eleições. Com o fundamento de que as candidaturas apresentadas estavam cheias de irregularidades a CNE permitiu que o MDM concorresse apenas em Maputo, Inhambane, Sofala e Niassa (Chichava 2010, 8). As eleições de 2014 aconteceram num contexto particularmente difícil que revelou a fragilidade quer do processo de paz quer de democratização moçambicanos. Em Outubro de 2012, e com as eleições autárquicas de novembro de 2013 à vista, Dhlakama desapareceu da esfera pública e refugiou-se na mata da Gorongosa alegando que o governo da Frelimo não tinha cumprido as cláusulas do AGP. Declarou ainda que o seu partido não iria participar nas eleições autárquicas e ameaçou inviabilizar a votação. Um mês antes das eleições já se registavam confrontos entre os soldados das Forças Armadas de Defesa de Moçambique (FADM) e os homens da Renamo na província central de Sofala. A mais significativa levaria a uma ofensiva por parte das FADM no dia 21 de Outubro à base da Renamo, em Santunjira (Sofala), onde Afonso Dhlakama tinha fixado residência há cerca de um ano. Esta ofensiva marcou o início de um conflito armado localizado entre o governo e a Renamo, 20 anos após a assinatura do AGP15. Com o aproximar das eleições de 2014 e após várias rondas de negociações Dhlakama recenseou-se e foi anunciado como candidato presidencial do partido. Na 74.ª ronda de negociações foi assinado, a 24 de Agosto de 2014, um acordo de cessar-fogo pelos chefes das missões de negociação do governo e da Renamo16. Só a 4 de Setembro de 2014 Dhlakama sairia da mata da Gorongosa para no dia seguinte encontrar Guebuza na capital e assinar o acordo de cessar-fogo que mais tarde seria ratificado pelo parlamento. O documento final incluía os seguintes pontos: acordo de cessar-fogo; memorando de 15 Ver mapa deste conflito aqui: https://www.google.com/maps/d/viewer?dg=feature&ll=-18.437925,34.716797&t=h&source=embed&ie=UTF8&msa=0&spn=16.623657,16.743164&z=5&mid= zSxBvo8-5enk.kbWXxb601BCU (acedido em 24-11-2014). 16 Ver: Joseph Hanlon, News Report and Clippings n.º 270: http://www.open.ac.uk/technology/mozambique/sites/www.open. ac.uk.technology.mozambique/files/files/Mozambique_270_25Aug2014_ceasefire_signed(1).pdf (acedido em 24-11-2014) .

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entendimento e mecanismos permitindo a supervisão de observadores externos do processo cessação das hostilidades17. As eleições gerais de 15 de Outubro de 2014 desenrolaram-se assim num ambiente de alguma incerteza e instabilidade política relativamente a todo o processo eleitoral, mas foram pacíficas. Os resultados, mesmo que previsíveis, apontam para mudanças importantes a longo prazo. Os níveis de participação eleitoral subiram de 44% para 49%; a Frelimo venceu com maioria de votos e de mandatos e viu o seu líder Filipe Nyusi ser eleito presidente; porém o desempenho global do partido quando comparado com anos anteriores piorou. Com 56% dos votos a Frelimo arrecadou 144 mandatos – menos 47 do que em 2009, enquanto a Renamo melhorou em todo o país e conseguiu mais 38 lugares do que em 2014: recuperou Nampula, no norte, e Zambézia, no centro, e no sul teve os seus melhores resultados de sempre no Maputo Cidade e Maputo Província. O MDM praticamente duplicou o número de deputados (subindo de 8 para 17) e conseguiu alargar a sua base eleitoral para outras províncias, no entanto perdeu representação nos seus círculos principais (Sofala e Maputo Cidade).

17 Ver Joseph Hanlon, News Report and Clippings n.º 272: http://www.open.ac.uk/technology/mozambique/sites/www. open.ac.uk.technology.mozambique/files/files/Mozambique_272-7Sept2014-Guebuza-Dhlakama_Meet.pdf (acedido em 24-11-2014).

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Figura 1 – Eleições Parlamentares: Percentagens de votos dos principais partidos (1999-2014)

57

Quadro 2 – Eleições parlamentares: distribuição dos m 1994 Frelimo Renamo

1999 UD

Frelimo

Renamo - UE

Frelimo

Norte Cabo Delgado

15

6

1

16 (-1)

6 (=)

18 (-2)

Nampula

20

32

2

24 (+4)

26 (-6)

27 (-3)

Niassa

7

4

6 (-1)

7 (-3)

9 (-3)

Manica

4

9

5 (-1)

10 (+1)

7 (-2)

Sofala

3

18

4 (+1)

17 (-1)

6 (+2)

Centro

Tete

5

9

1

8 (+3)

10 (-1)

14 (+6)

Zambézia

18

29

2

15 (+3)

34 (-5)

19 (+4)

1

16 (+1)

Sul Gaza

15

2

17 (+1)

Inhambane

13

3

13 (=)

4 (-1)

15 (+2)

Maputo Cidade

17

1

14 (+3)

2 (-1)

14 (=)

Maputo Província

12

1

12 (=)

1 (=)

12 (=)

África

1 (+1)

Resto do Mundo Total Participação %

1 (+1) 129

112 87,9

9

133 (+)

117 (+5)

160 (+27

67,9

Fonte Comissão Nacional Eleições (CNE) http://www.stae.org. e Boletim sobre Fonte: Comissão Nacional dede Eleições (CNE) –– http://www.stae.org.mz/ mz/ e Boletim sobre o Processo Político em Moçambique - http://www. Notas: cip.org.mz/bulletin/pt/ 1. Notas UD: coligação entre o entre Partido Liberal Liberal Democrático de Moçambique (Palmo); Partido 1. UD: coligação o Partido Democrático de Moçambique (Palmo); Partido Nacional Democrático (Panade) e Partido Nacionalista de Moçambique (Panamo).

58

mandatos por província e variação anual (1994-2014)

o

2004

2009

Renamo - UE

Frelimo

Renamo

4 (-2)

19 (+1)

23 (-3)

2014 MDM

Frelimo

Renamo

3 (-1)

19 (=)

3 (=)

32 (+5)

13 (-10)

22 (-10)

22 (+9)

3 (+3)

3 (-4)

12 (+3)

2 (-1)

7 (-6)

6 (+3)

1 (+1)

7 (-3)

12 (+5)

4 (-3)

8 (-4)

8 (+4)

16 (-1)

10 (+4)

5 (-11)

8 (-2)

10 (+5)

5 (+5)

MDM

3 (-2)

)

4 (-6)

18 (8)

2 (-2)

11 (-7)

10 (+8)

1 (+1)

)

29 (-5)

26 (+7)

19 (-10)

18 (-8)

22 (+3)

5 (+5)

)

(=)

16 (-1)

)

1 (-3)

15 (=)

1 (=)

2 (=)

14 (=)

1 (-1)

1 (=)

15 (+3)

1 (=)

7)

14 (-2) 3 (+3)

1 (=)

36,3

2 (+1) 3 (+2)

2 (-1)

12 (-3)

3 (+2)

2 (+2)

1 (=)

1 (=) 90 (-27)

12 (-3) 11 (-3)

1 (=)

191 (+31) 51 (-39) 44,4

8 (+8)

144 (-47) 89 (+38)

17 (+9)

48,5

e o Processo Político em Moçambique - http://www.cip.org.mz/bulletin/pt/ 2. Renamo-UE: coligação entre Aliança Independente de Moçambique (Alimo); Frente de Acão Patriótica (FAP); Frente Unida de Moçambique - Partido de Convergência Democrática (Fumo-PCD); Movimento Nacional Moçambicano - Partido Social Democrata (Monamo-PMSD); o Nacional Democrático e Partido Nacionalista Moçambique (Panamo). Partido(Panade) de Convenção Nacional (PCN);de Partido do Progresso do Povo de Moçambique (PPPM); Partido Renovador Democrático (PRD); Partido da Unidade Nacional (PUN); Frente Democrática Unida (UDF) e União Nacional de Moçambicana (Unamo).

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3. Análise explicativa do sistema de partido moçambicano Através da análise das eleições gerais entre 1994 e 2014 a secção anterior demonstrou que a Frelimo é um partido dominante em toda a linha e que num horizonte próximo será difícil imaginar que seja derrotado pelos principais partidos da oposição. Este desenvolvimento tem sido acompanhado por duas tendências principais. Por um lado, uma crescente institucionalização da Frelimo enquanto principal força política; facilitada pelo controlo do aparelho estatal, pelo desenvolvimento de uma estratégia eficiente de competição eleitoral e pela fragmentação dos partidos da oposição. Por outro lado, uma descida acentuada nos níveis de participação eleitoral que dão conta de um processo de institucionalização imperfeito. Esta secção argumenta que o modo de funcionamento do sistema partidário moçambicano resulta de fatores históricos e sociais (clivagens territoriais), conjunturas críticas (natureza da transição), das redes neopatrimoniais que definem as relações entre o partido o Estado e a sociedade e da natureza do sistema eleitoral.

3.1 Clivagens territoriais: a dinâmica centro-periferia De acordo com o modelo das clivagens sociais de Lipset and Rokkan (1967), os sistemas de partido ocidentais surgiram a partir de dois eixos de conflito principais: uma territorial e outra funcional. O eixo territorial resultou da “revolução nacional”, isto é do processo de construção da nação, e “obrigou” as populações a posicionarem-se relativamente a valores e identidades culturais opostos. Dela resultam duas clivagens: a clivagem centro vs periferia, que opõe uma elite nacional dominante a uma elite periférica (territorial, linguística e culturalmente) e a clivagem Estado vs igreja. O eixo funcional, por sua vez, é consequência da “revolução industrial” e levou os cidadãos a se posicionarem

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em função dos seus interesses económicos. Dela resultam as clivagens terra vs indústria e proprietário vs trabalhador. Fora do contexto ocidental, alguns estudos colocaram objeções à plena aplicação deste modelo, devido à falta de equivalência entre essas clivagens e as que estão no seio de muitas sociedades do chamado “Terceiro Mundo”. Particularmente no contexto africano, tem sido argumentado que as clivagens territoriais são as que têm mais peso na estruturação e no desenvolvimento dos sistemas partidários (Randall and Svåsand 2002; Manning 2005; Erdmann 2007). Se recuarmos à primeira fase de formação dos partidos em África (logo a seguir à II Guerra Mundial), verificamos que as primeiras formações partidárias em África surgiram com o objetivo de construir um Estado e uma nação moderna e independente (Hodgkin 1961). Portanto, uma vez conquistada a independência, as elites africanas iniciaram uma “revolução nacional” que apresentava conteúdos comuns; por um lado uma ideia de nação incompatível com divisões religiosas, étnicas, linguísticas e regionais e, por outro lado a repressão severa de grupos políticos opostos (Bratton and van de Walle 1997; Diamond and Plattner 1999; Young 2012; Joseph 1999; Chabal 1998). Segundo Cahen (2006), o Estado pós-colonial em África enfrentou a tarefa quase impossível de forjar um discurso moderno e legitimador de um projeto de unificação do território. No entanto, este projeto não coincidiu com a realidade e as identidades das populações, que eram diversas (Cahen 2006, 116). O “centralismo democrático” adotado pelos partidos nas ex-colónias portuguesas pretendeu desde o início ser o produtor da homogeneidade interna dos movimentos nacionais, e legitimar a fórmula de partido único (Cahen 2006, 116). Em Moçambique este modelo alimentou a rivalidade dentro dos movimentos anticoloniais e afetou a população, na medida em que o projeto de modernização da Frelimo reprimiu todas as formas de divisão territorial (étnica, religiosa e linguística) e política (constituição monopartidária), e isso sedimentou uma clivagem centro vs perife-

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ria baseada numa clivagem entre a elite dominante (urbana e do sul do país) e a elite periférica (rural do centro e norte do país). Esta clivagem tem raízes profundas e remonta ao período colonial, quando a capital do país foi mudada da Ilha de Moçambique, no norte, para Lourenço Marques, no extremo sul; isso levou à marginalização política e económica da elite dessa área, como oposição a uma microelite no sul que mais tarde se iria opor e lutar vigorosamente contra a administração colonial portuguesa. Após a independência, esta elite chegou ao poder e impôs um modelo autoritário de construção do Estado que determinou a exclusão dos habitantes rurais, líderes tradicionais, grupos étnicos das províncias do centro e do norte do país (Cahen 1994; Cahen 2006; Chichava 2008b; Chichava 2008a; Rosário 2009; Newitt 2002; Carbone 2005). Vale a pena recordar que durante os anos da guerra e à medida que foi conquistado território nacional, a Renamo procurou representar esses grupos excluídos e ganhar o seu apoio. Esta mobilização teve efeitos duradouros uma vez que as províncias do norte e do centro continuam a ser aquelas em que a Renamo consegue os seus melhores resultados eleitorais. Não obstante, estas clivagens não são fixas, como veremos mais adiante, particularmente desde 2004, a Frelimo tem sido capaz de desativá-las ou de enfraquecê-las, seja através do investimento em infraestruturas importantes a nível local, seja através de incursões no eleitorado da Renamo (Sanches 2014).

3.2 Conjuntura crítica: a transição da guerra e do monopartidarismo para a paz e o multipartidarismo Tem sido argumentado que os modelos sobre a transição democrática perderam poder explicativo, nomeadamente para prever o sucesso e a consolidação democráticas (Carothers 2002), no entanto existem boas razões para olhar para

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este período no âmbito deste capítulo. Segundo Bratton e Van de Walle (1994) e Van de Walle (2002), particularmente para o contexto africano, a sequência dos eventos e as escolhas feitas durante o período de transição são extremamente importantes para compreender o funcionamento dos sistemas políticos (semi) democráticos. Além disso, dado que a transição de regime abre uma janela de oportunidades para escolhas institucionais abrangentes, importa olhar com atenção para as negociações realizadas nesta fase e mais especificamente para os atores que iniciaram e controlaram as diferentes fases deste processo (Linz, Stepan, and Gunther 1995). Também relevante é o resultado das eleições fundadoras do novo regime uma vez que elas têm efeitos a longo prazo. Um estudo de Van de Walle (2003, 301) demonstrou que os partidos que vencem as primeiras eleições têm maior probabilidade de êxito nas eleições seguintes. Em Moçambique a transição ocorreu a dois níveis, implicando não apenas a mudança de um regime autoritário para um multipartidário, mas também a resolução de um conflito armado e a pacificação do país a curto e a longo prazo. Em vários outros países da África Subsariana podemos encontrar uma similar justaposição entre as agendas da paz e da democracia18; no entanto, o que diferencia Moçambique destes países é o fato de que as primeiras eleições pós-guerra desempenharam um papel vital na rutura com o passado (Reilly 2008, 158). Isso não significa que os ex-beligerantes decidiram “perdoar e esquecer” (Manning 2002, 25), mas simplesmente que não houve retorno à guerra. Em 2012, registaram-se confrontos na zona centro do país entre as forças armadas do governo e os homens da Renamo, que levaram a uma nova assinatura de um acordo de cessar-fogo em 2014, mas de uma forma geral os resultados eleitorais, ainda que bastante contestados têm sido respeitados pela oposição. 18 Alguns exemplos são: Angola, Acordos de Bicesse: 1992; Memorando de Entendimento de Luena: 2002), Burundi (Acordo de Arusha: 2000-2003), Chade (vários processos de reconciliação e de pacificação entre 1989-2006), República do Congo (Processo de Diálogo Nacional: 1999-2001), República Democrática do Congo (Processo de Diálogo Intercongolês: 1999-2003) e Guiné-Bissau (Acordo de Abuja: 1998) (Jarstad 2008, 33-34).

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Com base nos quatro dilemas identificados por Jarstad (2008) para estudar as transições em contexto de pós-conflito19, é possível resumir de forma clara o processo de transição moçambicano. As negociações tiveram um carácter de exclusão e de verticalidade; para além da Igreja, cujo papel foi essencialmente facilitador, nenhuma outra organização da sociedade civil ou grupo político a nível nacional participou nas negociações do acordo de paz. A Frelimo e a Renamo monopolizaram todo o processo e detiveram-se a interesses muito estratégicos e imediatos dos quais não estavam dispostos a abdicar (Brito 2009, 24), a menos que incentivos positivos (por exemplo, financiamento) estivessem previstos (Manning 2002). Neste sentido, parece também evidente que os atores locais controlaram a agenda das negociações (sistémico), embora os atores internacionais tivessem sido chamados a arbitrar vários impasses no que diz respeito ao processo de desmobilização, desarmamento e desmilitarização. Estes impasses ditaram, em última instância, o adiamento das eleições por mais um ano (temporal). Vale a pena salientar que estas negociações foram realizadas num contexto particular da intervenção internacional da ONU e no âmbito do qual Moçambique estabeleceu um precedente (Manning and Malbrough 2009, 83). Diferentemente de outras operações, na ONUMOZ os incentivos financeiros para a desmobilização e reintegração das tropas e os fundos destinados para a formação e a capacitação dos partidos foi superior (Nuvunga 2007; Manning and Malbrough 2009). A bipolarização das negociações do acordo de paz foi relevante de duas maneiras. Em primeiro lugar, a Frelimo e a Renamo tiveram margem de manobra para escolher as condições que lhes eram mais favoráveis. Por exemplo, a proposta de definição de uma cláusula barreira entre 5% e 20% e de um fundo para financiar as atividades dos partidos políticos beneficiou claramente estes 19 Horizontal (inclusão vs. exclusão), vertical (legitimidade vs. eficácia), sistémico (agenda local vs. internacional) e temporal (esforços a longo prazo vs. curto prazo).

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dois partidos, particularmente a Renamo. A comunidade internacional destinou uma soma de 17.000 mil dólares (conhecido como trust fund) para a Renamo (Kumar and Zeeuw 2008, 274), enquanto 17 outros partidos receberam um orçamento muito menor, de 150 mil dólares cada, para se registarem e financiarem as suas atividades (Manning and Malbrough 2009, 90). Em segundo lugar, contribuiu para que o eleitorado continuasse polarizado em torno da clivagem de guerra (Manning 2008, 8), o que em parte explica os padrões geográficos de voto nas eleições de 1994 e de 1999: a Renamo mais forte nas cinco províncias centrais do país e nas áreas rurais, e a Frelimo imbatível no sul20. Como vimos anteriormente estes resultados escondem ainda uma clivagem de regime, na medida em que os padrões de votação nas regiões do norte e do centro representam também um descontentamento das populações aí residentes face ao projeto de modernização autoritária implementado pela Frelimo nos anos do monopartidarismo. Além de influenciar o padrão de competição entre os partidos, o passado de guerra também tem efeitos no envolvimento dos cidadãos na vida política do país. De acordo com Pereira (2008), nas democracias que emergem após um longo período de conflito armado, as populações estão sobretudo preocupadas com questões de estabilidade política e de segurança (Pereira 2008, 432). Assim, em Moçambique mais do que as divisões políticas, económicas e sociais, foi o medo de um retorno à guerra e o desejo de reconciliação que criaram o pano de fundo das primeiras eleições realizadas no país (Cahen 1998; Pereira 2008). No entanto, esta narrativa não conta a história toda, principalmente se tivermos em conta os resultados das eleições entre 2004 e 2014, que demonstram uma Frelimo em ascensão e uma Renamo em declínio. Neste sentido, para entender melhor estes resultados, importa ter em conta a forma como estes partidos têm 20 Todos os líderes da Frelimo, Eduardo Mondlane, Samora Machel e Joaquim Chissano nasceram em Gaza. A exceção é Armando Guebuza, eleito em 2005 que é do norte da província de Nampula.

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evoluído ao longo dos anos (Manning 2008; Pereira 2008). O que vários estudos sugerem é que enquanto a Frelimo foi capaz de se modernizar e se tornou mais pragmática, fazendo incursões bem-sucedidas no eleitorado da Renamo (Pereira 2008, 434); a Renamo manteve-se “em grande parte subdesenvolvida e conectada com a clivagem de guerra”, bem como altamente “personalizada e centralizada em torno da figura de Afonso Dhlakama” (Manning 2008 151-152). Os seguintes excertos de entrevistas realizadas durante trabalho de campo realizado em Moçambique em 201221 ilustram estes desenvolvimentos: […] a Frelimo, de certa maneira com assessoria de bons antropólogos, trabalhou os pontos fortes da Renamo e soube trabalhar os seus pontos fracos. Por exemplo, a Frelimo [...] extinguiu as guias de marcha, acabou com as aldeias comunais, reconheceu as confissões religiosas e reconheceu e valorizou as autoridades tradicionais. Portanto as quatro bases [eleitorais] [...] da Renamo foram absorvidas pela Frelimo [...]. A Renamo não teve a mesma capacidade de o fazer dentro daquilo que era o eleitorado tradicional da Frelimo. (Ismael Mussa, ex-Renamo, atualmente no MDM) No campo, as pessoas vivem dispersas têm menos influência da comunicação social, e o grande objetivo das pessoas é a sua sobrevivência. Por isso hoje é quase, não digo impossível, mas é muito improvável que a Frelimo não ganhe as eleições nas zonas rurais. Improvável. Porque o efeito de uma escola, numa zona rural é tremendo. Tu constróis uma escola na cidade não tem efeito nenhum; não muda nada… a construção de uma escola no campo muda logo; a construção de um posto de saúde reduz visivelmente o número de partos fatais [...]. Portanto aquele posto de saúde ali, com uma enfermeira parteira muda a vida daquela comunidade. (Manuel Tomé, Frelimo, Deputado)

Para além de promover o desenvolvimento local em círculos eleitorais da Renamo, a Frelimo reconheceu a relevância política e social dos líderes tradicio21 O trabalho de campo foi realizado na cidade de Maputo nos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2012, no âmbito da investigação de doutoramento (Sanches 2014).

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nais (Florêncio 2008; Lourenço 2009)22. Este foi um passo importante já que os líderes tradicionais foram um dos grupos marginalizados pela Frelimo durante a vigência do monopartidarismo. Diferentemente, a Renamo tem sido incapaz de se desligar da clivagem de guerra e ainda mantém a “velha forma” de fazer política. Recorrentemente, a Renamo ameaça boicotar as eleições, desvincular-se das instituições políticas e mais recentemente, de levar a cabo ações armadas. Isto é possibilitado e ampliado pelo fato de que a estrutura do partido permaneceu militarizada e centralizada na pessoa de Afonso Dhlakama, líder do partido desde 1979. Alguns excertos de entrevista ilustram este ponto: A Renamo tem vindo a perder desde 1994 até agora porque não percebe que alguma coisa não está bem dentro do próprio partido. Uma delas é a falta de democracia interna do partido. Portanto não conseguiu libertar-se um pouco da mentalidade militar que a caracterizou na sua origem. Era um movimento militar que se opunha ao governo de Moçambique, mas quando passou a partido civil continuou exatamente com a mesma ideologia. Com a mesma forma de agir. (Leonardo Simão, Frelimo, ex-Ministro) […] nós temos um problema sério que é um problema dos militares. Depois do acordo geral de paz que fez com que a guerra terminasse ficou definido que a Renamo teria 15 mil homens e a Frelimo 15 mil homens [nas Forças Armadas de Moçambique]. Isso não foi possível [...] hoje o partido no poder foi tirando todos aqueles que vieram da parte da Renamo; é um conflito que está a surgir. Por outro lado, há um problema da polícia [...]. Ficou definido, que a Polícia da República de Moçambique seria composta também por membros que viessem do partido Renamo, entre os quais os desmobilizados 22 Até 1999 este reconhecimento teve avanços e recuos. Por exemplo a Lei 3/94 do Quadro Institucional definiu que o governo local deveria ter em conta a opinião dos líderes tradicionais na coordenação das atividades locais da comunidade. No entanto esta prerrogativa foi relaxada com a Lei 2/97. Mais tarde a Lei da Terra 19/97 deu aos líderes tradicionais a responsabilidade de gerir e de distribuir o fundo da terra da comunidade. A mudança mais significativa aconteceu após as eleições de 1999 quando o partido finalmente reconhece o papel dos líderes tradicionais com o Decreto-Lei 15 de 20 de Junho de 2000 que definiu o enquadramento do relacionamento entre o governo local e os líderes tradicionais.

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e isso não aconteceu. Portanto é uma lacuna no cumprimento do AGP. [...] e hoje nós temos o presidente na mata. (Maria Angelina Enoque, Renamo, Líder Parlamentar) […] por exemplo temos aí um partido da oposição que quando ‘amua’ vai para a Gorongosa, para começar a Guerra. Não é uma oposição. O MDM tem uma outra lógica diferente, mas ainda não tem expressão. (José Luís Cabaço, Frelimo, ex-Ministro)

3.3 Neopatrimonialismo: ou o Estado Frelimo O neopatrimonialismo é a característica informal mais relevante na política africana e abrange práticas como o tribalismo, o clientelismo e a patronagem (Bayart 1989; Bratton and van de Walle 1997; Lindberg 2001; Chabal 2002; van de Walle 2001; van de Walle 2002; van de Walle 2003). As definições mainstream identificam os seguintes traços no neopatrimonialismo: (i) o direito de governar cabe ao big man, que não só domina o aparelho estatal e legislativo como se coloca acima dele; havendo, portanto, um padrão de presidencialismo das instituições; (ii) as relações de lealdade e de dependência definem e estruturam o sistema político e administrativo-formal; (iii) o chefe do executivo e o seu círculo mais próximo minam a efetividade da nomeação administrativa do Estado moderno, usando-a para o patrimonialismo sistemático e práticas de clientelismo; e (iv) existe uma incorporação da lógica patrimonial nas instituições burocráticas, o que providencia códigos operacionais para a política que são valorizados e reproduzidos ao longo do tempo (Bratton e Van de Valle 1994, 458; Lindberg 2001, 185-186). De acordo com Van de Walle (2003), o presidencialismo e o clientelismo moldam decisivamente o desenvolvimento dos sistemas partidários em África. Na maioria dos países, afirmam, a presidência é a instituição principal dos processos de tomada de decisão e devido a essa excessiva centralização do poder

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político o acesso aos recursos do Estado está altamente dependente de uma única instituição política. Este desenho institucional afeta o sistema partidário por desvalorizar tanto o papel das eleições legislativas como dos partidos políticos e por levar a uma personalização do sistema político. Em Moçambique, a Frelimo é o partido do Estado desde 1975 e isto tem-lhe permitido, através da figura do presidente, controlar os principais canais de acesso à esfera económica e política, sem os devidos freios e contrapesos. Os testemunhos seguintes ilustram bem a importância e as consequências deste fenómeno: O partido no poder é o Estado e o Estado é o maior empregador. Mesmo que eu não queira, enquanto funcionário do Estado, se me trazem a ficha: é preciso preencher. Ter um cartão do partido no poder. Assim, eu vou preencher mesmo que não queira para poder garantir a minha sobrevivência. Se não o fizer eu tenho o meu emprego meio tremido.23 (Maria Angelina Enoque, Renamo, Líder Parlamentar) […] o nosso Estado moçambicano é uma entidade patronal muito forte e o setor privado é muito fraco. […] o nosso funcionário público que é servente do Estado fica preocupado porque para ele o patrão é aquele que está com ele todos os dias, que lhe garante o salário, que lhe garante o emprego, uma série de coisas dentro do sistema. E vendo um outro patrão que está fora [...] ele fica com receio e pensa: se vier esse aqui é capaz de me retirar, porque eu estou servindo a este há muitos anos. (Lutero Simango, MDM, Líder Parlamentar)

O controlo das nomeações e o preenchimento das posições do Estado são mecanismos que permitem ao partido no poder criar e conservar clientela. E, mais uma vez, esta é uma forma autoritária de impor as regras da elite dominante às elites periféricas, na medida em que o acesso aos benefícios do Estado 23 Neste excerto a entrevistada não está a falar do seu caso pessoal mas a dar um exemplo de uma situação muito comum em Moçambique.

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moderno é determinado pela lealdade ao partido simbolicamente representado pelo cartão do partido. Além disso, esta ação mina as bases de apoio dos partidos menores. Vários líderes entrevistados durante o trabalho de campo referiram ter perdido os seus quadros mais importantes para o partido no poder, porque estes são obrigados a ter o cartão do partido caso pretendam ter um emprego no setor público. Aqui está uma citação ilustrativa: […] a maior parte dos nossos militantes e quadros eram funcionários do Estado; e até 1994 isto foi tolerado. A partir de 1994 começou a perseguição aos membros do PCN e muitos dos nossos quadros tiveram, portanto, de deixar o partido para poderem manter os seus empregos. (Benedito Marime, fundador do PCN, presentemente no MDM)

Outra prática neopatrimonial tem a ver com a forma como o partido faz a alocação dos recursos através das suas políticas públicas. Um exemplo é o Orçamento de Investimento de Iniciativa24 criado pelo governo em 2006. Conhecido como o “7 milhões” este programa visa reduzir a pobreza através do financiamento de projetos individuais (Sande 2011). No entanto, este programa tem alimentado redes clientelares entre Estado, partido e sociedade. Segundo Forquilha (2010) o “7 milhões” tornou-se mais um mecanismo usado pelo partido do poder para aumentar e manter a sua clientela; já que na prática, os fundos foram distribuídos para os membros do partido, ou indivíduos e grupos de cidadãos que simpatizam com o partido (Forquilha 2010).

24 Conhecido por Fundo de Desenvolvimento Distrital (FDD) desde 2009.

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3.4 Os efeitos não esperados do sistema eleitoral Segundo Duverger (1959) as instituições eleitorais têm efeitos mecânicos e psicológicos no sistema partidário. Os efeitos mecânicos estão associados com o conjunto de regras que ditam o processo de conversão dos votos em mandatos; dispositivos como as cláusulas barreiras, a fórmula eleitoral, a dimensão do círculo eleitoral e a estrutura do voto (listas abertas ou fechadas) podem gerar níveis mais ou menos elevados de fragmentação e de (des)proporcionalidade. Os efeitos psicológicos dizem respeito à forma como as regras eleitorais definem os comportamentos dos partidos políticos e dos eleitores (p.e. voto estratégico e competição por temas específicos). De um outro prisma Sartori (2003) defendeu que os efeitos mecânicos e psicológicos dos sistemas eleitorais são apenas indiretos, na medida em que são mediados pela estrutura do sistema partidário. Assim, sistemas partidários mais ou menos estruturados são mais ou menos capazes de utilizar os dispositivos do sistema eleitoral para conseguir resultados mais favoráveis. Também de um ângulo diferente, Benoit (2004, 366-367) sustentou que, porque “as leis eleitorais são instituições distributivas, no sentido em que facilitam a participação de um grupo em detrimento de outro grupo”, as suas origens têm mais relevância do que as suas consequências. Neste sentido argumentou ser importante olhar para os interesses que levam os atores políticos a escolher um sistema eleitoral em lugar de outro. Similarmente, Colomer (2005) sustentou que os atores políticos tenderão a escolher ou a manter os sistemas eleitorais que lhes são mais vantajosos. Enquanto os partidos mais pequenos preferem sistemas proporcionais e distritos eleitorais de maior dimensão, os partidos maiores tendem a escolher fórmulas maioritárias e distritos eleitorais de pequena magnitude (Colomer, 2005). Os partidos dominantes, por sua vez, tendem a preferir fórmulas maioritárias e eleições simultâneas para a presidência e para o parlamento (Negretto 2006).

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Em Moçambique a escolha das instituições eleitorais foi feita durante a transição e foi selada com o AGP e, posteriormente, com a Lei Eleitoral nº 4/93, de 28 de dezembro de 1993. Seguindo a tendência de outros processos de transição conduzidas sob a égide das Nações Unidas (Reilly 2008a, 173), foi adotada a fórmula de representação proporcional (RP) D’Hondt. O sistema de voto escolhido foi o de lista fechada e a cláusula barreira foi fixada nos 5%. No que diz respeito ao calendário eleitoral ficou estabelecido que as eleições presidenciais e legislativas seriam organizadas em simultâneo. De acordo com Brito (2009), durante as negociações de paz, a Renamo defendeu um sistema de RP com um limite máximo de eleição de 20%, enquanto a Frelimo tinha uma preferência pela fórmula maioritária e por um limite inferior eleição. Neste sentido, a Renamo pretendia limitar a participação de novos partidos, mas também garantir uma representação mais proporcional no parlamento, enquanto a Frelimo apoiava um sistema eleitoral (o maioritário) que, em tese, iria reforçar a sua posição dominante e diminuir a possibilidade de coabitação ou de partilha de poder. Além disso, a inclusão de um limiar de representação parlamentar baixo permitiria que outros partidos políticos fizessem parte do espaço político, enfraquecendo assim a posição da Renamo enquanto principal partido da oposição. Mudando o foco das origens para as consequências, apresentamos no quadro 3 os níveis de desproporcionalidade (D) e de fragmentação (NEPP) entre 1994 e 2014. Os resultados revelam que ambos os índices estão em declínio de um ponto de vista longitudinal. No que respeita à D, os valores podem estar relacionados com as sucessivas alterações no tamanho dos círculos eleitorais devido a problemas técnicos no processo de recenseamento eleitoral25: 25 De acordo com a lei, a distribuição dos mandatos é proporcional ao número de votantes registados em cada círculo eleitoral. Como têm existido vários problemas técnicos com o recenseamento – equipamento obsoleto e fraca profissionalização dos técnicos, etc. (Carter Center 2004, Boletim da República 1999) – o número de mandatos tem sido alterado em função de correções e melhoramentos no sistema. Por exemplo, por falta de meios a CNE não fez o re-

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- Seis mudanças entre 1994 e 1999: Niassa (+2), Nampula (-4), Manica (+2), Tete (+3), Inhambane (-1) e Maputo Cidade (-2); - Oito mudanças entre 1999 e 2004: Niassa (-1), Manica (-1), Sofala (+1), Zambézia (-1), Gaza (+1), Inhambane (-1), África (+1) e Resto do Mundo (+1); - Nove mudanças entre 2004 e 2009: Nampula (-5), Niassa (+2), Manica (+2), Sofala (-2), Tete (-2), Zambézia (-3), Gaza (-1), Maputo Cidade (+2) e Maputo Província (+3), e finalmente; - Sete mudanças entre 2009 e 2014: Nampula (+2), Tete (+2), Sofala (+1), Inhambane (-2), Gaza (-2), Maputo Cidade (+1) e Maputo Província (-2). A remoção da cláusula barreira de 5% em 2006, também pode ter contribuído para a queda dos níveis de D entre 2004 (D = 4,8) e 2014 (D = 2,1), permitindo desde logo a eleição do MDM em 2009 e trazendo-lhe uma visibilidade que lhe rendeu mais mandatos quer a nível nacional quer sub-nacional em 2014. A evolução do NEPP reflete o aumento da relevância da Frelimo no sistema partidário, entre 1999 e 2009, e um ligeiro declínio, em 2014. Estes resultados são pouco convencionais uma vez que as fórmulas de RP encorajam a representação parlamentar de vários grupos sociais; isto é, níveis mais elevados de fragmentação, enquanto as fórmulas maioritárias são conhecidas por limitar a representação parlamentar particularmente dos partidos mais pequenos (Duverger 1959, Horowitz 2006; Sartori 2003). O modelo de Sartori (2003) é particularmente profícuo para entender estes resultados pouco convencionais. Sartori (2003) sugere quatro possíveis interações ou combinações entre instituições eleitorais e sistemas partidários: (i) sistema eleitoral forte e sistema partidário forte, (ii) sistema eleitoral fraco e censeamento das populações nos círculos estrangeiros entre 1994 e 1999, apesar de a Lei eleitoral 4/93 de 28 Dezembro estipular círculos eleitorais no estrangeiro. Assim os moçambicanos que vivem no estrangeiro votaram pela primeira vez apenas em 2004.

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sistema partidário forte, (iii) sistema eleitoral forte e sistema partidário fraco, e (iv) sistema eleitoral fraco e sistema partidário fraco (Sartori 2003, 61-63). Os sistemas eleitorais fortes incluem a fórmula maioritária e algumas variantes de RP; os sistemas partidários fortes incluem formatos bipartidários e, finalmente os sistemas partidários fracos incluem formatos multipartidários, ou mais fragmentados (Sartori 2003, 61).

Em Moçambique, encontramos a combinação (i), na medida em que existe um sistema eleitoral forte (RP) e um sistema partidário estruturado (dominante). Parece contraintuitivo rotular o sistema de RP moçambicano de forte,

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mas neste caso faz sentido. Segundo Sartori (2003, 61) os sistemas de RP tanto podem ser fortes como fracos, dependendo do seu grau de proporcionalidade e do tamanho dos distritos eleitorais. Uma vez que em Moçambique a fórmula RP utilizada é a menos proporcional (D’Hondt), o sistema de voto é de listas fechadas e que até 2006 existia uma cláusula barreira de 5%, o sistema eleitoral é melhor classificado como forte do que como fraco. Estes dispositivos eleitorais ao surgirem combinados com um sistema partidário fortemente estruturado por um único partido limitam a participação e a representação de outros partidos políticos (Sanches 2014, 196-199).

4. Conclusão Este capítulo partiu do conceito de sistema de partidos dominante para compreender a paisagem político-partidária africana, 20 anos após o início dos processos de democratização e para investigar que fatores explicam a proliferação e a reprodução destes sistemas de partidos, a partir do estudo do caso moçambicano. A análise aqui conduzida permitiu chegar a cinco grandes conclusões. Em primeiro lugar, os sistemas partidários africanos ainda são fortemente estruturados por clivagens territoriais, que estão associadas ao processo de construção dos Estados-nação no período pós-independência. Estas clivagens persistem e modelam as interações interpartidárias, uma vez que definem os eixos de competição e os posicionamentos no espaço político. Em segundo lugar, que vale a pena continuar a olhar para a transição enquanto conjuntura crítica relevante, na medida em que ela abre possibilidades de mudança das trajetórias institucionais e políticas e que ela encerra uma visão do que serão os contornos do novo regime político. Para além disso, a transição é um momento de (re)definição de clivagens políticas. A mais imediata separa a elite do anterior regime da elite do novo regime; porém no caso das transições

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guerra-democracia redefine-se uma outra clivagem em torno do passado de guerra. Em Moçambique apesar da sobreposição das agendas da paz e da democratização, a clivagem de guerra foi a que teve mais peso no sistema político. Em terceiro lugar, o sistema eleitoral contribui, em grande medida, para acentuar os padrões de competição interpartidária. Em Moçambique o sistema de lista fechada protegeu o perfil dos partidos e instituiu um modelo de voto partidário, enquanto a cláusula barreira condicionou, pelo menos até 2009, a representação parlamentar dos partidos mais pequenos. Em quarto lugar, as redes clientelares são uma parte fundamental do processo de circulação e de reprodução das elites africanas e parecem condicionar e minar a atividade política da oposição. Finalmente, concluímos que a agência conta, uma vez que as incursões da Frelimo no eleitorado da Renamo foram cruciais para que logo depois das eleições de 1999 o partido conseguisse recuperar a sua posição dominante no sistema político moçambicano.

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Será que em Moçambique existiu uma transição democrática? Joaquim Miranda Maloa - Universidade de São Paulo

Resumo Ao se analisar a democracia moçambicana, tem-se deparado com problemas do funcionamento das instituições políticas, como a Assembleia da República, o Conselho Constitucional, os Municípios, entre outros e é usual colocar-se ênfase de que o regime político moçambicano é parcialmente livre, com baixa qualidade de prestação de contas, baixa efetividade de governo, baixa qualidade de regulamentação, baixa estabilidade política, crise de separação de poderes, inconstitucionalidades, violação dos Direitos Humanos (direitos civis e políticos), medo de represálias, repressões violentas, etc. Nesse sentido, a questão que gostaria de formular nesta comunicação é a seguinte: Será que em Moçambique, existiu uma transição democrática? Palavras-chaves Transição democrática, Democracia, Estado de direito.

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Introdução A sociedade moçambicana conheceu desde a década de 1990, uma transição política de uma sociedade não democrática — autoritária – para uma sociedade democrática. Este processo ocorreu, como um exemplo de democratização na África depois de uma guerra civil que devastou o país, aproximadamente 15 anos (PEREIRA, 2002). Primeiramente, as negociações de paz foram intermediadas pela Igreja Católica, em 1988. Um ano depois, o presidente Mugabe, do Zimbábue, e Moi, do Quénia, promoveram conversações entre os líderes da Resistência Nacional de Moçambique (RENAMO), e a igreja católica em Nairóbi, para delimitar como seriam as negociações de paz com o Governo de Moçambique. Em Junho de 1990, a comunidade de Santo Egídio, eleita pela igreja católica foi aceite, por ambas as partes, como mediadora das negociações de Roma, marcadas por constantes tensões entre o desejo de transição democrática e a desconfiança mútua. Gradualmente, foi-se alcançando o consenso entre as partes. Em Maio de 1991, começou a discutir-se os seis tópicos da paz: 1) a lei dos partidos políticos, 2) o sistema eleitoral, 3) assuntos militares, 4) garantias para a RENAMO, 5) o cessar-fogo e 6) uma conferência de doadores (TOLLENAERE, 2006). No dia 4 de Outubro de 1992, foi assinado em Roma, o Acordo Geral da Paz (AGP) e em Outubro de 1994 foram realizadas as primeiras eleições multipartidárias (TOLLENAERE, 2006). Dezoito partidos políticos e doze candidatos presidenciais concorreram às eleições. Faziam parte os seguintes partidos políticos: AP, UNAMO, PT, FUMO-PCD, FRELIMO, SOL, PIMO, RENAMO, PRD, PACODE, PADEMO, PPPM, PCN e UD. Os candidatos presidenciais eram Joaquim A. Chissano, Afonso M. M. Dhlakama, Carlos A. dos Reis, Carlos J. M. Jeque, Casimiro M. Nhamitambo,

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Domingos A. M. Arouca, Jacob N. S. Sibindy, Mário F. C. Machele, Máximo D. J. Dias, Padimbe M. K. Andrea, Vasco C. M. Alfazema e Wheia M. Ribua (PEREIRA, 2008, BRITO, 1995). O vencedor absoluto dessa eleição foi a FRELIMO, com 129, e a RENAMO, com 112 dos 250 assentos na Assembleia Nacional. Joaquim Chissano foi eleito Presidente da República. Participaram nestas eleições 87% dos eleitorados recenseados, não tendo ocorrido nenhum incidente1.

Será que houve transição democrática? Se fizermos um balanço desses 20 anos de democracia em Moçambique, depois de 1994, inevitavelmente registaremos uma certa insatisfação diante do que foi realizado na questão de separação de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), tópicos essenciais do receituário para a construção de um Estado de Direito. Permitam-me falar de três pontos associados a essa questão: a primeira, a questão da transparência — basta olhar as últimas eleições municipais (2013), para dar conta das irregularidades do nosso sistema eleitoral: Secretariado Técnico da Administração Eleitoral (STAE), Comissão Nacional de Eleições (CNE), Partidos Políticos, Conselho Constitucional (CC) e Polícia da República de Moçambique (PRM).2 3 As experiências, porém, recentes do acórdão do CC, referentes ao caso Gurué, mostrou a olho nu, que a CNE não é um órgão independente e imparcial do 1 O Investigador que mais tempo tem dedicado ao estudo do sistema político moçambicano é Luís de Brito, para citar apenas alguns, ver Brito (1995, 1997, 2000a, 200b), para um panorama mais geral sobre as eleições moçambicanas. 2 A polícia faz parte do sistema eleitoral, através da lei eleitoral que lhe confere poder de manter a ordem e disciplina nas Assembleias de votos. 3 BOLETIM DA REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. Boletim da República nº8/2013 de 27 de Fevereiro. Imprensa Nacional de Moçambique, EP.

