Religião e violência como reflexão sobre a cidade: o caso da periferia do Morro da Cruz, Porto Alegre, RS

July 14, 2017 | Autor: Joeverson Domingues | Categoria: Anthropology, Antropologia Urbana, Antropologia da religião, Antropologia
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Religião e violência como reflexão sobre a cidade: o caso da periferia do Morro da Cruz, Porto Alegre, RS. Joéverson Domingues Evangelista (UFRGS) 1. Introdução Agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões e as sociedades elaboram os consensos, cada qual a sua maneira. A comunicação social é um risco tão grande quanto as referências materiais. Marshall Sahlins, Ilhas de História No seio da modernidade, tornou-se difícil apontar esta ou aquela via de explicação capaz de satisfazer e abarcar o religioso, um processo, em se fazendo que vigora desigualmente nos espaços sociais1. Apesar de há cem anos as tendências apontarem para um deslocamento das religiões ou que fossem relegadas ao domínio do íntimo e do privado, ao olharmos para o mundo vemos, não obstante ter ocorrido este processo, as religiões acompanham os indivíduos ainda nos dilemas sociais, nas referências que se valem ao apreender suas experiências, para elaborar suas trajetórias e construir o espaço onde irão vigorar suas relações, segundo disposições que se relacionam com o “viver na cidade”. Isto se vincula ao fato da representação do self na vida cotidiana passar a ser menos individual, convertendo-se num projeto mais coletivo ou mesmo político: na praça pública, o discurso “secular” cada vez mais vem dando destaque às identificações religiosas dos atores sociais2 Este fenômeno de “volta à cena pública” do fenômeno religioso sugere que, enquanto articuladora e fornecedora de sentido ao cotidiano a atores diversos e em diversos contextos de interação, a religião ainda pode ser encarada como um dos matizes pelo qual os indivíduos constroem e pensam sobre o “artefato espacial” SANCHIS, P. “Desencanto e formas contemporâneas do religioso”. In: Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião. Porto Alegre: oct. 2001, p. 27-43.

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GEERTZ, C. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 156.

complexo em que se constitui a cidade moderna. Um artefato que implica num lugar, seu processo singular de transformação e a presença de um coletivo social que desempenha uma espécie de “escrita” de sua história e de seu território3; uma escrita que é diferenciada, relacionando-se com o lugar que se ocupa (e se é permitido ocupar) na cidade. No Brasil, muitas das periferias urbanas já gravitam em torno de seus próprios núcleos produtivos e muito embora não estejam de modo algum desconectadas do resto, poderíamos falar que são como cidades dentro de cidades4, conferindo particularidades e demandando de seus moradores algumas estratégias diferenciadas para encarar o cotidiano. No limite, as classes populares que moram na periferia vivem um processo dialético pelo qual elas simultaneamente compartilham traços da cultura dominante (afinal compartilham muitas vezes os mesmos espaços e símbolos) e apresentam elementos que não pertencem a esta cultura5. Num processo constante de mudanças e de rumos inesperados que a cidade oferece aos que nela vivem, a violência surge como reveladora de como se dá a distribuição de prestígio social no território, revelando a trama complexa que demarca o espaço social dos atores: segundo a gradação característica da sociedade brasileira no âmbito de sua demarcação espacial6, quanto mais afastado do “centro”, mais violento é o lugar, e esta demarcação contribui muito para certos tipos de naturalizações legitimadoras de formas de dominação, denotando o desequilíbrio de poder marcante na relação entre “centro” e “periferia”. Por isso, esta relação pode ser entendida como uma das manifestações do par estabelecido/ outsider configurado por Norbert Elias: não se restringindo aos caracteres topológicos ou somente a um corte de renda, mas também assinalando a constituição de discursos e as relações que os grupos na cidade estabelecem entre si e as posições de poder que implicam tais relações7. 3

URRUZOLA, J. P. Escritos urbanos. Montevideo: Ed. Montevideu, 2001.

VECCHIO, M. C. Onde mora o perigo? Um estudo sobre noções e práticas de proteção à infância entre moradores de uma vila popular de Porto Alegre. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: IFCH/PPGAS, 2007.

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5 OLIVEN, R. “Por uma antropologia em cidades brasileiras”. In: O desafio da cidade: novas perspectivas da antropologia Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Campus Ltda., 1980.

DAMATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil.Rio de Janeiro: Brasiliense, 1985. ELIAS, N. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

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Esse tipo de desequilíbrio se assenta numa espécie de complementaridade entre o carisma grupal dos estabelecidos e a desonra grupal dos outsiders: os primeiros produzem socialmente um discurso que mantém afastado e sob rígido controle os segundos8. Em casos como o de uma periferia urbana, o afastamento se estende até o nível físico, isolando geograficamente, se baseando nos estigmas que o “centro” produz a seu respeito. Essa produção estigmatizante feita partir do centro desvela um processo de pensamento classificatório produtor de categorias essencializadas a respeito do que é destoante do seu cotidiano, levando a uma naturalização e legitimação de desigualdades, com o objetivo de justificar e oferecer versões satisfatórias demandadas para a efetivação de um reordenamento discursivo dos eventos sociais mais dramáticos. Mas o que é a violência que nos detemos até agora em circunscrever no espaço em que vigoram as percepções da cidade? Alba Zaluar nos oferece uma pista: enquanto força, “torna-se violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica”9. Nesta definição, vários elementos saltam como possíveis de uma apreensão mais detida: ao falar em acordos rompidos, descreve-se um entendimento mais relacional da violência; ou, em outras palavras, a violência depende de negociações de sentido entre os atores envolvidos e sempre que um deles se vê forçado a algo que ele considera, ou é considerado em seu meio, como “maléfico” ou “negativo”, a violência se instaura e “acontece”. A “fala do crime”, modo pelo qual os atores operam um tipo de pensamento classificatório sob forma narrativa acerca do evento violento (caótico por excelência), se apresenta no contexto urbano para tentar alocar as experiências dos indivíduos através de um código simplificado para lidar com as mudanças sociais que irrompem em seus trajetos de vida10. Por seu turno, as religiões também têm de lidar com estas dimensões de mudança e de caos gerado pela violência ao oferecer aos seus fiéis termos e justificações para a situação em que vivem e explicar as rupturas sofridas na vida cotidiana. Ao lado da fala do crime, poderemos encontrar

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Idem, pg 25.

9 ZALUAR, A. “Um debate disperso: violência e crime no Brasil da redemocratização”. In: São Paulo em perspectiva. São Paulo: 1999, Vol. 13, pg.8. 10 CALDEIRA, T. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2000, pg. 33.

uma espécie de “fala da igreja sobre o crime”, onde os atores, fundamentados nas teodicéias11 que as religiões professam, articulam e conferem sentido, restabelecendo a ordem num mundo que parece perder o sentido. Diante do exposto, o objetivo deste artigo é, a partir da periferia do Morro da Cruz em Porto Alegre (RS), abordar algumas das conexões entre religião e violência, percebendo-as como matizes por onde a cidade é vivenciada e interpretada pelos atores sociais. Duas espécies de “carreiras”, estilos de vida, opostas e justapostas, se perfilam no horizonte de vivência das pessoas que moram na periferia: a “do crime” e a “da igreja”. Disputando espaço na arena pública, se rechaçando e se complementando, religião e violência se apresentam como canais nos quais são mediados processos, contatos e “ritos” entre os moradores, compondo um mosaico da cidade que diverge da “paisagem oficial” produzida pelo “centro”, trazendo à tona facetas silenciadas do refletir sobre a cidade.

2. O Morro da Cruz: sob a “cruz” e os “bonés” O bairro São José foi criado em 1959, mas sua origem remonta ao antigo Arraial de São José, loteamento criado em 1875 por José Inácio Barcelos, que organizou uma ampla divulgação de seus terrenos para melhor comercializá-los, dando assim ensejo para a ocupação de uma área afastada do centro da cidade. Em seguida é erigida na área uma capela em homenagem a São José, que teve sua primeira missa realizada em abril de 1880. Nos dias de hoje, a igreja da Paróquia São José de Murialdo é responsável por um acontecimento muito importante na vida católica da capital gaúcha: a “Procissão da Paixão de Cristo”, tradição que atrai anualmente milhares de pessoas. Surgiu, a seguir, um núcleo populacional sem maior planejamento conhecido como Morro da Cruz, a antiga Chácara José Murialdo. Filha da igreja e da especulação imobiliária típica de periferia (onde a venda de lotes segue uma lógica própria, e até mesmo o mesmo lote pode ser vendido várias vezes), a ocupação da área foi marcada pela presença de grupos filantrópicos (ligados à igreja católica

