Religião, Gênero e Poder: Estudos Amazônicos

June 3, 2017 | Autor: Daniela Cordovil | Categoria: Ciências da Religião, Antropologia da religião, Religiões Afro-Brasileiras
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Religião, Gênero e Poder Estudos Amazônicos

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Daniela Cordovil (Organizadora)

Religião, Gênero e Poder Estudos Amazônicos

2015

Religião, Gênero e Poder © 2015 by Fonte Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 200.210 CORDOVIL, Daniela (org.) C796r Religião, gênero e poder: estudos Amazônicos / Daniela Cordovil (org.) São Paulo: Fonte Editorial, 2015. 206 p. ISBN: 978-85-66480-98-6 1. Gênero e Religião 2. Religiões afro-brasileiras I. Estudos de ciências da religião na Amazônia I. Título CDD 18ª. ed. Capa e Diagramação: Eduardo de Proença Revisão: Filipe R. Santos Consuelo Rodrigues S. Zeller

Editores Responsáveis: Eduardo de Proença Alessandra Santos Oliveira de Proença Conselho Editorial: Dra. Sandra Duarte de Souza Universidade Metodista de São Paulo Dr. Luiz Alexandre Solano Rossi PUC-PR Profa. Dra. Elaine Sartorelli Universidade de São Paulo - USP Prof. Dr. Frederico Pieper Universidade Federal de Juiz Fora Dr. Andrés Torres Queiruga Universidade de Santiago de Compostela Dr. Ricardo Quadros Gouvêa Universidade Presbiteriana Mackenzie Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante Faculdade Unida

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive por meio de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora. (Lei nº 9.610 de 19.2.1998) Todos os direitos reservados à FONTE EDITORIAL LTDA. Rua Barão de Itapetininga, 140 loja 4 01042-000 São Paulo - SP Tel.: 11 3151-4252 www.fonteeditorial.com.br e-mail: [email protected]

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AGRADECIMENTOS À Reitoria e à Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade do Estado do Pará e à Fundação Amazônia Paraense de Amparo à Pesquisa do Estado do Pará pela concessão de recursos através do Edital de Pesquisa n.61/2010, ICAAF n. 121, que possibilitaram esta publicação. A todos os estudantes/pesquisadores que contribuíram com suas pesquisas para a elaboração desta coletânea. À CAPES e ao CNPq pela concessão das bolsas de pesquisas usufruídas pelos pesquisadores durante a elaboração de seus trabalhos. A todas as lideranças religiosas que participaram cedendo um pouco de seu tempo aos pesquisadores e possibilitaram a confecção desta obra. 5

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Sumário Introdução Sobre os Estudos de Gênero e as Ciências da Religião na Amazônia, 9 Daniela Cordovil Capítulo 1 Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo, 13 Alysson Brabo Antero Capítulo 2 Festa e Devoção: Relações de poder e de gênero nas Irmandades Religiosas de Belém no século XIX, 31 Maria de Nazaré Fonseca de Senna Pereira Capítulo 3 A cultura afro-brasileira e a construção do gênero feminino em Mar Morto de Jorge Amado e A Cidade das Mulheres de Ruth Landes, 49 Tayná do Socorro da Silva Lima Capítulo 4 “Mulher que presta é aquela que é vivida”: a interdição feminina gerada pela sangria menstrual, 69 Lucielma Lobato Silva Capítulo 5 Da morte à vida: poder e prestígio feminino na figura de Pombagira Lindeuá, 99 Jefferson João Martins Baldez

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Capítulo 6 Novas Faces da Pajelança Cabocla na Amazônia: o caso da Pajé Zeneida Lima de Soure, Marajó, 115 Mayra Cristina Silva Faro Cavalcante Capítulo 7 A Construção da Identidade Ecológica no Candomblé Jeje Savalu: leituras a partir da fala de uma Sacerdotisa Jeje, 143 Manoel Roberto Ferreira Chagas Capítulo 8 A Construção da Identidade Política a partir da trajetória de Três Sacerdotisas do Candomblé Angola em Belém, Pará, 169 Luis Augusto Barbosa Teixeira Capítulo 9 Metodismo e homofobia cordial: uma análise da Carta Pastoral “Igreja e a Questão do Homossexualismo”, 187 Tony Welliton da Silva Vilhena Sobre os Autores, 207

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Introdução Sobre os Estudos de Gênero e as Ciências da Religião na Amazônia Daniela Cordovil Este livro é o resultado das pesquisas que vêm sendo desenvolvidas no interior do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará, no que diz respeito as interfaces entre relações de gênero, sexualidade e o fenômeno religioso. Este campo de estudos não é novo e já existe vasto acúmulo na bibliografia especializada, no Brasil e no mundo. O propósito desta coletânea é apresentar para a comunidade acadêmica um conjunto de pesquisas cujo o foco voltou-se majoritariamente para expressões religiosas características do Norte do Brasil, tais como a pajelança e as religiões de matriz africana. Na maioria dos artigos o leitor irá encontrar mulheres, sacerdotisas da pajelança e religiões de matriz africana, como protagonistas de manifestações religiosas subterrâneas a uma cultura religiosa hegemônica cristã e falocêntrica. As mulheres apresentadas nesta coletânea recriam o universo religioso no qual estão inseridas, apresentando-o sob uma ótica feminina, a do cuidado. Muitas vezes marginalizadas pelos poderes hegemônicos, não cessam de desenvolver estratégias para garantir sua fé. No entanto, o livro não se esgota no campo empírico da pajelança e religiões de matriz africana, nem trata apenas de pesquisas desenvolvidas a partir de religiões da Amazônia. Alguns dos autores presentes nesta coletânea optaram por outros temas, como a interface entre religião e literatura e o campo religioso protestante. Porém, em ambos os casos, o enfoque dos artigos é a questão de gênero e suas assimetrias de poder. O propósito desta obra é apresentar uma amostra da bibliografia produzida na Amazônia em torno da temática gênero, religião e poder, fomentando a criação de novos campos de pesquisa e de 9

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diálogo em uma temática vasta, cujo campo de estudo e produção bibliográfica nas Ciências da Religião encontra-se em expansão. As pesquisas apresentadas nesta obra são fruto de dissertações de mestrado, concluídas e em andamento, produzidas entre os anos de 2011 e 2014, no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UEPA. A maioria dos artigos foram produzidos no interior da disciplina “Tópicos Temáticos II – Gênero, Religião e Sexualidade”, ministrada por mim no primeiro semestre letivo de 2013. A disciplina foi uma oportunidade ímpar de fomentar o debate sobre a questão da interface entre gênero e religião na Amazônia. Outros dos textos são resultado de orientações de mestrado e iniciação científica. No primeiro capítulo, Alysson Brabo Antero apresenta uma pesquisa etnográfica sobre a presença feminina e sua importância em uma manifestação da religiosidade popular característica do Estado do Amapá, o ciclo do Marabaixo. Trazido para a região por escravos africanos, o ciclo é uma prática do catolicismo popular com profundas raízes na espiritualidade negra e mestiça. Em seu artigo, Antero destaca a importância das mulheres para esta manifestação religiosa. No segundo capítulo, Maria de Nazaré Senna Pereira discute a formação e extinção da Irmandade de São Raimundo, na Belém do século XIX, a partir de um artigo do historiador Arthur Viana. A autora defende a tese de que, apesar de presidida por um homem, o negro Leopoldino, a irmandade era um espaço de sociabilidade marcadamente feminino, comandado e mantido pelos esforços de mulheres bastante independentes para a sociedade da época. No terceiro capítulo, Tayná de Lima discute a intertextualidade entre as obras Mar Morto de Jorge Amado e A Cidade das Mulheres de Ruth Landes. Contextualizando as obras na Bahia da década de 1930, a autora compara os olhares lançados por Landes e Amado sobre a cultura baiana, a força de suas mulheres e suas manifestações religiosas. A autora também se debruça sobre a crítica negativa recebida pelos autores no contexto de sua época e estabelece possíveis razões para esta recepção. 10

Introdução

No quarto capítulo, Lucielma Lobato Silva analisa as interdições ao poder feminino geradas a partir do tabu do sangue menstrual em um terreiro de Mina Nagô em Abaetetuba, Pará. A autora se debruça sobre as falas da sacerdotisa, de seus filhos e filhas de santo, e das entidades cultuadas no terreiro, para apontar como a aversão ao sangue menstrual se constrói em um elemento simbólico de submissão feminina, acatado pelas próprias mulheres. Na religião Mina Nagô, o masculino é símbolo de poder e a mulher para acessar este local de poder deve se masculinizar, deixando de menstruar. No quinto capítulo, Jefferson Baldez discute a biografia e a performance da Pomba Gira Cigana Lindeuá, mulher que em vida morreu assassinada por um amante, mas que no seu itinerário pós-morte se transformou em uma entidade cultuada na Umbanda, que aconselha e traz dinheiro para o terreiro e seus clientes. O autor discute os estigmas em torno dessas entidades nas religiões de matriz africana e suas dramatizações no caso estudado. No sexto capítulo, a autora Mayra Cavalcante apresenta a trajetória de vida da pajé Zeneida Lima, natural de Soure no Marajó. Zeneida possui um livro publicado, intitulado O Mundo Místico dos Caruanas, que serviu de enredo para a Escola de Samba Beija-Flor, no Rio de Janeiro, em 1999, e é presidente da ONG Caruanas do Marajó, responsável pela gestão de uma escola em Soure. Apesar do grande reconhecimento nacional e internacional por sua relação com a causa da ecologia, Zeneida é estigmatizada em Soure. No texto, a autora discorre sobre a pajelança de Zeneida, sua inserção no espaço público, e questões relativas à presença da mulher no xamanismo e na pajelança. No sétimo capítulo, Manoel Roberto Chagas discute também a relação entre religião e ecologia sob uma perspectiva feminina, a partir das práticas da Sacerdotisa Gayakú Jokolosi, líder de um terreiro de Candomblé Jeje na região metropolitana de Belém. O artigo analisa como a cosmovisão do Candomblé relaciona divindades e natureza, estabelecendo um circuito de dádivas entre seres humanos e deuses. Os deuses africanos são imanentes, são o próprio meio natural, e os objetos da natureza são o canal por meio do 11

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qual se estabelece a conexão com o sagrado. O texto discute a relação desses princípios com o discurso ecológico, problematizando especialmente a questão da imolação de animais. No oitavo capítulo, Luis Augusto Barbosa Teixeira, faz uma discussão a respeito do surgimento do Candomblé Angola em Belém do Pará. Mostra como nos anos de 1970 e 80, os sacerdotes que trouxeram o Candomblé para Belém não estavam preocupados em diferenciar as matrizes de culto. É com a militância política e o engajamento na promoção de políticas públicas, a partir da década de 1990, que tem início a construção de uma identidade do Candomblé Angola. E essa construção está ligada a trajetória e engajamento político de três sacerdotisas, que são analisadas no artigo. No nono capítulo, Tony Vilhena apresenta uma análise dos discursos sobre a homossexualidade na Igreja Metodista, a partir de documentos publicados por lideranças dessa vertente religiosa. O autor problematiza como os discursos produzidos a respeito da questão são informados pelo imaginário da homofobia cordial, conceito discutido por Marcelo Natividade, que significa a ideia de que é possível aceitar o homossexual desde que ele abra mão da sua identidade, modificando-a para ancorá-la em uma heterossexualidade normativa. Vilhena problematiza os documentos produzidos por lideranças da Igreja Metodista que buscam encontrar na Bíblia elementos para a condenação do comportamento homoafetivo. O autor se debruça sobre interpretações alternativas do texto bíblico, apontando o viés político por trás das posições defendidas pelos pastores. Esperamos que com os textos dessa coletânea seja possível imprimir novos olhares sobre a relação entre gênero e religião. A coletânea privilegiou a diversidade metodológica e interdisciplinaridade, congregando estudos de caso, desenvolvidos por meio de pesquisa de campo etnográfica, textos historiográficos, produzidos a partir de pesquisa em fontes documentais, análises de discurso e crítica literária. A diversidade de métodos e abordagens tem sido uma marca dos estudos de gênero e também é característica fundante das Ciências da Religião. O casamento harmônico entre esses dois campos de estudo é a marca desta obra. 12

Capítulo 1 Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo Alysson Brabo Antero Este trabalho abordará uma das principais manifestações culturais e religiosas do Estado do Amapá: o Ciclo do Marabaixo. Reconhecido como uma manifestação plural, ligada à herança africana, é possível fazer uma multiplicidade de leituras sobre esse fenômeno. Pretendo trazer à tona nesse artigo o que a história oficial por um longo período deu pouca ou nenhuma importância: a questão do gênero nessa manifestação. Em toda a bibliografia existente sobre o Marabaixo, desde Nunes Pereira (1951), a importância da mulher na tradição foi eclipsada. Acredito que isso ocorreu não de forma intencional, proposital, mas porque o conhecimento científico reflete o ponto de vista de quem escreve e o que se quer alcançar (CHANTER, 2001), além do momento histórico, social e político de sua produção (SAFFIOT, 2004). Parto do pressuposto que a mulher tem papel relevante na manutenção do Marabaixo, especificamente no bairro de Santa Rita (antigo bairro da Favela). Além disso, pretendo analisar também o discurso produzido por representantes da Igreja Católica contrários a essa manifestação, analisando os vários argumentos dos padres, dentre eles o que atinge a figura feminina através de um sentimento misógino. Esclareço de antemão que não pretendo defender que sem a mulher o Marabaixo desapareceria, antes, quero resgatar e valorizar o papel da mulher nessa manifestação, a partir de uma figura feminina significativa na tradição: Dona Gertrudes Saturnino de Loureiro. A presença negra nas terras dos Tucujus Localizado geograficamente na região norte do Brasil, o atual Estado do Amapá ao longo de sua história recebeu diversos 13

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nomes: Terras dos Tujucus 1, por conta da grande presença de índios dessa etnia; Nueva Andaluzia, denominação espanhola ao se referir a Amazônia incluindo o Amapá; Guiana Brasileira, para se contrapor a Guiana Francesa; Terra do Contestado, em virtude da disputa franco-lusitana; Capitania do Cabo Norte, por parte de Portugal, Território Federal do Amapá, quando desmembrouse do Estado do Pará em meado do século XX; e, Estado do Amapá, pela constituição de 1988. Segundo Fernando dos Santos (1994) as terras que hoje compõem o Amapá foram extremamente disputadas por várias nações europeias. Os africanos presentes em solo amapaense foram trazidos inicialmente por ingleses, franceses e holandeses. Pereira (2008) citando Vicente Salles, afirma que a presença negra nas terras dos Tucujus data do século XVII, introduzidos por holandeses e ingleses. Já sob a liderança de Portugal a inserção do negro ocorreu a partir do século XVIII. Fernando Canto (1998) expõe que até o ano de 1738 havia nesse território apenas um destacamento militar português. Em 1751 iniciou-se um processo de colonização, coordenado pelo então governador do Grão-Pará: Francisco Xavier de Mendonça Furtado, a mando do governo de Portugal que determinou a criação de vilas e povoamentos em suas colônias. Em 1758 foi fundada a Vila de São José de Macapá. Ante o litígio com algumas nações europeias pela posse das terras do “novo mundo”, como as que ficavam na foz do rio Amazonas, Verônica Luna (2011) diz que o Governo Português estabeleceu uma estratégia de expansão e colonização de suas posses que visava dentre outros objetivos conter o avanço de outras nações sobre o território e “manter o controle dos de dentro a partir das decisões dos que estão fora” (p. 34), esse raciocínio invisibilizou a presença de nativos e negros como indivíduos que construíram esse lugar. Conforme o território dos Tucujus ia sendo povoado pelos europeus, sobretudo pelos portugueses, levas de negros eram trazidos de províncias brasileiras e de colônias portuguesas estabelecidas na África para construir esse território. Entretanto, segundo Luna (2011), dois fatores intensificaram a vinda de africanos para as Terras do 14

Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

Cabo Norte: a rejeição dos indígenas em aceitar a condição de submissão que o projeto de povoamento português previa e a construção da Fortaleza de Macapá (maior fortificação portuguesa na Amazônia entre os anos de 1764 a 1782), com sua demanda intensa de mão de obra. Data desse período, segundo Santos (1994), a formação de inúmeros quilombos no vasto território Amapaense, o que demonstra que os negros não acatavam a servidão e os maus tratos impostos pelos colonos portugueses. Em meio a esse processo, o contato de negros de diferentes etnias e nações africanas foi inevitável. Segundo Luna (2011) era comum também o trânsito e a troca de informações entre negros fugitivos provenientes de outras colônias europeias estabelecidas na América do Sul; Guiana Francesa e Holandesa, principalmente. Em terras estranhas europeus e africanos entram em contato com as populações autóctones e, como em toda colônia de Portugal a religião católica foi imposta como oficial, restando a índios e negros se converterem ao cristianismo. Apesar disso, manifestações religiosas com traços e elementos indígenas e africanos conseguiram sobrevir e na atualidade são vistas como formas de resistência da ancestralidade de índios e negros. O Sahiré, o Batuque e o Marabaixo são demonstrações dessa sobrevivência no Estado do Amapá. Significado do Termo Marabaixo Quanto ao significado do termo Marabaixo não há unanimidade, expomos três explicações mais correntes sobre a etimologia dessa palavra e o significado nativo, atribuído por quem vive essa tradição, retirado de depoimentos contidos no documentário Marabaixo: ciclo de amor, fé e esperança. Uma das explicações acadêmicas diz que o termo Marabaixo tem origem na palavra árabe marabit que significa sacerdote dos malês2. Argumenta-se que das 160 famílias que se estabeleceram em Nova Mazagão (o termo faz referência a Mazagão na África, colônia portuguesa conquistada pelos Mouros no século XVIII), vieram negros provenientes de nações circunvizinhas a Mazagão (África) especificamente do Império Sudanês que desde o século XVI já vinha sofrendo as influências do Islamismo (CANTO, 1998). 15

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Outra argumentação faz referência aos porões dos navios que atravessavam o Atlântico cheios de negros, “mar a baixo” (PEREIRA, 1951). Por fim, há quem defenda que o termo alude aos negros que desciam os rios da Amazônia em canoas a cantar (R. NEGRÃO, 1990). Apesar dessas definições buscarem a origem do termo Marabaixo, os que participam do Ciclo dão o seu próprio significado a ele. Dizem: “Marabaixo é vida, é luta, é esperança, é alegria”3. “Marabaixo é uma tradição, assim como o batuque que vai ficando de filho para neto”4. “Marabaixo é relembrar nossos ancestrais que viveram momentos áureos aqui em nossa Macapá e contribuíram para o engrandecimento da cultura do Estado do Amapá”5. Percebe-se pelos relatos que o significado atribuído à palavra Marabaixo não é distante, antes, é vívido, faz relembrar, traz esperança e é descrito como tradição herdada de antepassados que possuem sua raiz na África. Descrição Sucinta do Ciclo do Marabaixo O Marabaixo consiste em um conjunto de práticas ritualísticas (lúdicas e religiosas), realizado em homenagem a santos da tradição católico-romana, praticado no município de Macapá e Mazagão, além de várias comunidades rurais do Estado, como Curiaú, Maruanum, Cunani, Lagoa dos Índios, Torrão do Matapi, dentre outras. Basicamente o santo homenageado e o período de realização do evento são as diferenças dos Marabaixos realizados no perímetro urbano e rural. Em comum, se mantém a dança, o mastro, os tambores e as missas. No município de Macapá inseriu-se o termo Ciclo devido o evento ser realizado anualmente em paralelo ao calendário pascal da igreja católica e por acontecer em várias etapas ao longo de aproximadamente dois meses. Atualmente, o Ciclo do Marabaixo é realizado em cinco pontos diferentes da Capital e mais na comunidade rural de Campina Grande6, cada um coordenado por um grupo específico: bairro do Laguinho – Grupo Raimundo Ladislau; bairro Jesus de Nazaré – Grupo do Pavão; bairro da Santa Rita – Grupos Berço do Marabaixo e Raízes da Favela e bairro central grupo Azebic. 16

Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

Eis os momentos principais do festejo realizado no bairro do Laguinho no município de Macapá pelo Grupo Raimundo Ladislau em homenagem a Santíssima Trindade e ao Divino Espírito Santo no ano de 2011: Domingo de Páscoa (marabaixo da Ressurreição): após irem à missa, os participantes, pela parte da tarde, se reúnem na associação e tendo os tocadores de caixa e as cantadeiras ao centro, em volta forma-se um grande círculo onde crianças, adultos e anciões põem-se a dançar e cantar ladrões7 de marabaixo num clima de muita alegria por estarem iniciando e participando de mais um Ciclo do Marabaixo (1º marabaixo). Sábado do Mastro: cinco semanas após a páscoa, no sábado, pela manhã, os participantes reunidos na associação vão ao Curiaú8 para cortação do mastro do Divino Espírito Santo e da Santíssima Trindade. Domingo do Mastro: pela manhã, os participantes ao som dos tambores, dançando, cantando, soltando fogos de artifícios e com bandeiras da Santíssima Trindade e do Divino Espírito Santo vão onde os mastros estão cortados e os carregam para a associação (2º marabaixo até as 0:00 horas). Quarta da Murta9: na primeira quarta-feira após o domingo do mastro, os participantes tendo à frente a bandeira vermelha do Divino Espírito Santo, percorrem as principais ruas do bairro, entre o local da quebra da murta e a associação, e, vão quebrar a murta10 para enfeitar o mastro no dia seguinte (3º marabaixo até o amanhecer do dia seguinte). Quinta da Hora: em frente à associação, pela manhã, depois de terem cavado um buraco, enfeitam o mastro do Divino com os galhos de murta e uma bandeira em sua extremidade e o erguem. 1º Baile dos Sócios do Divino Espírito Santo: ainda na quinta feira a partir das 21 horas até 4 horas do dia seguinte é realizada uma festa dançante na associação. Novenas do Divino Espírito Santo: depois do 1º baile, iniciamse as novenas em homenagem ao Divino Espírito Santo e à Santíssima Trindade na associação. 2º Baile dos Sócios do Divino Espírito Santo: passados alguns dias a partir das 21 horas até 4 horas do dia seguinte é realizado outra festa dançante. 17

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Domingo do Divino Espírito Santo: os participantes vão à missa na igreja de São Benedito; após a missa, um café da manhã é oferecido à comunidade na associação. Murta da Santíssima Trindade: os participantes tendo à frente dessa vez a bandeira azul da Santíssima Trindade percorrem as principais ruas do bairro, entre o local da quebra da murta e a associação e vão quebrar a murta para enfeitar o mastro no dia seguinte (4º marabaixo até o amanhecer do dia seguinte). Levantamento do mastro à Santíssima Trindade: pela manhã com o mastro enfeitado com as murtas e com a bandeira do Santo ao topo erguem no lado do mastro do Divino. 1º Baile dos Sócios à Santíssima Trindade: no mesmo dia do levantamento do mastro à Santíssima, realiza-se a primeira festa dançante ao Santo a partir das 21 horas até 4 horas do dia seguinte. 2º Baile dos Sócios à Santíssima Trindade: passados 7 dias da primeira festa à Santíssima realiza-se a partir das 21 horas até 4 horas do dia seguinte o segundo baile ao Santo. Domingo da Santíssima Trindade: há realização de uma missa pela manhã na igreja de São Benedito seguida de café da manhã na associação. Corpus Christi: realiza-se o 5º marabaixo. Domingo do Senhor: este é o ultimo dia do Ciclo do Marabaixo11. Os participantes reunidos na associação, dançam marabaixo até 18h00, quando param para derrubar os mastros da Trindade e do Divino, escolhem o festeiro do próximo ano e, em seguida, recomeçam a tocar os tambores, dançar e cantar ladrões de marabaixo até tarde da noite em meio a muita alegria por estarem perpetuando uma tradição deixada pelos antepassados. “Tia Gertrudes”: uma guerreira do Ciclo do Marabaixo Em 1943, através das Cartas Magnas o Amapá é desmembrado do Estado do Pará e é constituído Território Federal. No mesmo ano Janary Gentil Nunes é feito pelo então presidente da República, Getúlio Vargas, o primeiro governador do Território Federal do Amapá. Com o objetivo de urbanizar a pequena e isolada cidade de Macapá, inicia-se um processo de desocupação das populações que ali habitavam, na sua maioria afro-brasileiros, para áreas periféricas da 18

Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

cidade. Contudo, argumenta Pereira (1951), sem a intermediação do mestre e líder Julião Ramos, a desocupação provavelmente não ocorreria de maneira pacífica. As famílias foram então remanejadas na sua maioria para as terras do Laguinho (atualmente, bairro do Laguinho), porém, algumas preferiram seguir para as terras que se resolveu chamar Favela, por conta das montanhas que existiam nessa área (hoje essa área tem o nome de Santa Rita), dentre essas famílias estava Dona Gertrudes Sartunino. A partir dos depoimentos12 de uma das filhas de Tia Gertrudes, a senhora Maria Libório (Tia Zezé), é possível fazer um resgate e uma análise dessa que se tornou uma das responsáveis pela expansão e manutenção do Marabaixo em Macapá. Tudo leva a crer que antes da “expulsão” das famílias afrobrasileiras do centro de Macapá, o Marabaixo acontecia apenas na parte central da cidade. Tia Zezé relata que, mesmo após a expulsão, sua mãe não deixou de participar do Ciclo, e que mestre Julião Ramos continuou desenvolvendo-o nos lugares para onde foram remanejados, bem como nos Marabaixos que eram realizados em outras localidades fora do perímetro urbano de Macapá. Tia Zezé conta com saudosismo, que certa vez, sob a liderança de sua mãe, ela, suas irmãs, amigas e amigos foram participar de um Marabaixo em uma certa localidade, que para se chegar lá, precisavam ir de canoa e remando, porém, no meio do caminho choveu tanto, que quando chegaram à localidade estavam com suas roupas todas molhadas, ainda assim, mesmo com este e outros imprevistos que poderiam acontecer, sua mãe não deixava de participar, até porque não faltava receptividade e solidariedade dos moradores locais para com os que de longe iam comungar e participar do festejo. No dia em que chegaram molhados suas roupas foram aquecidas próximo aos fogões à lenha na cozinhas dos moradores. Narrando sobre a história de sua mãe, a quem era muito apegada, Tia Zezé relembra da garra e coragem de sua genitora, Dona Gertrudres. Mesmo sendo abandonada pelo marido, nunca abriu mão da dignidade para sobrevier. Sendo analfabeta, o máximo que conse19

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guiu na então recente máquina administrativa do Território do Amapá, foi trabalhar como cozinheira e lavadeira do então governador. Como a renda não era suficiente e para tentar aumentar o ganho, tia Zezé narra, que sua mãe saía pela manhã para comprar açaí, trazia os paneiros na sua cabeça e batia com as próprias mãos e Tia Zezé saía para vender o suco da fruta. À noite, sua mãe ia quebrar pedra para construção dos bancos da praça central. Em certas ocasiões do ano a frente da sua casa era alugada para realização de festas. Nos períodos que antecediam os festejos do Marabaixo, tia Zezé recorda que sua mãe confeccionava sua própria caixa de Marabaixo, de maneira que quando sua mãe ia participar do evento ela levava sua própria caixa e paletas. “A mamãe fazia questão de me ensinar a tocar caixa e foi com ela que eu aprendi a tocar”, conta orgulhosa. Este depoimento é o primeiro registro de uma mulher que participava do Marabaixo não apenas como dançadeira, mas como tocadora de caixa. E de fato, dona Gertrudes é reconhecida atualmente como a primeira mulher a tocar caixa de marabaixo. Em quase todas as entrevistas feitas com os atores sociais do Marabaixo seu nome é mencionado, todos sabem de sua existência e a reportam com respeito e admiração: “A primeira mulher a tocar tambor no Ciclo foi a Tia Gertrudes. Antes dela, ninguém fazia isso. Tia Gertrudes tocava e cantava. Ela ensinou sua filha, Maria José (Tia Zezé), assim, quando a Tia Gertrudes morreu, sua filha continuou”13 Por outro lado, na figura de Dona Gertrudes, que se faz conhecida pela memória de sua filha e de outros personagens do festejo, há algo mais, que torna essa mulher ícone na preservação do Marabaixo em Macapá. Continuando seu relato, Tia Zezé diz que um dia sua irmã engravidou, contudo, ficou acometida de uma complicação muito grave que colocava em perigo a si e ao seu bebê, foi quando sua mãe, na ausência de recursos médicos e hospitais, fez uma promessa a Santíssima Trindade dos Inocentes, que se sua filha e neto sobrevivessem daquele agravo, quando a criança completasse 1 ano de idade ela iria pedir a Santa do Sr. José Severo que morava na localidade da Lagoa14, para homenageá-la. 20

Negras Guerreiras do Ciclo do Marabaixo

Quando seu neto completou 1 ano de vida, Dona Gertrudes foi até ao Sr. Severo e solicitou a Santa. Como ele não realizava mais a festa por falta de condições, de bom grado concedeu a Santa e acrescentou a dona Gertrudes que caso ela quisesse continuar com a homenagem ela poderia permanecer com a Santa, do contrário, poderia devolver, e, caso já tivesse morrido, e ela não desejasse continuar realizando a festa era para Dona Gertrudes devolver a Santa para alguém de sua família, mas se os filhos de Dona Gertrudes desejassem dar prosseguimento com a promessa, a Santa poderia permanecer sob sua posse. “É assim que se inicia o Marabaixo na Favela”, conclui Tia Zezé. É a partir do milagre/promessa que se inicia no bairro de Santa Rita o Ciclo do Marabaixo em louvor a Santíssima Trindade dos Inocentes em agradecimento por uma graça alcançada. Com esse ato de devoção e fé “Tia Gertrudes” tornou-se uma das responsáveis por manter uma tradição que segundo Canto (1998, p 17): “chegou à beira da agonia”. Atualmente o Associação Berço do Marabaixo é que vem dando continuidade a promessa. Pelos relatos, percebe-se que dona Gertrudes antes mesmo de se tornar uma festeira, ou seja, responsável pelo Ciclo no seu bairro, já participara de outros Marabaixos, o que transparece que gostava de participar e não apenas como dançadeira, mas como cantadora e tocadora de caixa de marabaixo. Tia Zezé lembra, entretanto, que não era fácil manter a promessa, havia muitos gastos e demandava muita energia. Testemunhou o esforço de sua mãe em economizar dinheiro o ano todo, para poder arcar com os gastos do período do Ciclo. Lembra que certos serviços que sua mãe fazia, ela nem recebia o pagamento, deixava na mão da pessoa para ir acumulando e guardando, pois este era para promover o Ciclo. A festa era realizada com o próprio “punho”. Não havia ajuda do Governo e nem distribuição de roupas, cada participante se arranjava de acordo com suas condições. Sobre o ânimo dos promotores do Ciclo do Marabaixo, Pereira (1951) já escrevia:

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Trabalhando em lavoura e criação de animais domésticos, bem como empregando-se em serviços particulares e da administração do Território, os promotores do Marabaixo, muitas vezes, tiram de suas próprias economias os recursos necessários para aquele sucesso, mas, acima desse selo, o que os anima é a força da tradição, tão acorde com suas origens étnico-históricas, de descendentes de africanos, e tão ao feitio de sua condição social, de operários, lavadores e domésticos (p. 100).

Foi assim que, a partir da segunda metade do século XX, por meio de um pedido atendido que a promessa de homenagear a Santíssima Trindade dos Inocentes por meio do Ciclo do Marabaixo, veio sendo ano após ano realizado com muito esforço e fé. O Marabaixo voltou a ser realizado então no perímetro urbano de Macapá em dois pontos, Laguinho tendo a frente Julião Ramos, e Santa Rita (antiga Favela), tendo a frente Dona Gertrudes. Após o falecimento de sua genitora, tia Zezé conta que se afastou do Ciclo por um período de três anos, pois era muito apegada a sua mãe. Relembra que com apenas nove anos de idade já começou a trabalhar para ajudar sua mãe, ia junto com ela comprar o açaí e depois saía para vender; foi babá, quebrou pedra. Com um olhar distante e profundo recupera fatos da infância e adolescência. Comenta, ainda que, durante os festejos, o soar das caixas, os ladrões, a faziam recordar por demais de sua mãe; a saudade era intensa e as lágrimas vinham com muita facilidade. Sua irmã, Maria Natalina, assume então a festa, e hoje sua sobrinha Marilda Costa está na coordenação do Ciclo. Constata-se com isso que no Marabaixo da Favela, iniciado por Dona Gertrudes, e que atualmente está na terceira geração, ocorre uma espécie de liderança hereditária na manutenção da tradição, tendo sempre à frente a figura da mulher. A mulher, a igreja e o Marabaixo Os registros históricos e atuais demonstram que a igreja católica vem mantendo uma dupla postura diante do Ciclo do Marabaixo: de tolerância e de conflito. Partindo de alguns documentos analisaremos as justificativas da igreja para se opor a essa 22

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manifestação, buscando identificar os discursos de cunho misógino por parte da igreja. No que é tido como o primeiro documento histórico a narrar sobre Marabaixo, um artigo do Jornal Pinsonia, de 1899, vêse que a igreja católica tolerava a manifestação do Marabaixo. No referido artigo, Pancrácio Junior, destaca a não participação dos sacerdotes católicos no Ciclo. Entretanto foi sensível, para maior esplendor, a ausência do sacerdote nas solenidades da igreja; falta esta que está desculpado o Sr. Juiz, que providenciou no sentido contrário, contratando para tal fim, com o Sr. Conego Teixeira, que vinha munido de uma portaria do governo bispado. Não sabemos o poderoso motivo que obstou, em caminho, bem próximo, a que o Sr. Conego Teixeira, tivesse faltado a tão sério compromisso (CANTO, 1998, p. 22).