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Estado, como reza o documento da sua constituição4; o recrutamento do STAE foi viciado;5 PRM e os membros da Mesa da Assembleia não cumpriram a legislação eleitoral, utilização de bens do Estado para as campanhas eleitorais, etc. A segunda questão, responsabilização dos políticos —, por exemplo, os incidentes da Beira (Munhava), entre as caravanas da FRELIMO e Movimento Democrático de Moçambique (MDM).6 Para não falar dos incidentes do dia 9 de Novembro de 2000, quando as manifestações da RENAMO-UE culminaram em violentos confrontos entre os membros da RENAMO-UE e a Polícia da República de Moçambique (PRM), provocando mais de 40 mortos. Embora estas ações fossem consideradas ilegais nos termos da legislação moçambicana, as mesmas foram toleradas em locais como Maputo, não tendo originado, no entanto, fortes reações. Os excessos mais significativos tiveram lugar na cidade de Montepuez, saldo dos acontecimentos, 25 mortos, incluindo 7 polícias, e, subsequentemente, mortes por asfixia de 119 manifestantes, encarcerados numa cela de 21m², após privação de comida e água (MALOA, 2011). Não houve respeito pelos mecanismos de inquérito policial e nenhum político foi responsabilizado. Podia até citar mais casos. Como diz o Professor Macamo, o nosso problema é da concepção do Estado que é hostil à cidadania e, por via disso, hostil à própria política (MACAMO, 2014), na medida em que confundimos Estado e Governo7. O que o Conselho Constitucional fez? A resposta é nada. Quanto aos fatos acima relatados, não teve iniciativa nem sequer de repor os direitos fundamen4 Sobre a constituição do CNE, veja, http://www.stae.org.mz/index.php/en/ct-menu-item-3/ct-menu-item-5. 5 O caso de Quelimane, veja CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA. Maioria dos brigadistas em Quelimane pertence a Frelimo. Nº 6-10 de Março de 2014. Disponível em: http://www.cip.org.mz/election2013/ndoc/155_Eleicoes_Nacionais_6_Quelimane_10deMarco.pdf. Acessado 11 Marc 2014. 6 Veja VERDADE. Simpatizantes do partido Frelimo agrediram uma caravana de campanha do MDM. 16.11.2013. Disponível em: https://ptbr.facebook.com/JornalVerdade/posts/6516. 7 Estava um dia a conversar com um alto dirigente do Governo, que me disse eu sou o Estado. No recolher do meu silêncio, achei curiosa a afirmação.

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tais consagrados na Constituição da República de Moçambique, se teve iniciativas, os crimes não foram punidos, ou, se foram, com menos rigor8. A terceira e a última questão que gostaria de levantar está relacionada com a segunda que é a questão da impunidade e que ao longo da comunicação procuro desenvolver. Conhecemos com detalhe essa questão, e o quadro agrava-se mais quando o Procurador-Geral da República de Moçambique (PGR), Augusto Paulino, admitiu, neste ano (2014), no seu informe anual perante os deputados da Assembleia da República em Maputo, capital do país, a existência de grandes focos de corrupção que lesam o Estado em milhões de meticais (moeda do país)9. É evidente que tudo isto, tem uma forte correlação com o nosso processo de transição democrática que foi acompanhado, por um lado, por uma democracia não garantida nos limites da legalidade e, por outro, por modernização excludente, que atuou apenas nos desdobramentos económico-sociais e não na transformação de um Estado autoritário para um Estado democrático. Com isso, quero dizer que a sociedade mudou, mas o Estado permaneceu operando como há 39 anos (1975), um Estado de não direito. Digo isto, porque entendo por Estado de Direito, “a efetividade das garantias dos direitos fundamentais para a maioria da população […]” (PINHEIRO, 1991, p.46). O governo moçambicano tem grande dificuldade em transformar os direitos fundamentais garantidos na constituição em efetivação. Vou contar uma história: assisti à institucionalização da democracia em Moçambique, quando 8 Veja as decisões das últimas eleições em Gurué. CENTRO DE INTEGRIDADE PÚBLICA. CC valida eleições em Gurué – Mas chama atenção para a existência de votos fora das assembleias, possíveis de serem fraudulentamente introduzidos nas urnas. Boletim sobre o processo político em Moçambique Número EA 73 - 2 de Março de 2014. Disponível em: http://www.cip.org.mz/election2013/ndoc/153_Elei%C3%A7%C3%B5es_Aut%C3%A1rquicas_73-Gurue_results-2deMar%C3%A7o.pdf. Acessado 6 de Mar 2014. Para uma demostração dessa realidade vejam também Araújo e Canhanga (2014). 9 Sobre este assunto veja OBSERVATÓRIO DOS PAÍSES DEL’INGUA OFICIAL PORTUGUESA. Em informe anual ao Parlamento, PGR reconhece a existência de grandes focos de corrupção em Moçambique. Segunda-feira, 29 de abril de 2013.

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as rádios e a televisão faziam várias propagandas sobre o que era democracia. Neste período, a sociedade moçambicana apontava para decisivas transformações como: a privatização das propriedades estatais, a formação de associações civis, a formação de novos mercados de trabalho, a industrialização de alimentos e a urbanização acelerada, as mudanças nas bases da distribuição do poder político resultado da substituição do monopartidarismo pelo multipartidarismo, com a instauração de um novo pacto constitucional que formalmente consagrava direitos civis e políticos e instituía um modelo liberal democrático de poder político. Inspiradas pelo processo democrático em curso em algumas sociedades do mundo ocidental capitalista, essas transformações não foram assimiladas pelo Estado, nem pelas práticas políticas e nem sequer pela sociedade. A sociedade moçambicana continua a aceitar a suspeição da Lei, em nome da severidade do Estado, e parece evidente que o legado do Estado autoritário (1975-1994) ainda está implantado em Moçambique. Como mostra Macuane (2011) e Azevedo-Harman (2011), apesar de realizar eleições regularmente, tem traços autoritários, o que faz com que seja classificado pela literatura como regime híbrido, com democracia eleitoral e defeituosa e sem Estado de Direito. Como mostra o gráfico abaixo.

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Fonte: Kaufman, Kraay e Mastruzzi apud Macuane (2011, p.281).

Atualmente as garantias constitucionais e os direitos civis e políticos permaneceram, na prática tal como no regime de excepção: guerra, terror, prisão, intimidação, despromoção, marginalização, “entulho autoritário” (PINHEIRO,1995), que nos consomem na prática. Só fica a constituição para “inglês ver”, como se fala na gíria local. Não é por acaso que Moçambique aparece na classificação da Freedom House10 como um país de pouca liberdade, desde 1994. Países

Descrição

Freedom House

Score

BTI

Moçambique

Regime híbrido

Parcialmente livre

Democracia defeituosa (-0,02)

Democracia defeituosa

Fonte: Adaptado de Macuane (2011, p277), apud EIU/Democracy Index (2008),Freedom House (2009), BTI Transformation Atlas; Kaufman, Kraay e Mastruzzi (2009). 10 Instituição internacional que avalia as liberdades políticas básicas como fazendo parte dos países de liberdade parcial.

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Em Moçambique, há um enorme gap entre o que está escrito na lei e a realidade brutal da aplicação da lei. A nova constituição, promulgada em 1990 e 2004, conseguiu incorporar muitos direitos individuais que foram violados sistematicamente no período não democrático. Os direitos à vida e à integridade pessoal foram reconhecidos. No entanto, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a violência oficial continua. A questão que gostaria de formular neste texto é a seguinte: Será que em Moçambique existiu uma transição democrática? Para responder a isso, que reputo uma questão difícil, é preciso dar uma vista de olhos a um dos conceitos de Juan J. Linz e Alfred Stepan, que definiram a transição democrática como um grau suficiente de acordo alcançado quanto a procedimentos políticos visando obter um governo político; quando o governo chega ao poder como resultado direto do voto popular livre; quando esse governo tem, de fato a autoridade de gerar novas políticas; e quando os poderes Executivos, Legislativos e Judiciários, criados pela nova democracia, não têm que dividir o poder com outros organismos (1999, p.21). Os autores vão mais longe ao afirmarem que uma democracia é consolidada quando a grande maioria de opinião pública mantém a crença nos procedimentos das instituições democráticas; em termos constitucionais. Um regime democrático está consolidado quando tanto às forças governamentais quanto não-governamentais, sujeitam-se e habituam-se a resolução de conflitos dentro de leis. Procedimentos e instituições específicas sancionadas pelo novo processo democrático (LINZ; STEPAN, 1999, p.24). Com essa definição operacional, vamos procurar responder às nossas indagações. Não obstante esse avanço democrático não se logrou a efetiva instauração do Estado de Direito. A pesquisa nacional sobre governação e corrupção, realizada em 2003, revelou que quase metade do número total de 2.500 inquiridos concordou ou

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concordou fortemente (47%) com a afirmação de que os tribunais são completamente dependentes do governo. Tantos os juízes como os procuradores entrevistados afirmaram receber chamadas telefónicas dos executivos durante os casos. Amplitude dos avanços registados nestas matérias é algo questionável para a nossa democracia. Que tipo de democracia queremos? O poder emergente da transição democrática conquistou o monopólio do “uso legítimo da violência física” (WEBER, 1970; ELIAS, 1987), fora dos limites da legalidade. Persistiram graves violações de direitos humanos, violações das liberdades civis e políticas; o medo de represálias das instituições políticas e governamentais; repressões violentas nas manifestações. Estes acontecimentos são produto de uma violência endémica, radicada nas estruturas políticas, enraizada nos costumes da guerra civil e duma sociedade autoritária, sem uma cultura de prestação de contas, como Angola, República Democrática do Congo, Suazilândia, Zimbabué, entre outros países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC)11, veja o gráfico abaixo.

Fonte: Kaufman, Kraay e Mastruzzi apud Macuane (2011, p.281). 11 Para um conhecimento da Democracia na SADC, veja Macuane (2011).

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A Open Society Foundation (2005) refere-se a esses acontecimentos como uma experiência política da continuidade autoritária. Essa continuidade manifesta-se quer no comportamento de grupos da sociedade civil, quer no dos agentes incumbidos de preservar a ordem pública. O controle legal da violência permaneceu aquém do desejado. O problema é que instalar um governo eleito democraticamente não significa necessariamente que as instituições do Estado operarão democraticamente. Por exemplo, parece que em Moçambique não existe uma liberalização das organizações da sociedade que possa implicar uma combinação de mudanças sociais e de diretrizes políticas, como menos censura por parte do governo ou um espaço maior para a organização de atividades autónomas. As organizações da sociedade civil são formas que as pessoas têm de se organizar e se colocarem como participantes ativos na sociedade. Tenta com isso, tornar-se algo mais que simples sujeitos passivos do processo social, afirmando-se, em alguma medida, como agentes e protagonistas dos seus destinos – por mais modesta que essa atuação de fato seja. Como diz Elísio Macamo, a nossa ordem política tem que devolver a responsabilidade ao indivíduo (MACAMO, 2006). Várias organizações de sociedade civil têm sido conotadas como fazendo parte de uma ou outra força política (PEREIRA, 2002). Esta situação tem contribuído para elevar o índice de desconfiança dos cidadãos nestas organizações, sobretudo para denunciarem casos de violação de direitos humanos, de arbitrariedade e de abuso de poder, exigirem das autoridades públicas o cumprimento de suas funções constitucionais — e também pouco se avançou no sentido do controle democrático da violação dos direitos humanos. Neste domínio, parece não ter havido efetiva desmobilização das forças repressivas comprometidas com o regime não democrático. Essas forças mantiveram-se presentes, acomodando-se ao contexto de transição política. Este

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breve painel permite clarificar que em Moçambique de fato não ocorreu uma transição democrática completa. Tudo indica que, no curso do processo de transição democrática, recrudesceu uma solução violenta dos conflitos sociais e de tensões nas relações intersubjetivas. Segundo Linz e Stepan (1999, p33), para que haja uma democracia consolidada deve verificar-se cinco campos em interação: sociedade civil – liberdade de associação e comunicação; sociedade política – competição eleitoral livre e inclusiva; Estado de direito – constitucionalismo; aparato estatal – normas burocráticas racionais e legais; sociedade económica – mercado institucionalizado. Para Macamo (2006), do jeito que estamos e vamos, a consolidação democrática será impossível. A nossa democracia é ainda incompleta, deficiente para além de sério problema do subdesenvolvimento, de graves violações de direitos humanos que comprometem o mais elementar dos direitos - o direito à vida. Esse painel deixa entrever que a nossa democracia tem caráter costumeiro, institucionalizado de um autoritarismo político que se revela com maior intensidade nos momentos de agudas crises de controle do poder político, por exemplo, os casos da violência eleitoral resultados das segundas eleições presidenciais e legislativas de 1999 foram fortemente contestados pela Coligação Renamo-União Eleitoral (RUE), considerados fraudulentos, não obstante a sua revalidação pelo Tribunal Supremo. No ano seguinte, a mesma Coligação organizou manifestações gerais em todo o país, que acabaram provocando confrontos com a polícia nas cidades da Beira (centro do país) e Montepuez. Resultaram em cerca de mais de uma centena de mortes na cidade de Montepuez, na Província nortenha de Cabo Delgado (MAZULA; MBILANA, 2003, p3). Gerou-se um clima de medo e instabilidade naquela cidade e uma certa tensão política em todo o país. Anícia Lalá e Andrea E. Theimer (2003) demonstraram no seu estudo “Como limpar as nódoas do processo democrático? Os desafios da transição e democratização em Moçambique (1990-2003)”, que a de-

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mocracia em Moçambique está longe de ser consolidada. Como mostra Araújo e Canhanga (2014), a democratização, inserida no contexto das transições políticas, torna-se simples projeto transitório e inacabado com forte possibilidades de interrupção. O conjunto de reformas constitucionais e institucionais aprovadas em favor da paz e da estabilidade não favoreceram os resultados esperados e não asseguraram a consolidação e sustentabilidade da democratização e do Estado que, nos princípios dos anos 90, se pretendia edificar. A incapacidade do judiciário investigar e processar os responsáveis desse acontecimento é o exemplo da incompetência do nosso sistema legal. O nosso sistema da justiça criminal não investigou e nem processou os presumíveis autores dessa violação dos direitos humanos. O resultado é que os responsáveis continuam impunes e cometem outras violações. A nossa democracia não consegue controlar o poder dos executivos e da polícia, o que faz com que persistam as práticas abusivas dos direitos humanos. De modo geral, não se vislumbrou, ao longo de todo o processo democrático, uma efetiva vontade política no sentido de consolidar o poder judicial, do ponto de vista doutrinário e normativo, garantindo autonomia administrativa, financeira, funcional, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de remuneração (BARROSO, 2013). Deve existir atualmente diferença entre administrar, legislar e julgar. Como forma de dar início ao debate gostaria de afirmar que o nosso grande problema em tudo isso foi no primeiro passo do processo de transição democrático não termos debatidos quer nas negociações de paz, quer no parlamento e noutro fórum próprio a questão da desconcentração do poder do executivo em relação a outras esferas de poder. Para falar como Eduardo J. Sitoe, a nossa democracia é uma democracia que apanha boleia da paz que veio da guerra civil, enraizada numa lógica de atuação autoritária, dominadora, marcada pelo legado centralista do partido único. Esta dimensão estrutural subvaloriza a consolidação democrática e

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do Estado de direito. “Uma insolúvel reconciliação efetiva entre os principais segmentos políticos, envolvidos num processo desequilibrado de acesso aos recursos económicos não favoreceu a cultura de tolerância e observância das regras do jogo democrático” (ARAÚJO E CANHANGA, 2014, p.17). Talvez as afirmações de Bernhard Weimar fazem sentido para pensar a nossa transição democrática: (1) a nossa transição democrática veio de um acordo de paz, que definiu em termos estratégicos, o quadro geral do cessar-fogo da guerra civil; (2) a paz do partido no poder e seus governos consecutivos; (3) a paz da oposição para tratar dos assuntos de transformação de um movimento de guerra num partido político; (4) a paz relativa entre os beligerantes do acordo geral de paz na Assembleia da República; (5) a paz dos doadores; (6) a paz das comunidades rurais e dos camponeses e (7) a paz das comunidades religiosas. Isto tornou a nossa democracia redutível a uma simples questão de eleições de partidos ou de presidentes. Segundo Severino Ngoenha (1993, p.9), a democracia implica antes de mais o lugar que o povo tem de ocupar nas decisões dos problemas fundamentais que lhe dizem respeito e nos mecanismos jurídicos para que tenha um controle real sobre a realidade política, económica, social e educativa. Esta afirmação está associado à ideia da independência entre os três poderes Legislativo, Executivo e Judicial, por exemplo tão bem estudados por Larry Diamond (1997), de que uma democracia requer, para além da competição eleitoral regular, livre, justa e de sufrágio universal, a ausência de dependência entre os três poderes. O cientista político Samuel P. Huntington (1993) lembra-nos que não existe consolidação democrática quando não há uma mudança de uma democracia eleitoral para uma democracia liberal, uma democracia que permitirá alargar as estruturas do processo democrático para a defesa das regras do jogo (BOBBIO, 1986). Como Elísio Macamo refere, temos que ter a coragem de arriscar mais democracia. A insistência num poder central desmensurado como prerrogativa do

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Estado parece irracional. O nosso Estado não tem a capacidade de corresponder a tamanhas expectativas. E se não muda de concepção nunca, provavelmente, terá essa capacidade. A concentração do poder é uma cilada consciente na medida em que põe em perigo a soberania interna com a promoção duma relação patrimonial entre a sociedade e o Estado (MACAMO, 2006). Aliás, segundo Elísio Macamo, um Estado de maldição “porque a forma como ele chegou até nós, a maneira como nós tentamos domesticá-lo e, finalmente, o contexto do discurso do desenvolvimento dentro do qual conferimos a ele um papel especial, faz dele uma arma letal contra aquilo que mais precisamos neste momento” um Estado de Direito (MACAMO, 2014, p.1). Finalmente, sem demagogia, nem falso didatismo, espero que este artigo ofereça algo útil para a compreensão da história do nosso processo democrático. A efetiva transformação rumo a uma democracia condigna, que não se escreve apenas nos pleitos eleitorais e que possamos dizer que a transição democrática foi efetiva, depende da nossa vontade política que não se reduz à identificação e imitação de uma cultura política, que não tem em conta a nossa realidade, mas sim de uma política democrática possível dentro das nossas circunstâncias. E que as críticas e polémicas daí resultantes possam multiplicar, aceleradamente, a qualidade dos estudos exploratórios em torno do tema. Longe de esgotar a matéria, este artigo tenta apenas, descobrir algumas fronteiras de um terreno vastíssimo a ser trilhado.

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Religião e tendências de democratização na África lusófona Luís Pais Bernardo - Humboldt-Universität zu Berlin Edalina Rodrigues Sanches - ICS/ULisboa, IPRI/ULisboa, CSSR/U. Cape Town

O presente capítulo parte do conceito de twin tolerations, seminalmente proposto por Alfred Stepan (2000) para discutir as relações entre religião e democratização no contexto dos países da chamada “África lusófona”. Este conceito é relevante; em primeiro lugar porque chama a atenção para a necessidade de existir um espaço vital, de tolerância mútua, entre as autoridades políticas e os líderes/grupos religiosos, nos regimes democráticos; em segundo lugar porque permite compreender que cenários religiosos são mais favoráveis à democratização; e em terceiro lugar porque recupera a ideia de que vários padrões de secularismo podem ser compatíveis com os projectos de modernidade. Este capítulo começa por analisar a relação entre Estado e religião, traçando um panorama geral dos estudos feitos nesta área e apresentando alguns dados empíricos do Religion and State Project, para identificar tendências globais e regionais. Depois, desenvolve uma análise mais específica acerca dos Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Para além da ligação linguística e da herança colonial, este conjunto de países pode ser particularizado por uma relação de aparente tolerância entre a esfera política e a religiosa. Aqui, o nosso objetivo é perceber como têm evoluído estes países nos últimos anos, sobretudo à luz de vários estudos que apontam para importantes reconfigurações religiosas no continente após os processos de democratização.

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1. Introdução As mais recentes vagas de democratização, nomeadamente as que se iniciaram a partir dos anos 90, têm colocado vários dilemas conceptuais aos que se interessam por esta temática. À medida que cada vez mais países se afastam de um modelo de regime autoritário e adotam medidas de liberalização política, proliferaram novas noções de democracia ou do que muitos designaram por democracia “com adjetivos” (Collier e Levitsky 1996). Uma definição minimalista considera a democracia nos termos dos seus elementos procedimentais, nomeadamente a escolha dos governantes através de eleições livres e justas (Huntington 1991; Przeworski 1991). Uma definição maximalista considera ainda até que ponto existe liberdade de associação, de expressão, de votar e ser eleito (Dahl 1971), se a constituição é verdadeiramente democrática, isto é, se garante liberdades fundamentais e, finalmente, se o governo está sujeito a mecanismos de responsabilização horizontal e vertical (Linz e Stepan 1996, Stepan 2000). No quadro de uma definição maximalista, a existência de uma sociedade civil robusta é um pilar fundamental da democracia, e é neste âmbito que se torna relevante analisar o papel da religião e da sua ligação à política. Esta ligação pode ser perspetivada de várias formas. Neste estudo, ela é feita através do conceito de twin tolerations, proposto por Stepan (2000), e através do qual ele sustenta a tese de que devem existir fronteiras mínimas de liberdade de ação entre as instituições políticas e as autoridades religiosas (Stepan 2000, 38). Face a isto, importa então questionar que fronteiras são as mais adequadas para a democracia. Se, por um lado, as instituições religiosas não devem gozar de privilégios políticos, por outro lado, deve existir liberdade de culto e de livre associação. Isto também implica que, à partida, nenhum grupo da sociedade civil, incluindo os de cariz religioso, deve ser impedido de formar partidos políticos. Estas questões, levantadas por Stepan (2000), são discutidas de duas formas. Primeiro começamos por identificar as relações dominantes entre Estado e Religião. Para isso, utilizamos

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os dados do Religion and State (RAS) Project para operacionalizar o modelo analítico de Stepan (2000). Num segundo momento, analisamos de que forma se têm construído modelos de twin tolerations nos países da África lusófona.

2. Estudos sobre Estado e Religião O estudo das relações entre o Estado e a Igreja tem tido desenvolvimentos relevantes em várias áreas disciplinares. Na sociologia política, Iannaccone (1992), Finke e Stark (1992) ou Grim e Finke (2006), partiram de modelos de análise de comportamentos colectivos assentes em princípios económicos neoclássicos para estudar as comunidades religiosas; Warner (2000) e Gill (1998, 2008), por seu lado, procuraram enfatizar a dimensão estratégica da acção política dos actores religiosos, em particular da Igreja Católica Apostólica Romana, também à luz de um modelo económico neoclássico. Numa perspectiva conceptual diferente, Fox (2008) preocupou-se com a questão da regulação do campo religioso e com a sua mediação através de indicadores e índices quantitativos. No campo da Ciência Política, a partir dos anos 90 assistiu-se à proliferação de novas perspectivas conceptuais e metodológicas, particularmente institucionalistas e comparativas, para estudar as relações entre Estado e religião. Em primeiro lugar, há um conjunto de estudos que defendem uma visão menos monolítica do Estado, exemplificada pela escola autonomista, onde se inserem, por exemplo, os trabalhos de Skocpol (1979) ou Evans et al. (1985). O Estado, enquanto entidade política, é frequentemente sub-teorizado e tido como monólito relativamente coerente, malgrado as diferentes perspectivas a respeito das interpenetrações entre as estruturas do Estado e diversas estruturas sociais (Migdal 2001). Essa sub-teorização levou, até recentemente, a um enfoque excessivo no aparato jurídico configurador das relações entre agentes

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públicos e eclesiásticos ou representantes de comunidades religiosas, em detrimento de uma concepção dinâmica e complexa dessas relações. Num outro registo, praticamente a-teórico, a diacronia das relações Estado-Igreja assume um papel central na literatura. Nela ganha visibilidade a ideia de que o catolicismo, enquanto entidade e processo histórico, tenderia a produzir um tipo específico de relação entre o Estado e a Igreja Católica, o que também definiria o campo religioso enquanto tal. Em segundo lugar, desenvolveram-se os “novos institucionalismos” (Hall 1996) que vêm salientar o papel das instituições para a análise dos eventos políticos contemporâneos como por exemplo a democratização. Neste contexto, o institucionalismo histórico – desenvolvido por autores como Pierson (2004), Streeck and Thelen (2005) ou Mahoney and Thelen (2010) – ganhou destaque e trouxe consigo um renovado interesse pelas heranças políticas (policy legacies), dependências de trajectória (path dependencies) e pela agência dos actores políticos (no que diz respeito às escolhas, estratégias e processos reflexivos). À luz desta corrente teórica é possível estudar o papel da igreja na política em diferentes períodos históricos dos países, quer do ponto de vista macro, quer micro. Em terceiro lugar, a crescente inter-disciplinaridade – com os contributos da história, antropologia, sociologia política e das religiões, além da própria teologia – têm contribuído para revitalizar esta área de estudos. Exemplo disso é o trabalho de Asad (2003) que, parte da abordagem de Eisenstadt (2000) para desenvolver o conceito de múltiplas modernidades. Este conceito aponta para existência de múltiplos e coevos complexos sociais e simbólicos no interior do processo de modernidade, e neste sentido torna legítimo o estudo das variedades de secularismo que operam nas várias regiões do mundo. Para além do alargamento do escopo teórico, verificou-se também o alargamento do escopo geográfico dos estudos sobre as variedades de secularismo (Werner, VanAntwerpen, Calhoun 2011). A este respeito, importa destacar a

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contribuição de dois autores em particular; Davie (2007) e Bhargava (1998, 2011). Davie (2007) afirmou que a Europa Ocidental constitui um espaço específico, em que o secularismo, enquanto realidade empírica e ideológica, ocupou e ocupa um lugar de excepção, não verificável noutros contextos geográficos. Levando esta formulação mais longe, a autora sugere ainda que o estudo dos diferentes tipos de secularismo tem sido limitado por insuficiências epistemológicas, teóricas e empíricas, não permitindo a construção indutiva de teoria ou o teste das teorias existentes. Por esse motivo, defende a necessidade de se expandir o escopo geográfico dos estudos sobre secularismo, combinando para isso várias ferramentas, como a base de dados construída por Fox (2008) ou Grim e Finke (2006), e propondo estudos de caso emparelhados – que não incluam os casos mais típica e frequentemente estudados1 – e que transcendam fronteiras continentais ou, até, elidam divisões artificiais que permitam, aos investigadores, ultrapassar os problemas inerentes ao chamado nacionalismo metodológico. Focando-se num único estudo de caso (a Índia), Bhargava (1998) sugere que o tipo de secularismo existente neste país não é classificável com recurso às categorias desenvolvidas pela literatura2, e que tendem a generalizar os modelos de relação entre Estado e religião existentes na Europa e nos EUA a outras zonas do mundo, quando estes na verdade são mais excepcionais do que típicos. Bhargava (1998) apresenta uma discussão conceptual mais fina e uma hibridação entre a teoria política e o estudo empírico dos vários padrões de secularismo, tendo como fulcro, o descentramento da Europa como geografia central e à qual, na nossa opinião, os estudos se têm reportado como referência. 1 A Europa Ocidental e, dentro da Europa Ocidental, casos nacionais como a Alemanha, a França, a Holanda e a Inglaterra. 2 Critica em especial as escalas separação-integração ou tabelas tipológicas utilizadas em contextos onde a diversidade religiosa é um fenómeno recente e tratado de forma relativamente convergente, dadas as pressões liberais da integração europeia e a tendência homogeneizante de categorias cuja adequação analítica à realidade que pretendem descodificar continua em aberto - “relações Estado-Igreja”, a título de exemplo, constitui uma variável compósita ou factor de contexto cuja complexidade emergente impede uma determinação, em caso de se optar pelo teste de hipóteses, de correlações e covariação, e de obter uma compreensão mais densa e profunda do(s) caso(s) em análise.

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Os estudos até aqui enunciados apontam para a necessidade de se desafiarem os modelos existentes estudando as variedades de secularismo que operam em diferentes zonas do mundo, em amostras (ou estudos de caso) menos convencionais onde a diversidade regional está de algum modo controlada. É isto que faz Stepan (2000; 2011). Stepan (2011) propõe uma análise comparada de três regimes seculares e secularistas onde o problema das twin tolerations, usando a sua formulação anterior (Stepan 2000), é abordado e gerido de forma diferente daquelas que é possível observar em contextos tradicionalmente investigados. Utilizando o trabalho de Fox (2008) e, a base de dados Religion and the State (RAS), Stepan procura explorar e ligar duas literaturas que não tinham sido, pelo menos até recentemente, ligadas: a chamada transitologia, concentrada nos processos de consolidação das instituições democráticas, e as relações Estado-religião-sociedade. Stepan concentra-se na análise do Senegal, da Índia e da Indonésia por se tratarem de países com práticas democráticas mais ou menos semelhantes e por apresentaram a maior percentagem de população culturalmente identificada como muçulmana e, acrescentamos, com tradições específicas de gestão da diversidade religiosa. Além disso, Stepan redefine os termos do debate científico ao optar por comunidades políticas que, seguindo Bhargava, apresentam um padrão de relações Estado-religião-sociedade inexistente na Europa: o chamado modelo “respect all, positive cooperation, principled distance” [“respeito por todos, cooperação positiva, distância baseada em princípios”]. Ao procurar outros horizontes empíricos, Stepan constrói uma abordagem que apropria os contributos extensivos de alguns autores (Madeley 2003, 2009; Minkenberg 2003, 2007) cujo trabalho tem sistematizado uma quantidade relevante de informação a respeito do panorama religioso europeu. Este texto centra-se justamente nesta área de saberes que liga a religião à democratização. Ela é importante por duas razões; em primeiro lugar, porque

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permite analisar que modelos de secularismo são mais compatíveis com a democracia. Em segundo lugar, porque sabemos que um dos fatores domésticos que conduziram aos mais recentes processos de democratização em África foram as movimentações das sociedades civis, em que os vários grupos/confissões religiosas, fortemente reprimidos durante os regimes monopartidários, assumiram protagonismo (Huntington 1991; Haynes 2004). Tomando como exemplos alguns PALOP, em Moçambique a Igreja Católica (ostracizada no âmbito do programa de modernização levado a cabo pela Frelimo3) foi fundamental nas negociações do acordo de paz e no processo de democratização; em Cabo Verde e na Guiné-Bissau a Igreja Católica também foi importante na (pouca) oposição que era possível fazer aos regimes monopartidários do PAIGCC/CV4 (Koudawo 2001). A transição para a democratização marcou nestes contextos uma nova alteração das relações entre autoridades políticas e religiosas no sentido de uma maior colaboração e tolerância entre ambas, como muitos autores de resto já salientaram [por exemplo sobre Angola Blanes (2011)5; sobre Moçambique West e Kloeck-Jenson (1999), Florêncio 2007)].

3. Modelos de secularismo: uma análise das relações entre Estado e religião Stepan (2010) sugere quatro relações possíveis entre democracia e religião (que não são mutualmente exclusivas). São as seguintes: 1) Secular, mas aberto à religião; 2) Não-secular, mas aberto à democracia; 3) Secularismo sociologicamente espontâneo e 4) Secularismo fechado, legislado pela 3 FRELIMO: Frente de Libertação de Moçambique. 4 PAIGC = Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde até 1980 representava os dois países, em 1981 com a cisão funda-se o PAICV = Partido Africano para a Independência de Cabo Verde. 5 A nova divisão entre política e religião em Angola do pós-guerra: http://blogs.lse.ac.uk/africaatlse/2011/07/01/a-nova-divisao-entre-politica-e-religiao-em-angola-do-pos-guerra/ (consultado em 27-04-2014).

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maioria e revogável pela maioria (ver quadro 1). Os dados do RAS permitem operacionalizar algumas das características enunciadas no quadro 1, tendo aliás já sido utilizados por Stepan (2011) num estudo mais recente. Para um conjunto de 177 países, os dados indicam se existe religião oficial, até que ponto as religiões são apoiadas pelo Estado (quer financeiramente quer através de leis, inter alia); se existem restrições ao papel da religião e das religiões minoritárias ou discriminação/exclusão de algumas práticas. Este conjunto de temas lança luz sobre as duas primeiras categorias propostas por Stepan (2000; 2011); as restantes não encontram eco nas questões analisadas pelo RAS. Consequentemente, recolhemos um conjunto de questões que nos pareceu refletir até que ponto existe (i) um modelo secular, mas aberto à religião ou (ii) não-secular, mas aberto à democracia. Quadro 1 – Variedades “Twin Tolerations” Padrões democráticos de relações entre Estado-religião Padrões relativamente estáveis Secular, mas aberto à religião

Não-secular, mas aberto à democracia

Secularismo sociologicamente espontâneo

Sem religião oficial. Separação total entre Estado e religião. Nenhuma subvenção estatal à educação religiosa ou organizações religiosas.

Igreja oficial recebe subvenções estatais e alguma educação religiosa dada em escolas públicas (mas estudantes não-religiosos não têm que ter aulas de religião)

Sociedade largamente “desencantada” e religião não é factor relevante na vida política.

Escolas religiosas privadas se conformes a normas académicas oficiais.

Religião oficial não tem prerrogativas constitucionais ou quasi-constitucionais para conceber ou forçar políticas públicas.

Liberdade pública e privada total para as religiões desde que não violem liberdades individuais

Oficiais democraticamente eleitos não sofrem pressões no sentido de se conformarem a normas religiosas no que respeita a políticas públicas.

Todos os grupos religiosos têm Cidadãos podem enviar “impos- liberdade para organizar-se na to da igreja” para uma instituição sociedade civil e competir pelo

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Organizações religiosas autorizadas a ministrar culto aos seus aderentes dentro de instituições públicas (forças armadas e hospitais) Grupos religiosos autorizados a participar totalmente na sociedade civil. Organizações e partidos relacionados com grupos religiosos autorizados a competir pelo poder em eleições.

secular. Religião não oficial tem total liberdade e pode receber subvenções públicas.

poder político, mas têm pouco poder ou saliência.

Todos os grupos religiosos podem participar na sociedade civil Todos os grupos religiosos podem competir pelo poder em eleições.

Stepan (2000, 42)

Os dados apresentados no Quadro 2 indicam que, na grande maioria dos países (N= 136; 76,8%), o Estado não reconhece uma religião oficial, mas a presença social de grupos religiosos é assinável. Com efeito, os padrões mais comuns de envolvimento entre governo e religião são os de acomodação (N= 35; 19,8%), parceria com uma religião referencial (N= 28; 15,8%) e cooperação (N= 26; 14,7%); e em pelo menos dois terços dos países a religião faz parte da oferta curricular da escola pública. Na esfera política (ver quadro 3), as restrições são limitadas, senão vejamos: em 64,4% (114) dos países não existem restrições quer à formação de partidos políticos religiosos quer ao desempenho de cargos políticos por parte de membros da igreja (N= 154; 87,0%). Complementarmente, os índices do projecto RAS (apresentados nas três últimas colunas do quadro 3) indicam níveis muito baixos (entre 0-10) de discriminação contra as religiões minoritárias (N= 127; 71,8%), de regulação religiosa (N= 123; 69,5%) e de legislação religiosa (N= 117; 66,1%). Estes dados permitem desenvolver a ideia seguinte: a existência de quadros institucionais seculares, mas próximos das religiões, isto é, aproximados à ideia de twin tolerations, mostra

110

que o secularismo europeu é, tal como defendido por Davie (2007), excepcional. Nestes quadros, as instituições políticas desenvolvem os seus processos com uma perspectiva cooperativa ou acomodatícia sem que se defina um acordo excepcional com uma tradição religiosa. Este tipo de secularismo, que pode ser definido como passivo (Kuru 2009) ou acomodatício, encaixa na maioria dos casos reportados. Apesar desta leitura global, os quadros 2 e 3 também sugerem diferenças importantes entre as várias regiões do mundo; sobretudo entre o Médio Oriente e o Norte de África (MONA) e as restantes. O MONA é a região onde mais Estados reconhecem uma religião oficial (N= 17; 85%), controlam a religião (N=7; 35%) e promovem o seu ensino na escola pública (N= 19; 95%). Para além disso, o MONA apresenta a menor proporção de países com baixos índices de discriminação (0-10) relativamente a religiões minoritárias. Em contrapartida, apresenta scores mais elevados no que diz respeito à regulação e à legislação religiosa (a maior parte dos países está nos escalões acima de 0-10, o que indica maior regulação). Esta região é assim exemplificativa de quadros institucionais em que uma tradição religiosa é estatuída como parceira preferencial ou religião oficial. Estes quadros continuam a parecer favoráveis ao pluralismo religioso, uma vez que existem restrições severas a qualquer tipo de perseguição, repressão ou regulação discricionária da prática e associação religiosas. Neste tipo de contexto, a influência da religião nos processos políticos é limitada, adicionalmente, por restrições ao exercício de cargos públicos por pessoal clerical ou à limitação da legitimidade de sistemas legais paralelos. Mencionando mais um exemplo, na África Subsariana, 91,3% (42) dos Estados não têm religião oficial e a forma mais comum de envolvimento com o governo é a acomodação (N= 2; 45,7%) ou a cooperação (N= 11; 23,9%). Aqui encontramos ainda a menor proporção de estados com ensino público da religião (N= 24; 52,2%) e níveis de restrições à atividade política de partidos religiosos muito semelhantes aos encontrados no MONA. No entanto a África Subsariana difere desta região em dois sentidos. Em primeiro lugar porque a grande maioria dos Estados (N= 38;

111

Quadro 2 – Relações entre religião e Estado: tendências regionais (I) (Proporção de Estados dentro de cada região) Fonte: The Religion and State (RAS) Project: http://www.thearda. com/Archive/Files/Codebooks/RAS2012_CB.asp Democracias Ocidentais (Europa) N=27 Ex-URSS N=28 Asia N=29 Médio Oriente e Norte de África N=20 África Subsaariana N=46 América Latina N=27 Total N=177

112

Relação entre Governo e Religiões Estados sem religião oficial

Estados com religião oficial

Acomodação

Cooperação

Preferências Multi-nível

Religião preferida

Religião oficial

Religião controlada pelo Estado, Atitude positiva

19

6

4

5

3

3

7

0

70,4%

22,2%

14,8%

18,5%

11,1%

11,1%

25,9%

0,0%

28

0

1

5

7

5

0

0

100,0%

0,0%

3,6%

17,9%

25,0%

17,9%

0,0%

0,0%

21

8

6

4

5

1

3

0

72,4%

27,6%

20,7%

13,8%

17,2%

3,4%

10,3%

0,0%

3

17

0

1

0

1

5

7

15,0%

85,0%

0,0%

5,0%

0,0%

5,0%

25,0%

35,0%

42

4

21

11

0

6

4

0

91,3%

8,7%

45,7%

23,9%

0,0%

13,0%

8,7%

0,0%

23

4

3

0

1

12

4

0

85,2%

14,8%

11,1%

0,0%

3,7%

44,4%

14,8%

0,0%

136

39

35

26

16

28

23

7

76,8%

22,0%

19,8%

14,7%

9,0%

15,8%

13,0%

13,0%

113

Quadro 3 – Quadro 3 – Relações entre religião e Estado: tendências regionais (II) (Proporção de Estados dentro de cada região)

Re s t r i ç õe sapa r t i dos dec a r i zr e l i g i o

Nota: * Os índices variam entre 0-90; os valores mais elevados indicam níveis mais elevados de discriminação/regulação/ legislação religiosa. Fonte: The Religion and State (RAS) Project: http://www. thearda.com/Archive/Files/Codebooks/RAS2012_CB.asp

Re S e mr e s t r i ç õe s f r e qu a m

De moc r a c i a sOc i de nt a i s( Eur opa )

2 6 9 6 , 3 %

N=2 7

1 6

Ex URS S N=2 8

5 7 , 1 %

As i a

2 1

N=2 9

7 2 , 4 %

Mé di oOr i e nt eeNor t edeÁf r i c a Af r i c aS ubs a a r i a na

Amé r i c aLa t i na N=2 7

3

2 0 4 3 , 5 %

N=4 6

1

8 4 0 , 0 %

N=2 0

3

4

2 3 8 5 , 2 %

Tot a l

1 14

N=1 77

64 , 4%

1

2

Nota: * Os índices variam entre 0-90; os v

Fonte: The Religion and Sta 114

Relações entre religião e Estado: tendências regionais (II) (Proporção de Estados dentro de cada região)

Re s t r i ç õe sa o s e mpe nhodec a r g os ospol í t i c os de pol í t i c osporpa r t ede i os o me mbr osdaI g r e j a

Re s t r i ç õe s que nt e sou a mpl a s

Í ndi c ededi s c r i mi na ç ã o Í ndi c ede Í ndi c ede c ont r ar e l i g i õe s Re g ul a ç ã o Le g i s l a ç ã o mi nor i t á r i a s* Re l i g i os a* Re l i g i os a*

S e mr e s t r i ç õe s

0 1 0

1 1 2 0

0 1 0

1 1 2 0

0 1 0

1

2 7

2 7

0

2 0

7

2 1

3 , 7 %

1 0 0 , 0 %

1 0 0 , 0 %

0 , 0 %

7 4 , 1 %

2 5 , 9 %

7 7 , 8 %

1 1

2 6

1 8

4

2 0

8

1 4

3 9 , 3 %

9 2 , 9 %

6 4 , 3 %

1 4 , 3 %

7 1 , 4 %

2 8 , 6 %

5 0 , 0 %

5

2 3

1 5

4

1 8

5

1 5

1 7 , 2 %

7 9 , 3 %

5 1 , 7 %

1 3 , 8 %

6 2 , 1 %

1 7 , 2 %

5 1 , 7 %

7

1 8

5

8

0

1 2

1

3 5 , 0 %

9 0 , 0 %

2 5 , 0 %

4 0 , 0 %

0 , 0 %

6 0 , 0 %

5 , 0 %

2 0

4 4

3 8

7

7

4 0

4 3 , 5 %

9 5 , 7 %

8 2 , 6 %

1 5 , 2 %

1 5 , 2 %

8 7 , 0 %

4

1 6

2 4

2

0

2 6

1 4 , 8 %

5 9 , 3 %

8 8 , 9 %

7 , 4 %

0 , 0 %

9 6 , 3 %

48

154

12 7

25

3 8 8 2 , 6 0 % 2 7 1 0 0 , 0 % 12 3

39

11 7

27, 1%

87, 0%

71 , 8%

1 4 , 1%

6 9, 5 %

22 , 0%

66 , 1%

valores mais elevados indicam níveis mais elevados de discriminação/regulação/ legislação religiosa

ate (RAS) Project: http://www.thearda.com/Archive/Files/Codebooks/RAS2012_CB.asp 115

82,6%) tem pouca ou nenhuma restrição contra minorias religiosas e, em segundo lugar, porque apresenta os níveis mais baixos de regulação e legislação religiosa. Para tornar ainda mais claras estas diferenças regionais, criámos um índice aditivo com algumas das questões discutidas acima.6 As questões foram codificadas de modo a que cada país recebesse um ponto por cada questão. Um score máximo de 5 significa que existe uma relação “amigável ou tolerante” entre o Estado e a religião em vários domínios e, que esta goza de um espaço vital considerável na esfera política e social. Os resultados apresentados no quadro 5 demonstram que as diferenças regionais são importantes. A América Latina (4,5) é a região com maior tolerância religiosa, seguida das democracias ocidentais europeias (4,4), da África Subsariana (4,4), da ex-URSS (4,0), da Ásia (3,7) e do MONA (2,6). Quadro 4 - Grau de tolerância entre Estado e Religião - Comparação Regional

Nota: Teste ANOVA indica a existência de diferenças estatisticamente significativas entre 6 SAX2008 Religião oficial, 2008 (sim =1); SCX2008 Restrições oficiais, 2008 (nenhuma ou pouca =1); M07X2008 Restrições à gestão de escolas religiosas ou à educação religiosa em geral, 2008 (nenhuma ou pouca =1); N02X2008 Restrições a associações profissionais ou outras associações ligadas a uma religião, 2008 (nenhuma ou pouca =1); N06X2008 Restrições a organizações religiosas formalizadas além de partidos políticos, 2008 (nenhuma ou pouca =1).