11 Nesse sentido, a teodicéia é uma sociodicéia na medida que é "uma interrogação social a respeito das causas e razões das injustiças e privilégios sociais" (BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982, pg. 49)

principalmente) que, nos primeiros anos, garantiram a instrução escolar e o atendimento básico de saúde para os habitantes que se deslocaram (ou foram deslocados por causa da situação precária que viviam alhures) para lá e que foram praticamente abandonados pelas autoridades. Isto ainda marca fortemente a memória dos moradores do lugar: as falas dos informantes denotam e recontam os percalços vivenciados pelos moradores para obter as benesses que o processo de urbanização, tardiamente, conferiu àquela parte do bairro: Quando a gente estudava não tinha colégio, só tinha aquele lá em cima que era dos padres, lá que nós estudávamos e era particular. Mas não tinha colégio, lá era particular, nós estudemos tudo lá no particular. E era particular pra nós e foi para os meus também, pros filhos da gente. Depois que fizeram esses colégios aí. Ônibus não tinha, era bonde. Eu me lembro que nós íamos lá pro Mercadão, nós íamos de bonde, voltávamos de bonde. Até poderia ter ônibus, né?, mas acho que pros outros lados, porque pra cá, no Paternon, aí não tinha ônibus. Aaah, tinha que descer tudo. Pegava lá na frente da [Igreja] São Jorge; aí de lá da São Jorge a gente pegava lá e subia tudo lá e vinha embora de a pé. (...) Era grande a distância. Certamente isto proporcionou aos moradores arranjos que acabam por indicar a diversidade dos tipos de interações que se instituíram ao longo do desenvolvimento da região. Não é, portanto, só pela ausência, pela falta e pelo abandono que se caracterizaria a experiência de viver no morro: as formas de sociabilidade, solidariedade e a própria relação com o resto da cidade possuem lógicas particulares que caracterizam o morro como um lugar onde pulsa o signo do moderno, mas de outra forma, menos integrada e menos articulada com a discursividade excludente que a cidade (e aqui o “centro” produtor de um discurso hegemônico se faz sentir uma vez mais) produz sobre sua periferia.

Uma periferia que tem suas regulações e disposições e as operacionaliza de um jeito muito próprio: a noção de “pedaço”12 é fundamental para entender as margens do território que se constitui a partir da rede relações presentes no Morro; constituição esta que se evidencia com a circulação permitida apenas aos que eram do “pedaço”, ou então, aos devidamente acompanhados pelos inseridos nesta rede que demarcaria as fronteiras do permitido e do não-permitido. A sucessão de becos e ruelas estreitas que levam até a cruz que nomeia o morro eram as fronteiras do espaço delimitado pelos “guris de boné enterrado” (envolvidos com o tráfico), onde eles auscultam e vigiam todos que passam. Colados um ao outro, a religiosidade cristã simbolizada pela cruz e a face da violência, ocultada pelo boné, dividiam os mesmos palmos de chão, ostentando seus símbolos e empreendendo uma batalha metafórica, na qual os moradores empunham suas armas (simbólicas ou não). A oposição entre violência e religião, em verdade, revela articulações e tensões que ambas acabam por manter na arena pública, sendo os atores sociais seres em constante trânsito (deliberado ou não) entre as duas dimensões. No entanto, o andamento do trabalho de campo indica que falar de violência, invocar suas disposições e como ela marcaria o “viver no morro” não só não é aconselhável como desnecessário: quem viveu episódios de violência, sempre haverá de falar deles, ainda que sob forma oblíqua. Quando Wania Mesquita13 usa termos como medo e silenciamento para descrever o processo pelo qual os moradores se viram sujeitos à “mineira” (espécie milícia que exerce um controle territorial forte numa favela carioca), que mantém afastado outras formas de crime organizado, legitimando um regime de terror para evitar um terror ainda maior, tais termos não parecem ser de todo estranhos aos que procuram fazer uma análise do fenômeno da violência no Morro da Cruz, uma vez que uma lei de silêncio parece se impor no bairro à força do medo, revelando o intrincado jogo que ambas as dimensões proporcionam aos moradores.