As justificativas mais comuns para a não participação das lideranças religiosas católicas no Marabaixo era que nos festejos havia muita bebedeira, as danças eram sensuais e conduziam a orgias. Em outro momento já no início do século XX, a postura dos padres deixou de ser de tolerância e passaram a combater publicamente o festejo do Marabaixo, conforme descreve Zacarias Leite: “Pe. Júlio combatia as festas do Marabaixo. Elas não passavam de batuque e bebedeiras. Pe. Júlio não aceitava esse costume. Combatia-o publicamente” (CANTO, 1998, p 26). Zacarias Leite descreve que o Pe. Júlio chegava a impedir a entrada na igreja dos que participam do Marabaixo e certa vez teve a ousadia de quebrar a imagem do Divino e mandar entregar os cacos aos organizadores. Tal fato gerou tanta confusão, que a população quis invadir a igreja, sendo o tumulto apaziguado pelo intendente cel. Teodoro Manuel Mendes (prefeito). Em uma carta atribuída a autoria ao Pe Júlio Maria Lombard, ele comenta: Até que afinal desaparece o infernal foguedo; será uma felicidade salutar aos órgãos acústicos, se tal tormento não soar mais, senão nas profundezas da terra, nos subterrâneos, onde 23

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moram monstros, capazes de suportar tamanho ribombo de extravagante música para maneio tão imoral e nojento (...) Que o mar-abaixo é indecente, é o foco das misérias, o centro da libertinagem, a causa segura da prostituição, asseveramos. Que os pais de família, não devem consentir as suas filhas e esposas frequentarem tão inconveniente e assustador espetáculo dessa dança oriunda dos cafres, aconselhamos, para darmos belo, edificante e moralizador exemplo de civilização (CANTO apud LIMA, 2011, p. 76).

Percebe-se no discurso do Pe. Júlio, que segundo Canto (1998) chegou ao Brasil em 1913 e foi vigário da Paróquia de São José de Macapá entre os anos de 1916 a 1923, uma visão demoníaca do Marabaixo, em que o mesmo não passava de um antro de pervertidos, denegrindo a imagem de homens e mulheres. O trecho “Que os pais não deixem suas filhas e esposas participarem da festa” reflete uma sociedade com formação androcêntrica herdada do ultramar e ao mesmo tempo a mentalidade da igreja que desde a colonização ensinava sentimentos misóginos e de normatização dos papéis de gênero: A igreja também aproveitava o papel do homem no interior do matrimônio para aguçar seu controle sobre as mulheres, e sugeriam que ‘deve o marido como cabeça que é da mulher, cuidar para que esta cumpra os encargos da profissão cristã; que guarde a promessa feita a Deus no batismo, de renunciar às pompas do mundo’ (DEL PRIORI, 2009, p. 100).

O discurso do Pe. Júlio e a postura da Igreja coincide com o processo de romanização da igreja brasileira e amazônica. O movimento de romanização era, também, um movimento de europeização do catolicismo brasileiro e, por isso, rejeitava-se o catolicismo popular tradicional; muitos padres estrangeiros (europeus) foram colocados à frente de centros populares de devoção tradicional, para ‘disciplinálos’ (MAUÉS, 1999, p. 141).

O combate da igreja não foi algo pontual e momentâneo, antes, mostra-se articulado e sistemático, com práticas que se repetem 24

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em tempos e tempos. Pereira (1951) a época que visitou Macapá em 1949, expressa: A gente do Marabaixo, já não entra, mesmo assim, livremente na igreja matriz ali realizando uma série de cerimônias e elevando cantos e cantigas tradicionais. As suas danças e seus desafios, as suas lutas são olhados com menosprezo pelos padres (p. 100).

Ao que parece a transferência das famílias afrodescendentes para a periferia de Macapá, em meados do século XX, solucionou a questão dos padres terem que fechar a porta da igreja matriz para impedir a realização dos festejos do Marabaixo. Por outro lado, Lima (2011), em seu recente trabalho sobre o Marabaixo, diz que o conflito apenas foi transferido para os bairros onde a tradição ainda acontece. Em uma das missas do Ciclo do Marabaixo do ano de 2008 no bairro do Laguinho e uma visita feita à casa de tia Biló, o padre Geovane, segundo a autora, fez inúmeros comentários pejorativos sobre o festejo: [...] o Marabaixo não vivia na plenitude de Deus, que era festa do diabo, que as pessoas se aproveitavam das crianças e dos santos, levantavam o mastro só para tirar dinheiro do governo... ele veio na casa de minha tia que morava ao lado da casa de minha vó, aí minha vó falou com ele, já viu idoso quando vê um padre, Deus o livre né? E aí falou com ele... foi receptiva com ele... E então ele falou assim: ‘Olha eu quero lhe pedir uma coisa, não quero que a senhora realize essa festa do Marabaixo, essa festa não é de Deus’ E minha vó disse: ‘Não, padre, o senhor está enganado... essa festa é em louvor ao Divino e Santíssima Trindade (RAMOS apud LIMA, 2011, p 81).

Como se pode observar, a igreja católica ora tolera, ora se opõe publicamente contra a manifestação do Marabaixo, e quando tenta se justificar acaba por produzir discursos ligados à moral, à família, à ordem e também de normatização da sexualidade e dos papéis de gênero.

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Algumas considerações Mergulhar nas fontes bibliográficas e, ao mesmo tempo, conhecer histórias de vida, por meio do resgate da memória individual e coletiva por quem vive o Ciclo do Marabaixo, proporcionou-me uma visão holística do fenômeno que pretendo investigar mais a fundo como parte da minha dissertação. Simultaneamente, fez-me reconhecer que tal manifestação é por demais ampla e complexa, e que o trabalho que pretendo desenvolver sobre a construção da identidade e o uso do Marabaixo como símbolo da identidade negra, representará apenas um olhar sobre o fenômeno. Acredito, todavia, na relevância de minha pesquisa por está trazendo algo novo que ainda não foi abordado na literatura existente. Diante dessa multiplicidade de olhares que o fenômeno do Marabaixo permite-nos fazer, tentei nesse artigo resgatar o papel da mulher na manutenção dessa tradição no Estado do Amapá e, ao mesmo tempo, mostrar os sentimentos misóginos da igreja presentes nos discursos contra essa manifestação. Pelo que concluo que em meio ao desenvolvimento histórico dessa tradição afroamapaense, ela vem se recriando e se ressignificando de acordo com os momentos históricos. E nessas conjunturas, na maioria das vezes adversas, o Marabaixo vem conseguindo manter-se vivo, graças às iniciativas de mulheres e homens, desconhecidos para a maioria da população, mas que foram de fundamental importância na manutenção dessa tradição. Dona Gertrudes Saturnino da Favela (Tia Gertrudes), pelo seu histórico de vida e fé, compõe o rol desse grupo de baluarte da tradição afrodescendente no Amapá. A ela e a outras guerreiras e guerreiros afroamapaenses termino este artigo oferecendo uma parte do poema “Negras Guerreiras” (autor Poka): A diáspora africana ao Amapá me levou Ao som de Marabaixo, batuque o rufar do tambor Reflete o lamento, do banzo a dor Ou a celebração da liberdade conquista com muito ardor Indignação pela condição de escravo O negro boçal se revoltou 26

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Cansou de ser tratado como lixo Considerado bicho Visto com as mãos e pés do Senhor Partiu em busca de um novo horizonte Via rio Pedreira ou rio Mutuacá Pedindo proteção para Oxalá Prá sempre os guiar Rumo à redenção dos afro-brasileiros Em que a liberdade fosse um princípio verdadeiro Dos negros que partiram em busca da felicidade guerreira Cunani, Curiaú, Mazagão, salve, salve Os Guerreiros de nossa tradição Biló Nunes, Zeca Costa e Natalina Tia Guíta, Gertrudes e vó Venina... Referências bibliográficas CANTO, Fernando. A Água Benta e o Diabo. Macapá: Fundação Cultural do Amapá – FUNDECAP, 1998. CHANTER, Tina. Gênero. Conceito chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2001. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição Feminina, maternidades e mentalidade no Brasil Colônia. São Paulo: UNESP, 2009. p. 93-134. DVD Marabaixo. Ciclo de amor, fé e esperança. Prefeitura Municipal de Macapá, 2008 LIMA, Wanda da Silva Ferreira, Ciclo do Marabaixo. Permanência e inovações de uma festa cultural. Dissertação de Mestrado, Mackenzie, 2011. LUNA, Verônica Xavier. Escravos em Macapá. Africanos redesenhando a Vila de São José 1840 – 1856. João Pessoa-PB: Editora Sal da Terra, 2001. MAUÉS, Raymundo Heraldo. Uma outra “invenção” da Amazônia. Belém-PA: CEJUP, 1999. NEGRÃO, R. Marabaixo. Macapá-AP (1990). 27

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PEREIRA, Nunes. Shairé e Marabaixo. Tradições da Amazônia. Recife: FUNDAJ, Editora Massagana, 1951. PEREIRA. Decleoma Lobato. O Candomblé no Amapá. História, memória, imigração e hibridismo cultural. Dissertação de Mestrado, UFPA, 2008. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Perceu Abramo, 2004. SANTOS, Fernando Rodrigues dos. História do Amapá. 2 ed. Macapá-AP: Editora Valcan, 1994. VIDEIRA, Piedade Lino. Batuques, folias e ladainhas. A cultura do quilombo do Curia-ú em Macapá e sua educação. Fortaleza: Edições UFC, 2013. Notas do Capítulo 1 1 Na atualidade essa etnia não existe mais, se extinguiu em 1758. PORTAL DO GOVERNO DO ESTADO DO AMAPÁ. Disponível em . Acessado em 14 nov 2013. 2 Malê, forma de culto que surge na África Ocidental a partir do século XVI do entrechoque do islamismo com as religiões nativas (CANTO, 1998, p 19). É considerado também um grupo étnico da África, influenciado pelo islã. 3 Maria Libório (Tia Zezé) em entrevista concedida ao Documentário Marabaixo: ciclo de amor, fé e esperança. 4 Raimunda Rodrigues em entrevista concedida ao Documentário Marabaixo: ciclo de amor, fé e esperança. 5 José Osano em entrevista concedida ao Documentário Marabaixo: ciclo de amor, fé e esperança. 6 Comunidade remanescente de quilombo, distante 21 km de Macapá. 7 O termo Ladrão(ões) pode ser interpretado como versos “roubados” das histórias e dramas da vida real da comunidade que viram canções. 8 Curiaú é uma comunidade remanescente de quilombo distante de Macapá a 12 km. Considerado terra e território de negros, patrimônio cultural, lugar de memória, festas, fé e trabalho (VIDEIRA, 2013). 9 Desde 2012 um projeto da Secretaria de Estado de Política para o Afrodescendente – SEAFRO – organiza com todos os grupos de Marabaixo da Capital a Quarta da Murta na orla de Macapá com o termino na Igreja de São José, tal como era realizado a décadas atrás. 10 Espécie de planta aromática comum nos campos do Amapá. 11 Nos dias em que ocorrem Marabaixo, é possível ver a presença de crianças, jovens, adultos e idosos. A presença de mulheres no decorrer do festejo é majoritária. A maioria delas exercem a função de dançadeiras e grande parte vai

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vestida de saia estampada comprida, sandálias baixas e blusa branca com uma toalha ao ombro. Em alguns momentos é possível ver algumas mulheres puxando os cânticos e tocando as caixas de Marabaixo. 12 Os relatos foram colhidos em entrevista concedida pela Tia Zezé nos dias 19 e 20 de julho de 2013 na sua casa no bairro de Santa Rita. 13 Nayra de Souza. Entrevista concedida em 22 de julho de 2013. 14 Localidade situada próximo de uma área de preservação ambiental, distante 5 km de Macapá. Está em processo de reconhecimento para receber o título de área quilombola.

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Capítulo 2 Festa e Devoção: relações de poder e de gênero nas Irmandades Religiosas de Belém no século XIX Maria de Nazaré Fonseca de Senna Pereira Este trabalho visa analisar as relações de poder e de gênero existentes no interior das irmandades religiosas de Belém no século XIX. A questão central é perceber os papéis sociais desempenhados por homens e mulheres no cotidiano de suas vivências e experiências religiosas. Para o desenvolvimento do estudo que ora apresentamos, nossa principal fonte de informações é uma narrativa de Arthur Vianna sobre as festas populares do Pará, especificamente sua descrição da festa de São Raimundo, utilizando como metodologia de pesquisa a análise do discurso. A ênfase dada à irmandade de São Raimundo se faz devido a mesma apresentar particularidades, que ressaltaremos no decorrer de nosso estudo, no que diz respeito às ações e participação ativa das irmãs no interior desta confraria. Principais representantes do que muitos pesquisadores, de diferentes áreas das ciências sociais, denominaram de catolicismo tradicional ou popular, as irmandades religiosas eram associações leigas cuja finalidade seria a devoção a um santo protetor e a manutenção de seu culto; dedicavam-se também a obras de caridade voltadas tanto para seus membros como para indivíduos carentes não-associados. A administração de cada confraria ficava a cargo de uma mesa diretora, renovada anualmente através de eleição, presidida por juízes, presidentes, provedores ou priores (as denominações variavam de uma para outra irmandade), e composta por escrivães, tesoureiros, procuradores, andadores e mordomos, que exerciam as mais diversas atividades dentro da irmandade: convocação e direção de reuniões, arrecadação de fundos, guarda dos livros e bens da associação, visitas assistenciais aos irmãos necessitados, organização dos funerais e festas, dentre outras. 31

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Os compromissos ou estatutos regulavam a administração das irmandades, estabelecendo as condições sociais e raciais exigidas dos associados, seus direitos e deveres. Dentre os deveres dos irmãos estavam o bom comportamento e a devoção católica, pagamento de anuidades e participação nas cerimônias civis e religiosas da confraria. Em troca, tinham direito à assistência médica e jurídica, socorro em momentos de crise financeira, ajuda para a compra da alforria, em caso de escravos, e de modo especial, direito a um enterro decente para si e para seus familiares com o acompanhamento dos irmãos e irmãs de confraria. Sendo associações de caráter corporativo no interior das quais se teciam solidariedades baseadas na hierarquia social, as irmandades, como representantes dos diversos grupos sociais, estavam divididas em irmandades de brancos, negros e mestiços. Se, para o contexto geral e público da sociedade essas associações leigas se estabeleciam a partir de critérios étnico-raciais, doméstica ou privadamente configuravam-se ao nível de relações de gênero, relações de poder, ao determinarem, já nos estatutos, as funções que homens e mulheres exerceriam no interior de tais organizações. Como muito bem nos coloca Carolina Lemos e Sandra de Souza (2009: p. 7), citando Joan Scott “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar relações de poder”. Portanto, a análise das irmandades através de uma perspectiva de gênero torna-se bastante válida, tendo em vista que “tanto a organização da sociedade como a das religiões estão conectadas às diferenças entre os sexos” (MARJO DE THEIJE; ELS JACOBS, 2003). Masculinidade e feminilidade são construídas na esfera religiosa, e ideologias e práticas religiosas dão forma e conteúdo à masculinidade e feminilidade e aos papéis sociais dos homens e das mulheres [...] no nível simbólico, o gênero aponta para um sistema de significados com conotações masculinas e femininas, que produz, legitima e expressa ou opõe divisões de gênero (THEIJE; JACOBS, 2003, p. 39).