116

as regiões (p < 0,001). No entanto as diferenças são sobretudo entre a Ásia e o MONA e as restantes regiões; quando estas são excluídas o efeito deixa de ser significativo (p > 0,05).

As diferenças são importantes e estatisticamente significativas7 e parecem ser sobretudo entre Ásia e MONA relativamente às restantes, uma vez que quando a análise é repetida sem estas duas regiões as diferenças regionais deixam de ser estatisticamente significativas. Em suma, a proposta de Stepan (2000; 2011) é útil de duas formas para este trabalho. Em primeiro lugar, globaliza a análise, testa conceitos desenvolvidos iterativamente em contextos europeus e constrói teoria a partir da análise de casos escolhidos pela sua significância e potencial relevância teórica, sem desrespeitar os parâmetros neo-positivistas dos desenhos de pesquisa comparativos que ainda dominam a literatura. Em segundo lugar, a proposta de Stepan, no sentido em que liga a literatura sobre democratização à literatura sobre as relações entre o Estado, a religião e a sociedade8, pode constituir um impulso relevante no sentido de tornar o debate em torno “dos secularismos” mais global. Desse ponto de vista, o estudo comparativo dos vários tipos de secularismo parece ser uma tendência mais frutífera que a análise da estrutura institucional das relações entre o Estado e a religião, que tende a produzir tipologias de esparso interesse conceptual e empírico9. De facto, se a literatura em torno da religião e da política pretende ganhar tracção no âmbito da Ciência Política e da própria Sociologia das Religiões, torna-se necessário avançar para lá do direito comparado e de conceptualizações estéreis do Estado, da religião e do comportamento das comunidades religiosas. 7 Como indicam os resultados da ANOVA. 8 Esta abordagem já vinha sido desenvolvida, por exemplo, nos trabalhos de Philpott (2004, 2007). 9 Alguns dos trabalhos mais citados, produzidos por juristas especializados em direito das religiões, direito comparado e direito constitucional ou cientistas políticos que excluem a possibilidade de relações de dominação dentro do campo religioso, não mostram uma sensibilidade a questões conceptuais e relacionais, nomeadamente no que diz respeito ao problema das dinâmicas de distribuição do poder e enviesamento das instituições no sentido de beneficiar grupos específicos, sem que se verifique qualquer tipo de coerção [ex. Soper and Fetzer (2007)].

117

4. Religião e democratização nos PALOP No seguimento da proposta de Stepan, torna-se interessante explorar novas possibilidades comparativas que desconstruam a centralidade da Europa na investigação das relações entre o Estado e a religião. É nesse sentido que exploramos o caso dos PALOP. Mas comecemos primeiro por descrever o panorama religioso em África, utilizando novamente as ferramentas disponibilizadas pela Association of Religious Data Archives no seu website10. No que diz respeito ao panorama de práticas e de pertenças religiosas, as várias tradições cristãs são particularmente expressivas na África Central11 e na África Meridional12. Na África do Norte13, o Islão é altamente maioritário. Na África Oriental14 e na África Ocidental15, persiste uma situação de pluralidade nominal: na África Oriental, dois terços dos aderentes pertence a tradições cristãs, um quinto pertence a tradições islâmicas e os restantes pertencem a religiões tradicionais; na África Ocidental, as tradições cristãs apresentam pouco mais de um terço dos aderentes, o Islão apresenta metade dos aderentes e as religiões tradicionais apresentam os restantes. A baixa prevalência de agnosticismo e ateísmo é um carácter relevante da estrutura do campo religioso em todas as regiões. Complementarmente, e usando os dados do índice Freedom of the World 2009, da Freedom House, a África Meridional é a única que ultrapassa o score 9 (em 16) no que concerne às variáveis relativas ao Estado de Direito. 10 http://www.thearda.com. 11 Região que engloba os países seguintes: Angola, Camarões, República Centro-Africana, Chade, República Democrática do Congo, Guiné Equatorial, Gabão e São Tomé e Príncipe 12 Região que engloba os países seguintes: Botswana, Lesotho, Namíbia, África do Sul e Suazilândia 13 Região que engloba os países seguintes: Argélia, Egipto, Líbia, Tunísia, Marrocos, Sudão, Ceuta e Melilla, Saara Ocidental 14 Região que engloba os países seguintes: Burundi, Comores, Djibuti, Eritreia, Etiópia, Quénia, Somália, Madagáscar, Malawi, Mayotte, Moçambique, Reunião, Ruanda, Tanzânia, Uganda, Seychelles, Zâmbia, Zimbabwe 15 Região que engloba os países seguintes: Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Costa do Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné-Conakri, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, Togo

118

Isto fornece pistas importantes para a relação proposta por Stepan (2000; 2011). Isto é, em Estados onde o rule of law é mais fraco, a ingerência do Estado no exercício das liberdades directamente ligadas às twin tolerations e anexas será mais provável; inversamente, a ingerência de grupos de interesse relacionados com tradições religiosas também será mais provável. Tendo em conta que os PALOP se inserem nestas sub-regiões, o resultado expectável é o de scores relativamente baixos em termos de regulação, favoritismo e também no índice compósito de Fox (2008). Vale a pena, por isso, atentar na posição de cada PALOP dentro do cluster regional em que se insere. Embora os dados relativos à estrutura do campo religioso nos cinco contextos nacionais que exploramos aqui não sejam muito detalhados, podemos avançar três características relevantes. Em primeiro lugar, a posição da Igreja Católica Romana continuou a ser preponderante, num contexto de construção do Estado. Ao longo dos 40 anos que se seguiram aos processos de descolonização, as estruturas de provisão de bens sociais continuaram, com variações nacionais, a depender da estrutura política pré-transição no sentido em que a Igreja Católica ocupava um papel fundamental na legitimação do poder imperial e, pela sua matriz ideológica e organizacional, estava particularmente vocacionada para a provisão desses bens. Em geral, o papel da religião, ou especificamente da Igreja Católica Romana, nos processos de transição, ainda não foi suficientemente estudado para que possamos fazer inferências sólidas a esse respeito. Contudo, é possível postular uma relação entre o grau de cooperação das Igrejas Católicas nacionais e o Estado, no seguimento da perspectiva twin tolerations, para explicar a tipologia de transição. Em segundo lugar, a heterogeneidade do campo religioso, claramente evidente em Moçambique e na Guiné-Bissau, é muito menos marcada em Cabo Verde ou em São Tomé e Príncipe. Em Angola, dadas as características do Estado e do processo de transição, a heterogeneidade do campo religioso foi neutralizada pela acção regulatória, tendente ao não-reconhecimento da religião enquanto fenómeno social.

119

Em terceiro lugar, a estrutura contemporânea dos campos religiosos é parcialmente determinada pelos regimes regulatórios e pelos processos substantivos de regulação. Assim, a Constituição angolana é mais detalhada que a são-tomense a respeito da laicidade do Estado, ao passo que a Constituição moçambicana reconhece, inclusivamente, a pluralidade jurídica inerente ao carácter descentralizado do Estado (em função do poder das autoridades tradicionais com implantação local) e aos vários grupos religiosos (uma alusão clara ao Islão), e a Constituição cabo-verdiana detalha o carácter específico da laicidade do Estado cabo-verdiano, o que não impediu a assinatura de uma Concordata, já no séc. XXI. Em seguida, procuramos descrever cada caso com referência ao cluster regional em que se insere. Como apresentámos no quadro 2, os 46 países inseridos na África Subsariana seguem duas tendências dominantes: 91,3% não tem qualquer religião oficial e o padrão de relação entre Estado e religião distribui-se entre Acomodação (45,3%, N=21) e Cooperação (23,9%, N=11), embora os graus de acomodação e cooperação variem. Em geral, os PALOP parecem inserir-se no grupo de países em que esses graus são mais elevados, embora também seja importante manter uma perspectiva crítica acerca da relação entre a regulação formal da religião (variável GRI16), a regulação substantiva da religião (variáveis GFI17 e SRI18), a estrutura do Estado e a densidade do quadro jurídico-institucional. Angola Angola insere-se no cluster África Central. O campo religioso angolano é 16 Índice de Regulação Governamental da Religião: medida agregada que expressa a regulação formal da religião (Grim e Finke 2006) 17 ndice de Favorecimento Governamental da Religião: medida agregada que expressa o favorecimento a uma tradição religiosa específica (Grim e Finke 2006) 18 Índice de Regulação Social da Religião: medida agregada que expressa as percepções socialmente dominantes acerca de uma ou mais tradições religiosas (Grim e Finke 2006).

120

claramente dominado pelas tradições cristãs, sendo, com Cabo Verde, o país cujo campo religioso é nominalmente mais homogéneo. A expressividade das religiões tradicionais e do Islão é limitada. No que respeita à variável GRI, o caso apresenta um resultado inferior ao da média do cluster regional: 0.6 contra 2.3. No que respeita à variável GFI, Angola também apresenta um resultado inferior ao da média do cluster regional: 0.2 contra 2.1. No que respeita à variável SRI, Angola excede o cluster, apresentando um valor de 4.3 contra 4. O índice compósito de Fox também indica uma variação significativa: Angola apresenta um score de 1.7 contra um score regional de 13.5. A comparação com os outros países, nomeadamente o Chade, os Camarões, a República Centro-Africana e a Guiné Equatorial, mostra que Angola é um outlier a este respeito. No que diz respeito aos resultados de Angola no índice Polity IV, tratava-se, em 2011, de uma closed anocracy, denotada no score de -2 (numa escala de -10 a 10), enfrentando um processo de transição após 1975, em que surge classificada como autocracia, com um score de -7. Já no que concerne às variáveis reportadas pelo índice Freedom House, o caso apresenta scores relativamente alinhados com os da região em que se insere para os efeitos deste estudo. Assim, na escala de direitos políticos (1-7, score mais baixo igual a maior liberdade), o score é 6.0, ao passo que o cluster regional tem um score de 5.7. No que concerne à escala de pluralismo político e participação (0-16, score mais baixo igual a menos oportunidades), Angola obtém 6.0, ao passo que o score regional é 4.9. Na escala de rule of law (0-16, score mais baixo igual a menor capacidade do Estado de Direito), Angola obtém 4.0, ao passo que o score regional é de 3.3. Trata-se de uma classificação consonante com o tipo de regime em vigor e sugere uma relação pouco consistente com as variáveis relativas à regulação da religião. A tracção destas variáveis é testada precisamente através do caso angolano, em que as variáveis relativas à perspectiva minimalista e maximalista da democracia sugerem uma outra explicação para os resultados: a baixa regulação

121

e o baixo favoritismo podem dever-se à inexistência de um quadro legal substantivo ou a mecanismos de regulação e repressão substantivos não capturados pelas variáveis que usamos. Estas possibilidades são discutidas abaixo. Cabo Verde Cabo Verde insere-se no cluster África Ocidental. Tal como em Angola, as tradições cristãs dominam o campo religioso, com uma particularidade: ao passo que, em Angola, o catolicismo parece ser a tendência dominante, várias tradições protestantes e neopentecostais parecem ter uma expressão maior. O Islão e as religiões tradicionais têm pouca expressão. O resultado na variável GRI é 0, ao passo que a média regional é 1.4. A diferença acentua-se na variável SRI: a média regional é 4.4 e Cabo Verde apresenta um resultado de 0.7. Quanto à variável GFI, Cabo Verde excede a média regional: 5.3 contra 3.5. A variável compósita de Fox (2008) mostra, além disso, outra instância em que o país diverge da média: 16.3 contra 13.8. Dada a dimensão do cluster regional, torna-se menos evidente a distância entre Cabo Verde e outros casos, ainda que o país possa ser colocado numa sub-categoria regulatória onde a intensidade da regulação é superior: ao passo que o Benim apresenta resultados indicativos de uma ausência quase perfeita de regulação, o Senegal e o Gana apresentam resultados intermédios e a Costa do Marfim, o Mali e Cabo Verde sugerem maior regulação governamental. Este resultado é interessante porque mostra a inexistência de uma correlação explícita entre número de aderentes de uma dada tradição religiosa e tipo de regime regulatório: a maioria dos aderentes, no Mali, é muçulmana (xiita ou sunita), ao passo que os aderentes, em Cabo Verde, são maioritariamente cristãos. No que diz respeito aos resultados de Cabo Verde no índice Polity IV, tratava-se, em 2011, de uma full democracy, denotada no score de 10 (numa escala

122

de -10 a 10), enfrentando um processo de transição após 1975, em que surge classificada como closed anocracy, com um score de -4. Já no que concerne às variáveis reportadas pelo índice Freedom House, o caso apresenta scores relativamente alinhados com os da região em que se insere para os efeitos deste estudo. Assim, na escala de direitos políticos, o score é 1.0, ao passo que o cluster regional tem um score de 3.7. No que concerne à escala de pluralismo político e participação, Cabo Verde obtém 15.0, ao passo que o score regional é 9.2. Na escala de rule of law, Cabo Verde obtém 14.0, ao passo que o score regional é de 7.3. Assim, podemos sugerir que o regime regulatório cabo-verdiano está parcialmente correlacionado com as regras do processo político, a densidade do quadro legal e os processos substantivos de regulação. Guiné-Bissau A Guiné-Bissau insere-se no mesmo cluster regional que Cabo Verde. Trata-se do único caso, entre os cinco analisados, em que as tradições cristãs ocupam um lugar minoritário: as variadíssimas tradições islâmicas e religiões tradicionais partilham 90% do total de aderentes. O resultado na variável GRI é 0.6; o resultado na variável SRI é 1.9; o resultado na variável GFI é 0. A variável compósita de Fox (2008) mostra o resultado de 11.3. Assim, em todos os resultados, a Guiné-Bissau mostra resultados inferiores à média regional. Trata-se de um caso que pode ser colocado numa categoria sub-regional de menor regulação governamental. No que diz respeito aos resultados da Guiné-Bissau no índice Polity IV, tratava-se, em 2011, de uma democracia, denotada no score de 6 (numa escala de -10 a 10), enfrentando um processo de transição após 1975, em que surge classificada como autocracia, com um score de -7. Já no que concerne às variáveis reportadas pelo índice Freedom House, o caso apresenta scores relativamente alinhados com os da região em que se insere para os efeitos deste estudo. Assim,

123

na escala de direitos políticos, o score é 4.0, ao passo que o cluster regional tem um score de 3.7. No que concerne à escala de pluralismo político e participação, a Guiné-Bissau obtém 9.0, ao passo que o score regional é 9.2. Na escala de rule of law, a Guiné-Bissau obtém 9.0, ao passo que o score regional é de 7.3. Tendo em conta as especificidades deste caso, podemos sugerir as mesmas razões para os resultados convergentes num quadro regulatório praticamente inexistente que sugerimos para Angola: a inexistência de legislação e a existência de mecanismos repressivos ou favorecedores não capturados por estas variáveis. Moçambique Moçambique insere-se no cluster África Oriental. Metade dos aderentes reportados pertencem nominalmente a tradições cristãs; as religiões tradicionais, com um terço, e o Islão, com um sexto, são as outras tradições relevantes. A respeito da variável GRI, Moçambique apresenta um resultado de 0.8 contra uma média regional de 3.4. Quanto à variável SRI, o resultado nacional é de 1.8 contra uma média regional de 3.6. Quanto à variável GFI, o resultado é de 0.5 contra 3.8. A variável compósita de Fox (2008) mostra um resultado de 4.3 contra uma média regional de 20.6. Moçambique pode ser inserido numa sub-categoria em que caberiam o Burundi, o Malawi, o Uganda e a Tanzânia (ambos num quadro mais intermédio); as Comores, o Djibuti, a Eritreia, o Quénia e a Zâmbia podem ser colocados no pólo oposto, com níveis muito elevados de regulação e com resultados superiores a 25 na variável compósita de Fox (2008). O Botswana, o Lesotho, a África do Sul e a Suazilândia, todos membros do cluster África Meridional, podem ser entendidos como aproximados aos resultados de Moçambique, o que levanta a questão da validade e consistência destes clusters regionais. No que diz respeito aos resultados de Moçambique no índice Polity IV, tratava-se, em 2011, de uma democracia, denotada no score de 6 (numa escala de -10

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a 10), enfrentando um processo de transição após 1975, em que surge classificada como autocracia, com um score de -8. Já no que concerne às variáveis reportadas pelo índice Freedom House, o caso apresenta scores relativamente alinhados com os da região em que se insere para os efeitos deste estudo. Assim, na escala de direitos políticos, o score é 3.0, ao passo que o cluster regional tem um score de 4.5 (o cluster África Meridional apresenta um score de 3.0). No que concerne à escala de pluralismo político e participação, Moçambique obtém 11.0, ao passo que o score regional é 7.4 (o cluster África Meridional apresenta um score de 9.8). Na escala de rule of law, Moçambique obtém 8.0, ao passo que o score regional é de 6.3 (o cluster África Meridional apresenta um score de 9.8). São Tomé e Príncipe São Tomé e Príncipe insere-se no cluster África Central. No pólo oposto da Guiné-Bissau, trata-se do único contexto em que as tradições cristãs são hegemónicas e não se observam excepções. A respeito da variável GFI, o resultado é 0 contra a média já referida de 2.3; quanto à variável SRI, o resultado é 0.7 contra 4; quanto à variável GFI, o resultado é 0.2, ao passo que o resultado regional é de 2.1. A variável compósita de Fox, tal como reportada nos casos anteriores, não está disponível para São Tomé; contudo, é possível estimar a posição do país na mesma sub-categoria que os outros PALOP da mesma região, pelo menos no que respeita às três variáveis reportadas. Contudo, a inexistência, até ao momento, de uma codificação fiável do índice de Fox impossibilita uma avaliação mais adequada do posicionamento do país. Isto deve-se ao facto de, como já referimos, apenas países com um população superior a 250.000 habitantes serem incluídos no índice RAS. São Tomé e Príncipe não surge no índice Polity IV. Já no que concerne às variáveis reportadas pelo índice Freedom House, o caso apresenta scores relativamente alinhados com os da região em que se insere para os efeitos deste

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estudo. Assim, na escala de direitos políticos, o score é 2.0, ao passo que o cluster regional tem um score de 3.7. No que concerne à escala de pluralismo político e participação, São Tomé e Príncipe obtém 14.0, ao passo que o score regional é 9.2. Na escala de rule of law, São Tomé e Príncipe obtém 12.0, ao passo que o score regional é de 7.3. Retomando a discussão em torno das twin tolerations, podemos afirmar que todos os casos se inserem no quadro analítico proposto por Stepan, na medida em que todos os casos podem ser encaixados nas categorias propostas. Cabo Verde pode ser concebido como “não-secular aberto à democracia”, dada a assinatura da Concordata e os privilégios às tradições cristãs; os casos restantes podem ser classificados como seculares abertos à religião, na medida em que todos prevêm medidas restritivas da perseguição religiosa e todos prevêm subvenções públicas a organizações religiosas. Angola, o caso de classificação mais complexa, dada a matriz ideológica que estrutura nominalmente o Estado, não apresenta as características de um Estado anti-religioso, ainda que os requisitos de registo de tradições religiosas suscite dúvidas a respeito do regime regulatório capturado pelas variáveis que apresentamos neste estudo. A avaliação geral sugere que um estudo mais aprofundado, seguindo um desenho de pesquisa intensivo – estudo de caso ou estudo de caso emparelhado, como sugerido por Tarrow (2010) – permitiria o teste de hipóteses e a construção de teoria e de novas categorias tipológicas. De facto, a fenomenologia religiosa, no continente africano, parece ter uma configuração diferente daquela que a teoria da secularização determina para o contexto europeu, com limitações significativas para os contextos da periferia geralmente católicos, como Portugal, Espanha, Malta, Polónia e a Irlanda, ou mesmo a Grécia, apesar do campo religioso grego ser dominado pela tradição ortodoxa grega. A estrutura

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do campo religioso em todos os países escolhidos para esta análise exploratória revela uma prevalência limitada do agnosticismo e ateísmo. As heranças imperiais, a organização do sistema judicial e a estrutura do sistema político são vectores analíticos importantes. Em democracias pouco consolidadas, é pouco provável que a regulação do campo religioso seja efectuada por meio de mecanismos legais: a comparação entre Angola e Cabo Verde sugere que as limitações de uma análise comparativa que recorra apenas a dados quantitativos não capturará as variedades de twin tolerations que poderão ser capturadas através de estudos de caso. Se, em Angola, a situação reportada através do índice parece ser a de uma cooperação distanciada, como definido por Bhargava, outros dados empíricos, nomeadamente relativos à forma como o Estado angolano exerce influência sobre a sociedade civil e define o modo de legalização de uma confissão religiosa, sugerem um contexto menos favorável à persistência de liberdades associativas religiosas. Em Cabo Verde, onde a assinatura de uma concordata parece estatuir um modelo semelhante ao de Portugal ou da Itália, a captura, pelo índice, de níveis comparativamente elevados de regulação pode ser apenas uma função da intensidade e da qualidade da democracia cabo-verdiana, onde os processos políticos são mais regulados, escrutinados e pluralistas.

5. Horizontes geográficos e normativos: uma conclusão aberta Neste texto, enfatizámos a necessidade de alargar o escopo geográfico dos casos elegíveis para estudar e teorizar as relações entre os Estados e as religiões no mundo contemporâneo. Para esse efeito efetuámos uma análise mais detalhada sobre os PALOP sem nunca perder de vista o seu enquadramento regional. O interesse desta comparação ficou demonstrado pela consistência dos indicadores apresentados, sugerindo que estudos mais aprofundados podem contribuir para criar novas tipologias, compreender de forma mais rigorosa a interacção entre

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religião e política, em particular o efeito do campo religioso na democracia – na senda de Stepan (2000; 2011) e das twin tolerations -, e, finalmente, tornar o debate académico acêntrico, isto é, desconstruir categorias analíticas implicitamente centradas num ideal-tipo que, como sugerido por Davie (2007) e Bhargava (1998), entre outros, não esgota todas as possibilidades analíticas. Deste modo, será possível explorar novas possibilidades teóricas e responder a novos problemas, como a intervenção das comunidades religiosas no processo de produção de políticas públicas e o impacto da religião nas instituições políticas. O último dos vectores a que nos referimos, incidente na discussão normativa do papel da religião no mundo contemporâneo, coincide, em linhas gerais, com a diversificação geográfica que propomos neste estudo. Embora essa discussão penda para debates teológicos e hermenêuticos, o contributo da Política Comparada é importante no sentido em que propõe novas visões acerca das relações entre sistemas simbólicos, entidades políticas e modos subjectivos de perspectivar o mundo. Assim, a análise do caso indiano, nos termos de Bhargava (1998) ou até de Kaviraj (2010), auxilia uma compreensão do papel da religião no mundo contemporâneo nos termos da sua capacidade integradora e consolidadora de estruturas políticas. Embora a normatividade da discussão, nos estudos políticos empíricos, seja limitada, é possível alargá-la, por exemplo, ao papel das tradições religiosas dominantes em cada um dos clusters e/ou casos nacionais, questionando a sua capacidade de estruturar o campo religioso – que não se cinge, como fizemos neste estudo por razões de simplificação, à quantificação do número de aderentes nominais a uma tradição religiosa – e definir o conteúdo e os limites do discurso público sobre a posição da religião ou das tradições religiosas nas sociedades em que se inserem. Abordar questões de poder constitui uma abordagem normativizante que pode valorizar estudos empíricos. O valor intrínseco da religião, a sua fenomenologia ou debates em torno de questões teológicas, ainda que não devam ser abordados como questões normativas, podem ser transforma-

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dos em fenómenos, estruturas e processos passíveis de análise empírica; a recursividade entre domínios, própria de uma abordagem anti-positivista, ajuda-nos a questionar a delimitação entre cientificidade e normatividade. Essa delimitação é, de resto, um dos pontos mais relevantes do estudo das variedades de secularismo e relações Estado-religião-sociedade. Ao passo que a visão positivista dominante presume o secularismo como antítese da religião e, portanto, como neutralidade absoluta, novas abordagens, que incorporam preocupações históricas e hermenêuticas, compreendem o secularismo como formação sociopolítica ambivalente face ao domínio do religioso. A multiplicidade de experiências, a que aludimos neste estudo com a consciência de termos excluído contextos nacionais, subcontinentais e continentais importantes, contribui para repensar a posição da religião no mundo contemporâneo e contestar posições teleológicas ou, em última análise, metodológica e teoricamente imperialistas, como aquelas que derivam de um foco excessivo em casos amplamente estudados, como os já referidos casos alemão, francês, inglês e neerlandês. É esse eurocentrismo, muitas vezes explícito, que deve ser continuamente questionado e, preferencialmente, abandonado. Na medida em que existem casos como aqueles que Bhargava descreve na teoria, com recurso ao contexto indiano, e Stepan compara, com recurso aos casos senegalês, indonésio e indiano. É aqui que a análise do caso dos PALOP ganha interesse. Estes países convergem entre si, mas não convergem com os seus parceiros regionais. Embora não detenhamos, ainda, dados empíricos suficientes, essa convergência é um dado extremamente relevante, dado que opera em contextos muito diferentes. O legado imperial, dimensão comum a todos os contextos, é uma explicação possível, ainda que os detalhes do nexo causal sejam difíceis de determinar. As transições para a democracia e a construção posterior dos Estados parecem ser variáveis independentes mais sugestivas, na medida em que essas transições contaram com a cooperação entre elites políticas e religiosas, isto é, na medida em que se

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operou uma composição do paradigma twin tolerations, os regimes regulatórios são resultado dessas transições. Isto encerra uma contradição: a convergência entre casos torna Angola e, por exemplo, Cabo Verde casos semelhantes. No entanto, os processos de transição foram diferentes. Ainda assim, os processos de democratização, nestes países, não podem ser totalmente compreendidos sem uma análise detalhada das relações entre o Estado e a religião. Nesse sentido, uma análise dos regimes regulatórios da religião é um mecanismo heurístico importante: esses regimes resultam de legados históricos e dependências de trajectória que podem ajudar-nos a explicar por que razão (ou razões) estes países parecem operar numa lógica própria, razoavelmente independente dos seus contextos regionais.

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PAINEL 2 Mobilidades Cultura e Identidades



A “Lusofonia” e as representações Luso-Tropicais na Literatura Feminina Colonial e Pós-Colonial sobre Angola Alberto Oliveira Pinto - Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Resumo Pretendemos mostrar que o conceito de “lusofonia” nunca se liberta do de “luso-tropicalismo” nem do discurso colonial. Analisamos dois romances escritos e publicados em épocas diferentes, um anterior e outro posterior a 1975, data da independência de Angola, que têm em comum o facto de serem de autorias femininas, de versarem sobre temas da história de Angola e de apresentarem personagens femininas mestiças como protagonistas: Navionga. Filha de Branco, de Maria Perpétua Candeias da Silva, publicado em 1966; e Loanda. Escravas, Donas e Senhoras, de Isabel Valadão, publicado em 2011. Em ambos se assiste, na linha eugenista de Gilberto Freyre, a uma aparente exaltação da mulher mestiça que acaba por redundar na utilização da mulher angolana como instrumento sexual de colonização. Abstract We aim to demonstrate that the concept of “lusophone” never releases the “luso-tropicalism” or the colonial discourse. We analyze two novels written and published at different times, before and after the Independence of Angola in 1975, which have in common the fact of being female authorship, relating themes of the history of Angola and presenting female characters as protag-

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onists: Navionga, Filha de Branco, by Maria Perpetua Candeias da Silva, published in 1966; and Loanda. Escravas, Donas e Senhoras, by Isabel Valadão, published in 2011. In both we assist, in eugenicist line of Gilberto Freyre, an apparent exaltation of the mestizo woman who eventually result in the use of Angolan women as a sexual instrument of colonization. Palavras-chave: Literatura Feminina; Lusofonia; Luso-Tropicalismo; Colonialismo; Angola. Key-Words : Women’s literature ; Lusophone; Luso-Tropicalism; Colonialism; Angola.

Introdução e conceptualização Poderá a “lusofonia” existir independentemente do luso-tropicalismo ? Importa, desde já, diferenciar os conceitos. “lusofonia” é um neologismo inventado em Portugal depois de 1975, data das independências das colónias portuguesas do continente africano, que adoptaram o português como língua oficial. Como muito bem o escreveu Alfredo Margarido, a “lusofonia” mais não é do que uma “prótese” destinada a preencher o vazio deixado, entre os portugueses, os ex-colonizadores, mas também entre os ex-colonizados, pela extinção do Império Colonial (Margarido, 2000, p. 28). Falar de “lusofonia” ou de “espaço lusófono”, seja em que contexto for – político, económico, cultural ou outro - é, inevitavelmente, sinónimo de falar de neo-colonialismo, mesmo que o neo-colonizador não seja Portugal e sim outra potência que utilize a língua portuguesa para legitimar a sua hegemonia.

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O luso-tropicalismo designa um conjunto de teorias formuladas pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (Recife/Brasil, 1900 - 1987) em 1933, na sua obra Casa Grande & Senzala, segundo as quais os portugueses - e os iberos em geral - seriam “mestiços” ou “híbridos” por descenderem de semitas (judeus e árabes) e, consequentemente, encontrar-se-iam mais vocacionados do que os outros europeus para colonizar e se misturarem com as mulheres dos trópicos. Só na década de 1950, depois de haver sido convidado a visitar as colónias portuguesas em África pelo governo português de então – o qual, em resposta à conjuntura internacional saída da II Guerra Mundial preconizadora das independências africanas, pretendia legitimar a prossecução da sua política colonial com discursos de miscigenação –, é que Gilberto Freyre baptizou as suas teorias com o nome de luso-tropicalismo. Inaugurou o termo em livros que escreveu com o patrocínio português, de entre os quais se destaca Aventura e Rotina, publicado em 1954. O luso-tropicalismo serviu, portanto, daí em diante, de maquilhagem ao discurso colonial português, visando disfarçar a mistofobia e o segregacionismo racistas até então assumidamente dominantes, como aliás já tivemos oportunidade de o estudar noutro lugar (Pinto, 2013, Passim). Assim, a “lusofonia” e os chamados “espaço lusófono” e “cultura lusófona” confundem-se, não apenas com o luso-tropicalismo, mas com todas as escolhas ideológicas do discurso colonial português, conscientes ou não, anteriores ou posteriores às independências das colónias portuguesas. Como evidenciá-lo de modo mais objectivo? Partindo de três pilares teóricos: o conceito de história cultural, que encara a cultura como um conjunto de significados e símbolos contruídos pelos homens para explicar o mundo, pressupondo sempre um posicionamento inevitavelmente valorativo (Pesavento, 2008, p.15); a ideia de que a cultura colonial portuguesa se prende menos com o sentimento de “ser colonial” no sentido de “actor/agente da colonização” ou “defensor do colonialismo” e mais com o de

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“ser colonial” no sentido identitário, cultural, “físico/epidérmico” (Henriques, 2013, p. 18); e, por fim, o postulado de que as obras literárias, nomeadamente as de carácter narrativo, como o conto ou o romance, constituem fontes da história cultural (Pinto, 2013, p. 262-273). Optámos por um estudo de caso que consiste no cotejo de dois romances escritos e publicados em épocas diferentes, um anterior e outro posterior a 1975, data da independência de Angola. Ambos têm em comum o facto de serem de autorias femininas, de versarem sobre temas da história de Angola e de apresentarem personagens femininas mestiças como protagonistas: Navionga, Filha de Branco, de Maria Perpétua Candeias da Silva, publicado em 1966; e Loanda. Escravas, Donas e Senhoras, de Isabel Valadão, publicado em 2011. Em que medida é que estes dois romances espelham ou não a cultura colonial portuguesa? Por outras palavras, o que é que há nestes romances de “lusófono” ou de “cultura lusófona”?

Navionga, Filha de Branco de Maria Perpétua Candeias da Silva: a mulher mestiça como porta-voz do discurso colonial ou a angolanidade silenciada pelo luso-tropicalismo? Ser ou não ser colonizadora e lusófona? Oriunda de uma família de colonos portugueses, Maria Perpétua Candeias da Silva nasceu em Bissapa, no distrito (hoje província) da Huíla, no sul de Angola, em 1932. Professora de línguas e falante de umbundu, estreou-se como escritora em 1959 com um livro de contos cujo título já denuncia uma tendência para a fixação obsessiva na mestiçagem: A Mulher de Duas Cores, que lhe valeu o primeiro prémio no Concurso Literário da Câmara Municipal de Sá da Bandeira. Seguiu-se-lhe outro livro de contos, O Homem Enfeitiçado, em 1961. Mas a obra maior de Maria Perpétua Candeias da Silva veio a ser o

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romance Navionga, Filha de Branco, publicado em 1966, num tempo em que a guerra pela independência de Angola – em Portugal designada por “Guerra Colonial” – já decorria há cinco anos. As perspectivas integracionistas pretensamente pluri-raciais do luso-tropicalismo já se encontravam, portanto, plenamente instaladas no discurso colonial português, o que levou a que o bilinguismo do romance – que apresenta no frontispício o título em umbundu, Navionga, Omõlã à Tchindere, e um glossário nas páginas finais -, assim como o seu carácter etnográfico, recebessem elogios do ensaísta Amândio César, o padrinho da rebaptizada “literatura ultramarina” (César, 1971, p. 201-202). Esta realidade, aliada ao facto de não se conhecer à autora nenhuma obra posterior à independência de Angola, condenou Maria Perpétua Candeias da Silva a ficar classificada como escritora da literatura colonial portuguesa. No entanto, numa nota introdutória a Navionga, Filha de Branco, Maria Perpétua Candeias da Silva segue o exemplo de Óscar Ribas, autor por quem não esconde a admiração, no seu romance igualmente de título bilingue Uanga (Feitiço), publicado em primeira edição 32 anos antes: assumindo-se como angolana, refuta o carácter exótico atribuído pelos portugueses à sua literatura. Além disso, procura afirmar, em Navionga, Filha de Branco, a sua angolanidade pela via estetizante da “umbundização” da língua portuguesa no discurso directo ou semi-directo: nos diálogos das personagens de língua umbundu e nos monólogos narrativos de Navionga, o substantivo vem depois do adjectivo e do pronome, como nas línguas bantu (Ex: corpo meu em vez de meu corpo). Navionga, Filha de Branco é um romance histórico passado na Caconda que, como a própria autora o refere, é o presídio português mais antigo do Planalto da Huíla (Silva, 1966, p. 9). Fundada em 1682 pelo governador João da Silva e Sousa, reforçada em 1766 pelo governador pombalino Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, só em 1857 é que a Caconda se autonomizou administrativamente de Benguela e se tornou concelho (Milheiros, 1972, p. 47). É precis-

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amente um ano depois, em 1858, que se desenrola a acção de Navionga, Filha de Branco. As primeiras páginas reproduzem uma conversa enigmática, travada em umbundu (com tradução para português entre parêntesis), entre um homem idoso e uma mulher jovem que, durante a noite, vão sorrateiramente desenterrar da sepultura o cadáver de um português. Qual o mistério que está por detrás? Todo o romance, considerado por alguns de terror, é construído em torno do que aconteceu antes e depois desta cena tétrica. Em Vissapa (mais tarde Bissapa), a 30 quilómetros da Caconda, fixaram-se alguns deportados políticos portugueses, entre os quais um duque de Cadaval, acompanhado da esposa. Embora tal tenha acontecido, com maior probabilidade, no século XVIII, durante o período pombalino ou mesmo antes, no reinado de D. João V, a cronologia diegética de Maria Perpétua Candeias da Silva parece apontar para mais tarde, para os anos da Guerra Civil Portuguesa – eufemísticamente conhecida por “Guerras Liberais” -, que decorreu entre 1828 e 1834. Já em Vissapa, o casal de duques teve uma filha, que perderia a mãe daí a dois anos. Esta menina branca nascida em Angola foi baptizada com o nome de Maria Antónia Pilarte da Silva1, mas nunca falou outra língua senão o umbundu, desconhecendo o português. Ficaria conhecida entre os Ovimbundu, que a elegeram rainha aos 18 anos, por D. Vissapa. Em 1858, D. Vissapa, a rainha branca, tem 27 anos, pelo que terá nascido em 1831. O duque de Cadaval, no entanto, “passou a tomar alguns hábitos indígenas” (Sic.) e gerou filhos mestiços (Silva, 1966, p. 9). Entre eles, destacava-se a jovem Navionga, mais nova cinco anos do que D. Vissapa. Todavia, a rainha branca não reconhecia Navionga como irmã. Alegava que o pai da mulata não era o duque de Cadaval e sim o 1 Os únicos indivíduos que os documentos escritos registaram com o nome de Pilarte da Silva viveram no século XVIII: um deles, João Pilarte da Silva, foi um morador da Caconda, referido entre os anos de 1717 e de 1721; os outros dois, provavelmente filhos do primeiro, são João Pilarte da Silva, autor do relatório de uma viagem de exploração de Benguela a Alba Nova (futura Huíla), datado de 1770, e Paulo Pilarte da Silva, capitão-mor da Huíla a partir de 1775. Inspirariam ao romancista angolano Jorge Arrimar (n. Chibia, 1953) uma família fictícia cujas gerações percorrem a sua trilogia de sagas no Planalto da Huíla.

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branco Alfredo, com quem a mãe negra de Navionga se juntara na Caconda, já depois de ter vivido com o duque em Vissapa. O drama desencadeia-se quando as duas mulheres, a branca e a mulata, se apaixonam pelo mesmo homem, um português. Luso-tropicalismo? José Anselmo Guimarães, natural de Coimbra e oriundo de uma família abastada, era um pacato estudante de medicina quando, por volta de 1845, com 20 anos de idade, foi preso e condenado injustamente por cumplicidade num crime de falsificação de moeda. Degredado para Angola, permaneceu dois anos em Luanda, mudando-se depois para a Caconda, onde viveria 11 anos. Depressa se interessou pela rainha branca da Vissapa e não hesitou em pedir ao pai dela a sua mão em casamento. Mas a resposta do duque de Cadaval foi negativa e amarga: “- A minha filha só casará com um titular e, como é pouco provável que esse titular apareça, prefiro tê-la ignorante, vivendo entre os selvagens. Será um bem para ela. Aquilo que consideramos civilização só serve para nos criar embaraços e fazer-nos sofrer!” (Silva, 1966, p. 96-97).

Passados cinco anos, José Guimarães, agora conhecido por branco José, junta-se com a jovem Navionga. Ao contrário da branca D. Vissapa, a mulata Navionga deixa-se “civilizar” pelo branco, chegando mesmo a tartamudear palavras em língua portuguesa. Mas a primeira operação civilizadora do homem branco é “vestir” a “selvagem”: “- […] Porque te vestes de peles? Uma mulata deve ter certo orgulho e não andar vestida como andam as pretas. / - Mas… Branco, onde vou eu buscar fazendas? Só as tive enquanto o homem branco da minha mãe teve vida. / - Se te quiseres juntar a mim, talvez te possa arranjar panos quando for a Benguela. […] Não é bonito que a filha de um branco ande para aí a mostrar as mamas a toda a gente, mesmo que sejam belas como estas” (Silva, 1966, p. 32-33) [sublinhados nossos].

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Noutro lugar (Pinto, 2013, p. 496-497) comentámos uma cena parecida descrita em Princesa Negra, de Luís Figueira, romance colonial sobre Angola publicado em 1932, no ano em que Maria Perpétua Candeias da Silva nasceu, muito antes de o luso-tropicalismo chegar ao discurso colonial português. Mas, além dos 34 anos que separam os dois romances e de a personagem “selvagem” de Luís Figueira não se tratar de uma mulata e sim de uma negra, a princesa Mutango, deparamos com mais duas diferenças em Navionga, Filha de Branco. A primeira é que agora, encontrando-nos na presença de uma escrita feminina, tudo é visto da perspectiva da personagem colonizada, a mulher, e não do narrador colonizador, o homem. Navionga torna-se mesmo, em muitas páginas do romance onde é utilizado o recurso ao flash-back, um duplo da narradora. A segunda diferença é que a síndrome de Fanon da mulata Navionga ainda é mais acentuada do que a da princesa negra Mutango. Apesar de menosprezada por José durante os seis anos que viveu com ele, Navionga rejeitará todos os pretendentes negros que a cortejam após a morte do companheiro branco. Argumenta que o homem negro obriga a mulher a trabalhar e o branco não. Além de desdenhar dos homens negros, a mulata - substituindo-se ao pai e ao ex-companheiro, os colonizadores - torna-se denunciadora das tradições africanas, que não hesita em classificar como “selvagens”. Ao recusar desposar o seu principal pretendente, o jovem sõma (soba em umbundu) Tchatenga, que acabou de suceder ao seu tio materno, Navionga amaldiçoa os duvidosos sacrifícios humanos atribuídos por alguns antropólogos coloniais aos funerais dos chefes políticos africanos: “ - […] Ser mulher de “sõma”? “Karicâna!” [Nunca!] Saber que quando um dia morreres te sentarão numa cadeira, a cadeira dos “sõmas”, bem atado para não caíres, no pescoço uma corda forte bem atada e junto ao corpo teus dois pequenos escravos […] bem amarrados para não fugirem, duas pobres vidas nascidas de pais escravos, pais aos quais negam alma para chorar os filhos, duas pobres crianças que

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hão-de assistir ao teu apodrecimento, morrendo de fome […]. […] Cala a boca, grande Tchatenga, Navionga nunca há-de atravessar o caminho teu. Navionga não quer mais pretos. E tu, “sõma” ou não “sõma”, serás preto para sempre” (Silva, 1966, p. 135-137) [sublinhados nossos].