Noção esta que se refere ao espaço (ou um segmento dele) demarcado e convertido em ponto de referência para distinguir determinado grupo de freqüentadores como pertencentes a uma rede de relações (Cf. MAGNANI, J. G. C. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, jun. 2002, pg. 21). 12

MESQUITA, W ; FREIRE, J . “Medos e silêncios em uma ordem violenta: Percepções de moradores de uma favela sobre a ‘mineira’ ”. In: 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2008, Porto Seguro. 26ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2008. 13

A fala de uma informante deixa entrever a dimensão do problema, pois, ao ser perguntada como era viver no morro, respondeu nestes termos: ”muito bom. Não tenho do que reclamar. Anda meio diferente, mas não tenho queixa....”. Este “meio diferente” indica uma mudança no padrão da experiência de viver no morro, mas que não parece ser possível expressar em quaisquer termos. O silêncio da informante sobre a mudança faz acreditar que os termos pelos quais os atores têm no repertório para delinear a experiência de “viver no morro” são oblíquos, exigindo o que Magnani qualifica como um olhar “de perto e de dentro” por parte do pesquisador; isto tudo para trazer de volta à cena o ator social costumeiramente obliterado quando se pensa a cidade como uma unidade à parte, enquanto, são os moradores em suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc., constituem o elemento que em definitivo dá vida à metrópole14. Para exercer este olhar, o método etnográfico exige, no caso do morro, um tratamento cauteloso do problema da violência para evitar as hostilidades dos quais poderia ser alvo em campo, uma vez que falar de violência pode ser acusar um vizinho, um parente, ou alguém que não podemos acusar, pondo em marcha os dispositivos regulatórios da convivência os quais podem ter conseqüências imprevisíveis, quando não funestas. Num “pedaço” que não é o seu, a interdição caracterizava os limites da abordagem da problemática, que só poderia ser deslocado com a inserção continuada em campo. Com esse intuito, o contato com o serviço de saúde do governo estadual, que oferece atendimento médico num dos pontos mais alto do morro se constituiu numa porta de entrada que permitiria aderir a uma formatação onde o “estranho” (ou mais propriamente o “forasteiro”), se converteria em familiar o bastante para perguntar sobre a experiência de viver no morro e todos os desdobramentos que isto implica. 3. A religião, a violência e os atores: o caso do “Carioca” A fala dos informantes aponta que no Morro duas espécies de “carreiras” se perfilam no horizonte de vivência das pessoas: a “do crime” e a da “igreja”, ocupando espaço na arena pública, marcando e demarcando os espaços de 14 MAGNANI, J. G. C. “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana”. Revista brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, jun. 2002, pg. 21.

sociabilidade os quais os indivíduos devem se valer para constituírem seus “trajetos”15. Num lugar onde as caminhadas podem nem sempre acabar bem, as alternativas que os indivíduos dispõem para constituírem seus trajetos apresentam contornos mais dramáticos. No entanto, é fácil perceber que elas não se constituem como as únicas forças motrizes dos processos sociais, mas são os que mais chamam atenção lá justamente pelo caráter que cada uma tem em mobilizar contingentes populacionais que se envolvem e se alinham em outras esferas da vida social segundo a disposição destas duas dimensões da vida social. Segundo relatos de diversos informantes, a cruz ali no alto do morro servira, para homenagear um traficante famoso, o “Carioca”, que era tido como um bom sujeito para comunidade – não sem que se fizesse a ressalva que não fosse muito bom para com “o resto da cidade”. No símbolo religioso, pois, se articulavam os dois momentos: o sagrado e o profano se aliavam, o traficante, que era tido como fonte só de ameaça pelo “centro”, se converte em mártir, e simbolicamente representado nas fitas azuis que se amarraram na cruz, sobrepondo ao símbolo religioso a manifestação de apreço por alguém que fizera muito pela comunidade. Pode-se ir mais além e ver no gesto de pesar com a morte de um traficante que era “bom para o morro” uma marcação de posição em relação ao descaso que pontuou a relação do morro com a cidade. O uso da cruz como lócus onde expressar tal posição revela, por sua vez, que o signo religioso, além de nomear o bairro se constituir em espécie de metonímia dele, surge como emblema do próprio morro e onde, publicamente, são revelados afetos que entram em choque com as concepções que os não-moradores têm da comunidade, incidindo sobre as percepções da cidade como um todo. As articulações podem se dar em outros âmbitos: ouvi de uma informante (funcionária numa instituição filantrópica que atua no Morro) que uma vez teve de pedir ao pessoal do tráfico que não fizesse de ponto a frente da creche, acrescentando que não era aconselhável “a quem não fosse de lá” subir ao Morro nem mesmo de dia. Nas entrelinhas do que ela disse, é revelada a existência,