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Nesse sentido, o papel da mulher liga-se à esfera privada, doméstica, em contraste ao do homem que se acha mais associado a esfera pública. “Assim surge uma imagem do religioso como esfera de atuação masculina, que não dá conta da influência e contribuição femininas à vida religiosa do grupo social” (THEIJE; JACOBS, 2003, p. 39). Em nossa análise sobre as relações de poder e de gênero nas irmandades religiosas, especificamente na de São Raimundo, procuramos destacar o papel atuante das mulheres que compunham esta associação mesmo que, pelo olhar misógino de Arthur Vianna, esta atuação tenha sido apagada ou substituída pela figura masculina de mestre Leopoldino, presidente da irmandade. Como afirmam Theije e Jacobs (2003, p. 39) “mesmo que o discurso popular brasileiro considere a religião domínio da mulher, o discurso sociológico e antropológico geralmente favorece análises do jogo religioso que enfatizam o papel dominante dos atores masculinos”. Este artigo acha-se dividido em três partes. Na primeira, denominada de “Viva São Raymundo!” ou a comemoração de uma devoção, fazemos a descrição da festa dedicada ao santo protetor da irmandade, ressaltando o destaque que Arthur Vianna faz da figura do presidente da confraria, o mestre Leopoldino. Neste momento, analisamos a atuação de Leopoldino a frente da irmandade, utilizando os conceitos de poder tradicional de Max Webber e poder simbólico de Pierre Bourdieu. Em seguida, no tópico Irmãs de São Raimundo: entre a ação e a submissão, passamos a analisar o papel desempenhado pelas mulheres no interior da confraria, sua atuação e iniciativa frente ao contexto social em que se achavam inseridas. Na terceira e última parte, expomos nossas considerações parciais. “Viva São Raymundo!” ou a comemoração de uma devoção Conhecido como o santo protetor das parturientes e das parteiras, a festa de São Raimundo, em Belém, era comemorada em 31 de Agosto com missas, queima de fogos, baile e romarias. 33

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Tal festividade iniciou-se em 1870, após conversa informal entre um conhecido barbeiro do largo de Santana – o mestre Leopoldino – e sete vendedoras de rua – Juliana, Rosa, Felippa, Joanna da Ponte e Souza, Maria, Nathalia do Nascimento e Simôa –, que se encaminhavam para uma festa de São João na Ilha das Onças. Expontaneamente surgiu a ideia de uma irmandade: se a organisassem? se de volta metessem hombros á empresa? Com enthusiasmo todos acceitaram a tarefa e Leopoldino, alli mesmo, sob o luar prateado, de violão a tiracollo, recebeu a investidura de organisador da irmandade, cargo no qual ia celebrisar-se e ganhar uma real popularidade (VIANNA, 1905, p. 377).

No retorno da Ilha, ainda na canoa, o contingente feminino que acompanhava Leopoldino, retoma o assunto da criação da Irmandade de São Raimundo e ali mesmo realizam-se as primeiras inscrições: cada mulher contribuiu com mil reis, “excepto Felippa que contribuiu com vinte mil reis, por ter sido acclamada juíza da festa”. Já em terra firme, o barbeiro Leopoldino recorre ao auxílio de José do Espírito Santo e Pinho, seu compadre, fogueteiro de profissão que, sendo homem instruído (sabia ler e escrever) poderia exercer o cargo de secretário da recém-criada confraria. As primeiras inscrições renderam um capital de quarenta e seis mil reis. Desse total, doze mil foram pagos a José Pinho por “uma grosa de foguetes”; Leopoldino, sendo acolito e ajudante de mestre André (sineiro da igreja de Santana), conquistou para a associação as simpatias do monsenhor Borges de Castilho, então vigário do templo. A 30 de Agosto de 1870, fez-se na igreja da “Senhora Sant’Anna da Campina a véspera e no dia seguinte cantou-se missa solenne” em honra ao advogado das parturientes. Realisou-se assim modestamente a primeira festa o que não impediu de a procurarem um grande numero de mulheres. Tudo se mostrou auspicioso: a idéa, abraçada com enthusiasmo, avolumava-se rapidamente. A conquista do povo foi immediata e intensa (VIANNA, 1905, p. 377). 34

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Findo o momento de realização da primeira festa, era hora de melhor organizar a confraria buscando a escrituração dos seus estatutos e legalização da mesma. Leopoldino, contudo, “julgou-a de todo o ponto inútil”, passando, a partir de então, a centralizar tudo em sua pessoa apagando a figura do secretário Pinho e de quantos direta ou indiretamente cooperavam na formação da sociedade. Ao fim de pouco tempo a novel irmandade ennumerava mil e tantas irmans, cujos nomes, residências e condições, elle analphabeto, sem uma lista, sem apontamentos de especie alguma, trazia no cérebro nitidamente. Recebia joias e mensalidades, applicava os dinheiros recebidos, acudia com remedios e medicos as irmans enfermas, mandava enterrar as que succumbiam, isto tudo sem livros de escripturação, sem notas e papeladas. Gosava de geral sympathia e de illimitada confiança (VIANNA, 1905, p. 379).

Analisando a atuação de Leopoldino na direção da confraria, dentro da perspectiva weberiana de tipos de poder, podemos relacionar esta ao que Weber denominou de poder tradicional, visto que tal forma de poder pode ocorrer devido a fatores como: afetividade, respeito e admiração: Leopoldino “gosava de geral sympathia e de illimitada confiança”. O autor relaciona a “fidelidade tradicional” para explicar, por exemplo, a dominação patriarcal, onde o respeito e a admiração em virtude da tradição levam a obediência. Isso leva a entender que existe uma forma de lei moral entre os indivíduos. Assim a dominação está relacionada diretamente aos costumes, ações cotidianas e valores pessoais. Segundo Heleieth Saffioti (2004) “do mesmo modo como as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado”. Historicamente, as relações de poder embasadas no patriarcado, estão presentes na sociedade brasileira desde nossa colonização, regulando e, muitas vezes, legitimando relações de hierarquia e subordinação entre homens e mulheres, portanto, relações de gênero. No entanto, nem sempre estas relações hierárquicas e de subordinação, são percebidas enquanto tal. Estão de tal modo enraizadas em nossa sociedade, que aparentam ter vida própria, fazendo35

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nos esquecer que são construtos sociais historicamente elaborados. Podemos inseri-las dentro daquilo que Pierre Bourdieu chamou de poder simbólico, posto que este É um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social) supõe aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, ‘uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências’ (BOURDIEU, 2007, p. 9).

Assim, as imagens de gênero dentro dos contextos religiosos não existem num vácuo; acham-se enraizadas em crenças culturais mais amplas e na organização da própria sociedade (THEIJE e JACOBS, 2003, p. 40), produzindo ao mesmo tempo diferentes visões de mundo e o reconhecimento e aceitação destes pontos de vista como naturais e próprios do contexto social. Mas quem era esse homem que, segundo Arthur Vianna, “encarnava a própria irmandade, sob todos os pontos de vista e para todos os efeitos”? Leopoldino do Espírito Santo Figueira de Andrade era filho da preta Monica Maria da Assumpção e neto de Joanna Paula, escrava do cônego Bernardino Henrique Diniz. Nasceu livre do cativeiro por obra de sua avó, que comprou a alforria materna desde os sete anos de idade. Passou a juventude aprendendo o ofício de pedreiro, porém, um acidente durante uma construção lesionou seus membros e o levou para a profissão de barbeiro. Mestre Leopoldino, como era conhecido, entretanto, mostrou-se sujeito de muitas facetas e múltiplas atividades: “pedreiro, barbeiro, sineiro, sachristão, endireitador de membros deslocados, e presidente, secretario, thesoureiro, andador e orador da sua irmandade, teve sempre tempo para tudo e soube ser um déspota estimado dos seus súbditos”. Com innata e expontanea habilidade, escanhoava os queixos, raspava corôas, e, deslizando para um plano mais vasto, reduzia luxações, no que se tomou perito habil e recommendado por todos. Na modesta barbearia entravam pois, os fre36

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guezes, os devotos que desejavam missas, ladainhas ou novenas, os doentes de membros deslocados, os crentes que pretendiam repiques ou dobres de sinos, e mais tarde as irmães de São Raymundo (VIANNA, 1905, p. 375).

Sua amizade com mestre André o fez sacristão da igreja de Santana após a morte deste. Em 1871, segundo ano da festa, repetiu-se esta ainda modestamente, com a véspera a 30 de Agosto e a missa solene no dia seguinte, às cinco horas da manhã. A partir do terceiro ano ampliou-se a festa religiosa com um tríduo, realizado com toda a pompa, sob os auspícios do monsenhor José Gregorio Coelho, substituto de Borges de Castilho na vigaria de Santana e escolhido protetor perpétuo da irmandade por Leopoldino. Neste mesmo ano o aumento no número de juízas (passaram a seis) permitiu o acréscimo de “um accessorio aos festejos, de grande realce e procura: o baile”. Uma característica marcante da festa e que a tornou única em comparação as outras, diz respeito a queima de fogos. Esta ocorria em três momentos no dia do evento: às cinco horas da manhã, ao meio dia e às seis horas da tarde no largo de Santana. Até aqui, nada de excepcional, outras irmandades também comemoravam seus patronos com um espetáculo pirotécnico, contudo o que chama a atenção para a queima de fogos em honra de São Raimundo e a diferencia das demais é que, o início da queima em Santana é seguido pela explosão de fogos em diferentes partes da cidade, “costume introduzido voluntariamente pelas irmans”. Assim, “no dia 31 de Agosto, a cidade inteira era obrigada a despertar ás cinco horas da madrugada, com o primeiro bombardeio”. Durante o período da festividade, sempre no mesmo dia (31 de Agosto), mas em horários diferenciados, realizavam-se duas importantes romarias populares: de manhã ocorria a procissão ao asilo do Tocumduba e ao final da tarde procissão em honra de São Raimundo. A visita aos hansenianos começou em 1873, terceiro ano de comemoração da festividade, contando com missa cantada na capela do asilo, seguida da distribuição de esmolas e donativos aos doentes. Da procissão do santo, ocorrida sempre ao final da tarde, parti37

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cipavam não só as irmãs de São Raimundo, mas irmãos de outras confrarias que acompanhavam o andor do venerado patrono, solenemente carregado pelas irmãs, além do viático sob o palio, banda de música e concorrida participação popular. A romaria ao Tocumduba durou até 1897. Devido a problemas de desordem, bebedeira e roubos efetuados por grupos que acompanhavam a procissão, mestre Leopoldino extinguiu tal romaria. Leia abaixo como Arthur Vianna descreve a decisão de Leopoldino: Debalde tentou o mestre Leopoldino exterminar esse mal desvirtuador; sua autoridade acatada respeitosamente pelas irmans, não attingia aquelle contingente adventicio e rebelde; (...) De anno para anno crescia o desrespeito; uma severa medida estava claramente indicada e Leopoldino adoptoua. Cortou de um golpe despótico aquella desvirtuação, supprimindo em 1897, a ida ao Tocumduba. Era elle quem mandava, todas as irmans obedeceram sem protestos. O mulherio foi sempre disciplinado ao seu mando e com rara habilidade soube elle dirigil-o, sem luctas, sem malquerenças e sem barulhos. Sua vontade triumphou mais uma vez como um dogma do qual dependia a vida da irmandade (VIANNA, 1905, p. 388, grifos da autora).

É interessante destacar que não somente neste, mas em outros momentos de sua narrativa, Arthur Vianna faz questão de ressaltar o poder inquestionável que Leopoldino tinha sobre os membros femininos da irmandade. Tanta ênfase, não será porque todo esse poder não era assim tão unânime? Ou mesmo constantemente questionado? Antes de buscar responder tais proposições, concluamos, rapidamente, o desfecho da extinção da romaria ao antigo asilo do Tocumduba. A procissão ao asilo não se extinguiu de todo: com a extinção da romaria popular, a irmandade se fez representar por uma comissão formada pelo mestre Leopoldino e um grupo de irmãs que “vae em um carro de praça, a Tocumduba fazer a entrega das esmolas”. Como acabamos de ressaltar, para Vianna a figura de Leopoldino é essencial para o desenvolvimento e continuação da irmandade, para este autor, a morte do velho mestre “marcará inevitavelmente o fim da irmandade”. 38

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Não se é impunemente velho: ao mestre vae faltando aquella actividade electrica dos outros tempos; sua vontade entibiase perante a má vontade de umas e ao enervamento do senso religioso de outras.Não ha mais aquelle ardor de outrora, nem sobra na caixa dinheiro para fazer o symbolismo do culto com apparato. A evolução trabalha; elle resiste ainda. Querem-no ainda com sympathia; tem ainda para elle gritos de acclamação; acatam-no ainda á frente d’esse regimento de mulheres, que chegou a contar para mais de mil adeptas dedicadas, agora desfalcado, esboroando-se aos poucos, como que acompanhando a decrepitude do seu guia (VIANNA, 1905, p. 389, grifos da autora).

Mesmo exaltando e destacando a importância da figura de mestre Leopoldino, Arthur Vianna nos dá pistas de que sua autoridade não era assim tão absoluta. No trecho acima, Vianna nos diz que a idade já bem avançada de Leopoldino, tirou-lhe a vitalidade e o ardor de comando: “sua vontade entibia-se perante a má vontade de umas e ao enervamento do senso religioso de outras”. Eu diria bem mais que isso, ao velho mestre já falta a vitalidade de argumentos para fazer valer a sua vontade perante uma assembleia eminentemente feminina. Creio que não desse momento, quando Leopoldino acha-se na velhice, mas desde o início, as suas “subordinadas” sempre redarguiram suas propostas; o mestre, entretanto, sempre soube rebater tais questionamentos e expor coerentemente seus argumentos, fazendo prevalecer sua vontade. Gostaria de deixar bem claro, que o que estou dizendo, não é que as irmãs de São Raimundo questionavam o presidente de sua irmandade simplesmente por questionar, por pura implicância; o que quero ressaltar e chamar a atenção é que as mulheres que compunham esta confraria tinham suas próprias opiniões, sabiam o que queriam para si e para o conjunto de sua associação, precisando ser muito bem “convencidas” na hora de se submeter às proposições de Leopoldino. Vamos melhor conhecer essas devotas. Irmãs de São Raymundo: entre a ação e a submissão As mulheres compunham a grande maioria dos membros da irmandade; segundo Vianna eram para mais de mil, todas muito obe39

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dientes (pelo menos é isso que este autor nos quer fazer acreditar) aos mandos e desmandos do presidente vitalício da confraria, mestre Leopoldino: “Era elle quem mandava, todas as irmans obedeceram sem protestos”. A um leitor mais exigente e menos distraído do artigo de Arthur Vianna, saltam sutis momentos em que a submissão das irmãs não parece assim tão unânime. É possível perceber, no decorrer da narrativa, que estas mulheres eram membros participantes e ativos na confraria, não só no sentido de executoras das vontades de Leopoldino, mas também mostrando sua opinião e ação em momentos significativos da irmandade. Mas, quem eram essas mulheres? O que as motivava a participar da irmandade? Qual seu “verdadeiro” papel dentro da confraria? São questões que buscaremos elucidar a partir de agora. Como já expusemos anteriormente, as mulheres formavam o grosso dos participantes da irmandade de São Raimundo. Já no momento das primeiras inscrições isso é notório: são sete mulheres (Juliana, Rosa, Felippa, Joanna da Ponte e Souza, Maria, Nathalia do Nascimento e Simôa) e dois homens (Leopoldino e, posteriormente, José Pinho). Elas também são trabalhadoras (algumas eram vendedoras nas ruas de Belém e, uma grande maioria, escrava), algumas são solteiras e não têm filhos e, em termos étnicos, são mestiças e mulatas. Mostram-se independentes, tanto financeira como socialmente. Leiamos com atenção os trechos a seguir. A viagem, sem accidentes no mar, foi, comtudo, barulhenta e irriquieta, porque em companhia do mestre iam nada menos de sete mulheres (...) mulatas de tom, vendedeiras nas ruas (...) Companheiras joviaes e alegres, não iriam passar a noite inteira da viagem nos braços de Morpheu (...) (VIANNA, 1905, p. 376).