Além de porta-voz do argumento colonialista do esclavagismo atávico dos africanos, a mulata Navionga também se apropria de outra falácia colonial utilizada no processo de enselvajamento do Outro: a da antropofagia. Por ocasião da coroação de Tchatenga, quando o tchimbanda (feiticeiro) Yòpiru se prepara para sacrificar uma criança cuja carne seria comida pela comunidade, conforme alegadamente era a tradição, Navionga recusa-se a ingerir as vísceras do inocente sacrificado e não hesita em insultar, quer o feiticeiro, quer o jovem sõma, quer as próprias mulheres ovimbundu - que são idosas e negras, e não jovens e mulatas como ela -, num discurso pretensamente civilizador e evocativo da memória do “exemplar” branco José: “- Cão à toa de “tchimbanda”, o teu coração é negro, negro como a tua cor. Lá dentro só há manha e raiva. […] E tu, Tchatenga, és tão feio como esta hiena do feiticeiro. Porque vais consentir na morte deste rapazinho? É só a guloseima de lhe chupares o sangue e de lhe comeres da carne que te agarra? E vocês, tontas velhas, que quereis daqui? Porcos, grandes porcos, bem dizia o branco José que os vossos hábitos o enjoavam…” (Silva, 1966, p. 140) [sublinhados nossos].

Mas, afinal, de que é que morreu o branco José Guimarães? É neste ponto que Maria Perpétua Candeias da Silva consegue libertar-se do discurso colonial português e sobretudo da impostura do luso-tropicalismo. Ao receber uma carta do governador de Benguela confirmando-lhe que a sua inocência fora judicialmente comprovada em Coimbra, o ex-degredado José Guimarães, contrariando a lição luso-tropicalista, não só não hesita em preparar-se para regressar

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a Portugal, como se recusa a levar consigo a sua companheira mulata, que não considera digna de ser, na metrópole, nem sua esposa, nem tão-pouco sua cozinheira. O caso não é inédito. Como já o mostrámos (Pinto, 2012, p. 241-256), a tradição oral e o cancioneiro angolanos, assim como a própria literatura colonial portuguesa sobre Angola, estão cheios de casos similares. A particularidade do romance de Maria Perpétua Candeias da Silva reside no facto de a mulher angolana abandonada pelo companheiro português não ser uma negra e sim uma mulata, o que ainda mais põe a nu o carácter falacioso do luso-tropicalismo. Os homens brancos portugueses, tão racistas quanto os outros europeus, só se juntam com mulheres africanas quando se encontram impossibilitados de se unirem a mulheres portuguesas e brancas. Esta evidência é um choque para a mulata Navionga, que aliás manifesta plena consciência de ter representado para o branco um mero objecto sexual: “E eu compreendi, comecei a compreender então: tu nunca havias gostado de mim! Sim, nunca me quiseste como poderias ter querido uma mulher da tua cor! Como gostaste da minha irmã branca! Eu fui, para ti, o que é a fêmea do leão para ele. Fui, para ti, o que a fêmea do gato bravo é para ele: gostaste só do corpo meu! Precisavas de mulher e eu servi-te bem para isso! Ah, branco! Como foi terrível eu ter compreendido a verdade!” (Silva, 1966, p. 102) [sublinhados nossos].

Mas se, na diegese do romance de Maria Perpétua Candeias da Silva, a mulata Navionga, ao ver-se abandonada pelo branco, é uma apregoadora da civilização colonizadora, não deixa, em contrapartida, de ser também uma “selvagem”. E, para enselvajar Navionga, a autora socorre-se da retórica colonial da “feitiçaria” dos africanos. Levanta-se, então, o véu que encobria o enigma do diálogo travado nas páginas iniciais entre um homem idoso e uma mulher jovem ao desenterrarem o cadáver de um branco. O homem idoso era o feiticeiro Yòpiru, a mulher jovem era Navionga, e o cadáver desenterrado era… o do branco José Guimarães!

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Tal como o companheiro branco de Damba Maria – a protagonista da narrativa de tradição oral da Catumbela recolhida por Óscar Ribas e por Gonzaga Lambo –, também José Guimarães, ao decidir-se a partir para Portugal, deixa a Navionga a casa e os animais: 10 vacas, 12 porcos, cabritos e galinhas. Embora mais feliz do que Damba Maria, pois o seu ex-companheiro branco não lhe impõe um novo companheiro negro, Navionga desfaz-se de todo o património deixado por José, entregando-o ao feiticeiro Yòpiru como paga do pacto demoníaco que com ele estabelece. Inicialmente, pedira apenas a Yòpiru que fizesse um feitiço com “pós de amor”, que impediriam José de partir. Mas, ao ver que os pós não resultavam e que, mesmo assim, o português, não só insistia em voltar para o seu país, como fazia questão de não o fazer sem primeiro se despedir da rainha D. Vissapa, a mulata Navionga, levada pelos ciúmes pela branca, acede a tornar-se cúmplice de Yòpiru na preparação de um sortilégio contra o branco: envenenariam José e depois desenterrariam o seu corpo para lhe retirar as vísceras e venerar o esqueleto. É com a caveira de José Guimarães na mão – tal como Hamlet com a caveira do bobo Yorick - que Navionga monologa ao longo da maioria das páginas do romance e se interroga sobre a sua vida. E, à semelhança do herói shakespeariano, também as interrogações de Navionga giram em torno da fórmula “ser ou não ser”. Neste caso, trata-se de ser ou não ser mulata, isto é, “filha de branco”. Ser branca ou ser negra? Ser colonizadora ou ser colonizada? Ou antes, ser ou não ser… “lusófona”? Permanentemente amaldiçoada pela voz do branco José Guimarães, que brota da caveira, Navionga acaba por optar pelo suicídio, afogando-se no rio Catumbela. O facto de haver recusado ter um companheiro negro não a livrou, portanto, de um destino muito próximo do que coube à desventurada Damba Maria. Mas, mesmo morta, Navionga perpetuará entre a sua comunidade – os ovimbundu ou, por metonímia, os angolanos – o dilema “ser ou não ser”. Mostram-no os discursos proferidos nas páginas conclusivas do romance por

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duas personagens: o feiticeiro Yòpiru, representante da tradição, e a rainha branca D. Vissapa, representante da herança colonial portuguesa, mesmo não sendo lusófona. Yòpiru atesta que Navionga morreu pura, pois o seu corpo foi respeitado pelos jacarés, animais malditos. Quanto a D. Vissapa, reconhece finalmente que Navionga era sua irmã, descobrindo nas feições da mulata morta o rosto do seu pai branco. A literatura de Maria Perpétua Candeias da Silva é portuguesa ou angolana? É colonial ou nacional? E terá alguma relevância saber se é ou não lusófona? Loanda. Escravas, Donas e Senhoras de Isabel Valadão: a recuperação, no século XXI, do luso-tropicalismo e da mulher mestiça como instrumento sexual do (neo)colonialismo em Angola pela “metaficção histórica” das “Barbies” mulatas Loanda. Escravas, Donas e Senhoras, de Isabel Valadão, nascida em Portugal em 1947, é um romance pretensamente histórico que recupera de modo assustador, para a segunda década do século XXI, num período dito “pós-colonial”, o discurso colonial português e as falácias do luso-tropicalismo sobre Angola. A nossa utilização do advérbio “pretensamente” é deliberada, pois entendemos que este romance nada tem de histórico, a não ser o facto de o seu tempo diegético ser o século XVII. E de nada valeu à autora haver-se tentado socorrer, numa infeliz nota final, do conceito de “metaficção histórica”, introduzido pela investigadora canadiana Linda Hutcheon. Ao contrário do que o argumenta Isabel Valadão, a “metaficção histórica”, consistindo na releitura do passado sob uma óptica contemporânea, não significa, nem uma “falsificação da história”, nem, muito menos, uma alteração do “curso dos acontecimentos tal como foi estabelecido pela investigação histórica” (Sic.). Pelo contrário, implica acima de tudo o conhecimento profundo dos factos históricos e um olhar crítico sobre eles, sem jamais os subverter. Ora o romance de Isabel Valadão, além de primar pela subversão perversa da verdade, encapotada por falsos moralismos, encontra-se impregnado

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de uma prosa pesporrente, eivada de lugares-comuns e de completa ausência de espírito crítico. Propõe-se a autora narrar a história fictícia de duas mulheres que se terão distinguido na Luanda seiscentista “num mundo só de homens” (Sic.). Mas, como veremos, os valores subjacentes a esta ficção são preponderantemente masculinos, e mesmo machistas, transcendendo as teorias de Gobineau e de Gilberto Freyre e atingindo o que Robert Young denunciou como sendo o “colonial desire” (Young, 1995, p. 90-117). As protagonistas do romance são duas mestiças, filhas do mesmo pai branco, mas que, ao contrário de D. Vissapa e de Navionga, descobrem que são mesmo irmãs. No entanto, também elas se apaixonam pelo mesmo homem, um português. Este português, António Teixeira de Mendonça, teve existência real. Mas apresenta a particularidade de ser promovido por Isabel Valadão à condição de fidalgo de boas famílias, quando nas crónicas coevas de Cadornega era um degredado que se tornou oficial de infantaria. Aliás, neste romance há, inusitadamente, fidalgos a mais, cujos nomes, na maioria dos casos, os documentos históricos registaram como tendo sido degredados de delito comum. Mas acontece que, para a autora, tal como para Henrique Galvão, o problema dos degredados é terem sido “todos homens da pior espécie, ladrões, assassinos, a verdadeira escória da sociedade” (Sic.). Será que a “metaficção histórica” consiste na promoção ficcional de plebeus degredados a fidalgos? E de mulatas a brancas? E de prostitutas a senhoras? E de esclavagistas a abolicionistas? O facto de as duas heroínas de Isabel Valadão serem mulatas já anuncia, só por si, o eugenismo luso-tropicalista. Mas tanto mais o acentua quanto sabemos que uma delas é mais escura do que a outra e que, por esse facto, se tornará servidora da irmã mais clara. Comecemos pela mais escura, Maria Ortega. Filha de um fidalgo espanhol (eis o primeiro fidalgo) e de uma escrava negra trazida de Angola, Maria Ortega nasceu em Madrid em 1604. Tornou-se, depois, favorita de outro fidalgo (já é o segundo), que a levou para Lisboa e a alforriou. Ao ver-

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se livre, a ex-escrava mulata, que não queria ser cozinheira nem prostituta, decidiu “enselvajar-se”: fez um pacto com o Diabo e tornou-se… feiticeira! Condenada pela Inquisição, foi degredada para Angola. Durante a viagem atlântica, desprezou as mulheres que a acompanhavam, que considerava “ralé”, e, como não queria ser prostituta… tornou-se amante do comandante do navio (!): “ […] Maria dedicou-se a fazer do camarote do comandante um confortável lupanar, pois numa coisa a rapariga era também especialista – na arte de seduzir e dar prazer aos homens, poucos resistindo aos seus encantos e sortilégios. Não que ela se considerasse uma prostituta, longe disso! É que também ela tinha o maior prazer quando estava com um homem. Fazia parte da sua natureza fogosa de mulata […] (Valadão, 2011, p. 38) [sublinhados nossos].

Esta heroína, que indubitavelmente levaria ao êxtase, não apenas Gilberto Freyre, mas também Nina Rodrigues, desembarca em Luanda em 1637 e, depois de encaminhada para uma fortaleza inexistente, a Fortaleza de São Miguel tanto quanto sabemos, só adquiriu o nome do arcanjo em 1648, chamando-se até então Fortaleza de São Paulo ou de Amesterdão2 -, persiste na sua estratégia inédita de “prostituição confortável”, que lhe rende bons frutos. É contratada como cozinheira para um sobrado da Cidade Alta, onde reside um fidalgo (já é o terceiro) português. Mas Maria em breve ascende na hierarquia da criadagem, passando acima do mordomo, um negro homossexual, e de Zulmira, uma mulata mais escura do que ela e, por isso, pueril: “A mulata [Zulmira] tinha uns dentes extraordinariamente brancos numa boca de lábios grossos e carnudos, o nariz largo e achatado no meio de uma face redonda e reluzente. Usava uma saia rodada que mal disfarçava o seu enorme 2 Também a Lagoa do Kinaxixi e o Maculusso (ao tempo conhecido por Bem-Bem) não existiam nesta época, mas preferimos abster-nos de inventariar os inúmeros anacronismos deste romance.

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rabo de prateleira, o resultado de muito funge e que era apanágio das mulatas angolanas, e uma blusa tipo quimono que ficava igualmente empinada na outra prateleira que constituíam os seus avantajados seios. […] Quando se ria, os seus olhos pequeninos brilhavam como os de uma criança feliz (Valadão, 2011, p. 67) [sublinhados nossos].

Através de Zulmira, Maria Ortega conhece Sebastião, “um negro de pele muito escura e perfil de deus grego” (Sic.). Tal como os heróis da literatura negrófila dos séculos XVIII e XIX, este Apolo Belvedere escurecido é um príncipe: filho de um soba de Massangano, é proprietário de terrenos, não apenas nas margens do Kuanza e do Lukala, mas também muito mais a norte, no Bengo. Que faz ele em Luanda, ainda por cima na Ingombota, a colina dos escravos e dos forros? O mesmo que Maria Ortega em Lisboa: “feitiçaria”! E alimenta um ideal nobre, totalmente inadequado ao filho de um soba no século XVII mas que, enfim, a “metaficção histórica” desculpa: é abolicionista! Apesar de aconselhada por Zulmira a namorar com Sebastião, Maria Ortega considera-o apenas um amigo. É que as mulatas escuras não gostam de negros, mesmo quando têm nariz grego. Preferem os brancos, como António Teixeira de Mendonça, com quem Maria se cruza no Palácio em 1640, já cozinheira do novo governador, Pedro César de Meneses. Eis como são descritos os sentimentos de mulata escura feiticeira pelo degredado português promovido a fidalgo e a herói por ter olhos azuis: “Aquele jovem tenente, alto, de cabelo e barba aloirados e uns expressivos olhos azuis, muito direito e empertigado no seu uniforme, denotando uns traços de fidalguia, deixara-a completamente rendida” (Valadão, 2011, p. 83) [sublinhados nossos].

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Os atributos físicos conferidos a António Teixeira de Mendonça pela “metaficção histórica” de Isabel Valadão valeram-lhe uma noite de “amor” – é difícil resistir à tentação de utilizar o termo obsceno – com a mulata escura Maria Ortega, ele que, na realidade, vivia maritalmente com uma negra, a filha de D. Filipe Ngola Ari, tornado rei títere do Dongo pelos Portugueses em 1626. Uma carta datada de 1653, escrita por D. Filipe Ngola Ari ao rei de Portugal, D. João IV – aliás reproduzida na íntegra por Isabel Valadão (Valadão, 2011, p. 327) –, documenta que António Teixeira de Mendonça deixou viúva a filha do rei do Dongo. Mas a “metaficção histórica” é tão forte que até tornou possível que este degredado promovido a fidalgo tenha vivido mais alguns anos e trocado a princesa negra por outra mulher. Por Maria Ortega? Não, essa era demasiado escura. Depois da noite de “amor” – mais uma vez resistimos à utilização do termo obsceno – com o degredado fidalgo, a mulata feiticeira não teve outro remédio senão aceitar Sebastião, o Apolo Belvedere de Massangano. Juntando os “feitiços”, os dois acompanham o êxodo de Luanda de Agosto de 1648, perante o assalto holandês. Em Massangano, os “feitiços” do casal salvam da malária o governador Pedro César de Meneses. O soba “grego” – que herda estranhamente o título do pai e não do tio materno, menosprezando a regra matrilinear – inicia então Maria Ortega no kimbundu, língua que considera um “dialecto”, e instala-a num pequeno sobrado de pedra e cal, cuja imagem da felicidade até lembra a Cabana do Pai Tomás. Mas que mulher conquistou o coração de António Teixeira de Mendonça, o herói de olhos azuis? Se não foi uma negra, nem uma mulata escura, só poderia ser… uma mulata clara! É aqui que deparamos com a segunda heroína do romance, D. Ana de São Miguel, filha e herdeira do espanhol Roque de São Miguel, outro degredado que a “metaficção histórica” promoveu, não só a fidalgo, mas também a luso-tropicalista, pois

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“Depois de algumas aventuras com mulheres quase todas negras, raça pela qual se sentira particularmente atraído logo que pisara o solo africano, conheceria a mulher que viria a ser a mãe de Ana de São Miguel, uma mulata local, chamada Maria das Neves” (Valadão, 2011, p. 165) [sublinhados nossos].

Passando por cima do nome caricato da mãe de D. Ana de São Miguel, adiante-se que esta “devoradora de homens” (Sic.) - educada em Ambaka por Capuchinhos cuja chegada a Angola a “metaficção histórica” antecipou em meio século e montando em Luanda cavalos de raça pura aos quais a mesma “metaficção histórica” permitiu sobreviverem à tripanossomíase antes da invenção da penicilina -, depois de haver rejeitado um pretendente mulato pelo facto de “não falar português correcto” (Sic.), casou em primeiras núpcias com outro mulato, mas este embranquecido, assim como a mãe, pela lixívia da “metaficção histórica”. Trata-se de António de Vilória Pinto, filho do degredado (agora fidalgo) espanhol João de Vilória e, pasme-se!, de uma fidalga portuguesa chamada D. Ana Isabel de Corte-Real, nome que é sabido ser o de uma conguesa da linhagem dos Corte-Real, que governavam a Ilha de Luanda. Passemos igualmente por cima de um segundo marido branco – ou embranquecido – de quem D. Ana de São Miguel enviúva, para saltarmos directamente para o encontro, em Massangano, entre ela e Maria Ortega, que a admira por ser mais clara e, por isso, uma “dona”. Em diálogos patéticos onde as duas mulatas confessam uma à outra as suas naturezas lascivas, a mais escura, Maria Ortega – cujo fogo da lubricidade já se encontrava apagado pelo negro helénico Sebastião -, aconselha a mais clara, D. Ana de São Miguel, a eugenizar ainda mais a raça. Como? Alcovitando o seu casamento com António Teixeira de Mendonça, o degredado português a quem a “metaficção histórica” neo-luso-tropicalista conferiu olhos azuis e promoveu a fidalgo e a herói abolicionista. Até este ponto, o romance de Isabel Valadão, pese embora a hierarquização somática e o eugenismo bem evidentes, poderia ser benevolamente tomado por uma

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ficção cor-de-rosa incipiente e ingénua. Mas assume uma terrível perversidade ideológica a partir do momento em que Sebastião, o príncipe negro angolano de perfil grego, amancebado com a mulata escura Maria Ortega, abdica do seu próprio património - terras e escravos –, tornando-se feitor daquele a quem o cede: António Teixeira de Mendonça, o degredado português tornado fidalgo em Angola por ter olhos azuis, casado catolicamente com D. Ana de São Miguel, uma mulata clara. E a perversidade é substancialmente agravada quando a “metaficção histórica” se permite, em nome de um falso abolicionismo deslocado e anacrónico, legitimar o esbulho colonial. Para tanto, a autora serve-se da missiva que, em 1653, D. Filipe Ngola Ari escreveu a D. João IV. Nela se queixava o rei do Dongo ao rei de Portugal de os moradores de Luanda se haverem apropriado indevidamente de 10.000 escravos seus, apenas cedidos temporariamente ao capitão português António Teixeira de Mendonça, que vivera amancebado com uma filha sua, mas que entretanto falecera. Lisboa deferiu a pretensão do rei do Dongo, a quem foram devolvidos os escravos esbulhados. Não é este o lugar para proceder à análise dos factores conjunturais que levaram a que, neste caso, o colonizador tivesse sido generoso com o colonizado. Mas é sempre pertinente sublinhar que o tráfico de escravos e a escravatura, em pleno século XVII, eram instituições plenamente legítimas. Apreender escravos ao seu proprietário consistia, evidentemente, num esbulho, pelo que a decisão de Lisboa foi justa. Ora não é essa a opinião de Isabel Valadão, a quem a “metaficção histórica” transforma agora em contemporânea de António Ennes (1849-1901). O rei do Dongo, por ter escravos e não ser “lusófono” – mesmo havendo escrito uma carta ao rei de Portugal -, torna-se um vilão, contra quem os dois pares de “embranquecidos” e bons falantes do português são os justiceiros. A autora recupera assim o argumento darwinista de retórica colonial que legitimava o colonialismo elegendo selvagens os esclavagistas (Pinto, 2013, p. 145-158). O esbulho é um acto de justiça desde que praticado contra o patrimó-

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nio de negros angolanos por brancos de olhos azuis, por mulatas – claras ou escuras – e por negros com perfil de grego que falem “português correcto”. E mais o é se os ladrões forem abolicionistas e transformarem os escravos esbulhados em “indígenas” livres! Em pleno século XXI, eis um romance saudosista do “indigenato”, que substituiu a escravatura a partir do último quartel do século XIX. E que, por ironia, viria a ser abolido em Angola em 1962 por iniciativa de Adriano Moreira, um ministro luso-tropicalista!

Conclusão A primeira perplexidade a que nos leva a apreciação comparativa destes dois romances é a de acharmos que as datas de publicação de um e de outro parecem trocadas. Mas temos que nos render à evidência. Se, em 1966, era compreensível que Maria Perpétua Candeias da Silva, incontestavelmente uma angolana, sucumbisse à retórica da hierarquização do colonizado a partir de elementos somáticos associados aos linguísticos ou substituindo-os, é aterrador que a portuguesa Isabel Valadão vá muito mais longe em 2011, ao ponto de legitimar o indigenato e a (neo-) colonização sexual. Não conseguimos evitar um sentimento de indignação inerente à questão que se nos antolha e que deixamos para reflexão: porque é que Navionga, Filha de Branco de Maria Perpétua Candeias da Silva é um livro relegado para a literatura colonial e para a obscuridade do mercado alfarrabista, enquanto a Loanda. Escravas, Donas e Senhoras de Isabel Valadão couberam honras de haver sido publicado por um dos consórcios editoriais portugueses mais agressivos no mercado livreiro contemporâneo? É tentador pensar no clima de neo-colonialismo que se respira nesta segunda década do século XXI, sobretudo sempre que se fala de Angola. E é preocu-

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pante verificar que, na euforia de um desenvolvimento económico duvidoso, só interesse abordar o presente e o futuro. Por isso Angola é presentemente vítima de operações de subversão e de apagamento da sua memória e da sua história. O romance de Isabel Valadão, assim como a noção de “lusofonia” - que, mais do que à afasia ou à amnésia, pretendem condenar os angolanos à doença de Alzheimer -, constituem exemplos, entre muitos, desta operação perversa em que urge não nos deixarmos armadilhar. É penoso diagnosticar, mais uma vez, que as representações culturais, frequentemente camufladas por metamorfoses ou por avatares, são o que mais resiste ao curso do tempo. A cultura colonial portuguesa não foge à regra e encontra-se, como vimos, bem viva. A cultura colonial portuguesa, o luso-tropicalismo… e as imposturas da “lusofonia”!

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Portugal and tropicality, a geographical imagination

José Ramiro Pimenta - Faculty of Arts, University of Porto

1. If one would wish to appreciate the outlines of Portuguese geographical imagination in the recent decades, it would still be essential to consider the historiography of expansion and especially the way Tropical geography influenced it.1 In the second half of the twentieth century, power in Portugal was related to the ‘overseas’ in many different ways. The end of World War II inaugurated a new geopolitical order whose centre was not anymore in Europe, and sparked the need to ‘redress’ the colonies with the status of ‘provinces’.2 The revolution of April 25th 1974 established democratic rule at home and recognized the independence of the colonized territories, putting an end to a war that took away (as they all do) youth life and the joy of many generations. The representation of overseas helped to justify the European colonial administration in the tropics. The most popular forms of communication – journalism, literature, film... – consecrated the image of the ‘Portuguese empire’.3 At the height of propaganda, while Europe (and the world) burned in war, Belém (in Lisbon) would give seat to a formidable Portu1 I. Amaral has published some sources and critical bibliography on the history of Portuguese tropical geography, particularly the ‘Lisbon school’ (1979,1986). In recent years there has some renewed interest in the history of tropicality among geographers. Following the seminal work of Arnold on environmental history (1996; and see 2000) - himself drawing on Said’s Orientalist (1977, 1993) conceptual framework - a ‘postcolonial’ turn has emerged and strengthened within the discipline of history of geography, especially in a series of articles on Singapore Journal of Tropical Geography (Blunt e McEwan, 2002; Bowd e Clayton, 2003; Claval, 2005; Driver, 2004; Driver and Yeoh, 2000; Grundy-Warr, Huang e Wong, 2003; Livingstone, 2000; Pimenta, Sarmento, and Azevedo, 2011; Power e Sidaway, 2004; Sidaway, Teo e Savage, 2007). 2 For a ‘governmental’ view on the subject, see Moreira (1999), head of Ministry of Overseas in the initial 1960s; for a ‘scientific’ one, see Ribeiro (1962), the head of the Portuguese ‘Lisbon school’ of tropical geography. 3 See Azevedo (2007) for photography, film and visual culture, or Costa (2007) for cartography.

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guese World Exhibition, a complete picture, an integrated prospect of a Portuguese national-imperial landscape.4 Science and the University were also part of this movement of appropriation and representation of the Portuguese overseas. Many scientific disciplines – Geology, Botany, Pedology, Anthropology, Medicine, Management… – added the adjective ‘tropical’ to their names, setting up research programs, with regional theories and technical experts that have dedicated themselves to collect, measure and compare empirical data, in order to intervene in the various domains of economic and social organisation of distant territories.5 Geography was no exception and, under the guidance and example of Orlando Ribeiro, the Portuguese geographers inquired, described and mapped the Portuguese overseas for about three decades (Fig. 1).6

Fig. 1 – The ‘Lisbon School’ of Tropical geography: ‘geographical missions’. 4 Besides the before cited Azevedo (2007) and Costa (2007), see João (2002), Power (2002), Power & Sidaway (2005), Sidaway & Power (2005) for some attempts to characterise Portuguese ‘imperial imagination’. Cf. Cairo (2006). 5 Driver e Yeoh (2000). Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) (1983). Costa (2007). 6 There are many works made by Portuguese geographers on tropical geography (some of them compiled and commented by Amaral (1964; 1968; 1979; 1986); see also Brum Ferreira (1997). Brum Ferreira, Gaspar e Medeiros (1986) and Daveau (1998). Of these some include studies on ‘islands’, which was the first major programme of research within ‘Lisbon school’, but that was to be gradually complemented by work in continental areas: Orlando Ribeiro on Brazil, Madeira, Guinea-Bissau and Goa (1942; 1949;1950; 1957; 1999), Raquel Soeiro de Brito (1955; 1956; 1957; 1960; 1964; 1966; 1971) on the Azores, Goa, Brazil, Macao and Timor; Ilídio do Amaral (1964; 1968) on Cape Verde and Angola, Francisco Tenreiro (1961a; 1961b) on São Tomé and Príncipe; and Mariano Feio (1956a; 1956b; 1981) on Angola (main fieldwork dating back to the 1950s; see Daveau, 2002). These are the ‘first generation’ investigators, who worked after WWII, and that were followed by many others in the years before the Revolution of 25th April 1974 and the following Independence of Portuguese colonies.

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2. One of the scientific domains most studied by Tropical geography was the history of Portuguese expansion, and the special point of view of geographical conditions of discovery, contact and ‘achievements’ of civilisation.7 To begin with: discovery. For obscure reasons that historiography seeks to understand, a state that had not yet fully organized his newly conquered territory from the Moors (except around the cities, the interior South of Portugal, in the end of the fifteenth century, was still a vast uncultivated land) launches small vessels in the direction of the Atlantic islands, Africa, Asia and America.8 The effort of discovery was followed up by the more practical interest of trading profitable products. Spices, gems, and people (slaves) are abducted in the regions of origin and interchanged in the context of the first globalisation of the modern ages. In South America, it is the sight of mineral wealth that will lead to the implausible effort to go through the three major river basins (Paraguay-Paraná, São Francisco, Tocantins) that, with the Amazon, structure the immense space of what will be Brazil before independence. The exploitation of resources is not to be achieved without resistance. The Portuguese expansion is also ‘geography of conquest’. Since the assault of Goa, in the early sixteenth century, the Portuguese occupation in the tropics will be a history of violence. In Africa lies the most recent memory of violent occupation (four centuries after the taking-over of some Malabar harbour-cities) in the imperialist context of the Berlin Conference, when ‘race’ would stand as a scientific object and political objective. The influence of racism would extend throughout the twentieth century and the reaction to it will certainly occupy the entire twenty-first.9 7 See Ribeiro (1956; 1961; 1962). 8 The most important synthesis on Portugal’s geographical conditions of ‘formation’ is the three-authored ‘Geography of Portugal’ (Lautensach, Ribeiro e Daveau, 1987: pass.). 1962 Ribeiro’s book compiles a series of works on the theme of ‘expansion’. Cf. Pimenta (2012) . 9 For a more descriptive account, see Amaral (1986). Brum Ferreira, Gaspar e Medeiros (1986) more critically analyse the historical conditions of the 1970s anticolonialist university environment, that has with some interesting ‘inside’ disciplinary enunciations (Tenreiro, 1961, Ribeiro, 1981) found some parallel expressions on international and literature:

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3. Closely related to social and academic context, another scientific domain surveyed by Portuguese Tropical geography was Nature, the ‘environment of the tropics’.10 Geographers tried to understand the more or less obvious forms of geographical determination in human activities: winds and oceanic currents were associated with the seaways by which vessels progressed; the uniqueness of the sheltered bays of the coast with the location of major seaports; the height of the relief with the point of entry and colonisation of the hinterland organized by the coastal harbours-cities.11 An environmental determination ‘translated’ by civilization of newcomers: many of these places are seen as similar one to the other and with the towns and cities of Portugal. Also important was the study of the cultivation of nature. The expansion of Europe in the tropics was a history of acclimation of plants, animals and people. In the specific case of Portugal, Mediterranean plants were exported - or those that have previously had reception there, like sugarcane, the first example of a tropical plantation - and shaped agricultural landscape of uninhabited ‘Atlantis’ and of the coastal regions of the continent. Where the environment no longer accepted the diffusion of Mediterranean plants, the exchange of products was favoured - corn, coconut, palm tree, mango, cassava... - strengthening in the whole tropical belt a plant shared identity. In extreme situations, the cultivation of the land gave way to a strict ‘production’ of nature. The global capital locally organizes the exhaustion of resources and the arbitrary ruling of the people, as the history of cocoa in São Tomé exemplarily illustrates. The metropolitan state, for convenience or lack of e.g. Clarence-Smith (1985). Cf. Costa (2007), Pimenta, Sarmento e Azevedo (2007), Gaspar (2013). 10 P. Gourou, since his first works, stressed the fundamental importance of environment (e.g., 1956; 1966) a position that had strong and direct influence on Portuguese geographers (see: Ribeiro, 1973; Medeiros 2001). See also Bowd and Clayton (2003). 11 Among many examples that could be presented, see Amaral (1968) for Luanda, Feio (1981) for the physical conditions of the Cunene river’s mouth, Ribeiro (1951; 1957; 1973) for theoretical considerations and concrete examples of Guinea-Bissau and Cape Verde, Soeiro de Brito (1966) for Goa, and Tenreiro (1961) for São Tomé island.

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strength, shielded economic ruthlessness.12 4. Eros, or inter-personal relations, was the third area surveyed by Portuguese Tropical geography. The special position occupied by Portugal in post1945 Europe (a colonial dictatorship) backed up Gilberto Freyre’s ‘Lusotropicalism’ – a benign and sexualized representation of the encounter between the ‘sub-tropical’ and the ‘tropical’ peoples. Ancient views on the ‘benefits of miscegenation’ – as state policy (Albuquerque), ideal of sentiment (Camões), or superiority of spirit (Fr Antonio Vieira) – were recalled. Tropical geographers recognized the enormous power of assimilation of ‘Portugality’ on the overseas rural and urban landscapes: the churches and chapels of Goa; the urban physiognomy of north-eastern Brazil; the cultivation techniques in Cape Verde – all recapitulating a lasting influence of European ‘civilization’ in tropical environments, supposedly based on the respect of nature and affection to the people.13 Reality was somewhat different. In African territories that were under Portuguese administration before 1961 ‘troubles’, segregation was a common practice. Social, because the ways of social valorisation were sealed, this division progressively became more conspicuous in space. As in neighbouring countries, in which formal apartheid existed by law, a white city and a black suburb of ‘muceques’ organized almost all cities of Angola and Mozambique. 5. To conclude: which ‘Asias’, ‘Americas’ and ‘Africas’ inhabit the Portuguese geographical scientific imagination as a whole? Asia merely occupies a place in Portuguese tropical imagination. Portuguese Goa, declining since 12 O. Ribeiro published an interesting work on the ‘failure of Portuguese colonisation’ (1981, repr. 2014). Its interest mainly relies on the fact that it is a text written by the leading name of Portuguese ‘Lisbon school’ of tropical geography, and that relates to the wider post-colonial traumatic events in Portugal. 13 The Lusotropicalist imagination draws on several sources, not exclusively in G. Freyre’s between-the-wars account. Nevertheless, it is obvious that Salazar’s regime actively promoted the Brazilian sociologist’s work after World War II (see Mata, 2007, for the deconstruction of the ‘miscegenation’ stereotype). In Portuguese tropical geography there undoubtedly was a Lusotropicalist ‘tone’ that one can detect in many texts that deal with the cultural expression of social relations among people in the colonies. Amaral (1964; 1968). Ribeiro (1962; 1981). Soeiro de Brito (1966). Tenreiro F (1961), and many others…

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the seventeenth century, housed in the mid-twentieth century a minority of Christians and even less ‘descendants’, something even less recognizable in Macao. Still, imagination may stand with unexpected strength and vigour - the independence of East Timor undoubtedly represented a moment of revisiting Portuguese identity and, despite some ambiguities, it marked the beginning of post-colonial Portugal. America, unlike Asian utopia, gives place to a fully established identity of the expansion. Brazil has an immense territory and in all of it Portuguese language is spoken. The past capital city was the seat of a European royal house and therefore Brazil is, historically, a unique case of a tropical state administering a part of its territory in ‘temperate’ regions.14 In Africa, during five hundred and sixty years of contact, Portuguese expansion began and ended. As in Brazil, also in Cape Verde, São Tomé, and in some places of Angola and Mozambique, assimilation provided composite identities. But this is a geography of derision, because, with the partial exception of Cape Verde (whose economic modesty was not so much attractive to major investors), in all African regions there was a relentless process of violent military occupation, resource abuse and segregation of people.15

‘Cape Brazil’ (Black – the territory; grey – the maritime jurisdiction) 14 Ribeiro (1942). Schultz (2001). 15 The violent occupation of the ‘Tropics’ by the Portuguese is not entirely absent of the monographic works on of the Lisbon school of Tropical geography: e.g. Amaral (1964; 1968), Medeiros (1976), Ribeiro (1954, 1981), Soeiro de Brito (1966), Tenreiro (1961). But it was not until recently that some work has been done within an explicit postcolonial critical conceptual framework: Power (2002), Power and Sidaway (2005), Pimenta, Sarmento e Azevedo (2007, 2011), Sarmento (2011), among others.

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6. If the ‘lessons’ of Portuguese tropical geography can inform decision-makers in the time to come, then something points towards Portugal subsuming and metamorphosing in the space of its own expansion – and to propose to the sovereign states of Brazil and Cape Verde the creation of a ‘diagonal state’, based on the three continents that look to the Atlantic, mutually strengthened in a union that would traverse more confidently the twenty-first century?

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Can Cabinda follow the example of South Sudan? The problem of seces sionism in contemporary Africa in the context of the ‘uti possidetis’ principle Robert Kłosowicz - Jagiellonian University

The aim of this paper1 is a reflection on the problem of secessionism in contemporary Africa in the context of postcolonial borders maintained because of the uti possidetis principle, on the example of Cabinda and South Sudan. South Sudan after decades of fighting gained political independence, breaching the principle established during the decolonization period, concerning the permanence of colonial borders in Africa. Cabinda, similarly like Western Sahara and Somaliland, or Biafra in the past, is still fighting for independence and calling for international political maps to be redrawn and formed around explicit idea of creating a new state. All of the countries mentioned above continued their fight at a greater or lesser degree of intensity throughout the entire post-Cold War period. The national border is defined in international law as a line, or more strictly as a plane, within which the national territory is contained, separating it from the territory of another state or the territory not subjected to the state jurisdiction. The border as a dynamic element of a state is also an instrument of its policy2. Its functions can be modified depending on needs and interests of the population, the ruling elites, or the state itself, which uses it as an instrument 1 The project was financed by the National Science Center based on the decision number DEC-2012/07/B/HS5/03948. 2 Remigiusz Bierzanek, Janusz Symonides, Prawo międzynarodowe publiczne, Wydawnictwo Prawnicze LexisNexis, Warszawa 2005, pp. 209-210.

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to create or maintain peace and order, as well as its own sovereignty. The way of administrating the borders, reliant on the adopted paradigm of foreign policy, influences the degree of the state’s control, and, because of it, the possibility of exclusively exercising authority on the national territory. In a systemic approach a border is one of the elements constituting the state as a set of institutions, defining the extent of its territory, the scope of its sovereignty and enabling it to function in the international environment. The borders are also a determinant of national identity - combined with a sense of unity and territorial cohesion, which can be changed by wars, revolutions and internal unrest3. The idea of - contemporary understood - borders was not known in the pre-colonial Africa, where they were not lines or planes, but uninhabited buffer zones, toward which nobody claimed any rights and through which the tribes used to move freely. Due to the low population density, large areas of available land and extensive agriculture, in Africa there were no investments in cultivated lands, as almost always it was possible to change them over for different ones, more fertile in a given period. The lack of demographic pressures led to the absence of territorial disputes, so common in Europe or Asia at that time. While on other continents the power of the state was evinced in the area of subordinated territories, in Africa its measure was the exercised authority over large populations, completely unrelated with territorial sovereignty, because of the fact that unlike in other parts of the world, the authority over a specified area did not have to mean exercising power over the population that inhabit it4. 3 Grzegorz Balawajder, Granica państwowa jako kategoria wielowymiarowa, “Pogranicze. Polish Borderlands Studies”, 2013, no. 1, pp. 44-54. 4 Alex Thomson, An Introduction to African Politics, Routledge, London/New York 2010, pp. 9-11. As Jeffrey Herbst argues the problem which today’s scholars often have to confront with is the fact that power in pre-colonial African polities was not associated, in the first place, with the control of land, while the modern understanding of states is strictly tied to the control of territory. Jeffrey Herbst, States and Power in Africa. Comparative Lessons in Authority and Control, Princeton University Press, Princeton 2000, pp. 36-37. See more: Michał Tymowski, Państwa Afryki przedkolonialnej, Fundacja na rzecz Nauki Polskiej, Wydawnictwo Leopoldinum, Wrocław 1999.

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The Europeans colonizing Africa perceived it mostly through its coast line, naming the territories inside the land ‘unknown’. Thoroughly examined and well known were only the territories of the Arab countries in Northern Africa, and Southern Africa. Therefore, the boundaries of the colonies in Sub-Saharan Africa were drawn on the maps according to the will of the European negotiators. Over half of them were delineated from simple lines or curves measured by calipers (almost 40% of African borders are the geometric ones), intersecting territories for the centuries belonging to the different ethnic groups and tribes engaged in cattle grazing or agriculture. In many colonies within the same borders, were put together the long-time hostile tribes or ethnic groups which also differed in religion5. There is no doubt that the rules of European powers and their colonial policy stamped on the whole continent, and the consequences of this policy reflected in the historical events that are visible till today, even in the current international law. The good example is the acceptance of the principle uti possidetis, which became one of the preconditions for recognition of the African states’ independence, and therefore, made the borders of former colonies fixed6. In consequence, today’s African states are, above all, the legacy of the end of the 19th century geopolitics, when the European powers rivaled for colonial control over Africa, that means, over its territory, population, and resources, drawing borders of their possessions without paying heed to ethnic, linguistic, religious and cultural issues. The breakthrough moment in the history of the colonialism on the African continent was the Berlin Conference (15th Oct 1884 – 25th Feb 1885), which led to the 5 Kamil Zajączkowski, Przestrzeń i granice a regionalizm w Afryce Subsaharyjskiej – afrykańska i europejska percepcja, in: A. Żukowski (ed.), Przestrzeń i granice we współczesnej Afryce – “Forum Politologiczne”, 2010, vol. 10, pp. 189-193. The simplest explanation for this sometimes artificial straight borders in Africa is that they were drawn in such manner where the costs involved in demarcating borders were too high. This was especially the case of the regions with low population densities such as desert Sahel and Sahara regions, as well as the forests of central Africa. Elliott Green, On the Size and Shape of African States, “Political Science and Political Economy Working Paper”, London School of Economics and Political Science, 2010, no. 4, p. 11. 6 Arkadiusz Żukowski, Pogranicza w Afryce Subsaharyjskiej. Regiony współpracy czy konfliktów?, in: A. Żukowski (ed.), Przestrzeń i granice we współczesnej Afryce – “Forum Politologiczne”, 2010, vol. 10, pp. 225-226.

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division of the area among the European states. The consequence was a formation of “Africas” - French, British, German, Belgian, Portuguese and Italian. The region became then an extension of the relations of the European colonial powers7. Today’s political map of Africa is thus a spatial organization of the balance of power between colonial metropolises, with all the consequences of artificial divisions within the metamorphosed former colonies. The principle uti possidetis was given special importance during the decolonization of Africa, due to its placement in the 1964 resolution of the Organization of African Unity (the forerunner to today’s African Union), in which it was concluded that the colonial borders existing at the time of independence are permanent and all the states are obliged to respect them, thereby pointing out that sticking with inherited borders promoted “stability”. The principle as a concept has derived from the rule that a change of sovereignty itself does not change the status of the boundary, so the states emerging from the colonial administration’s control must have accepted the already existing boundaries of the colonial units8. The uti possidetis principle was for many years supported by the practice of the African states, categorically opposing to the secession of the territories of the Democratic Republic of Congo, Sudan, Nigeria, Ethiopia or Angola. The validity of application of the principle, which enabled a quick decolonization, was not questioned during the whole period of the Cold War. However, the shape of the African borders and the principle supporting their durability, which was created to bring peace after the withdrawal of the colonizers, have become the cause of many civil wars, which seem to be a natural stage of state-building processes in the African countries. These wars, however, did not end with a partition of the national territory (beside 7 Wiesław Dobrzycki, Historia stosunków międzynarodowych 1815-1945, Wydawnictwo Naukowe SCHOLAR, Warszawa 2012, pp. 306-308. 8 Robert McCorquodale, Raul Pangalangan, Pushing Back the Limitations of Colonial Boundaries, “European Journal of International Law”, 2001, vol. 12, no. 5, pp. 874-875; see more: Suzanne Lalonde, Determining Boundaries in a Conflicted World: The Role of Uti Possidetis, McGill-Queen’s University Press, Montréal 2002.