15 “As pessoas circulam entre eles [os pedaços], fazem suas escolhas entre as várias alternativas – este ou aquele, este e aquele e depois aquele outro – de acordo com uma determinada lógica. Mesmo quando se dirigem a seu pedaço habitual, no interior de determinada mancha, seguem caminhos que não são aleatórios. Está-se falando de trajetos” (Idem, pg. 23).

ao mesmo tempo, de um canal de diálogo, o qual permite ao funcionário poder conversar e argumentar com os traficantes e existe um não-diálogo (eventualmente violento) com todos os que são estranhos ao bairro, cujos rostos não foram habituados à paisagem ou as razões de estar por ali não estivesse acompanhada de intenções claras para os moradores. A garantia de esse funcionário poder a abrir um canal de diálogo, entrando em conflito com a força do tráfico, é a de fazer parte também do Morro, ou mais precisamente do espaço de sociabilidade dos moradores, mesmo que não muito constantemente, uma vez que a própria instituição prefere deslocar os habitantes para a baixada do Morro, próxima á Avenida Bento Gonçalves para desenvolver algumas de suas atividades. Levando-se em conta que tal instituição filantrópica tem viés evangelizador e católico, este relato da funcionária revela a posição que em geral a Igreja Católica adota em contextos de periferia, como bem lembra Cesar P. Teixeira16, qual seja, a de desassociar tráfico e moradores, oferecendo um “resgate da cidadania” e estabelecendo o resgate do “Morro pelo Morro”, afirmando a cidadania dos habitantes da periferia marginalizada e barrando os efeitos tidos como clientelistas que caracterizam a relação do tráfico com os moradores. No caso do Morro, afastar o ponto de venda da creche é um tipo de afirmação de cidadania que se relaciona com toda a luta empreendida, nos mais diversos programas sociais, nas mais diferentes áreas de atuação civil da igreja católica no caso, de devolver a autoestima para a população residente na periferia. A partir de um caso etnográfico, apresentarei alguns dos aspectos que marcam as formas de pensar a vivência do morro, a relação disto com a cidade como um todo, e a própria perspectiva que os atores podem ter a partir da experiência com a violência que marca dramaticamente as experiências dos indivíduos no Morro. 4. Balas perdidas, “a história do bairro” e a noção de justiça: o morro como lugar do vivido

TEIXEIRA, C. P. “O pentecostalismo em contextos de violência: uma etnografia das relações entre pentecostais e traficantes em Magé”. In: Ciencias Sociales y Religión/ Ciências Sociais e Religião. Porto Alegre: oct. 2008, p. 175-198. 16

Quando minha informante por acaso apareceu no posto de saúde para tratar de seu filho, não sabia que por trás desse ato de mãe zelosa se escondia uma tragédia familiar robusta e cheia de nuances. Joana tem dois filhos: um de 15 anos e outro de 25. Este último foi baleado em frente de casa numa troca de tiros em que não estava envolvido. A mãe diz que ele chegara bem ao hospital, mas que algo os médicos fizeram de errado com ele por lá e por isso hoje ele é quase um vegetal, limitado a se expressar por urros quase incompreensíveis; a ponto de a mãe achar que o filho nem mesmo entendia o que se passava a sua volta. Ao ir visitar, juntamente com a equipe de saúde, sua casa, divisei lá com algo bem diferente do que se costuma inculcar, através dos discursos hegemônicos e midiáticos, sobre moradias de periferia: a casa era modesta, mas muito bem arrumada, com toda a sorte de parafernália ao alcance de um cidadão de rendimentos médios; o asseio era evidente, e o cuidado com o filho que Joana demonstrava me convencia de que a família ali vivia bem, excetuando pela fatalidade. Mais interessante ficou ainda saber que ela vivia ali desde criança e que viu praticamente todas as transformações pelas quais o morro passara nos últimos 40 anos. De um amontoado de casas como me disse Joana que era a ocupação primeira da área, hoje o morro se encontra quase todo tomado por casinhas, menos ostensivas do que as que estão mais abaixo cujo prestígio se deve por estarem no “vale” (ou até se poderia dizer, no nível do “centro”). Como já ouvira de outro informante que anteriormente o morro não tinha tráfico, que a vida era dura, mas ao menos não era tão violenta: visão que é mostra certo “idealismo” do passado, onde a cidade era mais segura, o “centro” não era ainda o lugar perigoso que é hoje, onde Joana vivenciara experiências positivas. Em sua fala, Joana não usa a palavra traficante ou qualquer uma que insinuasse algo do tipo sequer foi pronunciada. Se o seu silêncio não confirma a suspeita do que de fato mudou em seu bairro ao longo dos anos, ao menos instiga a pensar em quais tipos de sanções estariam sujeitos aqueles que falassem mal dos traficantes, ainda que fosse para um pesquisador qualquer de fora do pedaço e cuja pesquisa provavelmente circularia em circuitos outros: a relação que os informantes têm com pesquisadores não é das melhores, uma vez que o pesquisado não vê o que fazem com o dito por eles, prejudicando as abordagens mais íntimas das trajetórias dos sujeitos-pesquisados.