A percepção que temos ao analisarmos esses dois pequenos trechos da descrição de Vianna é que o trabalho desempenhado por estas mulheres permitia-lhes gozar de relativa autonomia social (num pequeno grupo, saem sozinhas para se divertir, sem a presença de um marido ou namorado; sendo a presença de Leopoldino necessária no sentido de justificar o contexto da sociedade patriarcal e machista da época), e econômica (que lhes possibilita contribuir com 40

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expressivos recursos para o caixa da irmandade, tanto como juízas, ou ainda, como meros membros da confraria). Mas, o que levava tantas mulheres a se filiarem e adentrarem esta irmandade, e por que não é tão visível a presença masculina? Como um santo branco, de origem espanhola, tornou-se advogado das parturientes e parteiras? Segundo sua biografia, São Raimundo teve dificuldade para nascer, tendo sido retirado vivo da barriga da mãe já morta. Compreende-se agora a identificação de tantas mulheres com o patrono da confraria e a quase ausência do sexo masculino na mesma. O santo estava ligado a um aspecto considerado absolutamente feminino: a maternidade. Lembrando que, sendo protetor das parturientes e parteiras, São Raimundo era invocado no momento dos nascimentos não somente pelas futuras mamães, mas também pelas mulheres que as auxiliavam na hora do parto – as parteiras, profissão exercida quase que exclusivamente por muitas mulheres no século XIX, especialmente mestiças e mulatas. Neste momento gostaria de abrir um parêntese, para apresentar uma hipótese, que acredito que aguçará o interesse do leitor e abrirá uma nova perspectiva de análise. Por algumas evidências, bem sutis por sinal, observadas no texto de Arthur Vianna, acredito que a escolha de Leopoldino como presidente da irmandade ocorreu por imposição do meio social em que as irmãs de São Raimundo estavam inseridas. Talvez, se pudessem e tivessem livre escolha, elas teriam não um presidente, mas uma presidenta. Vivendo em uma sociedade absolutamente patriarcal e machista não se poderia conceber uma irmandade totalmente feminina no sentido de, até seu coordenador, ser uma mulher. Deixe-me esclarecer melhor minha suposição, baseada no trabalho desenvolvido por Marjo de Theije e Els Jacobs sobre relações de gênero e aparições marianas no Brasil contemporâneo. Em sua análise, Theije e Jacobs, destacam que, dentro do campo religioso, existe uma divisão simbólica entre uma esfera pública e outra privada ou doméstica. Essa divisão toma como ponto de partida diferenças percebidas em papéis sociais entre os sexos. Em conjunto com essas diferenças, na literatura existente sobre a vida religiosa hu41

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mana as experiências e idéias religiosas das mulheres geralmente são associadas com a esfera doméstica, e classificadas como expressões privadas, idiossincráticas e, portanto, limitadas. A vida religiosa das mulheres é pensada limitando-a principalmente à esfera privada da casa, na qual a mulher é responsável por transmitir os valores religiosos para as crianças, manter contatos pessoais com entidades espirituais e cuidar dos doentes, deficientes e defuntos. As experiências, idéias e ações dos homens no campo religioso, ao contrário, são associadas com a esfera pública e entendidas como sistemáticas, abrangentes e, portanto, poderosas. Por exemplo, as descrições da vida religiosa dos homens têm a tendência de enfatizar seu papel poderoso na hierarquia religiosa, a sua atuação visível nas atividades públicas e seus vínculos com outras organizações sociais, políticas ou econômicas na sociedade (THEIJE; JACOBS, 2003, p. 42).

Portanto, por mais atuantes e participativas que as irmãs de São Raimundo se mostrassem, suas ações, no contexto social em que estavam inseridas, eram sempre vistas e compreendidas dentro do espaço privado e doméstico da irmandade; publicamente, na ampla esfera social, a figura de Leopoldino se destaca, tendo em vista que O doméstico não somente é associado com o privado, o pessoal e o informal, mas também é tratado como se fosse derivado, subjugado e açambarcado pela dimensão pública, ou seja, masculina. Isso significa que a dicotomia doméstico-público está longe de ser algo de gênero neutro e, ao contrário, tanto denota diferença como implica hierarquia (THEIJE; JACOBS, 2003, p. 43).

Pela descrição de Vianna, que faz questão de sempre destacar e enfatizar a imagem “toda poderosa” de Leopoldino, sutilmente vemos despontar o papel exercido pelas devotas e irmãs de São Raimundo que, não raro, estava bem longe da total submissão ao controle de seu presidente. Começo chamando atenção para a influência dessas mulheres tanto na escolha do patrono da confraria como de seu organizador. Num passeio a Ilha das Onças, onde participariam dos 42

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festejos de São João, durante uma conversa entre Leopoldino e Juliana, Rosa, Felippa, Joanna da Ponte, Maria, Nathalia do Nascimento e Simôa, “falou-se accidentalmente em São Raymundo, no culto que lhe dedicavam as mulheres, nos milagres com que elle as acudia e no muito que era preciso querel-o e veneral-o”; “Com enthusiasmo todos acceitaram a tarefa e Leopoldino, alli mesmo, (...) recebeu a investidura de organisador da irmandade (...)”. Creio que é bem possível pensar que, se a lembrança ao santo protetor das parturientes e parteiras, não partiu das senhoras naquele momento, foi muito influenciado pela sua significativa presença, visto que, como já vimos, o santo ligava-se a um aspecto muito associado à vida das mulheres, a maternidade; a “eleição” de Leopoldino como organizador da confraria, segue, a meu ver, a dicotomia público-privado que marcará as ações das esferas masculina e feminina dentro da irmandade: naquele momento histórico era inconcebível uma confraria religiosa regida por uma mulher. De modo geral, estas associações leigas eram espaços eminentemente masculinos – são os homens que estão no comando, organização e chefia das mesmas; às mulheres cabiam tarefas identificadas com o universo feminino (cuidados com os panos e decoração do altar do santo) e subalternas as dos homens. Em um trabalho sobre relações de gênero e pajelança numa comunidade pesqueira do interior da Amazônia, realizado na segunda metade do século XX, as pesquisadoras Maria A. Maués e Gisela Villacorta (2008), perceberam muito bem o que expusemos acima. Segundo as autoras, dentro do contexto social, político, econômico e religioso da comunidade de Itapuá, “a mulher surgia como elemento de apoio necessário, mas que, no final, não parecia contar muito, quando se ia conferir o peso, reconhecido socialmente, da participação dos dois sexos”. Tal realidade não fugia muito da percebida dentro das irmandades religiosas da Belém do século XIX, onde as irmãs pareciam agir mais em função dos membros masculinos da confraria, como prestadoras de serviço. Por isso nos chama atenção a iniciativa das irmãs de São Raimundo em tomar a frente no estabelecimento da irmandade: 43

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“Na volta e na canôa retomaram as mulheres o caso; fizeram uma subscripção em que cada uma deu mil reis, excepto Felippa que contribuiu com vinte mil reis, por ter sido acclamada juíza da festa”. Apesar de Leopoldino ter sido eleito organizador da irmandade, são as mulheres que o acompanham, que dão início aos trabalhos de organização da confraria: realizam as primeiras inscrições, recolhem as entradas e elegem a juíza da festa; ao mestre coube a incumbência de tarefas mais práticas: providenciar os fogos e marcar a missa, tendo em vista que era auxiliar de sacristão na igreja de Santana. Se nossas colocações e posicionamentos, até o momento, sobre o papel atuante das irmãs de São Raimundo, apresentam argumentos frágeis e que podem ser facilmente questionados, creio que os que vamos apresentar a seguir podem levar o leitor a compreender melhor nosso ponto de vista. Em 1873, terceiro ano de realização da festividade, a introdução do baile às comemorações deu-se pelo patrocínio dos membros femininos da confraria: “Faziam-no as juízas á sua custa, em uma casa grande que alugavam ou obtinham por gentileza de algum amigo”. As juízas, que a partir deste ano passaram a ser seis, tinham uma dupla despesa: além de pagarem as esmolas referentes à sua eleição como juízas, financiavam o baile, muitas vezes alugando um espaço quando não o obtinham por empréstimo através de suas relações pessoais. Arthur Vianna não deixa claro se a introdução do baile aos festejos foi obra das mulheres; ele diz que: “Nesse anno elevou-se o numero das juízas para seis, o que permitiu um accessorio aos festejos, de grande realce e procura: o baile”. Mesmo que a ideia do baile não tenha partido da iniciativa das irmãs, sua execução e realização se concretizaram graças ao mecenato das mesmas. Financeiramente independentes essas mulheres promoviam a reunião dançante contando com seus próprios recursos, fruto de árduo trabalho pelas ruas de Belém. Durante os primeiros anos da festividade, a irmandade foi forçada a transferir a data de comemoração do seu patrono, visto que o dia 31 de agosto sempre caia em dia útil da semana o que impedia a 44

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participação das irmãs escravas, não liberadas do serviço pelos seus donos. Vejamos a descrição de Vianna sobre este acontecimento. Primitivamente viu-se a irmandade na contigencia de fazer a festa, não no dia de São Raymundo, porém no proximo domingo seguinte, isto porque, sendo em sua maioria escravas as irmans, não lhes era dado pelos senhores o dia util da semana. Houve um protesto contra este rigor absurdo da escravatura; Lucinda Maria da Conceição, mulata, vendedeira de tacacá e mingáo, livre do captiveiro por alforria, insurgiu-se, sendo juiza da festa, contra a forçada transferencia, e propoz que a irmandade pagasse aos senhores o trabalho das escravas no dia 31 de Agosto. A idéa generosa encontrou inteiro apoio e as irmans captivas, conquistadas assim para o folguedo, trouxeram o seu vivificador concurso á festividade, no proprio dia do santo. Depois, os senhores foram pouco a pouco comprehendendo a injustiça d’aquelle pagamento e a necessidade d’aquelle dia de folga: a idéa tornou-se praxe (VIANNA, 1905, p. 381-382, grifos da autora).

Nos chama atenção no trecho acima, primeiramente a afirmação da maciça presença de irmãs que eram escravas, constituindo a maioria dos membros da irmandade; ao impedimento imposto por seus donos reagiram com uma forma diferenciada de rebelião: a compra do dia de serviço. A ideia de tal protesto partiu de uma ex-escrava que ao ser eleita juíza da festa, não aceita a mudança do dia da festa pela intransigência dos donos das cativas e propõe que a confraria pague aos mesmos o dia de trabalho das irmãs. O que para Vianna é um ato de generosidade e filantropia dos donos das escravas, que posteriormente reconhecem “a injustiça d’aquelle pagamento e a necessidade d’aquelle dia de folga”, expressa, a meu ver, a inconformidade das irmãs confreiras em relação a intransigência dos senhores escravistas. Mais que a simples conquista de poder comemorar seu santo padroeiro no dia oficialmente a ele dedicado, a iniciativa dessas mulheres constitui-se numa ação prática para o reconhecimento de seus direitos, o devido respeito as suas convicções, bem como a liberdade de exercer sua religiosidade sem os rigores que sua prática profissional limitava. As irmãs de São Raimundo, muito mais que devoção, demonstram ter consciência do que objetivam para si e para o contingente de sua irmandade, sendo capazes 45

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de elaborar estratégias de ação para alcançar seus objetivos; para além da submissão, têm muita iniciativa, vontade, atitude e ação.

Considerações parciais Sendo espaços representativos da ação masculina – já que são os homens que estão na organização e direção das confrarias religiosas –, às mulheres sempre couberam papéis secundários e subalternos no interior das irmandades. Em relação a este aspecto, a confraria de São Raimundo constitui-se um caso, se não raro, pelo menos curioso. Constituída, quase que exclusivamente por mulheres – “[...] ennumerava mil e tantas irmans [...], sendo em sua maioria escravas [...]” –, estava sob a direção de uma figura masculina – o mestre Leopoldino, barbeiro bastante conhecido do largo da igreja de Santana. Sujeito controverso, o mestiço Leopoldino do Espirito Santo Figueira de Andrade, seu nome de pia, exerceu em toda sua vida diversas funções: pedreiro, barbeiro, sineiro, sacristão, dentista e médico amador. Demonstrando já na vida profissional suas múltiplas facetas, a atuação de Leopoldino na confraria não seria nada diferente, acumulava as funções de presidente, secretário, tesoureiro, conselheiro e orador – um verdadeiro déspota, nas palavras de Arthur Vianna, que complementa sua observação ressaltando a absoluta autoridade de mestre Leopoldino sobre os membros femininos da confraria, sempre obedientes e submissas ao seu presidente. Se é a total autoridade de Leopoldino e a plena submissão das irmãs de São Raimundo que Vianna faz questão de destacar, o que nos salta aos olhos é a constante iniciativa e autonomia da ala feminina desta associação religiosa. O expressivo número de mulheres que a constituiu já nos chama atenção, tendo em vista que geralmente estas chegavam às confrarias por afinidades de parentesco (são seus pais, maridos ou filhos, como membros associados que estendem seus direitos às esposas, mães e filhas). Não bastasse apenas isso para destacá-las, as irmãs de São Raimundo praticam ações que demonstram uma relativa autonomia em relação ao comportamento esperado das mulheres inseridas no contexto de uma sociedade patriarcal e machista, 46

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como a do século XIX. São independentes financeira e socialmente, trabalham, ganham seus próprios recursos, saem sozinhas e são membros bastante participativos e ativos de sua irmandade. Referências bibliográficas BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. MAUÉS, Maria Angélica Motta; VILLACORTA, Gisela Macambira. Matintapereras e pajés: gênero, corpo e cura na pajelança amazônica. In: MAUÉS, Raymundo Heraldo; VILLACORTA, Gisela Macambira (Orgs). Pajelanças e Religiões Africanas na Amazônia. Belém: EDUFPA, 2008. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. SOUZA, Sandra Duarte de; LEMOS, Carolina Teles. A Casa, as mulheres e a Igreja: relações de Gênero e Religião no contexto familiar. São Paulo: Fonte Editorial, 2009. THEIJE, Marjo de; JACOBS, Els. “Gênero e aparições marianas no Brasil contemporâneo”. In: STEIL, Carlos A; MARIZ, Cecília L; REESINK, Mísia L. (Orgs). Maria entre os vivos: Reflexões teóricas e etnografias sobre aparições marianas no Brasil. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003. VIANNA, Arthur. Festas populares do Pará. Annaes da Bibliotheca e Archivo Publico do Pará, Tomo Quarto, p. 373-389, 1905. WEBER, Max. Três tipos de poder legítimo. Lisboa: Tribuna da história, 2005.