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the two mentioned exceptions), and the newly established entities are not recognized as sovereign (vide: Somaliland). In the period preceding the independence of South Sudan, there were voices raising the need of leaving the criticized and not meeting its objectives principle uti possidetis, as well as allowing the African states to adjust their borders to topographical and ethnic realities, what would contribute to unfettered development of natural state-building processes on the continent. This issue has been raised, among others, by Pascal Zachary in his article Africa Needs a New Map, published in “Foreign Policy” in April 2010, where he touched the topic ‘untouchable’ in Africa since the times of decolonization – redrawing African borders, advocating for a change9. However, the opponents of departing from uti possidetis principle notice that although it is not perfect, leaving it behind will cause an outbreak of numerous new intrastate and interstate conflicts, entailing death and suffering of millions of people, as well as the balkanization of the African continent. As it has been already mentioned, the creation of South of Sudan (and, almost 20 years before, Eritrea) is the only major change in African borders after the decolonization10, and stood in a clear contradiction with the principle uti possidetis. It resulted also in the reflection over a real legal meaning of the principle and the future of its application in Africa. Queued to challenge the artificial postcolonial borders are standing, among others, Biafra in Nigeria11, 9 Pascal G. Zachary, Africa Needs a New Map, “Foreign Policy”, 28.04.2010, http://www.foreignpolicy.com/articles/2010/04/28/africa_needs_a_new_map (access: 17.10.2014). 10 Having in mind that the last scene of the process was when Namibia obtained full independence from South Africa in 1990. 11 The Biafran War (1967-1970), similarly as the earlier conflict in Katanga (The Katanga Secession War, 1960-1963), is a classic example of an African postcolonial crisis with roots in the borders inherited from colonial territories. The war resulted in around 100,000 military casualties and between 500,000 to 2 million Biafran civilians who died mostly due to starvation. Today, although the expression of secessionist demands is forbidden in Nigeria (for ex. in November 2012 – 100 men and women were arrested in Enugu because they organized a pro-Biafra demonstration and marched with a Biafran flag), the memory of civil war is still vivid and it seems that at least part of Nigerian society leaving in the eastern regions would welcome Biafra’s independence. Michał Leśniewski, Biafra 1966-1970, in: P. Ostaszewski (ed.), Konflikty kolonialne i postkolonialne w Afryce i Azji 1869-2006, Książka i Wiedza, Warszawa 2006, pp. 446-455; ICE

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Katanga in the Democratic Republic of Congo, and Cabinda in Angola. If we try to look at South Sudan, which as a result of breaking the uti possidetis principle gained independence in July 2011, we could, in fact, observe some similarities with the situation of Cabinda. In the background of the ethnic conflict, there is an economic factor – perceived as one of great importance, in both cases, Cabinda’s and South Sudan’s, there are big oil reserves. Just like the territory of South Sudan for the Republic of Sudan, Cabinda also because of the same reason, has now a strategic importance for Angola. Prior to independence, South Sudan produced 75% of Sudanese oil output. However, oil was not the only problem for the North. The other confrontational issue which could be a seedbed for future conflict was related to the waters of the Nile. After independence South Sudan became the third richest country in natural precipitation in sub-Saharan Africa. While the abundance of seasonal streams is turning South Sudanese state into a water giant, its neighbor – Sudan after the secession became a water-deficit country (despite the river Nile traversing the country from south to north), what will most likely result in the inability of the Sudanese agricultural sector to feed its own people, not to mention the old development ideology forced by the country’s authorities about being “an Arab bread-basket”12. In the specific case of Cabinda, oil is also its main resource, the strategic importance of the province lays especially on its offshore oil crude which represents approximately 86% of the country’s earnings. Being the source of more than twoCase Studies. The Biafran War, Inventory of Conflict and Environment, American University, http://www1.american. edu/ted/ice/biafra.htm (access: 4.10.2014); Will Ross, The Biafrans who still dream of leaving Nigeria, BBC News, 21.12.2012, http://www.bbc.com/news/world-africa-20801091 (access: 4.10.2014). See more: Ukoha Ukiwo, Violence, Identity Mobilization, and the Reimagining of Biafra, “Africa Development”, 2009, vol. 34, no. 1, pp. 9-30; Léonce Ndikumana, Kisangani Emizet, The Economics of Civil War: the Case of the Democratic Republic of Congo, Political Economy Research Institute Working Paper Series, University of Massachusetts Amherst, 2003, no. 63, pp. 1-46. 12 Redie Bereketeab, The Horn of Africa. Intra-State and Inter-State Conflicts and Security, Pluto Press/Nordiska Afrikainstitutet, London/Uppsala 2013, p. 97. See more: Salman M. A. Salman, The new state of South Sudan and the hydro-politics of the Nile Basin, “Water International”, 2011, vol. 36, no. 2, pp. 154-166.

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thirds of Angola’s current oil production seems to be almost certainly the main motive for separation. Moreover, Cabinda is also rich with other valuable resources or crops, such as coffee, timber, palm oil and rubber13. For the Cabindans, the material benefits of secession could be quite astonishing, especially as the province’s population amounts to around 450 50014. In consequence, if Cabinda was an independent state, it could be one of the richest countries in the developing world in per capita terms. This future vision, which could make out of Cabinda “the little African Kuwait” is very tempting and seems to be far more powerful motive for secession than any sense of ethnic identity, or even economic injustice15. The differences are, however, significant in terms of chances to gain independence. Cabinda has, as it was already mentioned above, 450 500 inhabitants in 19-million Angola, that is 2,4% of the country’s population, while the territory of South Sudan before the independence was inhabited by 8 million people, which accounted for 17% of 45-million Republic of Sudan. The difference in the ratio of the region’s population to the dominant state between South Sudan and Cabinda is 1:13. Clearly, it translates to possible prospects of the armed forces. In South Sudan on the eve of independence to mentioned 8 million people, 160 000 were serving in Sudan People’s Liberation Army (SPLA), which fought with the Sudanese army 105,000 soldiers supported by 17,000 paramilitary personnel. According to the statistics SPLA fielded an army numerically equal to the army of the Republic of Sudan, although, of course, inferior in terms of armament. The separatist movement, the Front for the Liberation of the Cabinda Enclave (FLEC), has used its estimated 2000 fighters to wage a low-level guerilla campaign since August 1963, first against 13 Victor Ojakorotu, The Paradox of Terrorism, Armed Conflict, and Natural Resources: An Analysis of Cabinda in Angola, “Perspectives on Terrorism. A Journal of the Terrorism Research Initiative”, 2011, vol. 5, issue 3-4, p. 102. 14 Portal oficial do Censo 2014, Instituto Nacional de Estatística, http://censo.ine.gov.ao/xportal/xmain?xpid=censo2014&xpgid=home-censo2014 (access: 15.10.2014). 15 Tony Hodges, Angola: Anatomy of an Oil State, The Fridtjof Nansen Institute/James Currey/Indiana University Press, Lysaker/Oxford/Bloomington 2004, p. 159-160.

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Portuguese and later against the Angolan government. In the course of the war SPLA received a large help from the outside, while Cabinda cannot count for any help from outside. However, for many years the Angolan government was trying to prove that in the awakening of the Cabindan separatist activity there were engaged some foreign forces, blaming the Republic of Congo or the DRC, and pointing out that it was in fact nationalism with Congolese tendencies and even raising engagement of the French petrol company – Elf16. In a similar vein for many decades since the Sudanese independence in 1956, Khartoum blamed the imperial policy of the British colonizers as the reasons behind the Southerners’ aspirations for secession17. During the Sudanese conflict, SPLA controlled vast areas of Southern Sudan, despite decades of struggle, Cabinda’s separatist movement made a very little headway in relation to either empirical or juridical sovereignty. The territory remained under the tight control of the Angolan government and there was no sign that this would change. What little quasi-governmental apparatus the Cabindans built remained largely outside the territory. The region was severely stricken in October 2002 when the government sent around 30 000 Angolan troops that could be deployed after having defeated the UNITA rebels (in fact, among them there were also recently incorporated ex-UNITA soldiers)18. Together with the destruction of several FLEC bases in the Republic of Congo and the DRC, as well as losses experienced within Cabinda itself, the Angolan government representatives were quick and eager to proclaim the FLEC’s defeat19. 16 Jean-Michel Mabeko-Tali, La question de Cabinda. Séparatismes éclatés, habiletés luandaises, et conflits en Afrique centrale, “Lusotopie”, 2001, pp. 50-51. 17 Maciej Ząbek, Historia Sudanu do 1989 roku, in: Joanna Mantel-Niećko, Maciej Ząbek (eds.), Róg Afryki. Historia i współczesność, Wydawnictwo Trio, Warszawa 1999, p. 152. 18 Jean-Michel Mabeko-Tali, Cabinda between ‘no peace’ and ‘no war’, “Accord. An International Review of Peace Initiatives”, 2004, issue 15, p. 38. 19 Paul D. Williams, War and Conflict in Africa, Polity Press, Cambridge/Malden, MA 2011, electronic version; see more: João Gomes Porto, Cabinda: Notes on a soon-to-be-forgotten war, ISS Paper no. 77, Institute for Security Studies, August 2003, pp. 1-16.

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The FLEC’s claim to create an independent state is based on the assumption that Cabinda was never a part of Angola. Obviously, Cabinda has no geographic border with Angola, although the key point here is rather the argument that it was a separate Portuguese colony what makes it entitled to independence. This territory became Portuguese Protectorate with the signing of the treaty of Simulambuco in 1885 at the Berlin Conference, establishing Cabinda as a ‘protectorate’ with special privileges (while Angola was a full colony at that time), and from about 1900 it had been known as the Portuguese Congo20. In its 1996 Charter, the self-declared government of the Republic of Cabinda emphasizes two further points: first, that Cabinda was recognized as distinct from Angola in 1933 Portuguese Constitution; and second, that in 1964 the Organization of African Unity recognized it as being decolonized African country, distinct from Angola. From the other side in 1956 Portugal, when it became known that Cabinda had oil, broke the Treaty of Simulambuco and made Cabinda a full province of the Colony of Angola. In 1975 Cabinda was incorporated into independent Angola, under the terms of the Alvor Treaty signed with Angola’s three main rebel groups at that time (the People’s Movement for the Liberation of Angola - MPLA, the National Liberation Front of Angola - FNLA, and the National Union for the Total Independence of Angola - UNITA). The Alvor Treaty granted Angola independence within its existing boundaries, meaning – together with the Cabinda province21. According to Jean-Michel Mabeko-Tali to understand the Cabindan question it is necessary to take into account three factors. The first one is the mentioned above enclave’s colonial history (with the Angolan history in the background). Second is to understand socio-economic and identity issues. Finally, 20 In the earlier period the Portuguese had already included Cabinda to its colonial possessions, what was recognized by the Portuguese British Alliance Treaty of 1810, and reconfirmed by the convention signed by those countries in 1815. Concurrently the Portuguese constitution of 1826 also contained a statement that “Angola, Benguela and its dependencies Cabinda and Molembo” are among Portuguese belongings. Jean-Michel Mabeko-Tali, Cabinda between ‘no peace’..., op. cit., p. 36. 21 Paul D. Williams, op. cit., electronic version; Charles Ian Denhez, Independence or Autonomy: The Right to Self-Determination in the Enclave of Cabinda, “Carleton Review of International Affairs”, 2009, vol. 1, p. 38; Jean-Michel Mabeko-Tali, Entre économie rentière et violence politico-militaire. La question cabindaise et le processus de paix angolais, “Politique africaine”, 2008, no. 110, pp. 65-66.

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there is oil and its national, regional and international impact22. The complexity of the socio-economic issues in Cabinda is based, first of all, on the ethnic cultural and linguistic relation of the Cabindan population with the Kongo people (Bakongo) living in the Republic of Congo and in the DRC23. This lack of attraction to the Angolan state and the fact that many Cabindans do not see themselves as Angolans is also confirmed by a big absence in consecutive Angolan elections, for example in 1992 elections it was 38,13% to the rest of the country: 8,65%24. It is worth to emphasize that the Cabindans having a common ethnic and linguistic (Kikongo language) identity not only had been reunited within concrete territory (under the Treaty of Simulambuco), but also have the tradition of economic migration to both countries mentioned before (Republic of Congo and the DRC). Moreover, in the Republic of Congo (former French colony) the Cabindans are also present on the national political scene, even occupying important, high-level positions such as Prime Minister (Alfred Raoul and Antoine Dacosta) or President (Alfred Raoul as an interim president in 1968-1969)25. The Cabindans, though they were not numerous – in 1960 around 56 000, they were better treated by the Portuguese that the rest of the colony’s inhabitants. Their nationalism at that time could be called rather micronationalism, although sometimes encouraged by the Congo-Brazzaville26 elites, it was not a threat to the Portuguese, as their form of protests was rather verbal27. As for the economic injustice, so often raised in the separatists’ arguments, it is hard to admit, but the Angolan government has been 22 Jean-Michel Mabeko-Tali, Cabinda between ‘no peace’..., op. cit., p. 36. 23 Although, it should be stressed that the Bakongos also live in the north of Angola, for ex. in the provinces of Zaire and Uíge. 24 Greg Mills, From confusão to estamos juntos. Bigness, development and state dysfunction in Angola, in: Christopher Clapham, Jeffrey Herbst and Greg Mills (eds.), Big African States, Wits University Press, Johannesburg 2009, p. 133; Joanna Mormul, Problem dysfunkcji państwa w Angoli, „Raport Afryka”, Polskie Centrum Studiów Afrykanistycznych, April – June 2012, p. 9; 25 Jean-Michel Mabeko-Tali, Cabinda between ‘no peace’..., op. cit., p. 36-37; Douglas Wheeler, René Pélissier, História de Angola, Tinta-da-China, Lisboa 2011, p. 32. 26 It was already independent (since August 1960). 27 Douglas Wheeler, René Pélissier, op. cit., p. 243-244.

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allocating in Cabinda further more financial resources than to any other country’s province. Since introducing in 1990s the new law which allows Cabinda to retain 10 per cent of the oil revenue generated in the province, the governmental actions can be consider quite generous, for example, in the years 1997-2001, Cabinda, despite having one of the smallest populations among country’s provinces, obtained 14 per cent of all budgetary resources transferred to 18 Angolan provinces28. The main strategy of separatists is the internationalization of the Cabinda question. To achieve this goal, there have been a number of efforts to involve former metropolis in the process again, with a declared aim of persuading the Portuguese state to resume its supervisory role in accordance with the famous Simulambuco Treaty. This strategy seems to have a little chance of success, because whatever political option governs in Lisbon, it cannot afford to openly confront Angola on this issue in the situation of the increasing Portuguese commercial interests and their importance, especially now in the time of economic crisis29. Although in 2006 there was a ceasefire signed by the Angolan government and one of the separatist groups – FLEC-Renovada. The most radical factions of FLEC attempt to maintain the military pressure on the ground. In January 2010 the conflict briefly hit the international media when FLEC fighters claimed responsibility for attacking the convoy transporting Togo’s football team to Angola for Africa Cup of Nations tournament30. This event overshadowed the situation in the Cabinda itself, becoming a good excuse for the Angolan security forces to conduct arbitrary detentions among Cabindan intelligentsia and critics of the MPLA rules, as well as the acts of violence toward the people accused of sympathizing with FLEC. This issue was raised repeatedly in the reports 28 Tony Hodges, op. cit., p. 160. 29 Jean-Michel Mabeko-Tali, Cabinda between ‘no peace’..., op. cit., p. 39. 30 Togo Drops Out After Fatal Attack, “New York Times”, 9.01.2010, http://www.nytimes.com/2010/01/10/sports/soccer/10soccer.html?_r=0 (access: 10.10.2014); Togo’s soccer team attacked in Angola, CNN International, 9.01.2010, http:// edition.cnn.com/2010/SPORT/football/01/08/football.togo.nations.shooting/ (access: 10.10.2014).

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prepared by human rights organizations, such as, for example, Human Rights Watch31. However, it must be also stressed that the incident with the Togolese football team was not an isolated case. During the last 20 years different factions of FLEC used such means of violence as hostage-taking and kidnapping activities, not only to pursue their political aims, but also because of the economic reasons, what can be considered as an ordinary criminal act32. Both South Sudan and Cabinda’s political elites are (and were) highly conflicted. Southern Sudanese resistance groups split and fought many times against each other. Sometimes they took up arms against the central authoritarian government together with northern opposition groups, but it also happened that some fractions of the SPLA went even further and supported the Khartoum government against other southern groups (as once did Riek Machar). What also varied were the political aspirations of the Southerners: from immediate secession, through regional devolution, confederation and recognition of non-Islamic nature of the Southern society. Moreover, the Southerners were also divided by ethnic-regional differences and personal rivalries between their leaders33, the fact which is still present in Southern Sudanese political life in the post-independence period, having its culmination in the civil war that erupted in December 2013 and turned into severe ethnic clashes34. The deep divisions have been also experienced by the Cabindan separatist groups, what comprises the fundamental argument of the Angolan authorities 31 World Report 2011: Angola, Human Rights Watch, http://www.hrw.org/world-report-2011/angola-0 (access: 12.10.2014); Joanna Mormul, Przebieg wyborów w Angoli: kontynuacja czy zmiana?, Polskie Centrum Studiów Afrykanistycznych, Working Paper Series, February 2013, p. 8. More about alleged human rights violations in Cabinda: “They put me in the hole”. Military Detention, Torture and Lack of Due Process in Cabinda, Human Rights Watch, 2009. 32 Victor Ojakorotu, op. cit., p. 103. 33 Arnold Hughes, Decolonizing Africa: Colonial Boundaries and the Crisis of the (Non) Nation States, “Diplomacy and Statecraft”, 2004, vol. 15, no. 4, pp. 847-848; see more about divisions among South Sudan’s militias and their leaders: Mayank Bubna, South Sudan’s militias, Enough. The project to end genocide and crimes against humanity, 3.03.2011, http://www.enoughproject.org/publications/south-sudans-militias (document downloaded: 15.10.2014). 34 For instance, see more: Daniel Howden, South Sudan: the state that fell apart in a week, “The Guardian”, 23.12.2013, http://www.theguardian.com/world/2013/dec/23/south-sudan-state-that-fell-apart-in-a-week (access: 15.10.2014).

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– because of the internal fights and break-ups there is no ‘valid interlocutor’, so the central government has no one to talk to. As in the case of South Sudan, also in Cabinda there was a sudden change in political options, for example, in the end of 2003 half a dozen FLEC commanders decided to hand themselves in to the Angola’s authorities and were later incorporated into Angolan Armed Forces35. In Cabinda also there is and there was a large variation of views on the future of the province. As the separatist movement was much factionalized, some of the groups opted for a large autonomy within the Angolan state, for others only a total independence was really worth fighting for, among the latter there were supporters of immediate independence, but it was also possible to find those who agreed on the transitional period before a complete decoupling36. In South of Sudan in January 2011 approximately 99 per cent of voters opted to secede from the north, which led to the formation of a new state in July 2011. This type of secessionist settlement is something different and new in comparison with Cabinda and other cases such as the Casamance or Western Sahara that may have started with strong separatist aspiration but usually are forced to end up with self-determination options within the existing state. Despite not being a separate colony, the juridical dimension of sovereignty was open to the southern Sudanese because, at least officially, the secession took place with the consent of Sudan’s government. In case of the governments in Luanda, Dakar, Rabat or Mogadishu this kind of consent is not likely to be obtained. Jean-Michel Mabeko-Tali points out that the strategy of the Angolan government is based on “two active pillars, and a further absent one”. These two pillars are searching for a ‘valid interlocutor’ (as it was already mentioned) and defeating the separatist movement militarily. The latter, although the Angolan authorities do not want to leave it behind – arguing that they have right to defend their territory, is very problematic, as it 35 Jean-Michel Mabeko-Tali, Cabinda between ‘no peace’..., op. cit., p. 38-39. 36 Jean-Michel Mabeko-Tali, La question de Cabinda..., op. cit., p. 57.

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increases the resentment among the province’s population, and complicates the international situation of Angola, due to the continuous accusations of human rights violations. The so-called absent pillar of the Angolan strategy toward Cabinda is the strong reinvestment of the petrodollars in the troublesome province, so as to gain some local support, or at least minimize the impact of the separatist discourse37. The same mistake had been committed for many years by the government in Khartoum, which deliberately did not invest in the south, leaving a widening gap in development between the north and the south of the country. In the South Sudanese case the conflict ended in secession but as the recent years show, it did not end the problems of South Sudan. Since 2012 there is still ongoing conflict with the Republic of Sudan over the delineation of the border, and since 2013 South Sudan is in the state of a civil war. What scenario is waiting for Cabinda, it is hard to say, but considering the long-standing and protracted character of the conflict, the solution will not be easy to find. Bibliography “They put me in the hole”. Military Detention, Torture and Lack of Due Process in Cabinda, Human Rights Watch, 2009 Balawajder Grzegorz, Granica państwowa jako kategoria wielowymiarowa, “Pogranicze. Polish Borderlands Studies”, 2013, no. 1 Bereketeab Redie, The Horn of Africa. Intra-State and Inter-State Conflicts and Security, Pluto Press/Nordiska Afrikainstitutet, London/Uppsala 2013 Bierzanek Remigiusz, Symonides Janusz, Prawo międzynarodowe publiczne, Wydawnictwo Prawnicze LexisNexis, Warszawa 2005 Bubna Mayank, South Sudan’s militias, Enough. The project to end genocide and crimes against humanity, 3.03.2011, http://www.enoughproject.org/publications/south-sudans-militias (document downloaded: 15.10.2014) 37 Jean-Michel Mabeko-Tali, Cabinda between ‘no peace’..., op. cit., pp. 38-39.

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Denhez Charles Ian, Independence or Autonomy: The Right to Self-Determination in the Enclave of Cabinda, “Carleton Review of International Affairs”, 2009, vol. 1 Dobrzycki Wiesław, Historia stosunków międzynarodowych 1815-1945, Wydawnictwo Naukowe SCHOLAR, Warszawa 2012 Gomes Porto João, Cabinda: Notes on a soon-to-be-forgotten war, ISS Paper no. 77, Institute for Security Studies, August 2003 Green Elliott, On the Size and Shape of African States, “Political Science and Political Economy Working Paper”, London School of Economics and Political Science, 2010, no. 4 Herbst Jeffrey, States and Power in Africa. Comparative Lessons in Authority and Control, Princeton University Press, Princeton 2000 Hodges Tony, Angola: Anatomy of an Oil State, The Fridtjof Nansen Institute/ James Currey/Indiana University Press, Lysaker/Oxford/Bloomington 2004 Howden Daniel, South Sudan: the state that fell apart in a week, “The Guardian”, 23.12.2013, http://www.theguardian.com/world/2013/dec/23/south-sudanstate-that-fell-apart-in-a-week (access: 15.10.2014) Hughes Arnold, Decolonizing Africa: Colonial Boundaries and the Crisis of the (Non) Nation States, “Diplomacy and Statecraft”, 2004, vol. 15, no. 4 ICE Case Studies. The Biafran War, Inventory of Conflict and Environment, American University, http://www1.american.edu/ted/ice/biafra.htm (access: 4.10.2014) Lalonde Suzanne, Determining Boundaries in a Conflicted World: The Role of Uti Possidetis, McGill-Queen’s University Press, Montréal 2002 Leśniewski Michał, Biafra 1966-1970, in: P. Ostaszewski (ed.), Konflikty kolonialne i postkolonialne w Afryce i Azji 1869-2006, Książka i Wiedza, Warszawa 2006 Mabeko-Tali Jean-Michel, Cabinda between ‘no peace’ and ‘no war’, “Accord. An International Review of Peace Initiatives”, 2004, issue 15

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PAINEL 3 Cooperação, Empresas e Investimento



Investimentos Diretos Estrangeiros no Brasil: uma análise do processo de concessão



Ana Maria Ferreira Menezes - Universidade do Estado da Bahia, Salvador Manoel Justiniano Melo da Fonseca - Secretaria do Planejamento do Estado da Bahia, Salvador Joaquim Ramos Silva - SOCIUS-ISEG / Universidade de Lisboa



dos serviços públicos no período de 2007 a 2013

Introdução O Investimento Direto Estrangeiro (IDE) alcançou um predomínio sobre outros tipos de fluxos de capital estrangeiro no Brasil, em grande parte devido às condições mais favoráveis para o investimento na produção, e às reformas estruturais relacionadas com a privatização, que foram apoiadas por diversos instrumentos legais. Assim, em meados dos anos 90, surgiram as condições favoráveis para o aumento da entrada de IDE no Brasil. Associado a isso, identificamos o processo de concessão de serviços públicos no Brasil que, entre os anos 2007 e 2013, se caracterizou também como uma forma de captação de IDE. Neste contexto é que podemos explicitar o objetivo deste trabalho que se volta para a análise dos investimentos diretos estrangeiros no Brasil, particularizado através do processo de concessão dos serviços públicos a partir do segundo governo de Lula e do governo de Dilma. Este processo distingue-se do processo de privatização em função de que não ocorreu uma venda do património público, e sim concessão para construção, modernização e ampliação com a exploração do mesmo, por um determinado período de tempo, sem que esse património deixe de ser público. Para atingir esse objetivo, em primeiro lugar, buscar-se-á explicitar a im-

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portância do IDE para o desenvolvimento brasileiro; em seguida apresentar-se-á um contraponto entre privatização e concessão no contexto brasileiro a partir de uma perspectiva teórica; far-se-á, também, um cotejamento do processo de concessão do governo federal, que se iniciou em 2007, no governo Lula, com as rodovias federais, a construção de usinas hidroelétricas e que teve o seu prolongamento no governo Dilma, com o Programa de Investimentos em Logística (PIL) e o seu recente arranjo de concessão do campo de Libra; por fim, apresentaremos as considerações finais, nas quais explicitaremos os principais argumentos desenvolvidos. A principal contribuição do trabalho é apresentar, de forma sintética, como se deu o processo de concessões iniciado em 2007, identificando a origem do capital externo participante dos consórcios que adquiriram essas concessões, salientando a importância desses capitais para a manutenção do atual nível do IDE no Brasil. Importância do IDE para o desenvolvimento brasileiro A atração de investimentos diretos estrangeiros cumpre importantes funções para o desenvolvimento económico brasileiro, tanto em curto prazo quanto num maior horizonte de tempo. No curto prazo, esses capitais não só ajudam a diminuir as restrições externas, pois contribuem para a diminuição do déficit de transações correntes, como também são preferíveis a outras formas de financiamento que deixam o País mais vulnerável, como o investimento em portfólio1 e os tradicionais empréstimos e financiamentos. Diferentemente dos investimentos em portfólio, o IDE apresenta uma contrapartida de longo prazo, aumentando os níveis de poupança e de investimento de um país. No entanto, vale salientar que crescentes ingressos de IDE podem 1 Segundo o Banco Central do Brasil (Bacen), o ramo de atividade denominado “portfólio” inclui os investimentos em ações, aplicações no Fundo de Renda Fixa - Capital Estrangeiro e Fundos de Privatização.

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elevar a vulnerabilidade externa de uma economia, especialmente se este processo não for acompanhado de um aumento na receita das exportações. O investimento direto estrangeiro é definido como um investimento envolvendo relacionamento de longo prazo e refletindo um permanente interesse e controle por um estrangeiro sobre uma empresa residente numa economia que não a do investidor direto, ou seja, criam raízes, em oposição aos investimentos em portfólio, que são capitais voláteis, podendo deixar o país a qualquer momento, especialmente em períodos de crise interna e/ou internacional. Em relação a empréstimos e financiamentos, as vantagens existiriam, porque, mesmo quando estes se constituem em capitais de longo prazo, o seu custo - amortização e remessa de juros - é bem maior que o custo do IDE - remessa de lucros e dividendos. No longo prazo, o IDE teria também a função de modernizar e racionalizar as estruturas produtivas domésticas, particularmente a da indústria, introduzindo novas tecnologias e induzindo ganhos de produtividade. Desta forma, embora no curto prazo aumentassem as importações de máquinas, insumos e componentes industriais, a médio e longo prazos ter-se-ia uma ampliação da capacidade competitiva da produção doméstica, o que potencializaria o desempenho exportador e viabilizaria a internalização de parcela significativa da produção inicialmente importada. Assim, haveria uma indução na melhoria do saldo comercial, reduzindo-se as necessidades de financiamento externo. O relatório, de Janeiro de 2014, da UNCTAD destaca que o IDE global subiu 11% em 2013, atingindo um valor estimado de US$ 1,46 triliões - nível comparável à média pré-crise (2005-2007). O fluxo de IDE para as economias em desenvolvimento atingiu um novo recorde de US$ 759 biliões, respondendo por 52% do total. Segundo os dados da UNCTAD, os BRICS obtiveram mais de um quinto (22%) do IDE global. No Brasil, o IDE totalizou US$ 64 biliões em 2013 - equivalente a 2,9% do

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seu Produto Interno Bruto (PIB), a 8,4% do total de IDE destinado às economias em desenvolvimento e a 77% do total de IDE obtido pelo MERCOSUL. Ainda segundo a UNCTAD, o Brasil segue a tendência de queda de IDE verificada na América do Sul, pois, para a UNCTAD, o subcontinente viveu nos últimos três anos um “boom” provocado por altos preços de commodities que estaria chegando ao fim. Na Tabela 1 tem-se uma série do IDE no Brasil entre os anos de 2003 e 2013.

Observa-se na Tabela 1 que, em 2013, o país caiu da 5ª posição para a 7ª no ranking mundial dos 20 maiores países receptores de IDE. Essa queda deve ser analisada dentro do contexto do forte crescimento dos últimos anos, o qual, elevou o IDE no Brasil para altas históricas. Assim, entre 2003 e 2007, o Brasil recebeu em média US$ 19,4 biliões por ano, sendo que entre 2010 e 2013, a média

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de US$ 61,1 biliões é três vezes superior à anterior. Observa-se ainda que entre 2010 e 2012, o país permaneceu como o quinto maior receptor de IDE do mundo. Segundo o Censo de Capitais Estrangeiros no País do Banco Central, o stock total de IDE no Brasil no final de 2011 foi de US$ 688,6 biliões, equivalente a 28% do PIB, um crescimento de 2,8% frente ao ano anterior. Ainda segundo o Banco Central os Estados Unidos da América, Espanha, Bélgica e Reino Unido lideram o stock de IDE no Brasil, na 1ª, 2ª, 3ª e 4ª posição respectivamente, ficando Portugal com a décima quinta posição na lista dos maiores investidores no país. Sintetizando, pode-se observar, também, a importância do IDE para a economia brasileira no discurso da presidenta Dilma que, segundo Gallas (2014), em Davos, em janeiro de 2014, a mesma falou sobre essa importância e prometeu trabalhar pela “qualidade institucional” e “respeito aos contratos existentes” com empresas privadas que investem no Brasil. Contraponto entre Privatização e Concessão: o contexto brasileiro Privatização e concessão são termos técnicos que contêm conceitos ideológicos quanto ao papel do Estado na sociedade. Para entender esses termos vamos, primeiramente, sintetizar teoricamente acerca do papel do Estado na sociedade. O papel do Estado2, historicamente, tem tido diferentes definições. Para os clássicos3 (Adam Smith, Jevons, Walras, Marshall), por exemplo, o Estado é definido como a instituição que deve desempenhar a função de guardião e de polícia (proteger a nação, como também o cidadão). Para os keynesianos, o Estado tem, entre outras, a função de interventor para assegurar a demanda efetiva e eliminar o “desemprego involuntário”, com a consequente manutenção 2 A questão do Estado e do seu papel será abordada de acordo com as concepções dos grandes paradigmas da teoria económica. Sabe-se, na verdade, que essa discussão é muito mais ampla e envolveria outras referências. 3 O termo clássico é utilizado por Keynes para designar os clássicos propriamente ditos, como também os neoclássicos. Adotamos essa mesma denominação.

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dos níveis de produção, possibilitando, assim, a retomada do crescimento da atividade económica. Os neoliberais (representados por Friedman) concebem o Estado a partir de um retorno aos clássicos, mas admitem a possibilidade de o Estado assumir a função de controle da política monetária. Relativamente à questão específica da participação do Estado na economia, estas concepções teóricas entabulam também uma polémica: por um lado, a discussão de que o Estado não deve intervir, mas deixar que o livre jogo das forças de mercado aja de forma a promover o “equilíbrio natural” do mercado com pleno emprego - concepção clássica; por outro lado, a discussão se dá ao nível da demonstração de que o livre jogo das forças de mercado não é suficiente para resolver os possíveis desequilíbrios do mercado, sendo, portanto, necessária a presença do Estado, que passa a ter a função, entre outras, de regulador da economia - concepção keynesiana. A problemática do intervencionismo versus liberalismo económico surgiu no Brasil nos anos 1930. A visão intervencionista passou a predominar no final da década de 1940, com a adoção do modelo desenvolvimentista pautado na concepção cepalina, caracterizada pelo processo de substituição de importações e pelo aumento da participação do Estado na economia. Este modelo prevaleceu até meados dos anos 70, quando os choques internacionais (petróleo, juros, déficit fiscal dos EUA etc.) induziram uma segunda grande crise na economia mundial, cuja característica básica foi a estagflação (estagnação do processo produtivo e baixa produtividade, associada a um processo de elevadas taxas do nível de preços). Esta conjuntura fez com que ressurgisse as propostas de “eliminar” o Estado da atividade económica, consubstanciadas nas concepções neoliberais, que argumentam no sentido de que o “inchaço” do Estado estaria fazendo com que ele se tornasse um “mal” (o Leviatã). Sendo assim, seria necessário que o Estado se retirasse da atividade económica, ou pelo menos que tivesse a sua partici-

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pação reduzida a um “mínimo”. Esta participação mínima seria alcançada via privatização. Esse debate se corporificou na Inglaterra com as políticas adotadas pelo governo da primeira ministra Margaret Thatcher e nos EUA com Ronald Reagan, no início dos anos 80. No Brasil, esse debate tomou corpo no final dos anos 80. Esta discussão, no Brasil, levou a uma busca de reteorização do Estado e a uma revisão das formas de participação deste na sociedade, especificamente na economia. É dentro deste contexto que surgiram as proposições de reforma do Estado que passam necessariamente pelos processos de privatizações e concessões. Na perspectiva neoliberal seria necessário que o Estado se reorganizasse de forma a “eliminar” seu déficit fiscal e para isto deveria vender/privatizar o seu património, que se constituía de empresas públicas deficitárias que impactavam negativamente sobre as contas públicas do país - como foi o caso da alienação do património público a partir do início dos anos 90 e particularmente nos governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Segundo Kliass (2012), Essa ampla onda de desconstrução da ordem existente foi a característica central do processo de privatização. As formas de promover a ampliação da presença do setor privado e da aniquilação do espaço do Estado foram variadas. A mais evidente e simbólica, sem dúvida alguma, era a venda pura e simples de uma empresa estatal ao novo proprietário – o empresário privado. Mas mesmo a simples transferência do patrimônio público para o capital contemplava múltiplas modalidades: venda direta por licitação; venda por leilão de melhor preço; venda da maioria de ações com direito a voto; venda da totalidade de ações, com manutenção das chamadas “golden shares” - quando o Estado ainda ficava com direito a veto em questões estratégicas; estímulo à formação de parcerias entre o setor público e o setor privado (PPPs) depois da venda; etc.

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No entanto, segundo ainda Kliass (2012), para além dessas inúmeras formas de transferência da propriedade da empresa estatal, o processo de privatização previa, e ainda prevê outras modalidades de redução da presença do setor público e de ampliação do espaço de atuação para o capital privado. E aqui entra um conjunto amplo de medidas, tais como: a quebra do monopólio estatal de setores considerados estratégicos; a desregulamentação de setores monopolizados; a ampliação da concessão de setores e atividades para o setor privado; a liberalização de certas áreas à concorrência para grandes grupos internacionais; a abertura de setores de bens e serviços públicos à gestão pelo capital privado; entre outros. A partir dos argumentos apresentados acima se pode observar que o termo privatizar não comporta uma definição precisa, pois pode se apresentar de diversas maneiras. De acordo com Danahue (1992) pode significar, também, algo tão amplo como reduzir o Estado ao bem estar social, como ocorreu na Europa de uma forma geral e nos EUA - com a diminuição dos gastos públicos em políticas públicas sociais; ou algo tão estrito como a alienação de ativos públicos. Como vimos nos argumentos apresentados por Kliass (2012), as concessões aparecem como uma modalidade de privatização. Todavia, existem argumentos no sentido de diferenciar privatização de concessão. De acordo com Garafalo (2012), os dois processos são muito diferentes. No modelo de concessão, como ocorreu nos governos de Lula e agora no governo de Dilma a empresa não é vendida, mas “emprestada” por um período de tempo. O governo repassa aos compradores a administração dos aeroportos, por exemplo, para esses consórcios, mas continua “dono” do negócio e, portanto, com maior possibilidade de fiscalização. Segundo ainda Garafalo (2012), o mesmo processo de concessão foi feito com rodovias, como a Fernão Dias, e rodoviárias, como Tietê e Jabaquara, em São Paulo. Além de reaver a empresa depois de um período, o modelo de Dilma Rousseff blindou possíveis demissões em massa ao manter a Infraero com 49% desses aeroportos e estipular investimentos obrigatórios. Já no modelo de “pri-

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vatização, o novo dono racionaliza todo o processo produtivo, o que vai passar pela demissão de pessoas. O Partido dos Trabalhadores (PT), dentro de seu corporativismo, não queria quadro de demissões”, diz ele. Concessões no Governo Lula: 2007-20104 Em 2007, iniciaram-se as concessões de rodovias federais, no governo Lula. Todavia, no que diz respeito a pequenos bancos públicos estaduais, que foram incorporados pelo governo federal, manteve-se a continuidade do processo iniciado pelo governo de FHC da venda desses ativos. Assim, foram alienados pelo governo federal os Bancos dos Estados do Maranhão e do Ceará. Segundo o documento Balanço de Governo 2003-2010 somente, Em 2007, foi finalizado o leilão da segunda etapa de concessões de rodovias federais, por meio do qual foram concedidos 2,6 mil km de rodovias aos investidores privados, com uma tarifa básica de pedágio, em média, 51% inferior àquelas cobradas na etapa de concessões finalizada em 1998. A concessão das rodovias BR324/116 BA (que ligam Salvador a Feira de Santana e à divisa de Minas Gerais), realizada em 2009, introduziu uma modificação adicional ao prever a antecipação dos investimentos a serem realizados pelos concessionários caso fosse observado um volume de tráfego maior que o originalmente esperado (BRASIL, 2010, s. p.).

Segundo a Revista Época, na edição 491, de 11/10/2007, o grande vencedor do leilão da segunda etapa de concessões de rodovias federais foi o grupo espanhol OHL, que obteve o direito de explorar por 25 anos pedágios nas seguintes rodovias: BR-381 Belo Horizonte (MG) – São Paulo (SP); BR-101 Ponte Rio–Niterói (RJ) – (ES); BR-116 São Paulo (SP) – Curitiba (PR); BR-116 Curitiba (PR) – Divisa (SC-RS); e, BR-116/376/PR-101/SC Curitiba (PR) – Flo4 A análise deste período foi feita a partir da Tese de Doutoramento de Fonseca (2012).

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rianópolis (SC). As empresas vitoriosas na licitação vão administrar as estradas por um pedágio médio de R$ 0,02 por quilometro. Em troca, os vencedores do leilão se comprometem a investir R$ 19 biliões em manutenção, melhoria e, em alguns casos, duplicação das estradas. De acordo com Geraldo Vianna, presidente da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), em entrevista dada ao Jornal Estado de São Paulo, no Caderno Economia & Negócios, do dia 10/10/2007, Já havia clamor em relação aos altos preços dos pedágios, mas agora é possível que ocorra pressão política maior para que seja aberto um processo para renegociar as tarifas atuais, que precisam ser mais flexíveis. Em relação aos novos trechos a serem leiloados, ele diz que o governo de São Paulo terá de rediscutir suas propostas. Até agora, pelas informações divulgadas, os preços cogitados para as praças de pedágio do Rodoanel, por exemplo, estavam nos mesmos níveis daqueles cobrados atualmente. Segundo Vianna, em sistemas como o Anhangüera/Bandeirantes, por exemplo, o custo do pedágio por quilômetro de estrada é de R$ 0,12. Os valores apresentados ontem pelos vencedores do leilão ficam na casa de R$ 0,02, segundo cálculos preliminares feitos pela entidade. Isso confirma o que dizíamos, que é possível cobrar mais barato pelo uso das estradas.

A Rodovia dos Bandeirantes, que com a Via Anhanguera, forma o sistema rodoviário entre São Paulo e a região de Campinas foi privatizada em 1998, no âmbito do Programa Estadual de Desestatização (PED), criado em 1996, pelo Governo do Estado de São Paulo, anterior a criação da Agência Nacional dos Transportes Terrestres (ANTT), criada em 2001. A ANTT, vinculada ao Ministério dos Transportes, é responsável pela concessão de ferrovias, rodovias e transporte ferroviário relacionado à exploração da infraestrutura. O facto de o processo de concessão das rodovias federais no governo Lula

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ser regido por uma nova regulamentação, na qual as empresas vencedoras dos leilões são as que apresentam a menor tarifa de pedágio a partir da tarifa-teto previamente estipulada em edital, possibilitou a redução dos preços pagos pelos usuários nos pedágios, enquanto nas concessões anteriores à criação da ANTT, realizadas pelo Estado de São Paulo, sem essa regulamentação permitiu a concessão da malha rodoviária mais eficiente e de maior qualidade do país, o que demandaria menos investimentos das concessionárias, com custos de pedágio por quilómetro de estrada mais elevados. No que diz respeito ao setor de energia, em dezembro de 2007 foi realizado o leilão de concessão para a construção da Usina Hidrelétrica Santo António, no Rio Madeira, na cidade de Porto Velho em Rondônia, tendo como vencedor o consórcio Madeira Energia, liderado pelas empresas Odebrecht e Furnas. A usina, com previsão de conclusão em 2015, vai gerar 3.150 MW, e faz parte do Complexo do Rio Madeira. Em maio de 2008, o consórcio ESBR - Energia Sustentável do Brasil, formado pelas empresas Suez Energy, Eletrosul, Chesf e Camargo Corrêa, venceu o leilão de concessão para a construção da Usina Hidrelétrica Jirau, que vai gerar 3.450 MW também no Rio Madeira. As usinas de Jirau e Santo António, financiadas pelo BNDES, fundamentais para o suprimento de energia elétrica no Brasil a partir de meados de 2013, estão entre as obras mais importantes do Governo Federal. Nos dois leilões, baseados na modalidade “menor tarifa” do Novo Modelo do Setor Elétrico Brasileiro, com contratos de longo prazo, o governo obteve deságios no preço inicial do megawatt hora (MWh) (BRASIL, 2010, s. p.). Esta etapa distingue-se das demais em função de que não ocorre uma venda do património público, e sim concessões para construção, modernização e exploração do mesmo, por um determinado período de tempo, sem que esse património deixe de ser público.