O par medo e silêncio parece também ditar as regrar por ali, sustentando uma relação que desenvolve uma tensão surda, de bastidores, velada, que talvez só possa ser de fato divisada em pessoas muito próximas, parentes de preferência. Mas a tensão existe e é quase palpável. Também é interessante notar que para Joana o seu filho ficou doente mais por causa dos médicos, do que por causa de uma bala ter atingido a perna dele e isto ter gerado uma série de complicações que acabaram por deixar seu filho mais velho naquele estado semi-vegetativo. Num primeiro momento, poderíamos sustentar que a ignorância de Joana dos procedimentos clínicos, muito bem explicados depois pela agente de saúde que a visitara, é que fizera com que ela ficasse com essa impressão: afinal, tiros na perna não convertem jovens em “vegetais” e para ela não fazia sentido todos aqueles procedimentos se o filho estava falando quando chegou ao hospital. No entanto, podemos deslocar a questão e ver a fala dela como evidência de que Joana só estava culpando alguém “culpável”: o verdadeiro responsável pelo tiro e conseqüentemente pelo infortúnio do jovem, não pode ser acusado publicamente quando é do pedaço. O médico, “de fora”, pode carregar a culpa sem isto implicar no rompimento dos fios de sociabilidade no espaço de vivência de Joana. Se essa operação é no nível consciente, não o sabemos; mas sabemos que provavelmente Joana conheça quem tenha feito isto e não demonstrava qualquer indignação contra o atirador, mas sim contra o anestesista da equipe, que segundo ela, teria negligenciado socorro a seu filho. Filho este que era “de igreja”, ou seja, freqüentava cultos e estava realmente envolvido na comunidade religiosa a qual fazia parte. A ironia, pois, se torna cruel ao ceifar a juventude de um jovem que era “do bem”, como definiu outra informante. Quanto ao atirador, não se tem notícias. Podemos pensar que para Joana, a justiça só poderia ser alcançada caso ela investisse contra os médicos responsáveis pelo procedimento que salvou a vida do filho dela. Afinal de contas, a justiça não é para todos e sabemos que denunciar “vizinhos” pode trazer conseqüências funestas para a sociabilidade no espaço em que se vive. Então, só restava a ela ir atrás da justiça que julgava possível: culpar os médicos e fazer passar a dor pelo fato do lugar afetivo, onde viveu toda a vida, ter colocado o filho numa situação que ela considerava injusta.