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Capítulo 3 A Cultura Afro-Brasileira e a Construção do Gênero Feminino em Mar Morto de Jorge Amado e A Cidade das Mulheres de Ruth Landes Tayná do Socorro da Silva Lima Jorge Leal Amado de Faria, nasceu no dia 10 de agosto de 1912, em uma fazenda de cacau chamada Aricídia, que pertencia a seu pai, e que se localizava em Ferradas, distrito do município de Itabuna, Bahia, e faleceu no dia 06 de agosto de 2001. Foi um escritor pertencente à segunda geração modernista, que geralmente é delimitada cronologicamente por volta dos anos de 1930-1945, geração caracterizada também como romances de 30, pelo fato de abordar temáticas voltadas ao contexto social brasileiro da época. Como admirador das peculiaridades baianas, Amado trouxe para o panorama literário brasileiro marcas dessa cultura, os hábitos de pessoas comuns dessa paisagem, bem como aspectos da religiosidade, alimentação e folclore da vida da população que habitava aquele lugar: seu mar e as pequenas ruas do recôncavo baiano. Ruth Landes (1908-1991) foi uma antropóloga norte-americana que veio ao Brasil também na década de 30, mais precisamente em 1938-39. Suas pesquisas se focaram nas religiões afro-brasileiras em Salvador, principalmente no que se refere ao papel do gênero feminino dentro dos locais de cultos do Candomblé baiano. A vinda da antropóloga ao ambiente baiano foi considerado uma exceção, pois naquele período as mulheres pesquisadoras não tinham papel de destaque no cenário intelectual nacional, e Landes vem romper com tal “regra geral”, apesar de sofrer pesadas críticas com relação aos resultados de sua pesquisa por intelectuais da época. Neste artigo, trataremos sobre as manifestações das religiões de matriz africana em Mar Morto e em A Cidade das Mulheres. A partir do solo inspirador, a Bahia, com todas as suas particularidades religiosas, trataremos das suas marcas presentes na obra de Jorge 49

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Amado e Ruth Landes. Os autores descrevem a cultura afro-baiana dos anos 1930, bem como o misticismo dos rituais do Candomblé e de uma das festas mais famosas da Bahia, a festividade em homenagem a Iemanjá, orixá feminino das águas do mar, uma das divindades mais respeitadas e cultuadas na religião dos orixás. Neste trabalho buscou-se fazer um apanhado de como são praticadas as crenças afrorreligiosas na Bahia a partir de como foram retratadas pelo escritor Jorge Amado e pela antropóloga Ruth Landes. Propomos assim, uma intertextualidade entre o romance Mar Morto de Jorge Amado e obra A Cidade das Mulheres da antropóloga americana Ruth Landes, evidenciando o foco de análise sobre a construção do gênero feminino na religião afro-brasileira, principalmente no que se refere às relações de poder nos terreiros de Candomblé e na sociedade baiana da época. A Bahia como inspiração A Bahia e o Mar baiano assumem papel de inspiração de maior destaque nos romances de Jorge Amado, evidenciado em todos os seus encantos, mistérios e mitologias. No entanto, não é apenas no romance Mar Morto (1936) que a figura do Mar estará se fazendo presente nos escritos literários do escritor baiano, pois ao se ter contato com outras obras do autor, também se pode perceber a presença das águas. Como exemplo, as obras: Capitães da Areia (1937); Quincas Berro D’água (1961); A estrada do Mar (1938); Bahia de Todos os Santos (1945); dentre outras. Como escritor e natural do estado da Bahia, Amado foi um grande admirador das peculiaridades baianas. E como literato abordou em suas obras exatamente as marcas dessa cultura, trazendo para a literatura a vida das pessoas que habitam aquele lugar: seu mar e as pequenas ruas do Recôncavo baiano. Colocando a mostra a diversidade de tipos humanos pertencentes àquele local. Em relação a pesquisadora Ruth Landes, mesmo não sendo brasileira e naturalmente baiana, a mesma também opta em descrever o cenário da Bahia da década de 1930, com uma riqueza de detalhes e com um tema focado sobre raça e a soberania do gênero feminino nos terreiros baianos, fato até então inexplorado 50

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pelos intelectuais que pesquisavam sobre relações étnico raciais naquele momento. O interesse em produzir tal análise intertextual foi justamente associar pontos convergentes entre as descrições do território baiano feitas por Amado e Landes, pois ao se ler o romance (1936) e a etnografia (1938-39) é como se as abordagens socioculturais e religiosas se complementassem, mesmo com linguagens e métodos descritivos diferentes. Bem como buscar compreender o porquê da crítica literária e intelectual da época tecerem comentários tão estigmatizantes com relação aos dois escritores. A recepção que a crítica teve sobre a obra do escritor Jorge Amado e da antropóloga Ruth Landes paira em um terreno íngreme. E o que faz com as obras destes escritores tenham sido pouco agraciadas no meio acadêmico brasileiro? É importante salientar que este não se configura o fio temático norteador deste ensaio, porém ao longo dele percebemos que não poderíamos concluí-lo sem discutir a recepção da crítica sobre a obra de Amado e Landes, já que muito nos inquietou durante a produção do mesmo. A princípio faremos um breve comentário a respeito do que vem a ser a crítica literária e qual a sua função para com a literatura, tendo como referencial teórico o livro sobre crítica literária A Máscara e o Enigma de Bella Jozef (2006). A crítica literária vem contribuir para um entendimento e uma reflexão a respeito de determinadas obras literárias, com o intuito de questionar as temáticas evidenciadas pelos autores de uma determinada época. Sendo que, na maioria das vezes a crítica expõe posicionamentos divergentes aos dos autores de obras literárias. Fazendo abordagens estigmatizantes com relação ao estrutural e ao simbólico presentes nas obras. No entanto, a crítica na atualidade tem por função rever e retornar certas reflexões de obras antigas, através de novos métodos teóricos avaliativos literários. Dessa forma, o que antes poderia ser considerado algo negativo para uma dada obra, no momento presente, a partir de uma revisão literária, pode assumir um outro entendimento de uma mesma obra. De acordo com Bella Jozef (2006): A crítica é prolongamento e provocação, redizendo a obra nas estruturas de outra sensibilidade. Uma de suas tarefas é 51

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derramar sobre a literatura do passado a experiência literária do presente e de ler os antigos à luz dos modernos (p. 31).

Quando a autora utiliza a expressão “prolongamento” e “provocação”, a mesma evidencia que o papel da crítica é fazer um estudo além da obra, ou seja, prolongar o que foi exposto pelo escritor. E através dessa reflexão pôr em questão o que o autor pretendia repassar para seus leitores, com o objetivo de desvendar fatos que não são explicitados diretamente pelos escritores. Ainda para a autora, “Criticar é pôr em crise [...] Já não há valores eternos na arte, já não há modelos imutáveis a seguir.” (JOZEF, 2006, p. 33). O que podemos refletir é que assim como quase tudo na vida, a crítica literária também está em constantes evoluções e transformações. Pois, à medida que o tempo passa, novas concepções e valores vão surgindo na sociedade, o que faz com que o olhar da crítica literária tome novas posturas ou direcionamentos diante das obras literárias, sejam elas produzidas no passado ou na contemporaneidade. Dessa forma, podemos deixar claro qual a função da crítica para a Literatura. E ainda, de acordo com as palavras de Bella Jozef: O comportamento do crítico é determinado pela obra. Além disso, as grandes obras do passado se veem modificadas pelo olhar das gerações sucessivas. A crítica torna possível a criação: vive das obras e as faz viver, inventando a literatura (JOZEF, 2006, p. 34).

No decorrer da presente pesquisa, entramos em contato com textos de diferentes autores e críticos literários acerca dos romances escritos pelo escritor baiano Jorge Amado. Portanto, neste tópico iremos discutir algumas opiniões de determinados teóricos críticos com relação às obras literárias do mesmo. Afrânio Coutinho (2001) em seu livro A Literatura no Brasil discorre sobre o modernismo no Brasil, fazendo também a análise crítica dos diversos autores que pertenceram ao movimento, destacando as principais características de cada autor, no que diz respeito à forma de produções literárias da época. O mesmo fará várias e duras críticas em relação às obras de Amado, no que diz respeito à 52

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linguagem, ao teor político e ao sentimentalismo, dentre outros fatores explicitados. Contudo, a priori iremos fazer uma pequena explanação do que veio a ser o Modernismo no Brasil e suas respectivas características. Para que depois possamos enquadrar a postura de Jorge Amado frente à estética literária de sua época, e por que o mesmo não se utilizou dos mesmos requisitos norteadores do movimento, que por sua vez foi um dos fatores que fizeram com que o romancista baiano fosse bastante estigmatizado perante a crítica literária. Sabe-se que o termo Modernismo denomina na Literatura Brasileira, três fatores intimamente relacionados: um movimento, uma estética e um período. O movimento ocorreu em São Paulo, com a Semana de Arte Moderna, em 1922. E a partir desta data, iniciou-se no país uma literatura com particularidades consideradas propriamente brasileiras. Na primeira fase modernista ocorreu todo um processo de valorização da cultura brasileira e uma “repulsa” a tudo que viesse de fora. Porém, os idealizadores do modernismo brasileiro inspiraramse nas vanguardas europeias. Dessa forma, o objetivo maior do movimento foi fazer uma revolução nos conceitos literários e nos escritores brasileiros. A segunda fase do movimento costuma ser marcada a partir de 1930, período em que os conceitos modernistas já estão amadurecidos e que vão seguir para outros rumos. A prosa desta época vai caracterizarse como os romances de 30, que pouco dependeu da estética modernista. A maioria das obras escritas por Jorge Amado tinha cunho regionalista, social e romântico. O autor enquadrada-se principalmente na prosa ficcionista. De acordo com as palavras de Afrânio Coutinho, algumas das marcas do romancista baiano baseiam-se “pelo realismo cru e os palavrões” (COUTINHO, 2001, p. 369). A partir do comentário do autor, concorda-se que o escritor se vale dessas características nos seus textos. No entanto, não quer dizer que o mesmo não tivesse comprometimento com seus romances, pois seu intuito era escrever e descrever sobre o ambiente baiano, retratando suas peculiaridades no que se refere à linguagem, cultura, religião, sofrimentos e alegrias do povo baiano. 53

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Entretanto, muitas vezes o fato do escritor Jorge Amado colocar o cenário baiano em primeiro lugar nos seus romances e escrever histórias realistas com um grande “sentimentalismo” e “magismo” local, também causaram certo incomodo a crítica literária. Coutinho (2001) evidencia este pensamento no trecho a seguir: Mar Morto completa Jubiabá no que chamaríamos de “o ciclo do magismo sentimental”. Esta designação, como a pensamos, tem um caráter de valor de efeito negativo. Pelo magismo dos dois romances, Jorge Amado não se desprende de uma visão romântica e sentimental da cidade e do mar, tanto mais chocante quanto mais a sua intenção de realizar romances participantes imporia um tratamento realista (p. 372).

As obras de Amado são consideradas regionalistas, pelo fato de todos os romances retratarem o local da Bahia. O autor busca retratar de forma realista a vida dessa sociedade. No entanto, sabe-se que qualquer romance, por mais que se tenha características marcantes da realidade, sempre será uma ficção. Logo, o regionalismo realista do escritor não pode ser rotulado como algo artificial, porque mesmo se tratando de ficção, vai fazer com que a sociedade baiana e até mesmo brasileira se identifique com certos fatos e marcas dos romances. Principalmente em relação aos costumes e dialetos da região. O autor Eduardo de Assis Duarte (1996) em seu livro Jorge Amado: Romance em tempo de utopia, retrata bem os questionamentos citados acima referentes às obras do romancista baiano. O trecho a seguir comprova isto: “A palavra de ordem era: ‘escrever para o povo’. E, para tê-lo como leitor, impunha-se abordar seus problemas e aderir a seu modo de expressão” (p. 49). Portanto, ao se ter contato com as obras de Jorge Amado, percebe-se que o objetivo de escrever para o povo é alcançado com sucesso, pois o mesmo consegue atrair um grande interesse dos leitores por seus romances, não só no território nacional, como também internacional. Motivo pelo qual, foi consagrado o escritor brasileiro que mais teve suas obras traduzidas para diversas línguas.

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Outra reflexão ressaltada por Duarte (1996) é a relação entre a linguagem do povo com a vida sofrida dos personagens amadianos. Como se cita a seguir: A proposta de uma linguagem tão “nova” quanto “verdadeira” encontra aí sua consecução. Com isto, ressalta-se o isomorfismo entre a “língua errada do povo” e a dureza das situações retratadas (p. 50).

No que se refere às questões políticas e sociais presentes nas obras de Amado, percebe-se o interesse do autor por tipos de personagens masculinos que devido a vários problemas sociais, acabam por seguirem caminhos tortuosos, que depois de passarem por várias situações adversas, tiram lições dos fatos ocorridos e tornam-se homens politicamente do “bem”, transformando-se em homens que lutam por seus objetivos e melhores condições de vida. Com base nas palavras de Duarte (1996) sobre o questionamento acima, citamos o seguinte trecho: Nesse apego a aspectos da realidade, (...) Pela primeira vez, o oprimido vai ser não apenas o protagonista, mas também o indivíduo que luta contra a opressão. (...) Esse aspecto revolucionário existe não só nos textos amadianos mais diretamente políticos, mas em quase todo o romance dos anos 30 (p. 100).

Para concluir as ideias de Duarte (1996) acerca dos romances de Amado, faremos uma última citação de seu livro a seguir: Movido pela utopia de uma sociedade igualitária governada pelo partido dos operários, o romance amadiano empenha-se em representar o processo de evolução dos trabalhadores no rumo da consciência de classe e de sua atuação na cena política brasileira, objetivando ser, enquanto literatura, um fator positivo na construção dessa consciência de classe e de sua atuação na cena política brasileira (p. 249).

Com base na citação acima, o autor aponta uma abordagem da organização que estas famílias necessitam para almejar condições de vida melhores. Assim, como Duarte identificou a organização dos trabalhadores como uma categoria a ser discutida, outros 55

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autores também fizeram questionamentos acerca dos fatos retratados nos escritos de Jorge Amado. Sobre esse aspecto podemos citar também Miécio Táti (1961), que em seu livro Jorge Amado – Vida e Obra fará várias indagações a respeito das obras do romancista, sempre com muito respeito e admiração pelo mesmo. Uma das descrições sobre a obra de Amado que Táti (1961) abordou está demonstrada na citação a seguir: Além da maneira própria de falar do povo, bem lhe conhece Jorge Amado todos os vícios e caracteres, desde a minúcias curiosas da vida dos homens simples, delineia grandes quadros de costumes, joga com as cores, e com as vozes, e com as formas, e com os cheiros, e com todas as paixões das criaturas de seus livros, que são os heróis anônimos da existência diária das ruas e dos campos, operários ou trabalhadores das fazendas, muitas vezes figuras secundárias no desenvolvimento do romance, mas nem por isto menos expressivas da variada configuração de tipos, de que, na realidade, se compõe a massa popular (p. 44).

O mesmo autor fez um posicionamento também no se refere ao fato de muitos críticos rotularem as obras de Jorge Amado como romances piegas, porém Táti afirma que “(...) mesmo quando ele erra como prosador, acerta como poeta” (p. 59, 1961). Isto ocorre pelo fato de o romancista na maioria de suas obras se valer de muitas metáforas poéticas para narrar determinadas situações, o mais curioso é que o mesmo consegue conciliar realismo e mágico-fantástico em suas obras, que de forma prazerosa atrai um elevado público de leitores. No entanto, a maioria dos críticos da época em que Jorge Amado lançou-se a vida literária não souberam apreender de forma coesa o que o romancista quis repassar para seus leitores. Fato esse que foi exposto por Ana Maria Machado em uma entrevista ao Jornal do Comércio, na qual a autora faz a seguinte indagação: “Em termos literários, acho que muitas vezes a crítica universitária exigiu dele alguns aspectos que não faziam parte de sua proposta estética nem de seu pacto com o leitor” (MACHADO, s/d). De acordo com o citado acima pode-se fazer uma intertextualidade com o posicionamento de Miécio Táti (1961) a respeito da 56

A cultura afro-brasileira e a construção do gênero...

maneira como Amado vai desenrolar seus romances, que se confirma a seguir: A arte de Jorge Amado é feita neste tom: alcançar sentido épico sem fugir às estreitezas do cotidiano; mostrar bocas sem dentes, que falam às vezes engraçado; enche páginas com diálogos de sintaxe condenada e palavrões pesados; não usa de panos quentes para esconder as feridas das pernas de seus heróis – todos eles claudicam nos costumes e se cobrem de cheiros baratos, são viciados, violentos, bestiais às vezes, não raro míseras rameiras em absoluta decadência física e no último grau da perdição moral. Mas como coisas e indivíduos todos eles se envolvem num só clima de dor e desesperança, o quadro se transfigura, faz-se mesmo grandioso, aviventado pelo sopro de profunda humanidade e poesia em que o embebe o romancista (p. 73).

Com relação ao romance Mar Morto, Táti (1961) fez a seguinte reflexão em torno da obra: Também o autor, de incontrolável vocação poética, poderia forjar o seu poema chamado Mar Morto, apenas lançando mão de recursos descritivos dos encantos e mistérios da vida do mar, através de um entrecho romântico, em que o lado doloroso da realidade descrita se tingisse das cores de um inconsequente idílio piscatório; preferiu, sem fugir à configuração poética do tema, assentar os arroubos de seu estro na implacável verdade do “sofrimento” e de “miséria”, que são as teclas mais vibradas do romance de Guma (p. 85).

As citações discutidas acima contribuem para que tenhamos uma interpretação das questões sociais da época, segmentos esses que perpassam por situações de vulnerabilidades sociais e pessoais, como por exemplo, as famílias que residiam aos redores do cais da Bahia. Quando Amado retrata o contexto que ocorre nos arredores do porto, em que o mesmo encontra-se imbricado de vários componentes de interpretações, vale lembrar que a Bahia foi palco de várias etnias nos séculos anteriores, cada uma com suas culturas, ressaltando as diferenças religiosas, o que poderá con57

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tribuir para o autor abordar especificamente a família da época, com arranjos “simbólicos”. Em relação a pesquisadora Ruth Landes e a recepção de sua pesquisa pela crítica intelectual da época, tivemos como fundamento teórico o texto “O mistério dos orixás e das bonecas – raça e gênero na antropologia brasileira”, presente na obra Antropólogas & Antropologia de Mariza Corrêa (2003), na qual, dentre os temas abordados pela autora, a mesma refere-se a perseguição sofrida pela antropóloga norte-americana, no contexto da história da antropologia brasileira na década de 30. De acordo com Corrêa (2003): [...] nas décadas de 30 e 40, o Brasil recebeu inúmeros pesquisadores de outros países – a maioria interessada em pesquisar os nativos do país. Ruth Landes foi quase uma exceção ao eleger o tema raça para sua pesquisa e foi uma exceção por se tratar de uma pesquisadora por conta própria, já que, até então, as pesquisadoras que aqui chegaram eram doublés de esposas dos pesquisadores [...] (p. 167).