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Quadro 1: Concessões dos Serviços Públicos no Brasil (2007 – 2010) PERÍODO / GOVERNO

CONCESSÕES DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

PERÍODO DE CONCESSÃO

2007-2010 Lula

Concessão de 25 Anos 2,6 mil km de rodovias federais (7 lotes de rodovias).

OHL Brasil R$ 20 biliões subsidiária do grupo espanhol OHL, Consórcio espanhol Acciona e Consórcio BRVias.

2007-2010 Lula

Concessão para a construção e operação das Usinas Hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau.

UHE Santo Antônio Consórcio Madeira Energia, formado por Odebrecht e por Furnas.

30 Anos

GRUPOS CONCESSÍONÁRIOS

INVESTIMENTO ESTIMADO

R$ 20 biliões

Fonte: Elaboração própria.

No Quadro 1 sintetiza-se o processo de concessões do governo Lula, bem como se apresenta os grupos concessionários que adquiriram os serviços. Observa-se neste Quadro que o capital espanhol foi o grupo que predominou na obtenção da concessão ligada às rodovias, reafirmando, assim, que esse processo, também, se caracterizou como uma forma de captação de IDE.

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Concessões no Governo Dilma: 2011-20135 Segundo o site da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), em 15 de agosto de 2012, o Governo Federal brasileiro lançou o Programa de Investimentos em Logística (PIL). O programa inclui um conjunto de projetos que contribuirão para o desenvolvimento de um sistema de transportes moderno e eficiente e serão conduzidos por meio de parcerias estratégicas com o setor privado, promovendo-se sinergias entre os modais rodoviário, ferroviário, hidroviário, portuário e aeroportuário. O objetivo principal é melhorar a integração logística entre os diversos modais de transporte de forma a trazer ganhos de competitividade ao Brasil. São esperados investimentos privados da ordem de R$ 261 biliões em infraestrutura de transportes, que impulsionarão o crescimento económico e promoverão o desenvolvimento do país. Segundo Amato (2013a), O chamado Programa de Investimento em Logística (PIL) viria a ser a principal aposta da presidente Dilma Rousseff para destravar gargalos históricos no setor de transporte, que encarecem produtos brasileiros e tiram competitividade das empresas exportadoras. Além disso, ajudaria a aquecer a economia do país em meio à crise internacional.

Segundo o PIL (2012), o programa rodoviário tem como diretrizes principais: a provisão de uma malha rodoviária ampla, moderna e integrada; cadeias de suprimentos eficientes e competitivas; e modicidade tarifária. Neste setor, o programa prevê a concessão de 7,0 mil km de rodovias, com um investimento estimado de R$ 46 biliões. O modelo de concessão prevê a execução de obras de duplicação que de5 A análise deste período foi feita com informações obtidas no site http://www.epl.gov.br, da Empresa de Planejamento e Logística do Governo Federal.

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verão ser concluídas durante os primeiros cinco anos de contrato. Os bancos públicos brasileiros poderão financiar até 70% do investimento a uma taxa de juros de até 2 % a.a. mais a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP). O vencedor do leilão será selecionado pelo critério de menor tarifa básica de pedágio proposta. A cobrança de pedágio será autorizada após a conclusão de 10% das obras de duplicação previstas no contrato. O programa ferroviário tem também como diretrizes principais: provisão de uma rede ferroviária ampla, moderna e integrada; cadeias de suprimentos eficientes e competitivas; e modicidade tarifária. O programa contempla um novo modelo de concessão, em que os concessionários serão responsáveis pela infraestrutura, sinalização e controle da circulação de comboios. Neste setor os investimentos previstos são da ordem de R$ 99,6 biliões em construção e/ou melhoramentos de 11 mil km de linhas férreas. O modelo de concessão prevê investimentos para serem realizados durante os primeiros cinco anos de contrato. Os bancos públicos brasileiros poderão financiar até 70% do valor do investimento com uma taxa de juros de 1 % a.a. mais a TJLP. A VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S.A. (VALEC) antecipará receitas pela disponibilidade da capacidade operacional durante o período de obras, em valor equivalente a 15% do CAPEX total de referência - a serem abatidas linearmente durante os anos operacionais da remuneração ordinária, desde que o concessionário cumpra o cronograma de execução física. O programa hidroviário faz parte dos empreendimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Regional, tendo como objetivo ampliar e melhorar a navegabilidade dos rios brasileiros. Tal objetivo será alcançado através da realização de dragagens, derrocagens, sinalizações, estudos hidroviários, construções de terminais hidroviários de carga e passageiros e implantação de estaleiros. Assim, haverá diminuição do custo de frete com o crescimento

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do modal hidroviário, aumento na segurança da navegação e planejamento do crescimento da navegação nos rios brasileiros. O estaleiro de Araçatuba, na hidrovia Tietê-Paraná, fruto de investimentos do PAC-Regional, possui linha de montagem de barcaças para transporte de mercadorias. O estaleiro foi criado para atender a uma encomenda da Transpetro, e está construindo embarcações que irão transportar etanol pelo Rio Tietê, gerando 400 empregos diretos e 2 mil empregos indiretos na região. O Brasil conta com um sistema extenso de rios e lagos. A extensão total deste sistema é de 63 mil km. O país é dividido em 12 bacias hidrográficas, nas quais há 42 mil km de rios potencialmente navegáveis. Atualmente, segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) somente 20 mil são utilizados economicamente para o transporte interior. Essa extensão não é, portanto, refletida na distribuição modal de transporte de carga atual do país: 52% rodoviário, 30% ferroviário, 8% navegação de cabotagem, 5% navegação interior e os 5% dutoviário (PNLT, 2011). O programa portuário tem como principais diretrizes: planeamento sistémico; ganhos de escala; licitações por maior capacidade de movimentação com menor tarifa e/ou menor tempo de movimentação; aumento da concorrência; reorganização dos portos; planeamento de longo prazo. O objetivo é expandir e modernizar a infraestrutura dos portos brasileiros por meio de parcerias estratégicas com o setor privado, promovendo sinergias entre as redes rodoviária e ferroviária, hidroviária, portuária e aeroportuária. Os bancos públicos brasileiros poderão financiar até 65% do valor do investimento com uma taxa de juros de até 2,5% a.a. mais a TJLP. O programa de aeroportos foi construído com três objetivos principais: melhorar a qualidade dos serviços e a infraestrutura aeroportuária para os utilizadores; ampliar a oferta de transporte aéreo à população brasileira; e reconstruir a rede de aviação regional. Os bancos públicos brasileiros poderão financiar até

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70% do investimento a uma taxa de juros de 0,9% a.a., acrescida do spread de risco mais a TJLP. Em termos de infraestrutura, o Programa está estruturado em três partes. A primeira compreende a concessão de dois importantes aeroportos internacionais - Galeão (RJ) e Confins (MG) - gerando investimentos estimados em R$ 9,2 biliões. A segunda parte, que será financiada através dos recursos obtidos pelo Governo a partir das concessões realizadas na 1ª parte, prevê investimentos superiores a R$ 7,3 biliões em 270 aeroportos regionais e consiste no fortalecimento e reestruturação da rede de aviação regional brasileira, com expansão da oferta de transporte aéreo e melhorias na qualidade da infraestrutura e dos serviços aeroportuários, por meio de concessões administrativas. A terceira e última parte consiste na indução da exploração comercial de aeroportos privados dedicados exclusivamente à aviação geral. A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) é acionista de todas as concessões - Guarulhos (SP), Viracopos (SP) e Brasília (DF), Galeão (RJ) e Confins (MG), com 49% do capital social de cada uma e participa da governança dos aeroportos na proporção de sua participação acionária nas concessionárias, com poder de decisão em temas relevantes, que foram estabelecidos em acordos de acionistas firmados entre as partes. O Trem de Alta Velocidade (TAV) é um serviço de transporte ferroviário de passageiros que conectará as cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas. O projeto do TAV representará um marco tecnológico para o Brasil, ao se tornar uma nova alternativa de transporte. O projeto, que está estimado em R$ 35,6 biliões, reduzirá as pressões impostas pelo crescente aumento no fluxo de passageiros ao longo das rodovias e aeroportos congestionados no eixo Rio São Paulo. O Quadro 2 sintetiza o processo de concessão do governo Dilma.

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Quadro 2: Concessões dos Serviços Públicos no Brasil - Programa de Investimentos em Logística (2011 – 2013) PERÍODO / GOVERNO

CONCESSÕES DOS SERVIÇOS PÚBLICOS

2011 – 2013 Dilma

Concessão de 7,0 mil km de 30 Anos rodovias federais (9 lotes de rodovias).

Consórcio Planalto; Consórcio Rota do Oeste; Grupo CCR; Odebrecht; Invepar e Triunfo.

R$ 46 biliões

2011 – 2013 Dilma

Concessão para construção 35 anos e/ou melhoramentos de 11 mil km de linhas férreas (10 ferrovias).

As licitações ainda não foram realizadas.

R$ 99,6 biliões

2011 – 2013 Dilma

Concessões para ampliação e modernização da infraestrutura e gestão do setor portuário (Arrendamentos de 159 áreas nos portos organizados - PIL-Portos e 15 Terminais de Uso Privado.

Arrendamentos e autorizações ainda não realizados.

R$ 54,6 biliões para os próximos cinco anos. Também serão investidos R$ 6,4 biliões em acessos.

2011 – 2013 Dilma

Concessão para conclusão da construção e operação do aeroporto de São Gonçalo do Amarante em Natal-RN.

25 anos

Consórcio Inframérica, liderado pelo grupo brasileiro Engevix e a empresa argentina Corporación América.

O aeroporto foi arrematado por R$ 170 milhões. O Investimento previsto foi de R$ 650 milhões.

2011 – 2013 Dilma

Concessão dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Brasília.

Guarulhos - 20 anos. Viracopos – 30 anos. Brasília – 25 anos.

Guarulhos - Consórcio Invepar, composto pela Invepar - Investimentos e Participações em Infraestrutura S.A e pela Airport Company South África (ACSA). Viracopos – Consórcio Aeroportos Brasil, composto pela Triunfo Participações e Investimentos , UTC Participações e Egis Airport Operation.

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PERÍOGRUPOS DO CON- CONCESSÍONÁRIOS CESSÃO

INVESTIMENTO ESTIMADO

Brasília Consórcio Inframerica Aeroportos, composto pelas empresas Infravix Participações SA e a Corporacion America AS.

Os aeroportos de Guarulhos, Viracopos e Brasília foram arrematados por R$ 24,5 biliões. O Investimento previsto para os três aeroportos são de R$ 16,1 biliões.

2011 – 2013 Dilma

Concessão dos aeroportos de Confins e Galeão.

Confins – 30 anos. Galeão – 25 anos.

Confins - Consórcio BH Airport, formado pelo Grupo CCR e operadoras Flughafen Munchen e Flughafen Zürich AG. Galeão - Consórcio Aeroportos do Futuro, formado por Odebrecht e Transport e a Operadora do Aeroporto de Cingapura.

Total de R$ 9,2 biliões até 2016, sendo R$ 5,7 biliões para o Galeão e R$ 3,5 biliões para Confins.

2011 – 2013 Dilma

Concessão para construção e operação do Trem de Alta Velocidade (TAV).

40 anos

Licitação ainda não realizada.

R$ 35,6 biliões.

Fonte: Elaboração própria.

Os grupos internacionais não participaram da terceira etapa de concessões de rodovias federais, no Governo Dilma. De acordo com Delfim Netto (2014), os grupos nacionais foram vencedores das concessões de rodovias importantes, que incluem rodovias-tronco nas regiões de grande produção agrícola e da pecuária nos estados do Centro-Oeste que fazem a ligação com os portos do Sudeste, como as BRs 040, 050 e 060 em Goiás e Minas Gerais, e a BR-163, des-

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de Sinop, no norte de Mato Grosso, a Itiquira, próximo à divisa de Mato Grosso do Sul com São Paulo. São rotas de alto valor adicionado, com grande peso na economia brasileira, por onde passa o transporte de grãos da região que ostenta hoje os melhores índices de produtividade de soja, em nível mundial. Já com relação às concessões aeroportuárias, observa-se que houve a entrada de IDE com a participação de operadoras de grandes aeroportos internacionais, a exemplo dos aeroportos de Zurique, Munique e Singapura, que estão presentes nos consórcios vencedores, constituídos para participarem das licitações de concessões dos maiores aeroportos brasileiros, nos quais, certamente, poderão vir a dar uma grande contribuição na qualidade da gestão desses aeroportos. Segundo Amato (2013b), a exploração do Campo de Libra deve dobrar as reservas nacionais de petróleo – a estimativa é que o volume de óleo recuperável seja de 8 biliões a 12 biliões de barris – as reservas nacionais são hoje de 15,3 biliões de barris. As reservas de gás somam atualmente 459,3 biliões de metros cúbicos e também devem duplicar com Libra. O Campo de Libra fica na chamada Bacia de Santos, a cerca de 170 quilómetros do litoral do estado do Rio de Janeiro. A sua área é de cerca de 1.500 quilómetros quadrados. De acordo com o governo, é a maior área para exploração de petróleo do mundo. De acordo com Amato, Mello e Thum (2013), o consórcio, formado pelas empresas Petrobras - que garantiu a fatia de 10% no consórcio além dos 30% aos quais tem direito como única operadora do pré-sal, Shell, empresa anglo-holandesa, - com 20%, Total, empresa francesa, - com 20%, China National Petroleum Corporation (CNPC) e China National Offshore Oil Corporation (CNOOC), empresas chinesas, - com 10% cada, arrematou o Campo de Libra e foi o vencedor do primeiro leilão do pré-sal sob o regime de partilha – em que parte do petróleo extraído fica com a União. Único a apresentar proposta, contrariando previsões do governo, o consórcio ofereceu repassar à União

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41,65% do excedente em óleo extraído do campo – percentual mínimo fixado pelo governo no edital. O modelo de exploração por partilha da produção regulamenta a exploração de campos estratégicos, em que há grande volume de produção, como o pré-sal. O Campo de Libra deve proporcionar ao governo federal cerca de um trilhão de reais em participações governamentais, incluindo R$ 270 biliões de royalties, R$ 15 biliões do bónus de assinatura, o excedente de óleo produzido no campo e os impostos desembolsados pelas empresas, ao longo dos 35 anos de concessão. Segundo a Agência Brasil (28/10/13), após o leilão do campo de Libra, a presidenta Dilma enfatizou que, pelo modelo de partilha, o Brasil fica com 85% do petróleo retirado do fundo do mar e pode transformar essa riqueza em educação, saúde, desenvolvimento e criação de empregos. Segundo ainda a presidenta “Libra é a prova de que é perfeitamente possível preservar o interesse do povo brasileiro e atrair o interesse das empresas privadas”. Dilma também explicou que o modelo de partilha é adotado quando há petróleo de boa qualidade no campo e já se sabe a localização. Quando há dúvida em relação a esse aspecto – localização do combustível fóssil – o modelo adotado, segundo ela, é outro: o de concessão. A assinatura do contrato do Campo de Libra foi realizada pela Presidenta Dilma, em 02/12/2013, após o pagamento ao Tesouro Nacional do bónus de assinatura de R$ 15 biliões pelo consórcio vencedor. A expectativa é que a produção no Campo de Libra comece em cinco anos, e que a produção atingirá, no pico, 1,4 milhão de barris de petróleo e 40 milhões de metros cúbicos de gás por dia. Atualmente a produção brasileira é de 2,1 milhões de barris diários.

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Considerações Finais Tendo como pano de fundo a questão do IDE e a sua importância para a economia brasileira, o presente trabalho objetivou analisar o processo de concessão dos serviços públicos a partir do segundo governo de Lula e do governo de Dilma e se caracteriza como uma das formas de captação do IDE. O marco diferenciador entre os processos de privatização e concessão decorre do facto de que no processo de privatização ocorreu uma venda do património público, enquanto que no processo de concessão o património não deixa de ser público, ele passa para a iniciativa privada por um determinado período de tempo com regras e compromissos claros. Para um cotejamento da entrada do IDE no Brasil, no período compreendido entre os anos de 2007 e 2013, foram feitas análises das concessões ocorridas e salientou-se a origem do capital dos grupos concessionários que saíram vencedores nos leilões. Sendo assim, pode-se concluir que este processo contribui para a entrada de IDE, a exemplo do ocorrido no governo de Lula (20772010), quando o capital espanhol foi o grupo que predominou na obtenção da concessão ligada às rodovias. No governo de Dilma pode-se salientar a entrada de IDE nas concessões aeroportuárias, com a entrada de capitais africano, latino-americano, alemão, suíço e asiático. Na concessão do Campo de Libra identificou-se a entrada de capitais anglo-holandês, francês e chinês. O Programa de Investimentos em Logística (PIL) do governo Dilma é de certa forma um desdobramento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) iniciado no Governo Lula, com foco na modernização e ampliação da infraestrutura do país, incorporando o capital privado, nacional e internacional, nos investimentos a serem realizados no setor de transportes brasileiro. Como pudemos ver o PIL ainda está no seu estágio inicial, contemplado com financiamento público, com taxas atrativas de retorno do capital, de forma que a sua consolidação poderá contribuir com a ampliação da entrada de IDE no Brasil e da melhoria da qualidade dos serviços públicos.

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A territorialidade das redes hoteleiras portuguesas no Brasil



Lirandina Gomes - Universidade do Estado da Bahia, Salvador Joaquim Ramos Silva - SOCIUS-ISEG / Universidade de Lisboa

1. Introdução Num contexto de crescente competitividade associado à saturação e padronização da oferta turística, grandes grupos hoteleiros internacionais têm adotado diferentes estratégias empresariais para assegurar a sua posição no mercado nacional e internacional. Entre outras causas, estas empresas são estimuladas pela busca de economias de escala e diversificação do produto e dos mercados. Considerando os diferentes tipos de estratégias empresariais, no caso das redes hoteleiras portuguesas, as formas mais adotadas para a expansão internacional foram, por um lado, aquisições e investimentos de raiz, e por outro lado, contratos de gestão e contratos de arrendamento. Como resultado dessa dinâmica no final da década de 1990 e início dos anos 2000, verificou-se uma elevada tendência para a internacionalização e a concentração em certas regiões por parte dos grupos hoteleiros portugueses. No caso particular do Brasil, a sua presença foi marcada pela aquisição em 1999/2000 do atual Hotel Pestana Rio Atlântica, no Rio de Janeiro, do Hotel Méridien, atual Pestana Bahia e, do Pestana Convento do Carmo em Salvador pelo Grupo Pestana. A partir de 2002 outras unidades foram implantadas pelo Grupo Pestana nas cidades de Natal, São Paulo e São Luís. No mesmo período, as redes hoteleiras Vila Galé S.A e Tivoli Hotels & Resorts iniciaram o seu processo de expansão internacional com foco no Brasil. Esta realidade expressou-se, não apenas através da aquisição de unidades já existentes mas também

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pela apropriação de significativas parcelas do território para construção de megaempreendimentos hoteleiro-imobiliários implicando novas dinâmicas económicas, políticas, institucionais e territoriais. Esse processo intensificou-se especialmente através de alianças estratégicas entre o setor turístico, hoteleiro, imobiliário e fundos institucionais para a construção de novos projetos conhecidos como complexos integrados hoteleiro-imobiliários, orientados, sobretudo, para segunda-residência, fenómeno recente no Brasil. A região preferencial das empresas é o litoral nordestino com destaque para os estados da Bahia, Ceará e Pernambuco que dispõem, a uma escala mais global, de grandes extensões de terras a preços bastante competitivos. 2. A internacionalização das redes hoteleiras portuguesas No início do novo século, vários fatores contribuíram para a internacionalização das redes hoteleiras portuguesas e a sua entrada no Brasil como a saturação do mercado europeu, a necessidade de crescimento das empresas e as condições favoráveis da economia brasileira. Mais recentemente, a crise económica mundial que teve início em 2008, afetou sobremaneira os mercados imobiliário e turístico, bem como a economia portuguesa no seu conjunto, sendo as empresas estimuladas a intensificar o seu processo de internacionalização, buscando novos mercados, para superar os efeitos da crise. Seja como for, desde o final dos anos 1990, várias medidas foram tomadas pelo governo português visando apoiar e facilitar a internacionalização das empresas. No caso das cadeias hoteleiras, que desfrutavam de certas vantagens comparativas dada experiência histórica acumulada, o processo de internacionalização era ainda mais apelativo. Quer os grupos hoteleiros portugueses quer espanhóis, motivados pelos incentivos governamentais e o apoio de diversas instituições dos países de origem

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e do governo brasileiro aliados à necessidade de ampliação e diversificação do mercado frente à saturação e esgotamento dos destinos turísticos europeus, passaram a investir com mais intensidade na década de 2000, no litoral nordestino brasileiro e baiano em particular (GOMES & SILVA, 2014). Entre outras medidas tomadas desde a segunda metade dos anos 1990, o governo português, visando a internacionalização das empresas portuguesas, determinou um conjunto de disposições de que a Resolução do Conselho de Ministros n° 115/2009 é exemplo: O referido diploma identifica as seguintes medidas que concretizam a estratégia de internacionalização da economia e de aumento das exportações para recuperação económica: 1 – Criar, durante o 1.º trimestre de 2010, de um novo Fundo, no montante de 250 milhões de Euros, para apoiar operações de desenvolvimento das PME em mercados externos; 2 – Criar, durante o 1.º trimestre de 2010, do Programa INOV-Export destinado a apoiar a inserção de 500 jovens quadros profissionais especializados em comércio internacional em PME nacionais exportadoras/potencialmente exportadoras; 3 – Criar, durante o 1.º trimestre de 2010, de 14 lojas de exportação em Portugal enquadradas na Rede de agências do IAPMEI e em articulação com a AICEP; 4 – Criar o Conselho para a Promoção da Internacionalização; 5 – Criar uma estrutura interministerial para a internacionalização; 6 – Promover, em sede de proposta de lei que aprova o Orçamento do Estado para 2010 (a submeter à Assembleia da República), o reforço do sistema de benefícios fiscais ao investimento na internacionalização; 7 – Criar uma Rede de altos quadros portugueses de empresas no exterior, em articulação com a diplomacia económica e a AICEP. Fonte: Ministério da Economia, da Inovação e do Desenvolvimento, 2010.

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Assim, pequenas e médias e empresas portuguesas investiram no Brasil e no Litoral Baiano no setor de construção e imobiliário, a exemplo do grupo Reta Atlântico Brasil Investimentos Imobiliários, Ltda. Recentemente outras empresas estão a instalar-se em diversas outras regiões do litoral como salienta matéria veiculada na Revista País Económico em novembro de 2013: “Nessa primeira parte da década passada, chegaram sobretudo à Bahia os mais importantes players portugueses na área de hotelaria como o grupo Pestana, depois o Vila Galé a adquirir também um hotel em Salvador e posteriormente a construir o seu primeiro resort no Brasil, a 30 Km de Salvador, e depois foi o Grupo Tivoli a adquirir uma importante unidade hoteleira na Praia do Forte e ali firmar a primeira bandeira do grupo no Brasil. Para além de muitos outros pequenos empreendimentos hoteleiros portugueses espalhados por todo o litoral da Bahia, destacamos, ao norte, a Pousada Fantasia do Agreste, em Mangue Seco do empresário Álvaro Jacinto, e ao sul a Pousada Minha Louca Paixão da empresária Sofia Fernandes.” Revista País Económico, 2013, p. 6

Reduzindo os efeitos e as incertezas geradas pela crise económica internacional de 2008 e as expectativas geradas por eventos como a Copa do Mundo em 2014 e as Olímpiadas em 2016, outras empresas portuguesas estão a retomar os seus investimentos no Brasil e em especial no Litoral Norte Baiano, no setor hoteleiro, imobiliário, energia e infraestrutura conforme destacou a revista País Económico (2013): “Mais recentemente é ainda o setor de turismo a captar a atenção de um dos mais poderosos empresários portugueses, concretamente, o empresário Américo Amorim. Em construção está a desenvolver o Condomínio Piscinas naturais na Praia do Forte, que será um dos empreendimentos turístico-residenciais de maior qualidade no Litoral Norte da Bahia. Todavia, Américo Amorim promete que seu grande investimento na Bahia será o empreendimento a concretizar na designada Fazenda

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Isabel Antunes, próximo a Itacaré, no litoral sul da Bahia, e que poderá ser um dos maiores projetos turísticos da Bahia e de todo nordeste brasileiro. Outro grande projeto que se anuncia para a Bahia será na área de energia renováveis, onde o conhecido empresário Miguel Paes do Amaral, através da Quifel Energy pretende concretizar um ambicioso investimento em energia eólica, solar fotovoltaica e biomassa no interior (município de Sento Sé) do estado e que ultrapassará os dois bilhões de reais (cerca de 670 milhões de euros).” Revista País Económico, 2013, p. 7.

Nos últimos 20 anos, um dos aspectos mais expressivos na evolução do turismo brasileiro é o crescimento dos empreendimentos hoteleiros em áreas litorâneas do tipo Eco Resorts – hotéis que se caracterizam por uma complexa e moderna infraestrutura de lazer e serviços para atender as demandas do turismo global. Esses empreendimentos na sua maioria são implantados próximos ou em torno das grandes metrópoles que permitem que eles se beneficiem da infraestrutura de aeroportos, portos, serviços bancários e de saúde, entre outros serviços. Dadas as suas especificidades, a localização das redes hoteleiras é definida também em função da disponibilidade de grandes espaços ecologicamente conservados (a exemplo das áreas protegidas), acessibilidade e de infraestrutura urbana. Atraídas por incentivos governamentais e o potencial de crescimento do mercado brasileiro, a partir da década de 1990, as grandes redes hoteleiras internacionais predominantemente europeias têm implantado muitos Eco Resorts no litoral do Nordeste brasileiro. O que esses empreendimentos trazem de novo é a associação do capital turístico-hoteleiro ao capital imobiliário, a integração entre o hotel, campo de golfe e o condomínio residencial de uso turístico chamado de Complexo Turístico Residencial (CTR). A construção de segunda-residência é utilizada pelas empresas como forma de compensar o retorno lento do investimento para a construção e implantação do resort afirmam os especialistas.

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As vantagens locacionais no turismo segundo Chesnais (1996) são representadas pela dotação de riquezas naturais, bem como pelo valor do património cultural e histórico de um país, associado a uma eficiente e moderna oferta de infraestrutura urbana. Esses fatores e também as multinacionais especializadas vão determinar a capacidade do país de atrair turistas. Segundo o autor, as atividades ligadas ao turismo como hotéis, restaurantes, clubes de férias são intensivas em mão–de-obra; é por isso que as multinacionais do setor obtêm consideráveis vantagens pela sua localização em países que combinem atrações naturais com mão-de-obra barata. Assim sendo, nota-se que as estratégias de localização de um empreendimento hoteleiro e a definição dos investimentos ainda são influenciadas por aspectos da racionalidade e otimização da localização de recursos, para além da disponibilidade de mão-de-obra e matéria prima. As filiais desses grandes grupos económicos, ao se implantarem nas diferentes regiões do mundo, criam novos territórios para as empresas, constituindo uma territorialidade específica de acordo com suas necessidades funcionais e, também, com as diretrizes gerais da gestão central desenvolvida pela matriz. Assim, as empresas ao se instalarem em novos espaços, também passam a produzir uma nova territorialidade, já que imprimem novas características ao lugar onde se fixaram. No período recente, a atividade turística registrou assim mudanças estruturais importantes como a associação com o capital imobiliário, financeiro, fundos de pensão e estratégias diversas para o seu crescimento e expansão internacional, conforme foi destacou num estudo realizado pela (CEPAL, 2008) “grandes empresas do setor turístico têm explorado o potencial de diferentes destinos mediante produtos estandardizados e estratégias globais, os quais permitem beneficiar-se de economias de escala, desenvolvimento de novos mercados, reduzir custos e oferecer aos clientes serviços atrativos a preços muito competitivos”.

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Dominado pelas grandes empresas transnacionais turísticas localizadas nos principais mercados emissores, esse processo é resultante da consolidação e concentração das principais empresas dos diferentes segmentos da indústria turística particularmente, companhias aéreas, operadores turísticos e cadeias hoteleiras. Umas das tendências mais frequentes no setor é a fragmentação da propriedade dos serviços turísticos o que permite a participação de diferentes agentes no sistema turístico. Assim, nos últimos anos as principais cadeias hoteleiras têm abandonado as suas estratégias de integração vertical centrando-se em serviços básicos de gestão separando o negócio imobiliário das operações. O desenvolvimento de estratégias de segmentação por marcas para atingir diferentes tipos de consumidores tem sido uma das principais vantagens competitivas das grandes cadeias hoteleiras mundiais, especialmente, quando se começa a evidenciar uma escassa diferenciação entre alguns destinos. No que se refere aos modos de entrada dos investimentos portugueses no setor turístico, conforme pesquisa realizada por Breda (2008, p. 8), abrangendo aproximadamente a primeira década da sua expansão para o Brasil, constatou-se que, embora mais recentes os investimentos de raiz já predominavam sobre as aquisições. Dos hotéis propriedade das empresas, 61,5% eram sole-ventures e 38,5% joint-ventures. Na área de turismo, em média, as empresas têm dois parceiros, que são na maioria empresas portuguesas de médio ou grande porte, conclui a autora. Numa perspectiva geográfica, as práticas espaciais dessas empresas são orientadas pelo princípio da seletividade espacial que resulta na fragmentação territorial, diversidade e urbanização. Nas décadas de 1990/2000, outras redes hoteleiras internacionais implantaram-se no país, seguindo um processo semelhante ao já descrito, através da entrada de novos agentes no setor como fundos de investimentos institucionais com destaque para os fundos de pensão, construtoras e incorporadores imobiliários que passaram a financiar novos projetos. O Estado atuou como agente catalisador

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de políticas voltadas para o planejamento e ordenamento territorial, marketing e promoção. De entre essas políticas destaca-se as diretrizes e ações do Plano Nacional de Turismo e, no caso do Nordeste, do PRODETUR/NE, cujos recursos financeiros foram voltados essencialmente para infraestrutura básica e urbana com a finalidade de qualificar os espaços litorâneos para o capital internacional. É nesse contexto que o litoral nordestino e baiano, em especial o Litoral Norte da Bahia, se constituiu a região preferencial desses investidores, notadamente das redes hoteleiras portuguesas e espanholas (GOMES & SILVA, 2014). No Brasil, os fundos institucionais e fundos de pensão foram estimulados a investir no setor hoteleiro atraídos pelos investimentos significativos dos governos federal e estaduais no setor de turismo, principalmente na região Nordeste. Segundo a Embratur, entre 1995-2000 foram investidos no país, US$ 10 biliões, em infraestrutura básica, urbana e turística financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Esses recursos foram viabilizados em parceria do Governo Federal com os governos estaduais. Na região Nordeste os recursos foram repassados pelo Banco do Nordeste (BNB) através do PRODETUR/ NE. Este programa de financiamento teve como objetivo viabilizar os recursos disponibilizados pelo governo brasileiro para o desenvolvimento da atividade turística na região. As ações do PRODETUR/NE foram divididas em três componentes, a saber: a) Desenvolvimento institucional: incorpora todas as ações que consistem em ampliar a capacidade gerencial de órgãos estaduais e municipais co-executores do Programa; b) Obras múltiplas em infraestrutura básica e serviços públicos: esse componente incorpora os investimentos nos setores de saneamento básico, administração de resíduos sólidos, proteção e recuperação ambiental, transportes e recuperação do patrimônio histórico;

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c) Construção, ampliação e modernização de aeroportos nas capitais e outras regiões do Nordeste, consideradas prioritárias pelo programa. De acordo com a Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia (SECULT, 2005) no período compreendido entre 1991 e 2004, o governo do estado da Bahia investiu US$ 1,6 bilião na criação, melhoria e ampliação das zonas turísticas. Sendo que deste total, US$ 250 milhões foram recursos advindos do PRODETUR/NE. Esses recursos foram voltados essencialmente para implantação da infraestrutura urbana e turística nas diversas regiões turísticas do Estado. Considerando os diferentes contextos apresentados anteriormente verifica-se que essas relações de poder entre o setor público e o setor privado são observadas também no Litoral Norte da Bahia, sendo notória a associação nos últimos 20 anos entre o capital imobiliário, turístico-hoteleiro e fundos institucionais que tem como articulador e indutor o Estado. Este último tem atuado através de políticas de investimentos em infraestrutura, isenções fiscais e marketing e promoção de reuniões empresariais, participação em eventos nacionais e internacionais, a exemplo do Salão Imobiliário de Lisboa e Madrid. A deflagração desse processo é caracterizada pela apropriação privada de grandes espaços litorâneos ecologicamente conservados e de alto grau de fragilidade, e supervalorizados em decorrência dos investimentos públicos, como também da apropriação de áreas de interesse das populações que habitam nesses locais há várias gerações. A apropriação e o uso dessas áreas pelos grupos económicos multinacionais têm produzido novas configurações territoriais. As empresas estabelecem as suas próprias normas e estratégias de regulação e controle do espaço, bem como promovem uma supervalorização das terras, alteram a estrutura fundiária e, consequentemente expropriam das suas terras as comunidades litorâneas pesqueira, extrativista e agrícola.

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Diferenciações espaciais são produzidas pelos vetores de modernização e lógicas globais onde grupos estrangeiros vêm adquirindo grandes extensões de terras no litoral brasileiro, principalmente no Nordeste do país, em regiões próximas a grandes metrópoles, com infraestrutura aeroviária, e também, em áreas mais isoladas e ambientalmente privilegiadas. Novos arranjos institucionais e políticos são estabelecidos entre grupos económicos nacionais e estrangeiros para a implantação de megaempreendimentos turísticos, hoteleiros e imobiliários na região. Esta questão tem sido amplamente divulgada nos media brasileiros, ao nível nacional e regional, conforme podemos observar em matéria do Jornal Correio Brasiliense (2010): Aquiraz e Caucaia (CE) são exemplos de grandes empreendimentos turísticos com financiamento de empresas estrangeiras e fundos de investimento internacionais que estão comprando paraísos ecológicos até então intocados no litoral do Ceará. O valor dos negócios supera os R$ 5 bilhões. A ocupação é agressiva e sem controle. Os projetos ocupam dunas fixas e móveis, áreas de marinha, estuários e terras reivindicadas por indígenas. Há casos em que áreas desmatadas são abandonadas por projetos fracassados. Os forasteiros são recebidos de portas e cofres abertos pelo governo do estado, que já injetou cerca de R$ 100 milhões em obras de infraestrutura em apenas duas iniciativas. Ontem, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou empréstimo internacional de US$ 250 milhões para aprimorar a infraestrutura turística na região. Jornal Correio Brasiliense, 08/04/2010.

No caso do litoral cearense, um dos exemplos mais emblemáticos encontrados é o projeto Aquiraz Riviera, distante 35 km de Fortaleza, desenvolvido pelo consórcio luso-brasileiro Aquiraz Empreendimentos Turísticos - nome registrado no cartório do município de Aquiraz. O Governo do Estado financiou a duplicação de 24 km da estrada estadual a CE-040 para facilitar o acesso ao

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empreendimento, a um custo de R$ 17,8 milhões. Já a restauração de oito km da CE-453, mais o acesso de dois km ao condomínio, custou R$ 5,3 milhões. A implantação do sistema de abastecimento de água e de tratamento de esgoto do complexo turístico, para atender oito hotéis, consumiu mais R$ 12,8 milhões. Para a implantação da rede de energia elétrica, o Estado investiu R$ 4 milhões, (Jornal Correio Brasiliense, 2010). Situação semelhante ocorreu noutras regiões do nordeste brasileiro, notadamente na Bahia, a exemplo do Complexo Costa do Sauípe inaugurado em 2000 e que constitui num marco desses novos arranjos políticos-institucionais, envolvendo o Governo, o fundo de pensão PREVI e o grupo Odebrecht. Os impactos socioambientais decorrentes da implantação desses empreendimentos na região são de diversas natureza e magnitude. Localizados em áreas protegidas, contam com ambientes ecologicamente frágeis de elevado grau de vulnerabilidade ambiental e próximo às vilas e povoados onde habitam as populações autóctones. Os empreendimentos são construídos em ambientes de extrema fragilidade como mangues, restingas, dunas, áreas húmidas. O resultado desse tipo de ocupação e uso do solo é o parcelamento descontrolado do solo e invasões, especulação imobiliária, descaracterização da cultura e costumes tradicionais, intensificação dos fluxos de movimentos migratórios. Este modelo de ocupação do solo dificulta o acesso e uso dos recursos naturais pelas populações locais, antes usados para o extrativismo, a pesca e o lazer. É um modelo que busca a promoção e novas relações de interdependências entre o capital (nacional e internacional) e o governo. Promove a superespecialização da ocupação e uso do solo produzindo poucos benefícios para a região. Grandes extensões de terras são utilizadas para instalação de campo de golfe e construção de segundas-residências que permanecem fechadas a maior parte do ano absorvendo pouca mão-de-obra e gerando escassas receitas para as localidades. Aliás, os maiores lucros são exportados para a sede das empresas

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situadas nos países ricos. Quando os negócios são realizados a partir dos países de origem das empresas os recursos tendem a não ingressar no Brasil. O arranjo institucional subjacente promove a interdependência entre os capitais (nacionais e internacionais) e o governo, o qual atua como articulador entre os diversos atores hegemónicos e provedores de investimentos de infraestrutura onerosa aos cofres públicos e à sociedade. A economia regional fica dependente de processos e decisões dos investimentos externos e das oscilações dos mercados. Torna-se vulnerável e refém dos interesses externos. Embora os incorporadores nacionais estejam altamente capitalizados e com conhecimento do mercado doméstico desconhecem as características dos produtos e do mercado turístico-imobiliário, quanto ao fluxo de caixa e aos canais de comercialização, o que possibilitou a formação de parcerias entre empresas nacionais e grupos estrangeiros. As condições favoráveis da economia brasileira e os fatores externos da economia mundial desde o início dos anos 2000, e posteriormente a crise da economia europeia, favoreceram a expansão internacional das redes hoteleiras e a sua entrada no Brasil. A intensificação da ocupação das áreas litorâneas em destinos de maior tradição turística internacional, como a exemplo da costa ibérica e da costa mediterrânica tornam o metro quadrado destas regiões extremamente valorizado, enquanto o litoral nordestino dispõe de grandes áreas ainda inexploradas com preços baixos. Associado ao conjunto de vantagens, tal cenário qualifica o Nordeste brasileiro e o Litoral Norte da Bahia, em particular, como espaço atraente, numa avaliação competitiva entre regiões para investimentos estrangeiros. Com vista a rentabilizar esta lógica, o desenvolvimento do turismo no Brasil foi alavancado pelo aumento de investimentos públicos e privados impulsionados por diversas instituições financeiras federais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, Banco do Nordeste e Banco da Amazônia). Por exemplo, o desembolso realizado por tais instituições passou de R$ 1.094 mil-

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hão para R$ 6.678 milhões, no período de 2003-2010. O Banco do Brasil foi a instituição que mais financiou projetos no setor de turismo nos últimos anos desembolsando R$ 738.504 em 2003 e R$ 2.327 milhões em 2010. O aumento mais expressivo ao longo do período foi da CEF que passou de R$ 244.399 em 2003 e R$ 3.913.741 em 2010. As outras instituições contribuíram em menor proporção (MTUR, 2010). Esta realidade é consequência da apropriação de significativas parcelas do território para construção de megaempreendimentos hoteleiro-imobiliários onde as empresas hoteleiras espanholas e portuguesas desempenham papel preponderante no desenvolvimento de novos segmentos do turismo na região (GOMES, 2014), em especial, no chamado Turismo Residencial, o que é possibilitado pela associação de empresas (construção civil, hoteleira, imobiliária e instituições financeiras) implicando novas dinâmicas económicas, políticas, institucionais e territoriais. É importante notar que a atividade turística foi priorizada pelos governos estaduais como vetor de desenvolvimento económico regional e local nos respectivos programas. Os Estados da Bahia, Pernambuco e Ceará, Rio Grande Norte concentram a maior parte dos investimentos públicos e privados, devido à melhor infraestrutura aeroportuária e hoteleira. O estado da Bahia é o que concentra a maior oferta hoteleira (64% de unidades hoteleiras, seguido por Rio Grande do Norte (14%) e Ceará (10%) (KONDO & LATERZA , 2008, p. 86). Hoje grandes companhias aéreas internacionais (TAP, American Airlines, Air France) operam em determinadas regiões do país, principalmente, no sudeste, onde os custos da aquisição de terras se encontram ao nível internacional. Noutras regiões do Brasil cujo turismo ainda é recente, com terras vista mar, estas são adquiridas a baixo preço. Por conta do histórico da ocupação humana e económica e, ao contrário da Europa, no litoral nordestino predominam latifúndios agropecuários, facilitando a aquisição e a consolidação em grandes áreas.