Apesar desse contexto, Joana frisa que perigoso mesmo é ir ao “centro”: “vai um lá pro Centro: ‘se cuida, cuidado’, a gente já fica recomendando. Antes não, antigamente não”. Esta declaração mostra que os códigos pelos quais os atores medem perigo e violência são marcados por especificidades relacionadas ao que os sujeitos interpretam do vivido segundo disposições culturais inscritas no espaço em que as experiências se desenrolam, refratando por sobre ele as disposições sociais enredadas nas visões de mundo que informam as categorias pelas quais se apreende a cidade como construto social. Esta narrativa é uma forma de articular inversamente a fala do crime: em vez de explicar as mudanças pelo crime, como faziam os moradores de classe média falida de São Paulo17, no Morro da Cruz as mudanças não podem ser atribuídas ao crime: as disposições sociais do espaço do sujeito demandam pela procura em outras instâncias a quem culpar e torcer para que o retorno garanta algum tipo de alívio. Do mesmo modo, esta narrativa constitui uma versão da “escrita” da cidade na qual a experiência de Joana problematiza sua própria condição e as condições em que a cidade se converte em objeto de sua reflexão a partir do vivido por ela. Num outro sentido, a “escrita” da cidade feita por Joana, relacionamento a trajetória pessoal com a da cidade, o trajeto pela cidade ainda se desenvolvendo, pelas ruas do bairro, este olhar por sobre o “antes” do ocorrido se constitui numa forma retórica de demarcar bem a inflexão representada pela mudança na sua rotina do evento acontecido com seu filho: numa espécie de redução, bem e mal, como centro de reflexão sobre o crime18 se converte também no centro da reflexão sobre a cidade: há partes boas e ruins no tecido urbano e a reflexão sobre elas é informada pelas circunstâncias que se descortinam diante dos indivíduos. 5. À guisa de conclusão Tentamos apresentar um caso em que se expressam as dimensões da violência e da religião como formas pelas quais passam, e conferem sentido, a experiência do morador de periferia e a “escrita” diferenciada da cidade que emerge

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CALDEIRA, Tereza. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2000.

18 Cf. CALDEIRA, Tereza. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2000, pg. 33.

dessa experiência. Em seu esforço cotidiano de fazer aflorar o sentido nas ações, o morador é confrontado com esses dois modelos de abordagem do problema de “viver no morro”: entre a cruz e os “bonés”, os sujeitos que habitam um espaço tão degradado socialmente, não simplesmente são relegados a escolher entre as duas carreiras, mas sim em se posicionar a fim de não romper os tênues fios da sociabilidade que se vêem ameaçados pela irrupção do confronto entre as duas visões. No contexto de uma oposição que marca bem o percurso de reencaixe dos indivíduos na “ordem” moderna, qual seja, entre o sagrado e o caótico, os mitos cosmogônicos teriam por objetivo fornecer ao ser humano um escudo contra o terror do caos. Por isto, torna-se importante perceber as conexões e comparações em torno da religião e da violência, sendo a narrativa sobre esta (a fala do crime), a teodicéia daquela e o tipo de resguardo do caótico urbano que cada uma destas duas formas pode estender, no sentido de oferecer sentido depois de uma ruptura, em geral, causada pela presença da violência. Ao contar sua história, Joana nos faz encarar uma realidade complexa, na qual as noções que se tem sobre a periferia colapsam: lá, o lugar de perigo não é o meio que se vive; perigoso é quando, longe das redes de sociabilidade, do seu “pedaço”, ao indivíduo é necessário manobrar com recursos que não domina num ambiente que não é seu habitual. E para tanto, os indivíduos acabam criando reflexões sobre a cidade que correspondem as diferentes formas de inserção e de trânsito que se empreende pela cidade. Sem falar que tais reflexões acabam por se conectar aos aspectos mais profundos da experiência do “viver no morro”, trazendo à bailas concepções de justiça, de castigo, de responsabilidade, tudo isto inscrito no complexo emaranhamento que constitui a atividade humana de construção do espaço e de suas relações com os outros atores que o ocupam. Para tal, as dimensões religiosa e de violência são as que privilegiamos em nossa abordagem por serem as que mais vivamente disponibilizam, e pedem disposição aos indivíduos, para a constituição da vida diária. Mais do que em meio a estas dimensões, os moradores estão mergulhados nelas; e é delas que muitas das situações vão adquirir o relevo e o sentido mais profundo: são estas dimensões que se apresentam aos indivíduos na periferia, e o caso do Morro constitui um exemplo emblemático disto, onde a “fala do crime” é

contrastada com a “fala da igreja sobre o crime”, seja em termos de pura negação, seja em termos de uma articulação complexa, condicionada pelas possibilidades de manejo e de diálogo que resta aos atores num contexto em que a empiria muitas vezes sabota a busca do sentido e da agregação diante de uma cidade que se apresenta como partida e fragmentária, onde os horizontes distintos que surgem aos atores são matizados diferentemente, levando muitas vezes ao não diálogo e a uma produção discursiva que torna a distância física entre centro e periferia se converterem em pólos opostos, ainda que justapostos.

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