Com base na citação acima podemos compreender o diferencial da antropóloga Landes, ao chegar no país no momento em que as mulheres apresentavam papéis secundários, inclusive em relação às pesquisas antropológicas. E em relação ao foco de pesquisa, Landes se interessa em voltar seu olhar de antropóloga para as mãesde-santo baianas. Ainda com base nas palavras de Corrêa (2003): No cenário internacional, o livro recebeu uma resenha negativa, publicada na American Anthropologist, de um dos pesquisadores mais importantes da área de relações raciais naquela época nos Estados Unidos, Melville Herskovits; no cenário brasileiro, seus resultados de pesquisa já tinham sido criticados por Arthur Ramos, em 1942, mesmo antes de aparecerem em livro. [...] As análises até agora feitas a respeito da perseguição que Ruth landes sofreu por parte de Arthur Ramos e Melville Herskovits parecem assentar-se sobre três pontos: primeiro, em sua atuação como pesquisadora, isto é, tanto pelo fato de ser uma mulher entrando num campo dominado por homens, quanto pela sua relação amorosa com Édison Carneiro, seu guia no mundo dos Candonblés; segundo, 58

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por sua ênfase nas relações raciais, num momento em que a antropologia passava a dar ênfase a explicações culturais; e terceiro, por sua descrição, destoante das descrições canônicas, a respeito da importância que as mulheres tinham nos terreiros de candomblé (p. 168-169).

A partir do comentário acima, podemos ter uma noção dos grandes entraves sociais e intelectuais enfrentados por Landes, que além dos fatores citados acima, foi também criticada por ter abordado em seus relatos de pesquisa de campo a homossexualidade masculina recorrente em alguns terreiros de candomblé na Bahia, evidenciando a ocupação do cargo de sacerdote por homens homossexuais em um território dominado pelo matriarcado feminino das mães-de-santo baianas. Nesse aspecto exposto pela antropóloga, faz-se também uma associação com o romance Mar Morto, pois no mesmo Amado faz referência a grandes pais-desantos, o que mostra o quanto os romances do escritor apresentavam uma visão além do tempo em que foram escritos, visto que o romance analisado neste trabalho foi produzido alguns anos antes da vinda de Ruth Landes ao Brasil. Intertextualidade entre Jorge Amado e Ruth Landes A obra “A Cidade das Mulheres” da antropóloga Ruth Landes, expõe um relato etnográfico do contexto social de Salvador - Ba na década de 30, tendo como foco principal de sua pesquisa de campo a religião de matriz africana, mais precisamente o tradicional Candomblé da Bahia. Portanto, o estudo da autora se encaixa nessa pesquisa pelo fato de abordar principalmente como o Candomblé se evidenciava na prática no contexto baiano e assim traçar um paralelo com o romance Mar Morto, cujo escritor, Jorge Amado, faz uso do Candomblé como uma das temáticas principais de sua obra. Ler os relatos da experiência de Ruth Landes é como se fosse uma continuação dos romances de Amado, ou vice e versa, pois ambos descrevem tais peculiaridades baianas com minuciosos detalhes. Porém, não podemos esquecer que apesar de as obras do escritor baiano virem carregadas de um realismo e um regionalismo 59

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social, ou seja, expondo a “verdade” vivida por aquelas pessoas, suas obras são fictícias, sendo literatura, logo caracterizada como arte. Porém, o que mais chama a atenção na análise dos dois autores é o fato de se reportarem à Bahia, às suas crenças e seus mitos religiosos e ao Candomblé. No caso do romance Mar Morto, cujo um dos temas e personagens principais caracteriza-se em torno da divindade africana Iemanjá, sendo, portanto, a narrativa amadiana construída em torno da referida Deusa, podemos aqui, então, estabelecer uma comparação com a obra de Ruth Landes, conforme trecho, a seguir: Todo mundo embarca com os seus sacerdotes e sacerdotisas para lugares especiais onde pedem à mãe d’água boa sorte e bom tempo. Há várias dessas mães, mas a de que mais gostam é Iemanjá, uma das esposas do idoso Oxalá; às vêzes chamam-na pelo nome indígena de Janaína. Cantam e dançam para ela nos saveiros, onde ela pode descer, e no auge da festa lançam presentes na água, coisas bonitas que uma mulher apreciaria. Chamam a isso ‘presente para mãe-d’água’. Se o presente afunda – e elês tomam medidas para assegurá-lo! – a deusa o aceitou e fará o que lhe pedirem. Como soam os atabaques! Como os santos montam os seus cavalos (LANDES, 1967, p. 103).

No trecho acima podemos identificar como ocorre na prática uma das maiores festas religiosas populares que acontecem na Bahia, a grande festa em homenagem a divindade Iemanjá pertencente ao Candomblé, a Deusa considerada a dona do Mar, também considerada a grande mãe das pessoas que creem no culto africano. Tais descrições, do festejo, das características de Iemanjá, dos saveiros e marítimos, também estão presentes no romance Mar Morto, porém através de uma linguagem literária, poética, lírica e simbólica. O foco principal de Ruth Landes em sua obra é evidenciar a presença praticamente predominante do gênero feminino como liderança sacerdotal no Candomblé, porém em suas vivências no campo religioso baiano consegue observar outra vertente de sacerdotes no culto afro-brasileiro, entretanto pertencente ao gênero masculino, o que fugia ao “tipo ideal” do matriarcado das mães de santo baia60

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nas. Fato este que podemos correlacionar com uma das temáticas amadianas retratadas no romance pesquisado, no qual o escritor Amado apresenta tal evidência pelo fato de citar nomes de grandes pais de santo do ambiente baiano, o que podemos refletir o quanto a percepção do contexto social do romance Mar Morto (1936) estava além do momento em que ele escreveu. Fato este que podemos observar no trecho da obra a seguir: O pai-de-santo Anselmo era o porta-voz dos marítimos perante Iemanjá. Macumbeiro da beira do cais, antes fora marinheiro, andara pelas terras da África aprendendo a língua verdadeira deles, o significado daquelas festas e daqueles santos. [...] Era agora ele quem fazia as festas de Iemanjá, quem presidia as macumbas do Mont Serrat [...] Não havia naquela beira de cais e naquele mundão d’agua que não respeitasse o Anselmo, que já andara na África e rezava em nagô (AMADO, 2008, p. 79, 80).

A cultura afro-brasileira e a construção do gênero feminino em Mar Morto e A Cidade Das Mulheres Jorge Amado retrata em Mar Morto o contexto que ocorre nos arredores da beira do cais, cujo mesmo encontra-se imbricado de vários componentes de interpretações, vale destacar, que a Bahia foi palco de chegada de várias etnias nos séculos anteriores, cada uma com sua cultura, ressaltando as diferenças étnico-culturais, que contribuíram talvez, para que o referido autor abordasse de forma crítica e descritiva o cotidiano da cultura afro-brasileira presente nas famílias que desenvolviam suas atividades sociais, econômicas, políticas e religiosas naquele lugar. Favorecendo para uma reflexão a respeito da cultura afrobrasileira, importa evidenciar que esta abarca uma pluralidade de segmentos socioculturais trazida ao Brasil não só pelos africanos, mas também por outros povos que aqui se instalaram. Daí, apontar para as possibilidades de uma discussão no que se refere à abordagem do escritor voltada as temáticas sociais, especificamente a população que circulava à beira do cais, que em sua maioria constituíase de pessoas negras. 61

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Assim, o romancista descreve, a partir de sua obra, o dia a dia das pessoas que são caracterizadas como “povo de Iemanjá”, justificando que este povo foi trazido do outro lado do Atlântico, com costumes próprios, bem como com suas próprias crenças, observando que, dentre as matrizes religiosas de origem afro, a que obteve mais destaque na Bahia foi o Candomblé. A integração social baiana possibilitava o repasse entre eles de histórias narradas de forma oral pelos homens mais velhos do cais, a exemplo na obra, do velho Francisco, tio do personagem Guma, sendo o mesmo respeitado por sua história de vida, conhecedor dos mistérios que o Mar oferecia. De modo que os encontros à beira do cais tornavam-se um ritual, onde as canções cantadas pelos negros eram melancólicas e tristes, como as suas dificuldades de enfrentar os desafios de sobrevivência e os perigos do mar, cantados liricamente por esses personagens, conforme descrito no seguinte trecho da obra: “Já se houve o baticum dos candomblés, a músicas dos violões, o triste gemer das harmônicas” (AMADO, 2003, p. 130). Esse lirismo melancólico tornava-se mais angustiante quando a noite chegava antecipada, pois provocava pavor entre as mulheres que esperavam por seus companheiros na volta do mar, porque o trabalho deles girava em torno do transporte de mercadorias em seus saveiros de porto em porto pelas cidades da Bahia. Logo, quando a água se mostrava cor de chumbo, a tranquilidade da beira do cais se transformava em medo, e este era acrescido da dúvida de que talvez o companheiro não voltasse vivo. Mas quando os marinheiros chegavam finalizando suas rotas, traziam tambem a felicidade para aquelas mulheres que os esperavam no cais! Haveria festa, o som dos tambores transmitiriam a tranquilidade da verdadeira noite na beira do cais, aquela noite significava a realização do amor, acompanhada pelas canções dos negros, que Amado descreve da seguinte maneira: Em breve Guma chegaria, o Valente atravessaria a baía, e ela o teria entre os braços morenos e gemeriam de amor. Agora a tempestade cessara, ela já não tinha medo. [...] Pequenas ondas batiam nas pedras no cais e os saveiros balouçavam mansamente (AMADO, 2008, p. 17). 62

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Como se pode observar no trecho acima, o medo vivenciado pelas pessoas da beira do cais nas noites de tempestades tornava-se algo corriqueiro na vida dessas famílias, pois tal inquietação de perderem os membros de suas famílias fazia parte do contexto cultural das mesmas. Outro fator que merece destaque em Mar Morto e neste tópico é a figura do elemento feminino, pois ao longo do romance as personagens são construídas de forma singular; a descrição das mulheres do cais mostram-nas simples e valentes, mas com algo em comum. Essas mulheres são esposas de mestres de saveiros e aproveitam cada momento do dia como se fosse o último, porque sabem que a qualquer momento podem perder seus maridos para Dona Maria, como essas mulheres denominam Iemanjá, que é a divindade respeitada e cultuada por todos aqueles que habitam a Bahia, como Amado (2008) evidencia no trecho a seguir: “[...] é uma lei fatal: Um dia o homem fica no mar, morre com o saveiro que vira. E a mulher procura seu corpo e espera que o filho cresça pra vê-lo morrer também [...]” (AMADO, 2008, p. 250). Dessa forma, o universo feminino na obra, destaca mulheres de personalidades muito fortes, que marcam a narrativa pela valentia e por serem conscientes de que a qualquer momento perderão seus maridos e filhos, e que se os perderem não podem fazer nada, a não ser aceitarem tal destino. Porém, uma personagem que não se conforma com tal destino, é Lívia, porque nascera na cidade, seus hábitos são urbanos. Logo, estava vivendo uma realidade a qual não lhe era peculiar e dificilmente alguém que não conhece essa estrada larga que é o mar, entende os perigos e acontecimentos que se passam nele. É importante também lembrar o respeito que as pessoas da beira do cais têm com o mar, se o mar está agitado nenhum pescador ousa sair, porque sabe que as águas estão furiosas, que “Janaína está furiosa”, pois ela não brinca no mar, “Iemanjá é assim terrível porque ela é mãe e esposa” (AMADO, 2008, p. 78). Já a personagem Rosa Palmeirão é conhecida por todos como mulher de navalha na saia e punhal no peito, essa “mulata” tinha até um ABC de suas aventuras. Rosa é mulher de gênio forte, muito conhecida porque já tinha sido presa várias vezes e 63

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batia em homem. Essa personagem sofrera muito, pois o seu primeiro homem, Rosalvo, deixava-a passar fome e batia-lhe muito. Quando soube que seu filho nascera morto por causa de uma “beberagem” amarga que Rosalvo lhe dera, mudou totalmente, e se transformou nessa mulher valente que nenhum homem jamais ousaria levantar a mão para machucar. Outra personagem marcante no romance é Esmeralda, companheira de Rufino, negra, que se oferecia para os marinheiros no cais, tinha o corpo “moreno”, seios pujantes e olhos verdes brilhantes, mas apenas o negro Rufino não percebia sua malícia porque estava apaixonado, até que um dia começou a desconfiar de Esmeralda. A mesma confessa que lhe traíra com Guma, seu melhor amigo e Rufino, então, acerta-lhe a cabeça com o remo, matando-a e, em seguida, joga-se no mar para ser devorado pelos tubarões. A personagem Maria Clara era casada com Mestre Manoel, cantava belas canções nas noites de amor no cais e não se desesperava quando seu mestre de saveiro demorava a chegar, porque ela nascera e vivera nos saveiros, esperava que quando Iemanjá chamasse seu homem ele fosse valentemente. Logo, a personagem se diferenciava da personagem Lívia, no sentido de que ela pertencia àquela cultura vivenciada por seus familiares, cultura esta que era repassada oralmente aos descendentes que viviam à beira do cais. Outra personagem presente na obra é Judith, que perdeu seu marido Raimundo e seu filho Jacques, numa noite de tempestade e de fúrias violentas de ventos; porém carregava em seu ventre outro filho de Raimundo. Agora Judith terá que trabalhar duro para sustentar seu filho, porque seus homens, Raimundo e Jacques, foram levados pela mãe d’água, que é a mulher mais bonita do mundo, a temida Iemanjá. Dentre as mulheres citadas, Jorge Amado destaca também as três filhas de Traíra (morta ao levar um tiro, em Cachoeira) Marta, Margarida e Rachel. Marta tinha dezoito anos, cosia peças e estava preparando um enxoval à espera de um noivo; Margarida nadava na beira do rio; Rachel era a menor, apenas quatro anos, brincava com boneca e não sabia pronunciar direito as palavras. 64

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Outra personagem em destaque na narrativa é a professora Dulce. Levando em consideração que ela acompanhava a vivência daquelas famílias e daquele contexto social, fazia uma reflexão no sentido sobre como colaborar com as mesmas. Assim, a inquietação decorrente da situação enfrentada por aquelas famílias era frequente para essa professora, que constantemente angustiava-se, pois seus alunos permaneciam pouco tempo na escola e quando chegavam a idade dos 11 anos, na qual muitos já conseguiam velejar um saveiro ou carregar um saco de farinha na cabeça, estavam preparados para atividades de homem adulto. Ressalta-se que no encanto das histórias que ela contava aos seus alunos, posteriormente, só conseguia ver tristeza no destino que cada um assumia para si. O mar e seus elementos deixavam de ter a melodia que a fascinava, pois diante da realidade na qual via seus ex-alunos só sentia tristeza e não podia fazer nada para mudar o destino daquelas pessoas. Sofria diante daquela mazela social que tanto a atormentava, sentia-se impotente ao ver aqueles meninos tão jovens sem frequentar a escola, e tinha certeza de que sozinha não poderia mudar aquela realidade. A educadora esperava, como se por um milagre, que melhorias viessem para aquele povo, que as esposas não precisassem se prostituir pra sobreviver depois que seus homens morressem. Todos esses posicionamentos mostram que Mar Morto é uma obra modernista, mas que retoma um certo lirismo regional. Por mostrar, a partir de um romance, situações sociais e políticas em meio a uma temática amorosa, as quais vivenciavam os personagens da beira do cais, Jorge Amado foi muito criticado, pois se tratando de uma narrativa moderna, não seria de acordo falar de amor, porém, através do “romantismo” de suas temáticas ele retrata questões sociais específicas da população e da cultura baiana.