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As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela expansão de resorts litorâneos construídos em São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Bahia e Alagoas. Enquanto que somente a partir de 2000 se verificou o crescimento dos mesmos noutros estados do litoral brasileiro. Estes projetos turístico-hoteleiros orientaram-se inicialmente para as demandas do mercado internacional, mas a partir de 2008, com a crise internacional, a demanda interna passou a ter um papel mais importante. De todo o modo, como consequência deste processo, o panorama do setor alterou-se substancialmente. Dos atuais 32 resorts existentes no Brasil, 15 localizam-se no litoral do nordestino, dos quais 10 na Bahia e os restantes distribuídos no litoral de Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte. Segundo a HVS International (2005), historicamente os investimentos turístico-hoteleiros privados, no Brasil, concentraram-se em dois momentos distintos. O primeiro caracterizado pelo surgimento de grandes projetos hoteleiros, exclusivamente voltados para o lazer nas décadas 1980/1990 como: Beach Park (CE), o Blue Tree Park de Cabo de Santo Agostinho e o Summerville Beach Resort (PE). Esses empreendimentos oferecem praias exuberantes, infraestrutura turística e acesso conveniente para os mercados emissores. Todos se localizam a menos de uma hora de viagem de um aeroporto internacional dotado de boa frequência de voos. O público, em sua maioria, é oriundo das regiões Sudeste (São Paulo e Minas Gerais) e Sul, bem com turistas estrangeiros. O segundo período, já nos anos 2000, foi caracterizado pela implantação de projetos hoteleiros que agregam o componente imobiliário, viabilizados com capital externo e conduzidos por associações entre proprietários brasileiros de grandes áreas costeiras, com destaque para os grupos empresariais portugueses e espanhóis. Enquanto que, no primeiro momento, os empreendimentos eram exclusivamente hoteleiros e de lazer, no segundo momento, passaram a combinar lazer com campo de golfe e atividade imobiliária. Como programa multisetorial voltado para infraestrutura básica, o PRODE-

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TUR/NE compreende ações (obras públicas, marketing e promoção) decisivas para induzir mudanças necessárias ao processo de atração de investimentos estrangeiros e a internacionalização do litoral nordestino. Dotado de um desenvolvimento económico mais elevado e um ambiente institucional e empresarial mais favorável ao desenvolvimento do turismo, certos estados (Bahia, Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte) foram fortemente alavancados com os investimentos do programa, concentrando maior infraestrutura aeroportuária e maior movimentação de passageiros. A integração entre os megaprojetos hoteleiros-imobiliários e as empresas de construção civil e imobiliárias e instituições financeiras fortaleceu o setor turístico. As últimas exerceram um papel fundamental na viabilização dos projetos de capital nacional. Em contrapartida, as cadeias hoteleiras internacionais disponibilizaram seu conhecimento do negócio e a experiência no atendimento aos clientes, além do prestígio de suas marcas. O novo modelo propicia maiores articulações com as economias nacionais em comparação com o modelo “all inclusive” que predominava antes e apresentava características de enclave. No novo contexto, as principais empresas procuram preservar suas vantagens competitivas estabelecendo contratos de gestão, arrendamento e franquias, sendo desnecessária a adoção de iniciativas mediante as tradicionais inversões de capital (CEPAL, 2008), significando também menores riscos, embora maiores exigências qualitativas na medida em que por exemplo envolviam as suas marcas. De uma forma geral, os empresários do setor independentemente da área específica, atuam de forma organizada e articulada através de várias instituições para o desenvolvimento dos negócios turísticos e imobiliários no Brasil e na região Nordeste. Dentre as entidades empresariais destacam-se: a Associação para o Desenvolvimento Imobiliário Turístico do Brasil/ Nordeste (ADIT- Brasil/ NE), e no caso português na Bahia, a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) e a Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil-Ba-

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hia. Durante algum tempo, funcionou também o Cluster de Turismo Costa dos Coqueiros (Litoral Norte da Bahia), mas atualmente está em desativado. A ADIT Nordeste foi criada em 1998 por um grupo de empresários das principais capitais do nordeste brasileiro que atuam no setor de construção civil e incorporação imobiliária. O Nordeste Invest é um evento promovido pela ADIT Nordeste que tem como objetivo integrar o setor turístico e imobiliário visando a atração de investimentos para o nordeste brasileiro. O evento é destinado a redes hoteleiras, imobiliárias, construtoras, associações empresariais, instituições financeiras, administração pública, escritórios jurídicos, arquitetos, consultores, empresários e fundos imobiliários nacionais e internacionais interessados em investir na região nordeste (www.aditnordeste.org.br). A Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil–Bahia, com sede em Salvador, é apoiada pelo Conselho das Câmaras Portuguesas no Brasil e pela AICEP com o objetivo de promover e dar suporte à comunidade empresarial luso-brasileira, na ampliação do network, facilitando a busca por novos parceiros internacionais com garantias institucionais, e incentivando o desenvolvimento das relações económicas com empresas e instituições ligadas a Portugal no Estado da Bahia. Promove a estruturação de negócios triangulares, envolvendo empresas baianas e portuguesas com vista a terceiros mercados, orienta e apoia empresas e investidores sobre características legais, fiscais e negócios através da realização de eventos, promoções e missões empresariais, entre outros objetivos. (www. brasilportugal.org.br/ba). No Litoral Norte da Bahia, as empresas portuguesas Tivoli Hotels & Resorts e Vila Galé S.A. operam respectivamente desde 2006 e 2009 nos municípios de Mata de São João e Camaçari. O grupo português Pestana concentra investimentos em Salvador, privilegiando o segmento urbano, orientado para o turismo de negócios e histórico-cultural. Ainda na mesma região, o grupo administrou entre 2008/2009 as pousadas do Complexo Costa do Sauípe. Em 2010,

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inaugurou em Salvador o primeiro empreendimento turístico-residencial no bairro do Rio Vermelho, Pestana Bahia Lodge Residence. Por seu turno, o grupo Vila Galé foi criado em 1986 e tem a sua sede em Lisboa, e é responsável pela gestão de 23 unidades hoteleiras, sendo 17 em Portugal e 6 no Brasil. O processo de expansão internacional começou na virada do século com a criação de uma unidade hoteleira no Ceará, e continuou em 2005 com a inauguração do Hotel Vila Galé Marés em Guarajuba, na Bahia. O grupo administra também sob o contrato de gestão dois hotéis pertencentes ao Fundo de Pensão dos Funcionários da Caixa Econômica Federal (FUNCEF) um no Estado de Pernambuco o Eco Resort Cabo de Santo Agostinho e outro no Rio de Janeiro o Eco Resort Angra dos Reis. Em 2010, em parceria com a empresa de construção brasileira Diagonal, inaugurou no Ceará o Projeto Vila Cumbuco que inclui hotel e segunda-residência. No conjunto, a rede hoteleira vila Galé dispõe de 11 918 camas e conta com 2 700 funcionários. (www.vilagale.pt). A rede Tivoli possui 12 hotéis em Portugal e dois no Brasil oferecendo cerca de 3.280 quartos em alojamento de quatro e cinco estrelas. Em 2006, a rede Tivoli inicia o seu processo de internacionalização adquirindo a sua primeira unidade no Brasil, o Tivoli Ecoresort Praia do Forte Hotel & SPA, no Litoral Norte da Bahia, no município de Mata de São João. Em 2009, após reforma sob contrato de arrendamento, o Tivoli inaugurou o seu segundo hotel o Tivoli São Paulo Mofarrej. Apesar das boas perspectivas das suas unidades brasileiras, ligada ao Grupo Espírito Santos que entrou em colapso financeiro em 2014, o futuro desta rede em termos de propriedade é algo incerto. O grupo Pestana Hotels & Resorts é considerada o maior grupo hoteleiro português, com sede em Lisboa. Possui 42 hotéis voltados para o segmento de lazer e urbano, dispondo de 8.700 quartos e emprega mais de 6.000 funcionários. Além de Portugal, os hotéis estão localizados em países como: Brasil (10), Argentina (2), Venezuela (1), Moçambique (3), África do Sul (1) Cabo Verde (1)

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e São Tomé e Príncipe (3). O grupo é ainda proprietário de empreendimentos turístico-residenciais operando na modalidade timesharing, quatro campos de golfe, casinos na Madeira e São Tomé e Príncipe, participação numa companhia de aviação charter, uma agência de viagem e três operadores turísticos. A expansão internacional da rede Pestana teve início em 1999 com a aquisição do Hotel Pestana Rio Atlântica, do Hotel Méridien, atual Pestana Bahia, do Pestana Convento do Carmo em Salvador em 2000/2005 e construção de hotéis noutros estados como Natal, São Paulo, Maranhão, e Rio de Janeiro/ Angra dos Reis. A partir de 2004, o grupo Pestana inaugurou novas unidades na Argentina, Venezuela, África e mais recentemente em Londres. Em 2010, lançou em Salvador, o Pestana Bahia Lodge Residence com a nova marca “Pestana Residences” orientado para o setor turístico-residencial. No Recife (Porto de Galinhas) e na Província de Tróia (Portugal) outros projetos desta natureza estão em implantação (www.pestanaresidence.com). O Grupo Reta Atlântico Empreendimentos Imobiliários, Ltda. foi constituído em 1999, em Portugal, como resultado da união e partilha de interesses e estratégias de negócios das empresas: Tecniger, Edipril, Rufinos e Instalotécnica. Em 2007, o grupo inaugurou a primeira etapa do empreendimento Reserva Imbassaí composto por um hotel com 350 apartamentos (“all inclusive”) três condomínios residenciais (177 unidades) centro comercial e centro náutico. A segunda etapa prevê a construção de um resort ecológico com 240 apartamentos, condomínios residenciais (160 unidades) e um centro comercial. Na terceira etapa estão previstos mais condomínios residenciais, um condo-hotel e um campo de golfe e um centro equestre (www.institutoImbassai.org.br). A Reta Atlântico Brasil Empreendimentos Imobiliários investiu R$ 108 milhões no seu primeiro projeto no Brasil numa área de 132 hectares, cuja implantação está prevista para ser desenvolvida em três etapas. Na primeira etapa foi construído um condomínio de casas com 193 unidades, clube social e clube

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náutico. A segunda etapa do empreendimento Reserva Imbassaí foi inaugurado em 2010, onde foi construído um hotel all inclusive com 654 quartos e 1 condomínio de casas e apartamentos. A terceira etapa compreende a construção de um condo-hotel, um Hotel Resort Ecológico, uma vila comercial, condomínios residenciais, centro equestre e campo de golfe. (www.reservaImbassaí.com). Detalhando melhor estes investimentos, o grupo Vila Galé investiu R$ 75 milhões na construção do seu primeiro resort no Brasil, o Vila Galé Marés Resort Hotel com 447 apartamentos, como se referiu na localidade de Guarajuba (Litoral Norte da Bahia). O Grupo Tivoli investiu R$ 60 milhões na aquisição e reforma do Tivoli Ecoresort Praia do Forte Hotel & SPA com 220 apartamentos e lançou em 2009 o primeiro condomínio residencial o Tivoli Eco Residence com 42 casas de luxo e alto padrão construtivo. No processo de expansão internacional as redes hoteleiras utilizam recursos financeiros próprios, à exceção das redes Pestana e Tivoli que utilizaram financiamentos de instituições brasileiras como o Banco do Nordeste e o Bradesco para aquisição e reforma dos seus hotéis na Bahia. Para os representantes das empresas o autofinanciamento é mais vantajoso porque os juros no Brasil ainda são altos. Para investir no Brasil, os grupos hoteleiros criaram uma filial com uma nova designação, com uma estrutura organizacional do tipo hierárquico-funcional. Este modelo organizacional segue as mesmas linhas de comando estabelecidas pela matriz o que caracteriza um elevado grau de centralização e dependência. A exceção é o grupo Vila Galé que optou por estrutura organizacional em rede que se caracteriza por uma maior flexibilidade com relação ao uso dos recursos e maior capacidade de adaptação as mudanças. E o grupo Reta Atlântico Brasil que optou por uma estrutura por projeto. Estes grupos hoteleiros têm adotado diferentes estratégias, para a sua expansão internacional e assegurar uma posição forte no mercado. Os mecanismos utilizados para internacionalização dos grupos hoteleiros portugueses são

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os contratos de gestão, gestão de ativos e aquisições, sendo que nos últimos anos se observa uma tendência de investimento de raiz, experiência iniciada com o Vila Galé e o Reta Atlântico Brasil. A opção por um determinado tipo de investimento é influenciada por um conjunto de variáveis como a dimensão do mercado, o grau de proteção legal e jurídica do investidor, o contexto político, económico e social do país receptor, além das afinidades culturais e linguísticas (SILVA, 2005). As empresas Pestana, Vila Galé e Tivoli iniciaram o seu processo de expansão internacional no Brasil através de aquisições e contratos de gestão. A opção destas empresas pelo investimento de raiz é mais recente e ocorreu depois de alguma experiência adquirida. Inicialmente, os contratos de gestão facilitaram a internacionalização das redes hoteleiras portuguesas, a exemplo dos contratos de gestão que foram celebrados com o grupo Pestana (2000) Vila Galé (2005) e o Tivoli (2010) e empresas brasileiras para a gestão dos hotéis nos estados da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. 3. Considerações Finais No final dos anos 90, o mercado hoteleiro e imobiliário português encontrava-se saturado, enquanto as principais firmas tinham adquirido uma experiência setorial importante, revelando-se em vários casos competitivas a uma escala mais global. Neste contexto, os grupos hoteleiros, a exemplo de outras empresas portuguesas (SILVA et al., 2003; ICEP, 2005), iniciaram o seu processo de expansão internacional, onde se destacou o Brasil, contando com apoio de instituições portuguesas como a AICEP, Câmaras Portuguesas de Comércio no Brasil, Embaixada e Consulados, além de associações empresariais e comerciais brasileiras, sobretudo a nível estadual. A expansão internacional dessas empresas intensificou-se especialmente

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pelas alianças estratégicas entre o setor turístico, hoteleiro, imobiliário e fundos institucionais para a construção de novos projetos conhecidos como complexos turístico-residenciais orientados, sobretudo, para a segunda-residência. As parcerias ocorreram principalmente entre as próprias empresas portuguesas e secundariamente com empresas brasileiras e envolvendo três setores: hoteleiro, imobiliário e construção civil. Por exemplo, os grupos Pestana e Vila Galé firmaram contrato com as empresas brasileiras locais para a construção dos seus empreendimentos no Brasil. O grupo Reta Atlântico estabeleceu parcerias com empresas nacionais do setor de construção e incorporação. Por seu turno, o grupo Tivoli, uma holding do Grupo Espírito Santo (GES) utilizou financiamento do Bradesco (o GES possuía 20% das ações deste banco) para suas aquisições e reformas nos hotéis. Depois de Portugal, o Brasil é o país onde as redes hoteleiras portuguesas mais investem seguido dos países africanos de língua portuguesa. Entretanto, o grupo Pestana prosseguiu a sua expansão internacional, tendo hoje empresas subsidiárias muito além deste espaço, como em Londres, Berlim e Miami e na América do Sul: Argentina, Chile e Uruguai. A opção das empresas portuguesas em investir no Brasil, e em especial no Litoral Norte da Bahia, na virada do século e nos primeiros anos 2000 deveu-se a essa conjuntura da taxa cambial favorável (euro muito valorizado em relação ao real, que conheceu uma desvalorização importante em 1999), o potencial do mercado turístico e imobiliário e oportunidades de negócios vantajosos. Teoricamente, a internacionalização destas empresas pela via do investimento, onde priorizaram como destino o Brasil, evidencia a relevância da abordagem da chamada Escola Nórdica, enfatizando o papel da menor distância psíquica (SILVA, 2005). Mais proximamente, as vantagens em investir no Brasil ficaram-se também a dever às perspectivas de crescimento do mercado impulsionado por eventos como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Segundo os em-

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presários, as principais desvantagens residiram sobretudo na burocracia que gera lentidão nos processos de licenciamento e o custo operacional devido ao encargo trabalhista e ao sistema tributário, acarretando custos por vezes significativos. Por outro lado, quanto aos incentivos oferecidos pelo governo brasileiro, na esfera federal foram financiamentos com linhas de crédito específicas para o setor disponibilizados pelo Banco do Nordeste e BNDES, e na esfera estadual e municipal a redução de impostos locais como IPTU e ISS pelo período de 10 anos. O enquadramento destas empresas com relação às políticas ambientais, territoriais e urbanas é um tema controverso, pois aquelas que construíram os seus empreendimentos enfrentaram dificuldades para obter licenciamento ambiental e o cumprimento das condicionantes exigidas pelo órgão ambiental no estado. Todavia, os empresários portugueses consultados concordam que neste domínio há similaridades entre os processos legais e os aspectos burocráticos com Portugal, sendo que no Brasil se verifica uma maior insegurança jurídica, pois, as leis não são muito claras e dão margem a interpretações diversas. Para os empresários portugueses a crise financeira mundial não afetou diretamente os seus investimentos no exterior, principalmente no Brasil onde se mantêm no mercado hoteleiro e imobiliário, apesar das oscilações cambiais frequentes do real face ao dólar e ao euro e da crise económica mundial. Todavia, observa-se que o comportamento do mercado sofreu alterações significativas, pois conforme declarou o representante do grupo Reta Atlântico Brasil “antes da crise económica de 2008, 50% dos clientes que compravam um imóvel no Litoral Norte eram europeus, atualmente os brasileiros estão em maioria, representando 70% dos clientes”.

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PAINEL 4 Geopolítica Segurança e Defesa



Das Caravelas à Cooperação Sul-Sul:



o Atlântico lusófono em perspetiva comparada no âmbito da Defesa e da Segurança Internacional



Daniele Dionísio da Silva - Universidade Federal do Rio de Janeiro “... Da nossa língua vê-se o mar e ouve-se o seu rumor. Esse mar que nos fez encontrar um dia e que alarga o horizonte à medida da esperança que aqui nos reúne e do afecto que liga os nossos Povos ...” Vergílio Ferreira, citado por Jorge Sampaio no discurso do Acto de Constituição da CPLP – Lisboa, 17/07/1996.

1- Introdução Inicialmente pretende-se apontar que esse artigo é fruto do projeto de doutoramento da autora que tem como objetos de estudo: a Agenda de Defesa e Segurança da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP (âmbito multilateral), e os acordos e projetos que estão a ser delineados ou realizados pelo Brasil e por Portugal nestas duas áreas com os países lusófonos (âmbito bilateral), frente ao contraponto dos novos temas de segurança no cenário internacional pós-Guerra Fria, as heranças histórico-culturais lusófonas, e outras ações nestas duas áreas realizadas por outros países e outras organizações regionais. Considera-se ainda a proposta de inclusão destas duas áreas no âmbito da cooperação sul-sul brasileira para o desenvolvimento africano, com foco principalmente no ambiente securitário marítimo atlântico, bem como a perspectiva de ações no âmbito do que se supõe ser estrategicamente, para cada país, temáticas de segurança e de defesa, por exemplo, a visão estratégica portuguesa de preservação de uma língua e cultura, e de ser ponte entre o norte e o sul; frente à visão atual brasileira dessas temáticas como limitadoras ou promotoras de desenvolvimento. Para

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isso, foram consideradas as propostas teórico-conceituais de integração regional (econômica e política), da formação de mecanismos de segurança e defesa coletivos, das comunidades de nações (lusofonia, francofonia e anglofonia), os conceitos de potência emergente e global player. Esse artigo procura delinear-se preferencialmente sobre ações e propostas realizadas no mundo lusófono nos últimos 30 anos, principalmente porque no fim do século XX ocorreram reconfigurações no mundo, incluindo a aproximação entre países buscando a integração político-económica e a cooperação, até nos domínios de segurança e defesa, segundo alguns teóricos, aumentando ligeiramente a interdependência entre as nações. Para a construção desse artigo foram também objeto de análise as regulamentações e ações dos órgãos responsáveis dos Estados pelo tema (Ministério da Defesa, Ministério das Relações Exteriores, Forças Armadas), bem como Constituições, Leis de Defesa Nacional, acordos e tratados internacionais assinados principalmente pelo Brasil e por Portugal. Este artigo propõe ainda uma análise inovadora da Agenda de Defesa e Segurança Lusófona, para além das heranças histórico-culturais lusófonas, considerando o foco em outro elo de ligação do mundo da língua portuguesa, o Oceano Atlântico. No tabuleiro geopolítico do século XXI com foco no Oceano Pacífico, a descrição histórica das trocas no mapa geoestratégico do Atlântico poderia ser sinalizada como secundária. Entretanto, pontuar questões culturais, económicas, militares e políticas do cenário atlântico é caracterizar para países lusófonos a dinâmica de uma parte dos objetivos nacionais permanentes e atuais. O Atlântico lusófono é fonte de riquezas, ponte de contatos, cenário de disputas, mas é também fonte de preocupação para segurança internacional, nele cresce a pirataria, a imigração ilegal, o tráfico de armas e drogas. O Mar é um desafio para a defesa dos Estados principalmente por necessitar de uma concepção diferenciada de limites e fronteiras. No contexto internacional atual, principalmente pela intensiva exploração de recursos naturais oceânicos e pelo

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fluxo oceânico de mercadorias, a segurança marítima é reposicionada como um assunto crucial, seja no Pacífico, seja no Atlântico, não só para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, mas também para toda a comunidade internacional. A carência de meios militares e de tecnologia de ponta para combater esses crimes é um facto, tanto para o Brasil com recursos económicos crescentes, mas com uma imensa região costeira a patrulhar; como para os países africanos que em muitos casos não possuem marinhas ou guardas costeiras proporcionais às suas dimensões. Portugal entra nesse cenário também com recursos limitadíssimos, mas com uma vasta experiência na OTAN e nas ações conjuntas da União Europeia. Esse trabalho pontua que a partilha de responsabilidades e meios pela cooperação técnica militar poderia minimizar as adversidades do cenário atlântico lusófono, sendo assim, a cooperação internacional no âmbito da segurança e da defesa seria como uma estratégia político-militar alternativa. Cabe ressaltar que no caso do Brasil, essa perspectiva cooperativa para o século XXI tem em conta a estratégia brasileira de fortalecimento da interação sul-sul realizada durante os oito anos do Governo de Luiz Inácio Lula da Silva (20032010) com foco na África e na América Latina. 2- CPLP - Uma língua ou um mar... A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi criada em 1996 pela congregação dos países que têm o português como língua oficial1, e propõe englobar aspectos político-diplomáticos de cooperação social, cultural, jurídica e técnico-científica. A CPLP, que se afirma como uma comunidade plural, é definida como foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação entre os seus membros. Nos Estatutos em vigor da Comunidade2 são objetivos: a concertação 1 Estima-se que o português seja falado por 200 milhões de pessoas, ocupando o terceiro lugar entre as línguas mais faladas no Ocidente, atrás apenas do inglês e do espanhol, sendo a sétima língua mais falada do mundo. 2 Pode-se verificar que, desde 1996, os âmbitos de cooperação da Comunidade aumentaram significativamente, inicial-

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político-diplomática entre os seus membros em matéria de relações internacionais, nomeadamente para o reforço da sua presença nos fora internacionais; a cooperação em todos os domínios, inclusive os da educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, agricultura, administração pública, comunicações, justiça, segurança pública, cultura, desporto e comunicação social; a materialização de projetos de promoção e difusão da Língua Portuguesa, designadamente através do Instituto Internacional de Língua Portuguesa. Entretanto podemos apontar a Comunidade, tal como refere um ex-Secretário Executivo, o Embaixador Luís da Fonseca, como algo que se “... projecta em quatro continentes, unidos por três oceanos, em que os povos que a integram constituem uma família de oito países onde a língua oficial é o português, ligando cerca de 230 milhões de pessoas, em um espaço de 10,7 milhões de km2 de terra e cerca de 7,6 milhões de km2 de mar...”3, uma sintética caracterização geoestratégica. Figura 1 - Em azul os países que pertencem à CPLP, uma triangulação básica Europa, América e África.

mente a cooperação é proposta apenas para cinco denominadores comuns. 3 BERNARDINO, Luís e LEAL, José S. A Arquitetura de Segurança e Defesa da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Lisboa, Instituto de Defesa Nacional, 2011. p. 20.

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Considerando que esse artigo tem como foco principal de análise a Agenda de Segurança e Defesa da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, frente ao contraponto das novas ameaças e a proposta de heranças histórico-culturais lusófonas, cabe apontar que no início a Comunidade não tinha como objetivos a cooperação no âmbito da segurança ou da defesa, apesar das ações de treinamentos e operações (Cooperação Técnico-Militar – CTM) entre as forças armadas portuguesas e os PALOP serem executados há mais de 30 anos. Dado os contextos dos conflitos intraestatais africanos da década de 1990 e as novas ameaças do cenário pós-Guerra Fria, estes domínios foram reconhecidos pelos Estados-membros como objetos de importância para Comunidade, e dois anos após o nascimento da CPLP foram incluídas as primeiras linhas orientadoras e diálogos multilaterais nestas temáticas. Assim, a CPLP não foi exceção e enquadrou-se neste novo paradigma securitário4. Deste modo, em 1998, os ministros da Defesa de Portugal e dos PALOP decidiram convidar o Brasil a lançar a primeira pedra de um futuro espaço de segurança e defesa da Comunidade. Em 1999, os Ministros da Defesa aprovaram um documento sobre a Globalização da Cooperação Técnico-Militar, concernente à formação de contingentes para operações de manutenção da paz e ajuda humanitária. Em 2000, foi criado o Secretariado Permanente para os Assuntos de Defesa (SPAD), vislumbrando a criação de centros de instrução militar, unidades de comandos e fuzileiros, engenharia, centros de reparação de material. Desde 2002, a Comunidade dispõe ainda de um Centro de Análise Estratégica para os Assuntos de Defesa (CAE). Já em 2006 foi aprovado o Protocolo de Cooperação da CPLP no Domínio da Defesa com o objetivo de promover e facilitar a cooperação e os conhecimentos nessa área. A Comunidade também organiza anualmente, desde 2000, os exercícios conjuntos e combinados da Série FELINO. Já os projetos relacionados à segurança, considerados uma frente de ação promissora, apontados desde o 4 Ibidem, Idem. p. 15.

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início como primordiais, principalmente pela relação entre segurança e desenvolvimento, ainda estão dando os primeiros passos por carência de recursos financeiros. Neste âmbito, o foco de ação cooperativa tem sido as operações de paz e de ajuda humanitária, com ações relacionadas com a segurança humana, a promoção da boa governança e dos direitos humanos. Cabe ressaltar que no contexto mundial das últimas décadas, as estruturas burocráticas de ação das temáticas de segurança e defesa passaram a ser intercambiáveis, principalmente quando novos temas que não respeitam fronteiras são securitizados (narcotráfico, contrabando de armamento, imigração, terrorismo, dilapidação de recursos naturais, tráfico de pessoas e pirataria), já que esses põem em cheque a segurança individual dos Estados e a coletiva do mundo, obrigando-os por razões estratégicas a reorientar as ações das forças armadas. Neste âmbito foram assinados o Acordo de Cooperação de Combate à Produção e ao Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, e o Protocolo de Cooperação entre os Países de Língua Portuguesa no domínio da Segurança Pública. 3 – A Comunidade e a Lusofonia No fim do século XX ocorreram aproximações entre países buscando a integração político-económica e a cooperação, até nos domínios de segurança e defesa. Após a Segunda Guerra Mundial, diante da perspectiva de concorrer com os Estados Unidos e fazer frente à União Soviética, os países europeus firmaram acordos com o objetivo de unir o continente, reestruturar, fortalecer e garantir as suas economias. Essa ideia europeia de integração foi firmada em 1957 e tem atualmente 25 países signatários, incluindo Portugal. Essa experiência de integração foi estendida a outros continentes, de entre os quais se destaca o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), criado em 1991 com a adesão do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Uruguai; e a União Africana (UA), fundada em 2002, em sucessão à Organização da Unidade Africana.

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Estes três modelos de integração – UE, MERCOSUL e UA – tornam-se relevante no contexto deste texto, pois a CPLP é composta por países que integram estes blocos, e tem como pilar não a integração económica, mas sim uma herança comum unida pelo idioma numa pertença similar à Francofonia e à Commonwealth. Esta integração dos países da CPLP nos grupos regionais, Portugal na UE, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP5) na UA, o Brasil no MERCOSUL e Timor-Leste inserido na Associação de Nações do Sudeste Asiático, estabelece para além da Comunidade, uma rede de interesses sobrepostos de blocos regionais. A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa foi oficialmente criada em julho de 1996 pela congregação dos sete países que têm o português como língua oficial – Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe –, registrando-se a inclusão do Timor-Leste em 2002. Figura 2 – Símbolo da CPLP e bandeiras dos Estados-membros

  A triangulação – Portugal, Brasil e África – possui raízes históricas que remontam o passado colonial português. Entretanto, sabe-se que os PALOP, ou mesmo o Brasil, têm individualidades significativas que distorcem essa triangulação e retardam o pertencimento. Esse discurso lusófono, utilizado para justificar as guerras coloniais, permeia ainda hoje a identidade nacional portuguesa, mas parece não encontrar a mesma ressonância nos outros países da Comunidade6. No universo português é comum apontar a defesa da lusofonia 5 A sigla PALOP designa os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, formado por Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe. 6 LESSA, Mônica L. Contra Capa. In: FREIXO, Adriano de. Minha Pátria é a Língua Portuguesa – a construção da ideia

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como um dos pilares de sustentação da CPLP. Entretanto, pode-se apontar que a ideologia lusófona não se reflete do mesmo modo nas regulamentações da Comunidade, apesar da constante ressonância do discurso lusófono até mesmo por chanceleres brasileiros. Celso Amorim, atualmente Ministro da Defesa, apontou uma vez que este pertencimento uno era mais que uma forma de expressão, a lusofonia seria a marca de uma atitude, de uma forma de ser e de viver, voltadas para a tolerância e para o convívio aberto entre vários povos7. No mundo de hoje, para além da retórica discursiva, a tolerância e o convívio aberto entre indivíduos de países diferentes são elementos a serem considerados no âmbito da segurança e da defesa. Mas seria a defesa da lusofonia elemento primordial de segurança e defesa da Comunidade? Defendida também nos contextos individuais dos Estados? No contexto português, sim; a defesa nacional transcendeu a defesa do Estado no sentido da defesa territorial e resgatou o velho lema de cumprir Portugal; num projeto de redefinir o lugar do Estado português no mundo. Uma nação que nas últimas décadas vive entre a escolha de ser um Estado europeu ou um Estado atlanticista, frente à necessidade da concretização dos seus interesses, quer no plano político, no económico ou no de defesa e segurança. Inicialmente a perspectiva portuguesa propôs que a CPLP se constituísse num projeto de reafirmação internacional da língua e da cultura portuguesas. Mas pode-se afirmar que essa defesa não é enfaticamente observada, por exemplo, no Brasil, em Angola ou em Moçambique. 4 – A Comunidade e a Segurança e Defesa No século XX, a segurança e a defesa, anteriormente tratadas como interesse nacional, passaram a ser discutidas em blocos por países interessados na segurança coletiva e cooperativa. Essa discussão em conjunto permite a parde Lusofonia em Portugal. Rio de Janeiro; Apicuri, 2009. 7 A Palavra do Brasil nas Nações Unidas. 1946-1995. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1995.

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tilha de responsabilidades. Mas a temática é ampla e diferenciada dependendo da posição geográfica, do contexto político nacional ou mundial, dos valores culturais, e da religião de cada país. Assim, a discussão acaba impregnada por relações assimétricas de poder, bem como por recursos militares ou económicos disponíveis a cada membro. Diante desse contexto, por mais curioso que possa parecer, a CPLP que nasce sustentada em laços linguísticos tem hoje a proposta de criação de uma via de integração possível também no âmbito da segurança e defesa. Em 1998, acontece a 1ª Reunião dos Ministros da Defesa Nacional dos Estados-membros da Comunidade (MDN), e em 2000 os estatutos da CPLP são revistos para que nos objetivos se incluísse a cooperação na área da defesa. Em 2002, passa a ter um Centro de Análise Estratégica para os Assuntos de Defesa, atualmente localizado em Maputo, Moçambique, cujas missões principais são pesquisar e divulgar conhecimentos com importância capital para a Comunidade, e a promoção do estudo de questões estratégicas de interesse comum que facilitem a concertação dos seus membros. Propõe-se que o CAE esteja disseminado pelos seus membros através dos Núcleos Nacionais Permanentes sobre responsabilidade de cada Ministro da Defesa. No âmbito da defesa, as ações são mais focadas nas Reuniões dos Ministros da Defesa e nas Reuniões dos Chefes dos Estados Maiores Generais (CEMGFA)8, que passaram a acontecer desde 1999. Entretanto, os assuntos de segurança são tratados por toda a esfera legislativa numa perspetiva que permeia toda a estrutura. Na análise das atas das Reuniões de Ministros da Defesa, que acontecem anualmente, podem apontar-se discussões no âmbito da reestruturação dos setores de segurança e de defesa, de exercícios conjuntos de treino para operações de paz e de ajuda humanitária, e da prevenção de conflitos. Ainda nessa análise das atas de 1998 a 2011 pode-se também perceber um aumento da densidade dos temas abordados, bem como um aumento do conhecimento mútuo e dos problemas individuais e regionais 8 Essas Reuniões dos Chefes dos Estados Maiores Generais tem o foco na efetivação da Globalização e da Cooperação Técnico-Militar numa nova e diferente realidade de Segurança e Defesa adequada às novas ameaças.

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de cada Estado-membro. Pode-se ainda apontar, por exemplo, que na 1ª Reunião de Ministros da Defesa, em 1998, os focos de discussão foram os contextos da época: a rebelião militar na Guiné-Bissau e a situação político-militar de Angola, e que houve também uma primeira proposta de preparação e treino de unidades militares para operações de paz e ajuda humanitária. Já na 13ª Reunião de Ministros da Defesa, em 2011, a segurança marítima surge enfaticamente como um tópico a ser privilegiado na cooperação no seio da Comunidade, principalmente pelo destaque de ações recorrentes de pirataria como uma das maiores ameaças à navegação marítima não só na costa da Somália ou no Canal de Moçambique, mas também para a costa ocidental. Além disso, neste contexto de 2011, o Ministro da Defesa brasileiro Celso Amorim, referenciando a Resolução nº. 41/11 da Assembleia Geral das Nações Unidas relativa à conduta de Estados extra-regionais militarmente significativos e usos pacíficos dos oceanos, aponta a necessidade do estabelecimento de uma verdadeira zona de paz e cooperação no Atlântico Sul. Aprovado em 2006, o Protocolo de Cooperação da CPLP no Domínio da Defesa define os princípios gerais de cooperação entre os Estados e tem como objetivos: promover e facilitar a cooperação por meio da sistematização e clarificação das ações a empreender; a criação de uma plataforma comum de partilha de conhecimentos em matéria de defesa, a promoção de uma política comum de cooperação nas esferas de defesa e militar, e contribuir para o desenvolvimento das capacidades internas com vista ao fortalecimento das forças armadas. O Protocolo estabeleceu como componente da defesa da CPLP os seguintes órgãos: Reunião de Ministros da Defesa Nacional ou equiparados dos Estados Membros; Reunião de Chefes de Estado-Maior-General das Forças Armadas ou equiparados; Reunião de Diretores de Política de Defesa Nacional ou equiparados; Reunião de Diretores dos Serviços de Informações Militares ou equiparados; Centro de Análise Estratégica; e Secretariado Permanente para os

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Assuntos de Defesa. O SPAD criado em 2000 deveria ser o “coração e o cérebro” da componente de defesa da Comunidade, tendo como missão estudar e propor medidas concretas para a implementação das ideias de cooperação multilateral. No que diz respeito aos PALOP, este protocolo auxiliaria na disposição de forças armadas modernas, disciplinadas e democráticas, para garantir a paz e a estabilidade interna e regional. A fórmula proposta para a cooperação militar é todos com todos, incluindo o Brasil. Para Portugal, esse Protocolo aprofunda e institucionaliza um longo programa de cooperação militar, uma trajetória compartilhada de mais de 30 anos. Pode-se apontar que Portugal tem procurado assumir a liderança no processo de cooperação na vertente da defesa, assim como tenta fazer no âmbito político, apesar do Brasil se constituir um competidor ativo por essa liderança. Essa cooperação militar é encarada mais uma vez como um desígnio português, que faz aumentar o seu prestígio internacional, um ponto de ligação entre o atlântico norte “militarmente desenvolvido da OTAN” e o atlântico sul “pacífico militarmente carente”. Portugal tem demonstrado intenções de usar seu pertencimento na OTAN como experiência útil no contexto da CPLP.

Figura 3 – Símbolo da Série Felino

 

Neste âmbito técnico-militar, a CPLP organiza anualmente, desde 2000, num sistema rotativo pelos Estados-membros, os exercícios conjuntos e combinados da Série FELINO, uma oportunidade para testar a interoperabilidade das forças

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armadas dos membros, construir uma doutrina conjunta e treinar as forças para o emprego em operações de paz e de assistência humanitária, com o intuito de criar sinergias e estreitar os laços de amizade e união entre os militares. Este parece ser o instrumento mais desenvolvido. Portugal teve a missão de organizar o 1º Exercício FELIN em 2000. Em 2006, no Brasil, realizou-se o maior exercício, envolvendo cerca de 950 militares. Os Exercícios são feitos em formatos alternados CPX (Posto Comando) e FTX (Exercício com Tropas no Terreno). A realização desses Exercícios Militares tem obtido reconhecido êxito regional e internacional, podendo ser utilizados para cimentar e reforçar os passos dados pela Comunidade na cooperação na área da segurança e defesa. Cabe acrescentar que um tratado de segurança regional só pode ser o resultado de um longo processo de cooperação militar e fruto do reconhecimento de todos os participantes de que as ameaças comuns ou partilhadas existem e que o tratado representa uma resposta a elas9. No âmbito do treino e da formação militar, foi aprovado, em 2004, o Programa Integrado de Exercícios Militares Combinados da CPLP, destinados à preparação para o desempenho de operações de paz e de ajuda humanitária, com a proposta de serem realizados anualmente. A arquitetura de segurança e defesa da CPLP conta, desde 2008, com Reuniões dos Diretores Gerais de Política de Defesa Nacional (DGPDN), a fim de apreciar a evolução do setor da defesa nos Estados-membros e implicações político-militares das questões internacionais nos contextos regionais dos países. Há ainda a proposta de realização de Reuniões de Diretores dos Serviços de Informação Militares (DSIM).

9 VIDIGAL, Armando A. F. Integração Sul-Americana: segurança regional e defesa nacional. Caderno Premissas, nº14, 1996. Disponível em //brasil.indymedia.org/media/2008/06/421375.doc. Acesso em: 02/10/2010;

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  Figura 4 – Evolução da Componente de Defesa da CPLP (1996-2011)

Figura   5 – Arquitetura de Segurança e Defesa da CPLP 250

Fonte das imagens anteriores: BERNARDINO, Luís e LEAL, José S. A Arquitetura de Segurança e Defesa da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Lisboa, IDN, 2011. p. 24 e 45.

Considerando a proposta da Estratégia Geral de Cooperação da CPLP, aprovada em 2006, de que “em cada Cimeira sejam examinadas inflexões ou adaptações a introduzir na estratégia de cooperação, tendo em conta a evolução da própria Organização e do contexto internacional”, na Cimeira de Lisboa, em julho de 2008, surge uma nova temática para ser incluída na estrutura de segurança e defesa, o foco marítimo e o desenvolvimento de uma política da Comunidade para os oceanos. Nesse sentido, foi incentivada a realização de uma reunião dos ministros responsáveis por assuntos do mar a nível nacional com o objetivo de coordenar posições em fóruns internacionais que abordam questões relacionadas com os oceanos. Essas Reuniões de Ministros da CPLP responsáveis pelos Assuntos dos Mares tem como objetivo promover o desenvolvimento e a gestão sustentável dos espaços oceânicos sob as suas respectivas jurisdições nacionais, inclusive por meio da cooperação internacional; a elaboração do Atlas dos Oceanos e a criação do Centro de Estudos Marítimos da Comunidade. Há a proposta de constituição de uma plataforma de partilha de informação do mar, que agregue as unidades de investigação de estudos universitários dos Estados-membros no sentido da dinamização da produção científica, da constituição de uma rede de informação e da compatibilização de bases de dados. O primeiro material produzido em 2010 por essa equipa foi a Estratégia da CPLP para os Oceanos. A equipe propõe também a realização de uma análise cooperativa das Plataformas Continentais e dos Recursos Naturais dos Fundos Marinhos dos Estados-membros, bem como a realização de ações com foco na segurança e vigilância marítima. Cabe acrescentar que no âmbito dos oceanos, mesmo ainda não institucionalizados na estrutura da CPLP, já

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foram realizados três Simpósios das Marinhas dos Países de Língua Portuguesa, sendo o 1.º com a temática do papel das Marinhas no atual contexto internacional (2008 em Portugal), o 2.º com a temática as Marinhas e os desafios do Século XXI (2010 em Angola) e o 3.º com a temática da garantia da defesa e segurança marítimas, em âmbito nacional, regional e global – a cooperação entre as Marinhas para o monitoramento e o controle do tráfego marítimo nas águas jurisdicionais dos países (2012 no Brasil). Além disso, aconteceram também a Conferência dos Ministros responsáveis pelas Pescas da CPLP e o Encontro de Portos da CPLP. 5 – A Comunidade, a Segurança, a Defesa e o Contexto Oceânico Os Oceanos ocupam 2/3 do globo terrestre e neste momento neles navegam mais de 55.000 navios de grande porte, transportando 80% do comércio global, 60% de todo o petróleo produzido no planeta e 12 milhões de passageiros. Neles, circulam riquezas superiores a 4,3 triliões de dólares por ano. Mas “sabemos que o oceano é um meio diferente da terra, forçando-nos a pensar de maneira própria. O oceano, onde tudo flui e tudo é interconectado, nos força a repensar e a repelir velhos conceitos e paradigmas. Conceitos fundamentais, desenvolvidos por milênios na terra, como os de soberania, fronteiras geográficas e propriedade, simplesmente não funcionarão no meio oceânico, onde novos conceitos políticos, jurídicos e econômicos estão emergindo” .10

O Mar é um desafio para a defesa dos Estados principalmente por necessitar de uma concepção diferenciada de limites e fronteiras. Deste modo, no contexto internacional atual, principalmente pela intensiva exploração de recursos naturais oceânicos e pelo fluxo oceânico de mercadorias, a segurança marítima 10 Elisabeth M. Borgese, oceanógrafa especializada em Direito do Mar.

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é reposicionada como um assunto crucial, não só para a CPLP, mas também para toda a comunidade internacional. A própria ONU afirma na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) que os oceanos têm um papel excepcional na preservação ambiental, na segurança internacional e no desenvolvimento sustentável das atividades ligadas ao mar. Alguns autores apontam que se um dos imperativos da CPLP é aumentar a afirmação internacional do conjunto dos Países de Língua Portuguesa, uma das oportunidades seria tornar-se referência ou ter voz ativa nas discussões ligadas aos mares e oceanos nos foros internacionais, principalmente por que apesar de constituírem um espaço geograficamente descontínuo identificado pelo idioma comum, o espaço lusófono acima de tudo dispõem de vastas áreas oceânicas sob as respectivas jurisdições, que perfazem no seu conjunto mais de 7,5 milhões de km2. Deve-se considerar também que vários países da CPLP apresentam reservas de hidrocarbonetos no oceano já em exploração ou com potencial exploratório que representam uma percentagem considerável das reservas mundiais. Assim, os oceanos constituem uma fonte de recursos para o desenvolvimento sustentável e para a economia destes países. Nesse contexto atualíssimo da Comunidade e da sua interação por meio do oceano, dois pontos podem ser explorados. Primeiro o que efetivamente propõe a Estratégia da CPLP para os Oceanos. Considerando que a gestão adequada dos recursos contribui para a estabilidade das nações e para o fortalecimento das relações entre os países da Comunidade; a elaboração de uma estratégia conjunta de concertação de esforços na elaboração de uma visão integrada de promoção do desenvolvimento sustentável dos oceanos sob as suas respectivas jurisdições nacionais, inclusive por meio da cooperação internacional, constitui um instrumento extremamente válido de política para os oceanos, bem como se apresenta como um processo de consolidação de objetivos comuns. A Estratégia baseia-se nas políticas nacionais dos Estados-membros, mas assenta-se numa

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visão comum, levando em conta a diversidade de realidades existentes entre os diferentes países. Baseia-se também nos pilares do desenvolvimento sustentável e destaca oito princípios de cooperação: a segurança e vigilância marítima; a concertação político-diplomática marítima; o desenvolvimento do conhecimento científico do mar; o desenvolvimento de clusters marítimos na criação potencial de uma indústria naval dos países da CPLP; a gestão portuária; a proteção do meio ambiente marinho; a divulgação e informação pública sobre a importância dos oceanos; e a vertente do desenvolvimento das economias associadas aos oceanos. Há que se considerar ainda a importância dada ao ordenamento do espaço marítimo e os conflitos entre os variados usos dos oceanos; a extensão das Plataformas Continentais apresentadas à Comissão de Limites da Plataforma Continental da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; os fundos marinhos e o conhecimento dos recursos existentes; as biotecnologias marinhas; o potencial energético (energia das marés, das ondas, o aproveitamento da biomassa marinha, a conversão da energia térmica, energia eólica offshore e hidrocarbonetos); a pesca e aquacultura; a pirataria e o turismo marítimo. O segundo ponto a ser explorado é a proposta de criação de uma Agência Lusófona de Monitorização no Atlântico Sul, como um dos órgãos da vertente de defesa da Comunidade. O Atlântico Sul banha cinco dos oito países da CPLP (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe) e durante muitas décadas foi considerado uma área marítima de menor importância estratégica. Porém, nos últimos anos, readquiriu relativa relevância, devido à descoberta de petróleo no Golfo da Guiné e nas águas jurisdicionais do Brasil e em alguns países da Costa Oeste da África; à ampliação do tráfego marítimo na região; ao aumento dos investimentos financeiros estrangeiros nos países lindeiros; à utilização de meios navais mais complexos e de maiores dimensões (superpetroleiros com mais de 20 m de calado) e à impossibilidade desses utilizarem o Canal do Panamá (no máximo 12 m de calado) ou o Canal de Suez

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(no máximo 16 m de calado). Além disso, um diagnóstico brasileiro aponta para o crescimento de 194% de 2000 até 2008 na movimentação de contentores na cabotagem do Brasil; crescimento de 80% em 2002 e 2012 na movimentação de carga total num dos portos brasileiros; crescimento de 32% do total de navios/dia no Atlântico Sul, conforme acompanhamento pelo SISTRAM, no período entre 2004 e 201111.  

ÍNDICO

ATLÂNTICO

Figura 6 – Dispersão geográfica dos países da CPLP em relação aos oceanos

No âmbito da segurança e da defesa, quando se analisa a área do Atlântico Sul, há que se considerar a proposta da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS), criada em 1986. Os membros da ZOPACAS são os países banhados pela parte sul do oceano Atlântico, localizados na costa ocidental de África e na costa oriental da América do Sul. A Zona de Paz visa promover a cooperação regional e a manutenção da paz e segurança na região. Na época da 11 Informações fornecidas na apresentação do Almirante-de-Esquadra Julio Soares de Moura Neto Comandante da Marinha do Brasil durante o III Simpósio das Marinhas da CPLP.

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criação, o foco era a questão da proliferação de armas nucleares e da redução da presença militar dos países-membros noutras regiões. Os membros buscavam também a cooperação económica e comercial, técnico-científica, política e diplomática. Esse foro de cooperação sul-sul foi proposto à época do governo brasileiro de José Sarney e apoiado pelo governo argentino de Raul Afonsín, apresentado na ONU durante a assembleia geral e aprovado apesar do voto contra dos Estados Unidos e de algumas abstenções, incluindo Portugal. Cabe acrescentar que a maior parte dos membros da CPLP também faz parte da ZOPACAS, mais precisamente, os cinco lusófonos dos oito membros plenos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, e rotineiramente estes países tem defendido a revitalização da Zona de Paz, onde se impõe a necessidade de conciliar o conceito biológico-geográfico do Atlântico Sul com o geoestratégico, numa perspectiva mais abrangente no quadro do relacionamento sul-sul. A I Reunião Ministerial da ZOPACAS foi realizada no Rio de Janeiro, em 1988, e as reuniões subsequentes tiveram lugar em Abuja (1990), Brasília (1994), Somerset West (1996), Buenos Aires (1998), Luanda (2007), Montevidéu (2013). O lento processo de revitalização da ZOPACAS teve início na Reunião Ministerial de Luanda, com o Plano de Ação de Luanda que aponta para diversas áreas nas quais poderão ser fortalecidos os esforços de cooperação da Zona de Paz. Para tal, foram criados grupos de trabalho nas áreas de cooperação económica, operações de manutenção da paz, temas ambientais e marítimos e combate a ilícitos transnacionais. Cabe aqui ressaltar a visão brasileira atual da ZOPACAS como mais um fórum de diálogo dos países em desenvolvimento e da cooperação sul-sul, materializada no discurso no Chanceler Antonio Patriota na VII Reunião Ministerial, em Montevidéu, no início desse ano: passados quase 30 anos desde a criação da iniciativa, é hoje mais necessária do que nunca a consolidação do Atlântico Sul como espaço de diálogo, cooperação, paz, livre de armas de destruição em massa e marcado por avanços permanentes na segurança

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alimentar e nutricional e desenvolvimento sustentável. A nossa é uma iniciativa de natureza solidária e de inconfundível sentido sul-sul. O Atlântico Sul constitui uma ponte entre continentes irmãos – que estarão reunidos, no mês que vem, em Malabo, para a Cúpula da ASA12 , e que hoje se reúnem, aqui em Montevidéu, com um foco mais específico: o da dimensão sul-atlântica... No contexto da governança global, a existência e o fortalecimento da ZOPACAS contribuem para a construção de uma multipolaridade que não seja a da ruptura e do conflito, mas sim a multipolaridade do diálogo, da cooperação, da justiça social, da segurança alimentar e nutricional e da paz sustentável... É imperativo preservar o Atlântico Sul da introdução de armas nucleares e outras armas de destruição em massa. Devemos trabalhar juntos para avançar em direção ao objetivo da caracterização da área como Zona livre de armas nucleares e outras armas de destruição em massa. Esse é um objetivo estratégico comum aos países membros da ZOPACAS, a ser promovido com renovado impulso... A ZOPACAS incorpora também importantes dimensões econômico-estratégicas, em especial relativas ao aproveitamento de riquezas energéticas e ao elevado potencial do Atlântico Sul para o desenvolvimento socioeconômico dos países costeiros, assim como à preocupação de sustentabilidade e racionalidade na utilização dos recursos marinhos. A Zona, por isso, deve ser também foro privilegiado para a cooperação sul-sul, com base em projetos concretos de cooperação. Solidariedade significa cooperação, e creio não me equivocar ao afirmar que nunca houve tanta cooperação entre América do Sul e África como se vê atualmente. O Brasil, com muito entusiasmo, tem sido parte desse avanço na cooperação, em uma agenda que vai desde a saúde à segurança alimentar, da agricultura ao desenvolvimento sustentável. Esperamos que os trabalhos da ZOPACAS catalisem uma ampliação e diversificação ainda maior dessa agenda de cooperação, respondendo às necessidades reais dos países da Zona, inclusive em áreas que hoje se revelam decisivas, como a de ciência e tecnologia, ou a de educação... Num esforço de contribuir para revitalizar a ZOPACAS e dotá-la de caráter mais operacional e efetivo, o Brasil estará desenvolvendo, com base nos eixos temáticos de cooperação definidos no Plano de Ação de Luanda de 2007 e na Mesa Redonda de Brasília de 2010, programa de cursos de capacitação técnica e profissional, voltado a nacionais 12 Cúpula América do Sul – África - A ASA surgiu em 2006 do desejo e do interesse das duas regiões em construírem novos paradigmas para a cooperação sul-sul, baseados numa ordem mais multipolar e democrática. Foi formalizada durante a I Cúpula América do Sul-África, realizada na Nigéria. O evento resultou na Declaração de Abuja, no Plano de Ação e na resolução de criação do Fórum de Cooperação América do Sul-África.

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dos países da ZOPACAS. Esses cursos possuem o mérito de permitir ampla troca de experiências e boas práticas em áreas de interesse mútuo, em espírito de solidariedade e parceria.13

Ainda no eixo das relações entre países do Atlântico Sul, na área de defesa e segurança, deve-se avaliar uma outra proposta brasileira, a recente criação do Conselho Sul Americano de Defesa (CDS)14, em dezembro de 2008, na cúpula extraordinária da UNASUL15. Segundo os Estados-membros, essa não é uma aliança militar como a OTAN, não prevê a existência de forças expedicionárias ou de intervenção, apenas um certo nível de coordenação militar regional na área da defesa continental. O CDS, assim como a proposta delineada para CPLP, visa a elaboração de políticas de defesa conjunta, intercâmbio de pessoal entre as Forças Armadas, realização de exercícios militares conjuntos, participação em operações de paz, troca de análises sobre os cenários mundiais de defesa, integração de bases industriais de defesa, medidas de fomento de confiança recíproca e ajuda coordenada em zonas de desastres naturais. Ainda no âmbito da segurança e defesa da CPLP e do contexto do Atlântico Sul, cabe apontar alguns pontos externos à ação da CPLP que podem contribuir positiva ou negativamente para as ações propostas pela Comunidade, mas que por limitação de espaço não serão explicados aqui. São eles: a experiência brasileira e portuguesa em Exercícios Militares Conjuntos realizados na América 13 Texto-base do discurso do Ministro Antonio de Aguiar Patriota na VII Reunião Ministerial da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) Montevidéu, 15 de janeiro de 2013. Disponível em: http://www.itamaraty.gov. br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/ministro-estado-relacoes-exteriores/vii-reuniao-ministerial-da-zona-de-paz-e-cooperacao-do-atlantico-sul-zopacas-texto-base-do-discurso-do-ministro-antonio-de-aguiar-patriota-montevideu-15-de-janeiro-de-2013. Acessado em: 21/04/2013. 14 Composto por Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Chile, Guiana, Suriname e Venezuela. 15 A União de Nações Sul-Americanas é constituída pelos 12 países da América do Sul e tem como objetivo construir um espaço de articulação no âmbito cultural, social, económico e político. Prioriza o diálogo político, as políticas sociais, a educação, a energia, a infra-estrutura, o financiamento e o meio ambiente, a fim de obter a paz e a segurança. O seu Tratado Constitutivo foi aprovado em maio de 2008. E entrará em vigor após a ratificação pelos países signatários.

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do Sul, com os Estados Unidos, na OTAN e na UE (Teamwork South, Intercambio Sul, Unitas, Ibasmar); o pensamento marítimo estratégico português de mais de 500 anos e o pertencimento à OTAN; a necessidade do patrulhamento marítimo para proteção de recursos naturais oceânicos; a reativação da IV Frota Americana responsável pelo Atlântico Sul (fora de atuação desde a 2ª Guerra); as bases norte-americanas estabelecidas fora do seu território e monitoramento norte-americano dos oceanos; o papel crescente da China em África, e a exploração de recursos minerais por mega corporações. 6 – Conclusões Primeiramente, vale apontar que a bandeira portuguesa da lusofonia sustentada nos laços históricos e culturais, que uniria os seus povos alicerçados no uso de um idioma comum, parece não ser considerada como o objetivo central das ações da Comunidade do mesmo modo pelos restantes membros. Há sim a proposta da valorização da língua portuguesa na Comunidade, mas segundo o seu ordenamento jurídico os seus princípios básicos são a promoção do desenvolvimento e o estímulo à cooperação entre os membros para execução de práticas democráticas, da boa governança e do respeito aos direitos humanos. Há que se considerar ainda que os mais de 30 anos de ações de exercícios e operações entre as forças armadas portuguesas e dos PALOP pesa nas ações propostas, mas no seio da Comunidade não se apresenta, mesmo que discursivamente, a preocupação de redefinir o lugar do Estado português na comunidade internacional entre o Atlântico Norte e o Sul. Do mesmo modo, para delinear ações de segurança e defesa para CPLP tem que se levar em conta o contexto africano das últimas décadas onde há a necessidade recorrente de ações humanitárias e operações de paz, bem como o potencial já mapeado, mas ainda não explorado de recursos naturais africanos nos oceanos. Na agenda de defesa e segurança da Comunidade pode-se apontar também o peso do Brasil como potência emergente e sua crescente influência mundial,

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a ênfase política do governo atual brasileiro na cooperação Sul-Sul e proposta ideológica de uma cooperação solidária, bem como a revalorização do Atlântico Sul e a necessidade de investimentos na segurança marítima, principalmente pela exploração oceânica de petróleo. Conforme afirmou o Comandante da Marinha do Brasil, Julio S. de M. Neto, no III Simpósio das Marinhas da CPLP, a Comunidade é uma das prioridades da Política Externa do Brasil, facto reforçado pelo que estabelece a atual Política de Defesa Nacional no item 4.9: “uma das prioridades da política externa brasileira é a intensificação das relações com os países da América do Sul, da África Ocidental e de língua portuguesa”; e no item 4.10: “a intensificação da cooperação com a CPLP, integrada por oito países distribuídos por quatro continentes e unidos pelos denominadores comuns da história, da cultura e da língua, constitui outro fator relevante das nossas relações exteriores”. Por mais curioso que possa parecer, a CPLP que nasce sustentada em laços linguístico e cultural torna-se uma via de integração possível também no âmbito da segurança e defesa. Assim, a Comunidade não foi exceção, e como outros conglomerados de países, enquadrou-se neste novo paradigma securitário comunitário; e apesar da sua dimensão geográfica dispersa, sem contingência territorial, aponta para cooperação e regulamentações nas vertentes de segurança e defesa principalmente no seu meio de contato, o oceano, onde privilegiaria as ações costeiras e navais. Desse modo, o Atlântico lusófono aparece em perspectiva comparada no âmbito da Defesa e da Segurança Internacional como uma possível estratégia de cooperação técnica militar. A materialização da CTM como ferramenta integradora do Atlântico lusófono ainda carece recursos e de objetos burocráticos capazes de transformar ideias e normativas em planos de trabalho e ações, mas pode-se dizer que algumas atividades estão a ser realizadas mesmo que executadas no âmbito bilateral e não no multilateral comunitário; atividades essas que têm contribuído para estabelecer relações de confiança mútua entre militares e diplomatas lusófonos.

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Migration from the Horn of Africa in northern Mozambique: A real security



Joanna Mormul - Jagiellonian University



threat or a problem of state dysfunctionality?1

1 The project was financed by the National Science Center based on the decision number DEC-2012/07/B/ HS5/03948.

South-South migrations are not a new phenomenon. According to the data provided by the United Nations Department of Economic and Social Affairs in 2013 42 per cent of migrants in the world were residing in developing countries, in other words, 83.2 million (36 per cent) international migrants who were born in the South were residing in the South1, while 13.7 million (6 per cent) of international migrants were born in the North but they were living in the South2. Although since 1990 South-North migration has been the main driver of global migration trends, it is the South-South migration that remains the largest category3. At this point it is worth to mention the existing problem of defining the concept of “South” and “North” in contemporary international relations. The main perspective in creating this kind of division is based on differences in the achieved level of development (rich North versus poor South) and today, 1 This number was slightly higher that the number of the international migrants who were born in the South and were residing in the North – 81.9 million people (35%). International Migration 2013: Migrants by origin and destination, “Population Facts”, United Nations Department of Economic and Social Affairs – Population Division, September 2013, no. 2013/3, p. 1. 2 53.7 million (23%) international migrants were born in the North and are residing in the North. Ibidem, p. 1. The tendency in 2010 was a bit different – it was the first year since 1990 when the number of South-North migrants outnumbered South-South migrants for the first time. Migrants by origin and destination: The role of South-South migration, “Population Facts”, United Nations Department of Economic and Social Affairs – Population Division, June 2012, no. 2012/3, p. 1. 3 International Migration 2013: Migrants by origin and destination, op. cit.

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it seems that the fundamental axis of the structural division of the world into developed and developing countries is the quality of life4. What can really negatively contribute to the state’s security and current level of functionality of its institutions is irregular migration. In fact, irregular migrants probably are even more common in the South-South migrations than in the South – North ones. The majority (over 80%) of the South-South migrations is taking place between the countries which share a common border but the reasons behind this kind of migrations are various and complex. Historically, the European colonialism in Africa and Asia established some patterns of migration, in which the mobility of the colonized peoples was controlled by the colonizers in order to direct them to the places where labor was required. This kind of labor migration patterns are still present in the formerly colonized territories, for instance, in the colonial period hundreds of thousands of workers were needed in the Southern Africa’s mines and, for example, still today South African mines are drawing many Mozambicans. With the end of colonialism there was also another significant pattern of migration – post-colonial refugees movements caused by prolonged liberation wars or post-independence civil conflicts which forced millions of people to flee their homes and search for refuge mostly in the neighboring countries (not counting millions of internally displaced persons, IDPs)5. The scale of the South-South migration is often believed to be understated, as many of the cross-border movements in the South remained undocumented, especially because very often to cross some land borders there are only minimal (if any) formalities required or the borders themselves are not guarded6. 4 Marcin Wojciech Solarz, Północ – Południe. Krytyczna analiza podziału świata na kraje wysoko i słabo rozwinięte, Wydawnictwa Uniwersytetu Warszawskiego, Warszawa 2009, p. 135. The author presents also a wide choice of terms used to name developed and underdeveloped areas. Ibidem, p. 54. 5 Oliver Bakewell (with Hein de Hass, Stephen Castles, Simona Vezzoli, and Gunvor Jónsson), South-South Migration and Human Development. Reflections on African Experiences, International Migration Institute, Working Papers, Year 2009, Paper 15, p. 7-9, 11. 6 Ibidem, p. 10.

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Although the numbers of this South-South migrations can be inaccurate, it is possible to enumerate at least the most important reasons that stand behind them: proximity, existing networks, income differences, seasonal patterns, flight from ecological disaster or civil conflict, transit to the North, and petty trade. As it was mentioned before almost 80 per cent of known South-South migrations take place among the countries which share a common border. A large part of the rest occur in the close circle of neighboring countries which do not share a common border. The drivers here are definitely the costs (financial, social and cultural) which are significantly lower while migrating to the nearby countries, furthermore the ethnic, religious or family communities are spread across borders (especially in Africa), what also contributes to the decision to migrate to neighboring territories. These ties reduce the costs and create migrant networks. On the African continent (and not only there) the networks tend to magnify migration flows, a good example can be a significant number of Swazis, Tswanas and Basothos in South Africa (their presence derives from the 19th century tribal movements). Income differences do not seem to be the main driver of the South-South migrations as about 38 per cent of identified migrants come from the countries with higher income than their host country. However, in the developing countries even small income differences can make a change for potential migrants. Some people migrate taking advantage of seasonal weather patterns, for example, in West Africa, because of the regional seasonal variation of agriculture activities, the seasonal migrations can be the most common form of cross-border labor mobility. In other cases South-South migrations are sometimes just a transit episodes, developing country becomes a temporary stop on the route to the developed one, a good example seem to be North Africa’s states which serve for many migrants from the Sub-Saharan Africa as a transit point on their way to the southern Europe. Individuals may also cross border to sell goods (mostly in small quantities), for instance as street

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vendors. Although this kind of movement is not strictly classified as migration, it is often connected with a temporary residence, for example, both Mozambicans into South Africa and Angolans into Namibia for many years have crossed for trading. Finally, probably the most obvious reason behind the South-South migrations are an escape from war or natural disasters. It is often the first step in seeking asylum, as the majority of the refugees and asylum seekers are located in the developing countries7. The same as South-South migrations, the migration from the Horn of Africa is also not a new phenomenon, however, the number of people who is fleeing the region has never been so high as in the recent years. According to the International Organization for Migration the largest increase of refugees globally in 2012 took place in the region of East Africa and the Horn of Africa8, and this number does not count other type of migrants (for example, labor ones). Also the reasons which stand up behind the migration in the Horn of Africa are much more interlinked, including economic, social, political and environmental factors. This ‘mixed migration’ movement consists of refugees, asylum seekers, economic migrants and all the others, becoming a great challenge for the countries of the region, as well as for their further neighborhood9. The countries of origin for the majority of the Horn of Africa’s migrants are: Somalia, Eritrea, South Sudan10 and Ethiopia, but as a large share of the migration happens inside 7 Dilip Ratha, William Shaw, South-South Migration and Remittances, World Bank Working Paper, no. 102, Washington, D.C. 2007, pp. 15-21; For example, in the first half of the 2014 more than 1.4 million people were newly displaced across international borders, according to the UNHCR the overwhelming majority sought refuge in the neighboring countries or in the proximate region. UNHCR Mid-Year Trend 2014, UNHCR. The UN Refugee Agency, Geneva 2015, p. 6, downloaded from: http://www.unhcr.org/54aa91d89.html (access: 21.01.2015). 8 In March 2013 there were 9 million refugees and internally displaced persons in the region of East Africa and the Horn of Africa. East Africa and the Horn of Africa, International Organization for Migration, http://www.iom.int/cms/ en/sites/iom/home/where-we-work/africa-and-the-middle-east/east-africa.html (access: 20.07.2014). 9 Horn of Africa and Yemen. Annual Report 2012, Norwegian Refugee Council, Nairobi 2012, p. 7. 10 Considering the former state of Sudan (today Sudan and South Sudan) as a vital part of the so-called Small Horn of Africa, while in the Greater Horn of Africa there are also included Kenya and Uganda. Jolanta Mantel-Niećko, Wstęp, [in:]

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the region, some countries are at the same time the countries of origin and the host countries for the migrants from the near neighborhood, as it happens, for example, with Ethiopia. General weakness in border and migration management regimes, together with already mentioned cultural and ethnic factors present in the South-South migrations, facilitates the regional movements of migrants but also has a very destabilizing impact on the whole region. Among the potential causes of the large increase of the refugees and other types of migrants in the Horn of Africa region there are continued armed conflicts, droughts and floods leading to food insecurity and rendering the local populations homeless, forced displacements, very high unemployment rate (especially among the youth) and other economic and security issues11. We can distinguish three main routes of mixed migration flows from the Horn of Africa: - Northern Africa route (through Sudan to Egypt and Israel, or Libya12, and further north); - Gulf of Aden and Red Sea route (from Somaliland and Puntland coasts through Gulf of Aden to Yemen; from Eritrea through Red Sea to Yemen or Saudi Arabia13, or through Djibouti and Bab-el-Mandeb to Yemen’s shores and further to the Middle East countries); J. Mantel-Niećko, M. Ząbek (eds.), Róg Afryki. Historia i współczesność, Wydawnictwo TRIO, Warszawa 1999, p. 15. 11 Global Migration Futures. Using scenarios to explore future migration in the Horn of Africa & Yemen, Project report, November 2012, Regional Mixed Migration Secretariat / International Migration Institute at the Oxford University, document downloaded from: http://www.imi.ox.ac.uk/pdfs/projects/gmf-pdfs/global-migration-futures-using-scenarios-to-explore-future-migration-in-the-horn-of-africa-yemen (access: 6.05.2014), 12 Kristy Siegfried, Horn migrants risk new routes to reach Europe, IRIN. Humanitarian news and analysis, 11.11.2013, http://www.irinnews.org/report/99095/horn-migrants-risk-new-routes-to-reach-europe (access: 20.04.2014). 13 See more: Hélène Thiollet, Refugees and Migrants from Eritrea to the Arab World: The Cases of Sudan, Yemen and Saudi Arabia 1991-2007, Paper prepared for “Migration and Refugee Movements in the Middle East and North Africa”, The Forced Migration & Refugee Studies Program, The American University in Cairo, Egypt, October 23-25, 2007, pp. 1-21.

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- Southern route (land route or by sea to Kenya and beyond)14. The Southern route which can go further beyond the Kenyan territory15 is far less known and there is not much reliable data indicating the number of the irregular migrants fleeing the region in this direction. However, what is quite certain, most of the migrants come from Ethiopia and Somalia16. In the majority of cases the destination is South Africa, but as the number of migrants in South Africa itself is not precisely known and current estimations can vary a lot, it is also hard to estimate the exact number of those coming from the Horn of Africa17. 14 Mixed Migration in Horn of Africa and Yemen, Regional Mixed Migrations Secretariat, December 2013, document downloaded from: http://www.regionalmms.org/index.php?id=2 (access: 5.09.2014); East Africa and the Horn of Africa, op. cit. 15 Especially now, when the refugee camps in Kenya are so overcrowded and since the Kenyan government introduced a new directive in March 2014, according to which all refugees living in the urban areas should return to the refugee camps. This policy is aimed mostly toward the Somali community and it is an attempt to end brutal attacks carried out by armed groups in retaliation for Kenya’s military presence in Somalia (the Operation “Linda Nchi” [“Protect the country”] going on since October 2011). Kenya orders all refugees back into camps, Al Jazeera, 26.03.2014, http:// www.aljazeera.com/news/africa/2014/03/kenya-confines-all-refugees-two-camps-2014325211245266713.html (access: 3.07.2014); Somali refugees: threat or victims?, “Inside Story”, Al Jazeera, 26.03.2014, http://www.aljazeera.com/programmes/insidestory/2014/03/somali-refugees-threat-victims-201432615261676711.html (access: 3.07.2014). In earlier attempts to minimize occurring acts of terror in mid-July 2012 the Kenyan police in Nairobi started an operation called “Fagia Wageni” (“Get rid of visitors”), aiming at expelling from the country the foreigners without papers, especially those linked with terrorist activities. RMMS Press Review. July 2012, Regional Mixed Migration Secretariat, 7.08.2012, http://www.regionalmms.org/index.php?id=56&tx_ttnews%5Btt_news%5D=76&cHash=86edb5e87ead9e40195f8ec25e31118d (access: 2.09.2014); Kenyan Police Arrests More Than 130 Foreigners in Security Swoop, CRI English, 10.07.2012, http://english.cri.cn/6966/2012/07/10/2701s711029.htm (access: 2.09.2014); Cyrus Ombati, Illegal immigrants arrested in Nairobi, “The Standard”, 9.07.2012, http://www.standardmedia.co.ke/article/2000061492/illegal-immigrants-arrested-in-nairobi?articleID=2000061492&story_title=illegal-immigrants-arrested-in-nairobi&pageNo=1 (access: 2.09.2014). The Kenya’s case is also interesting as the state has also citizens who are ethnic Somalis (and historically live on the territory which forms part of today’s Kenya). See more: Emma Lochery, Rendering Difference Visible: The Kenyan State and its Somali Citizens, “African Affairs”, vol. 111, issue 445, October 2012, pp. 615-639. 16 Mixed Migration in Horn of Africa and Yemen, op. cit. 17 The estimations vary from 0.5 to 1 million, from 1.6 to 2 million, and even from 4 to 8 million. John Campbell, How many immigrants does South Africa have? That depends on who you ask, “The Christian Science Monitor”, 21.02.2013, http://www.csmonitor.com/World/Africa/Africa-Monitor/2013/0221/How-many-immigrants-does-South-Africa-haveThat-depends-who-you-ask (access: 20.06.2014); Jonathan Crush, South Africa: Policy in the Face of Xenophobia, “Migration Information Source”, Migration Policy Institute, 28.07.2008, http://www.migrationpolicy.org/article/south-africa-policy-face-xenophobia (access: 24.06.2014); . The concerns about the exact number of the African immigrants

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The typical route of Somali or Ethiopian migrants (more rarely also Eritreans) heading south start when they try to reach (by land or by sea) the Kenyan port of Mombasa, from where they begin their dangerous passage along East African coasts. After a long journey by boat they are usually dropped off by the smugglers on the Tanzanian coast near the town of Mtwara, not far from the border with Mozambique which is marked only by the River Rovuma. In 2012 several new reports about the abuses committed by Mozambican security forces on the border appeared, according to some Horn of Africa’s migrants they had been stripped of their clothes and belongings, severely beaten and left on the Tanzanian side of the border where they were given assistance by the Tanzanian border guards18. The alarming information about human rights violations committed against irregular migrants from the Horn of Africa (some of them were definitely refugees) in the northern Mozambique had already been known before 2012, for example by the United Nations High Commissioner for Refugees (UNHCR)19, although the Mozambican authorities kept denying or ignoring the problem; in 2012 the Mozambican Deputy Foreign Minister Eduardo Koloma was received in Mogadishu by Somali officials to discuss the question of Somalis being jailed in his country, nevertheless, the treatment of the migrants from in South Africa were also perceived by the author herself during interviews with South Africans while staying in SA in January 2014. The presence of many irregular migrants in the country creates common allegations of ‘stealing jobs’ and provokes many negative reactions of local communities, including xenophobic ones leading to acts of violence (the bloodiest events occurred in 2008, when at least 60 people were killed). Vivence Kalitanyi, Kobus Visser, African immigrants in South Africa: job takers or job creators?, “South African Journal of Economic and Management Sciences”, vol. 13, no. 4, January 2010, http://www.scielo.org.za/scielo.php?pid=S2222-34362010000400001&script=sci_arttext (access: 24.06.2014); Rick Lyman, Attacks Have Immigrants Worried Again in South Africa, “The New York Times”, 17.07.2013, http://www.nytimes.com/2013/07/18/world/africa/wave-of-violence-has-immigrants-worried-anew-in-south-africa. html?pagewanted=all&_r=0 (access: 24.06.2014). 18 Of what the Somali embassy in Tanzania expressed later its gratitude. 19 The problem was also raised in September 2011 by a Mozambican NGO – Liga dos Direitos Humanos de Moçambique. Liga dos Direitos Humanos denuncia tratamento dado aos refugiados, RFI português, 18.09.2011, http://www.portugues.rfi.fr/africa/20110917-liga-dos-direitos-humanos-denuncia-tratamento-dado-aos-refugiados (access: 1.09.2014).

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the Horn of Africa did not even emerge20. The peak of the migration from the Horn of Africa through Mozambique took place earlier – at the beginning of 2011, probably as a result of the growing food insecurity, caused by La Niña phenomenon21. However, what seems interesting the peak of refugees coming to Mozambique did not occur at the time of the drought in the Horn of Africa said to be the worst in 60 years, which lasted from July 2011 till mid-July 2012 (in September 2011 it was estimated that at least 750,000 people were in situation “close to starvation”, mostly in the four out of eight southern regions of Somalia)22. Before, for example in 2010, the stream of the Horn of Africa’s migrants was rather steady. After having arrived to Mozambique, they used to be directed to the Maratane Refugee Camp in Nampula Province (Rapale district, 17 km from the city of Nampula) which normally can accommodate 5,500 long-time residents. In the past the majority of them used to be from the Democratic Republic of Congo, Burundi and Rwanda. However, even when the stream of the migrants from the Horn of Africa started to flow in, as long as the number of the new arrivals was more or less equal to the number of the departures, the authorities did not perceive any serious problems23. Rather unexpectedly at the beginning of 2011 the number 20 Mozambique beats Somali migrants, Tanzania frees them, SomalilandPress.com, 13.05.2012, http://www.somalilandpress.com/mozambique-beats-somali-migrants-tanzania-frees-them/ (access: 22.04.2014). 21 “La Niña is defined as cooler than normal sea-surface temperatures in the central and eastern tropical Pacific ocean that impact global weather patterns. La Niña conditions recur every few years and can persist for as long as two years”. Definition provided by National Oceanic and Atmospheric Administration, United States Department of Commerce, http://www.elnino.noaa.gov/lanina_new_faq.html (access: 20.08.2014). In case of southern Somalia La Niña was responsible for unusually below average precipitation, especially poor performance of the Deyr rains which resulted in failed crops in most of southern crop producing regions of Somalia. Somalia: Food Security and Nutrition Quarterly Brief, Issued December 16, 2010 - Focus on Post Deyr Season Early Warning, Food Security and Nutrition Analysis Unit-Somalia, http://reliefweb.int/organization/fsnau, document downloaded 14 October 2014. 22 Robert Kłosowicz, Róg Afryki: bilans ostatnich miesięcy, “Raport PCSA”, wrzesień-listopad 2011, p. 22. 23 In the reportage by Deutsche Welle from 2009 it is mentioned that among refugees in Maratane Refugee Camp there are also Sudanese and Eritreans. The most difficult problems to deal in the camp according to the interviewees are: alimentation, water supply, and access to education. Uma visita ao campo de refugiados moçambicano de Maratane, audio

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of new arrivals increased significantly and the Maratane Refugee Camp became overcrowded, with a population over 10,000 refugees. 1,000-2,000 more asylum seekers were held in a temporary site in Palma, a coastal town near the Tanzanian border24. From this moment on the conditions in the camp were often described as dire, mostly because the existing facilities were not sufficient for the increasing number of new refugees25. Because of this difficult situation, the Mozambican authorities started to impose restrictions and measures to control the movements of asylum seekers outside the refugee camp. The Somalis and Ethiopians that were on their way toward Mozambican-South African border were being stopped by the police and returned to the Maratane Refugee Camp, there was also information about the illegal deportations of migrants caught by the police or border guards near the border, refusing them entry to Mozambique, as well as about some shootings that occurred in the northern province – Cabo Delgado26. Apparently, it seemed like the uniformed services or, perhaps, local authorities did not remember that Mozambique is a party to the Convention relating to the Status of Refugees (CRSR) from 1951 and to the Protocol relating to the Status of Refugees27 from 1967. In the first of the mentioned reportage, Deutsche Welle, 2.10.2009, http://www.dw.de/uma-visita-ao-campo-de-refugiados-moçambicano-de-maratane/a-4753797 (access: 23.04.2014). 24 In 2014 Mozambique hosted 4,462 refugees and 11,478 asylum seekers, mostly from Burundi, the DRC, Rwanda and Somalia. 2015 UNHCR subregional operations profile - Southern Africa, UNHCR. The UN Refugee Agency, http://www.unhcr. org/pages/49e485806.html (access: 8.02.2015). Difficulties of living in the Maratane Refugee Camp have been also noticed by the Mozambican press where it has been pointed out not only the problem of food supplies or sanitary conditions but also the fact that many camp residents are desperate to improve their life and enter a criminal way, engaging in thefts, ivory smuggling or prostitution. Nelson Miguel, Centro de Refugiados de Maratane é repulsivo, “Jornal @Verdade”, 22.08.2013, http://www. verdade.co.mz/nacional/39354-centro-de-refugiados-de-maratane-e-repulsivo (access: 29.04.2014). 25 For instance, in March 2011 there were at least 32 deaths caused by diarrhea in the camp, mostly among Somali and Ethiopian populations of refugees. Carlos Jossia, Surto de diarreia num campo de refugiados em Moçambique, RFI português, 25.03.2011, http://www.portugues.rfi.fr/africa/20110325-surto-de-diarreia-num-campo-de-refugiados-em-mocambique (access: 24.04.2014). 26 Apparently, four illegal migrants died after having been shot by the border police on April 29, 2011 in Cabo Delgado, Mozambique’s most northerly province. 27 Also known as New York Protocol

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document we can find Article 33(1), according to which a refugee has a right to be protected against forcible return (the principle of non-refoulement): “No Contracting State shall expel or return (“refouler”) a refugee in any manner whatsoever to the frontiers of territories where his life or freedom would be threatened on account of his race, religion, nationality, membership of a particular social group or political opinion.” 28

The Mozambican side explained the arrests made by police by their compliance with the law which in Mozambique grants to asylum seekers freedom of movement inside the country, but first they have to complete the registration process inside the camp, and whole procedure can take up to three months. From the Mozambican point of view the newcomers are not always asylum seekers, instead often they are economic migrants, of which at least some want to stay in Mozambique, what is seen as a potential threat to the economic well-being of the local communities29. This attitude can be explained by the socio-economic situation in the northern Mozambique. The economy in the northern regions is dominated by agriculture activities with only a few cash crops for export. The communication infrastructure is poor, what in consequence leads to absence of much rural trading. Political and state institutions are also weaker than in the southern or central part of the country, what is partially caused by the specific nature of the civil war that haunted Mozambique 28 Convention and Protocol relating to the Status of Refugees, United Nations High Commissioner for Refugees, p. 30, document downloaded from http://www.unhcr.org/3b66c2aa10.html http://www.unhcr.org/3b66c2aa10.html (access: 10.06.2014). 29 Mozambique: North overwhelmed by asylum seekers, IRIN. Humanitarian news and analysis, 12.05.2011, http://www. irinnews.org/report/92690/mozambique-north-overwhelmed-by-asylum-seekers (access: 24.04.2014); Africa: Horn migrants heading south “pushed backwards”, IRIN. Humanitarian news and analysis, 2.08.2011, http://www.irinnews. org/report/93403/africa-horn-migrants-heading-south-pushed-backwards (access: 24.04.2014); Mozambique: Horn migrants find peace but “no better life”, IRIN. Humanitarian news and analysis, 14.09.2011, http://www.irinnews.org/ report/93723/mozambique-horn-migrants-find-peace-but-no-better-life (access: 25.04.2014).

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for 16 years (1977-1992)30. During the internal conflict tax revenue or export earning practically collapsed and as a result in the following years Mozambique found itself plunged in a growing debt and heavily reliant on foreign aid, of which little reached rural territories of northern Mozambique31. The north of the country, understood as provinces: Nampula (with the city of Nampula), Cabo Delgado and Niassa, accounts for 35% of population32, however, for example in 1999 it constituted only 21 per cent of total GDP33. This situation of underdevelopment of the north persists as the majority of aid agencies or NGOs reside in Maputo and its surroundings, which beside being the capital of the state can also take advantage of the proximity to the South Africa34. The dire situation of the refugees and asylum seekers in the Maratane Refugee Camp and in Palma, of which alarmed the local authorities, as well as the Mozambican vice-minister of foreign affairs who even visited the area, led to action international organizations. In 2011 the United Nations Central Emergency Response Fund (CERF), following the field assessment conducted in Maratane Refugee Camp and in Palma, transferred $260,000 to the World Food Programme for transportation and local purchase of food for 5,000 temporary and long-term residents of the camp, and new arrivals in Palma. Other $920,000 were allocated to the UNHCR to provide permanent and semi-permanent shelter for refugees and asylum seekers in both above mentioned sites. Finally, the International Organization for Migration (IOM) (together with the Mozam30 More about interactions and connections between local representatives of the state and rural society in Mozambique in the post-war period: Jocelyn Alexander, The Local State in Post-war Mozambique: Politicl Practice and Ideas about Authority, “Africa”, 1997, 67(1), pp. 1-26. 31 Tilman Brück, War and reconstruction in northern Mozambique, “The Economics of Peace and Security Journal”, 2006, vol. 1, no. 1, p. 30. 32 On the basis of 2007 census. Instituto Nacional de Estatística, http://www.ine.gov.mz/operacoes-estatisticas/censos/ censo-2007/rgph-2007 (access: 17.10.2014). 33 In 1999 the northern provinces accounted for 33% - slightly lower percentage than in 2007. 34 T. Brück, op. cit., p. 36-37.

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bican Red Cross) received nearly $300,000 to provide temporary shelter, basic hygiene equipment and immigration information in the town of Palma35. The question of refugees was also addressed by the refugees themselves, for example Mozambique’s Refugee Student Association (Associação dos Estudantes Refugiados de Moçambique, AEREMO) which is in 2013 was granted $25,000 from the Julia Taft Refugee Fund36, the aim was trying to help to fight unemployment among the refugees from different countries but mostly the ones engaged were from Burundi, Somalia, Rwanda and the DRC37. *** A few years earlier Mozambique used to be presented (among others, by UNHCR) as an exemplary host country for refugees on the African continent in terms of their reception and treatment38. The unexpected high influx of the refugees and other irregular migrants in 2011 presented a serious challenge to the Government of Mozambique, as well as the UNHCR office. The Mozambican National Institute for Refugee Assistance (Instituto Nacional para Assistência aos Refugiados, INAR) seemed a bit helpless against the growing problem of migrants in northern Mozambique. However, after the involvement of international organizations and new funds which were designated to 35 Mozambique 2011: CERF allocated nearly $1.5 million for approximately 13,000 beneficiaries in need of emergency assistance in Mozambique, United Nations Central Emergency Response Fund, http://www.unocha.org/cerf/cerf-worldwide/where-we-work/2011/moz-2011 (access: 24.04.2014); Annual Report on the Use of CERF Grants in Mozambique 2011 for Life-saving Humanitarian Response to Stranded Refugees/Asylum Seekers and Irregular Migrants, United Nations Central Emergency Response Fund, 2012, document downloaded from https://docs.unocha.org/sites/dms/CERF/ MOZ_RC_HC_Report2012.pdf (access: 5.05.2014). 36 The Julia Taft Refugee Fund supports low-cost projects that assist refugees or refugee returnees by responding to critical gaps in assistance not addressed through larger, multilateral refugee programs. The Julia Taft Refugee Fund: Building Partnerships for Sustainable Returns in Bosnia, Bureau of Population, Refugees and Migration, U.S. Department of State, 31.08.2011, http://www.state.gov/j/prm/releases/releases/2011/181071.htm (access: 10.06.2014). 37 Governo dos E.U.A. Apoia Refugiados em Moçambique, Embaixada dos Estados Unidos da América em Maputo, Moçambique, http://portuguese.maputo.usembassy.gov/refugiados-moambique.html (access: 10.06.2014). 38 Moçambique exemplo de tratamento de refugiados, Portal do Governo de Moçambique, 21.08.2007, http://www. portaldogoverno.gov.mz/noticias/news_folder_politica/agosto2007/nots_po_519_ago_07/ (access : 24.04.2014).

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address the migrants in Maratane Refugee Camp and those stranded in the further north near Palma, a fundamental change of circumstances occurred. By the beginning of June 2011 the number of envisaged new asylum seekers and other type irregular migrants from the Horn of Africa drastically reduced and the anticipated arrival of almost 3,000 new asylum seekers over the period of three months did not materialize39. This fact and the continued argumentation of the Mozambican authorities claiming that irregular migrants arriving at the Tanzanian-Mozambican border were mostly, or even entirely, economic ones resulted in the lack of government’s approval in the end of 2012 for the UNHCR’s request to create a smaller processing or transit center for irregular migrants in Palma near Mozambique’s northern border40. This decision may be surprising, though if one analyzes the attitude of Mozambican authorities during the whole situation: from denial to the pleas for help to resolve the issue, in order to finally come to the conclusion that the existing problem entirely applies to the economic migrants. As an excuse for this kind of policy may serve a difficult two-level internal situation (regional/provincial and national) related to weak state institutions, economic problems and foreign aid dependency. As well as natural security concerns, especially in the context of a certain element of surprise regarding migration intensity in these few analyzed months. This kind of humanitarian emergency can become a sort of test for state functionality. In a post-conflict societies, such as Mozambican, refugees are not the most welcomed visitors; firstly, because of the economic concerns especially about the situation on the labor market, especially in the less developed regions (as for example: northern Mozambique); secondly, very often such societies have to 39 Annual Report on the Use of CERF Grants in Mozambique 2011…, op.cit., p. 4. Two most probable reasons that stand behind this situation, are the news about the difficulties in Mozambique which had to reached Horn of Africa’s migrants in spe, or even more probable – a knock-on effect of the change in policy towards irregular migrants in South Africa – country of destination for the majority of the Horn of Africa’s migrants heading South. Africa: Horn migrants heading south…, op. cit. 40 Ibidem, p. 4; Mozambique: Human Rights Reports – Mozambique: Executive Summary, allAfrica.com, 19.04.2013, http://allafrica.com/stories/201304231174.html (access: 11.05.2014).

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deal with their own returnees who face similar problems to those experienced by newly arrived refugees and waiting for help41.

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Registo fotográfico da conferência

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Uma conferência CEsA realizada de 29 a 31 de Maio de 2014

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