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Considerações finais Jorge Amado e Ruth Landes foram escritores pouco agraciados em pesquisas acadêmicas, logo fazer um trabalho voltado para a interpretação do romance Mar Morto e da obra etnográfica A Cidade das Mulheres, e identificar a grandeza de suas contribuições para literatura e para a antropologia brasileira , tornou-se um desafio no sentido de se conseguir fazer uma abordagem hermenêutica das duas obras, analisando de forma sistemática elementos simbólicos significativos da cultura e da religião afro-brasileira. Porém, como em qualquer pesquisa, no início ocasionou certa insegurança, pelo fato de não se ter um acervo teórico tão vasto referente ao escritor baiano e a antropóloga norte-americana, sobre as temáticas evidenciadas pelos mesmos. Entretanto, o fato de as próprias obras serem constituídas de vários elementos simbólicos e interpretativos, e com auxílio de outras bases teóricas, foi possível obter um suporte teórico para se adentrar nas peculiaridades da Bahia descrita por Amado e Landes, e analisar uma gama de aspectos culturais descritos por eles. E através disso, desmistificar a visão preconceituosa de certos críticos em relação as obras de Jorge Amado e as pesquisas antropológicas de Ruth Landes, demonstrando na presente pesquisa o fato do romance Mar Morto apresentar um valor literário diferencial dos demais, uma vez que apesar do contexto da época em que a maioria de suas obras foram escritas, o país enfrentava um contexto bem complexo, e por conta desse envolvimento, favoreceu para que na obra o autor utilizasse recursos metaforizados para descrever e abordar de forma crítica a população menos favorecida da época e suas diferentes formas de crenças, especificamente no contexto sociocultural da Bahia. Dessa forma, apesar das numerosas críticas direcionadas as obras de Jorge Amado e Ruth Landes, pretende-se deixar um legado de como eles contribuíram para a intelectualidade brasileira e que de acordo com novas concepções por parte da crítica literária, uma nova reavaliação hermenêutica de suas obras, no sentindo de fazer uma redescoberta do valor simbólico que os escritores deixaram literariamente como herança poética e antropológica como abordagem de gênero. 66

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Referências bibliográficas AMADO, Jorge. Mar Morto; posfácio de Ana Maria Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. 6ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Global, 2001. CORRÊA, Mariza. Antropólogas & Antropologia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record, 1996. JOZEF, Bella. A Máscara e o Enigma. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Ed., 2006. LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. MACHADO, Ana Maria. Jorge Amado está bem vivo. Entrevista ao Jornal do Comércio. SEVERINO, A. J. Metodologia do Trabalho Cientifico. 23ª Edição. São Paulo: Cortez, 2007. SILVA, Vagner G. “Interação de Matrizes”. In: História Viva (Op. cit. p. 12-19) SILVA, Vagner G. “Terreiros de Candomblé”. In: História Viva. Grandes Religiões. Culto Afro. São Paulo: Duetto Editorial. s/d. TÁTI, Miécio. Jorge Amado- Vida E Obra. Belo Horizonte: Itatiaia, 1961.

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Capítulo 4 “Mulher que presta é aquela que é vivida”1: a Interdição Feminina Gerada pela Sangria Menstrual Lucielma Lobato Silva O estudo de gênero quase sempre nos remete às relações de poder, pois, é o instrumental mais apropriado para a percepção das relações sociais. No estudo do conceito de gênero não só se analisa a situação das mulheres, mas, também, a história social de papéis substancialmente demarcados e desiguais (SILVA, 1998). Isso por meio da estratificação de hierarquias (SAFFIOTI, 2004), que determinam o lugar em que “homens” e “mulheres” devem ocupar. Nesse âmbito o ser “homem” ou “mulher” tem-se incluído no que se pode denominar de “formação histórica” ou “social”, ou seja, são circunscritas em um espaço e tempo pré-determinado pela sociedade e que sedimentam diferentes concepções, e, o fazem de acordo com “diferentes modelos, ideais, imagens que têm diferentes classes, raça e religiões sobre homens e mulheres” (LOURO, 1990, p. 43). Portanto, a construção de gênero está imbricada ao processo de socialização onde são formatados os papéis e as maneiras de atuação de homens e mulheres em diferentes tempos e espaços. Nesses espaços os homens ou mulheres obtêm maior ou menor possibilidade de ascensão social. Nas religiões afro-brasileiras, por exemplo, vemos a possibilidade de ascensão religiosa para ambos os gêneros, pois tanto os homens quanto as mulheres podem assumir quaisquer postos na hierarquia religiosa sem que sua condição sexual seja levada em consideração (SEGATO, 2005). Porém, em alguns casos a mulher fica apartada de adentrar em sua casa de santo devido sua condição biológica, ou seja, devido menstruar. Sendo assim, este artigo visa analisar uma casa de santo dirigida por uma mulher em que a maioria de seus filhos de santo são mulheres férteis, isto é, ainda estão passíveis as suas regras mensais.

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A mulher nas religiões de matriz africana Nas religiões de matriz africana homens e mulheres podem vir a ocupar o maior posto hierárquico da religião, isto é, o de sacerdotes ou sacerdotisas. Porém mesmo Landes (2002) afirmando em A Cidade das Mulheres que eram elas (as mulheres) quem dominavam a vida na sociedade baiana, sendo elas a “canalização da vida na Bahia” (2002, p. 221), pois, na época eram consideradas sagradas, uma vez que serviam como o único meio pelo qual os deuses poderiam vir à terra2, e mesmo detendo esse poder social e espiritual elas tinham um papel exato a exercer no interior da sociedade brasileira3. No Tambor de Minas do Maranhão, as mulheres também eram consideradas pilares de sustentação da religião, como mencionava Nunes Pereira (1948), Sérgio Ferretti (1985), Mundicarmo Ferretti (1996) e Santos (2001). Nessa religião afro-maranhense especialmente nas Casas das Minas e na Casa de Nagô somente as mulheres podeiam receber entidades espirituais. Segundo Ferretti (1995) esse quadro passa a se modificar com a disseminação das Casas de Caboclos, pois os homens nessas casas de santo do Maranhão passam não só a receber as entidades como também a dirigir os espaços sagrados. E como na Bahia, as grandes matriarcas maranhenses, estavam submetidas às regras de conduta feminina, pois quando os maridos saiam de casa, por diversos motivos, elas geralmente não se casavam novamente (SANTOS, 2001; ABREU, 2004). No século XIX quando a Mina4 é irradiada para o Estado do Pará (VERGOLINO, 2002), vem com a livre participação mediúnica de mulheres e de homens apesar de ser fundada por mãos femininas5, isto é, nas primeiras casas de matriz africana no Pará os homens poderiam receber entidades como médiuns de incorporação. Essa questão era algo tal inaceitável para as casas de matriz africana ao ponto de o pesquisador maranhense Nunes Pereira (1948) se impressionar quando veio ao Pará e viu um negro bailarino na corrente mediúnica: Chocou-me, contudo, entre as “filhas de santo”, a presença de um bailarino negro que conduzia ao longo das danças e tirava “pontos”, parecia-me uma inovação ou a sobrevivência de outro culto africano. (...) Esse negro de Belém era um 70

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extraordinário bailarino, (...) Era igualmente extraordinário no tirar os “pontos” (...) Mas essa inovação foi chocante, por que nunca vi nenhum homem dançar em Casa de Mãe Andresa Maria (PEREIRA, 1948, p. 53).

Diante disso os gêneros masculino e feminino podem abrir casas de Mina Nagô, assim como em quaisquer religiões de matriz africana e iniciarem seus desenvolvimentos mediúnicos, dessa maneira ambos podem se tornar sacerdotes. Mas o feminino em algumas casas é interditado no período menstrual por serem consideradas venenosas ou fonte de energias negativas quando estão nesse período. Tal questão é responsável pela concepção de que as mulheres, mesmo estando em religiões como as afrobrasileiras em que elas detêm determinado poder, são sujeitas a “marginalidade” simplesmente por serem mulheres e, portanto, diminuídas diante ao seu sexo oposto que não vivem tais ciclos, e muitas vezes isso ocorre por elas mesmas. Uma casa de santo dirigida por mulher6 Em Abaetetuba não podemos afirmar a existência de um matriarcado, pois quando se pensa em Mina Nagô no remetemos as figuras Pai Paulo de Oxóssi e Daniel de Oxalufã7 (SILVA, 2009). Porém, mulheres também exercem grande poder no comando religioso das casas de Mina em Abaetetuba. A exemplo, temos a sacerdotisa Mãe Maria José ou Mãe Maria é zeladora da Tenda Espírita de Oxum, estabelecida na Mina Nagô em Abaetetuba desde 2002. Está localizada na Rua Haroldo Araújo sem número no Bairro da Aviação no município de Abaetetuba-PA. A sacerdotisa realizou sua feitura de santo na Mina Nagô no terreiro de Mãe Fátima Canudo, localizado no bairro da Sacramenta em Belém do Pará. O processo de feitura não ocorreu imediatamente após a entrada de Maia José na casa santo, pois foram anos de desenvolvimento espiritual para que as entidades determinassem o dia exato em que deveria ser feito os rituais para a iniciação. Segundo a mãe de santo: Nesse terreiro eu fiz a minha feitura de recolhimento durante 7 dias de recolhimento no quarto de santo, logo de71

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pois que eu incorporei em um trabalho forte que a entidade determinou que a feitura de santo fosse feita o mais rápido possível, imediatamente. Fiz os trabalhos todos, o de exus, dos orixás e dos caboclos, todas as obrigações necessárias. Durante a feitura fiquei o tempo todo incorporada, por isso não me lembro de muita coisa. Essa foi uma grande feitura que foi feita de lá pra cá foi só as minhas entidades que tomaram conta da minha vida8.

Após a conclusão do processo iniciático a então sacerdotisa Maria José volta para Abaetetuba com o título de Vodunsa, Sacerdotisa ou Mãe de Santo na religião Mina Nagô recebido pelas mãos de sua mãe de santo, este título foi emitido pela Federação Espírita Umbandista dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Para – FEUCABEP, o qual fez com que Mãe Maria José adquirisse reconhecimento e clientes em Abaetetuba. Desde a fundação da Tenda no município de Abaetetuba em 1992 ela tem sofrido um aumento e uma diminuição em número de filhos de santo, ou seja, os filhos entram na casa para realizarem seus processos de desenvolvimento espiritual, mas em pouco tempo saem da casa. Essa casa de santo possui 08 filhos de santo9, mas hoje os que realmente frequentam o espaço sagrado são 06, como se verificar no quadro 01 disposto abaixo: QUADRO 01: Obrigações realizadas pelos filhos de santo na Tenda Espírita de Oxum Médiuns da Casa

Filhos de Santo da Tenda e as respectivas obrigações

Marcelina

Batismo, 5 Amancis

Marcelita

Batismo, Anjo de Guarda firmado

Nete

Batismo, Anjo de Guarda firmado

Mª Luiza

Batismo, Anjo de Guarda firmado

Marcicleide

Batismo, Anjo de Guarda firmado

Pedrinho

Batismo

FONTE: Acervo da autora

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Essa questão de crescimento e diminuição do número de filhos se deve entre tantos fatores, pela administração ser feminina e considerada rígida. Pois, os filhos especialmente os homens e os homossexuais saiam da casa. Segundo informações da mãe de santo, assim que “eles começam a perceber como são as coisas aqui na minha casa, eles vão embora, eu não faço questão alguma de ter eles aqui, porque eu quero gente que venha pra trabalhar, pra desenvolver”10. Tal situação tem feito com que os filhos que entram na casa fiquem pouco tempo e logo buscam outro lugar para dar andamento na mediunidade. A esse respeito a sacerdotisa comenta: Aqui na minha casa não temos gays nem lésbicas, os filhos e filhas desta casa tem família e marido, essas pessoas não vem aqui, não sei por que, eles vieram ficaram um tempo, mas não permaneceram, eles acharam o ritmo de trabalho muito pesado. Cheio de regras, eles não ficam. Além do mais aqui o médium não bebe e nem fuma, ele só vai fazer isso quando as entidades estiverem na cabeça, e com responsabilidade elas (as entidades) vão assumir o médium. Mas, eu não deixo vir pra minha casa e ficar bebendo, fumando, falando palavrões, aqui nem pensar11.

Seja como for, aumento do número de filhos de santo nos últimos anos na Tenda Espírita de Oxum tem crescido sempre em quantidade no número de mulheres, ver o quadro 01, por essa razão este espaço sagrado é um reduto comando pelo gênero feminino, na condição da sacerdotisa, além de ser frequentado por médiuns que em sua maioria são pertencentes ao mesmo gênero. Divisão sociorreligiosa pelo gênero Devido a Tenda Espírita de Oxum ter sido firmada em apenas um único segmento afro-brasileiro que é a tradição afro-paraense Mina Nagô sob a influência da Umbanda, possui sua divisão de cargos hierárquicos, como poder ser observado no quadro 02.

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Religião, Gênero e Poder

QUADRO 02: Membros, Cargos Religiosos, rituais de incitação, período de entrada e idade dos filhos de santo na Tenda Espírita de Oxum Membro Religioso

Cargo Religioso

Período de Entrada na

Idade

Tenda Maria José

Sacerdotisa/Mãe de santo

1992

45 anos

Marcelina

Mãe Pequena

1999

32 anos

Marcelita

Filha

1999

35 anos

Nete

Filha

2000

30 anos

Maria Luiza

Filha

2000

30 anos

Marcicleide

Filha

2000

23 anos

Pedrinho

Filho

2010

12 anos

Ramon

Filho

2005

28 anos

Clécio

Filho

2004

30 anos

Vilma

Filha

2005

27 anos

Décio

Tamboreiro

1990

46 anos

FONTE: Acervo da Autora.

Como pode ser comprovada pelo quadro 02, a Tenda hoje possui 08 filhos de santo sendo que apenas 06 primeiros frequentam com assiduidade o espaço sagrado. Nos períodos de festas de santo ou de obrigações para as entidades da casa, todos ajudam no desenvolvimento do ritual, mas os pormenores são, em sua maioria, feitos especialmente pela mãe de santo como a colheita de ervas, a produção dos banhos, o preparo de alimentos e a arriação das oferendas. Por isso a importância da sacerdotisa é total para a casa de santo, pois ela detém toda a gama de conhecimento que envolve a religião Mina Nagô. A mãe de santo ainda pontua: A comida é de santo é feita por mim mesma e pela mãe pequena. Eu faço questão de fazer a comida do meu orixá eu mesma, por que o médium ainda não tem condição de 74

Mulher que presta é aquela que é vivida

fazer, as entidades eles ainda não deu permissão de fazer a comida. Eu faço todo, quando é uma festa de uma entidade de qualquer filhas de santo sou eu quem faço. Somente com a ajuda das filhas de santo no preparo, elas também ajudam a macerar as ervas pra fazer os banhos, na defumação e na limpeza do terreiro, também tem a função de organizar as roupas dos vultos e nossas12.

Hierarquicamente, após a mãe de santo está a mãe pequena que também possui grande conhecimento a respeito da sua religião. Ela é tão importante para a casa que quando um determinado ritual está acontecendo, a mesma tem a possibilidade de dar andamento a todo o ritual, sem a presença de Mãe Maria José. O que implica dizer que ela possui uma gama de conhecimento que proporciona sua presença ser de total relevância para o espaço sagrado de Mãe Maria José. Segundo a sacerdotisa: Tenho agora 6 filhos dois homens e quatro mulheres, uma mãe pequena e outros desenvolvendo tarefas paralelas. Em tempo de festas eles ajudam, mas eu organizo quase todas as coisas, mas as tarefas são assumidas quando a gente tem tempo de trabalho que são dadas as funções pra cada uma. Tem uma mãe pequena no terreiro na minha ausência ou quando eu to incorporada ela toma conta. Agora existe todo um processo, aqui na minha gira tem toda uma energia fora do normal. As entidades tomam conta do ritual, eles tomam conta do ritual e não dão toda a responsabilidade pra os médiuns, e por eles é dado as funções para os médiuns, mas controlado, eles ficam com a maioria da responsabilidade, por que existe médiuns que não estão incorporando normal ou não está preparado, por isso não é dado de imediato a responsabilidade pra esse médium13.

A função da mãe pequena é fundamental para a Tenda e seu conhecimento a respeito dos rituais, fazem dela, de acordo com as informações da mãe de santo uma: Eximia mãe pequena, se eu mandar chamar ela está aqui, e também vem sem eu mandar chamar. Ela faz tudo meche em tudo, por que tem a minha permissão, é a única que pode 75

Religião, Gênero e Poder

meche pra zelar. Mas, ela não pode tocar14 nos pontos, mas na minha ausência ela poderia abrir o trabalho. Mas se eu estou ela não faz ela não faz, ela respeita a hierarquia15.

As outras filhas de santo apesar de não possuírem o grau mais elevado como Marcelina, que também são relevantes para o espaço sagrado, elas estão sempre ajudando nas organizações do terreiro como a limpeza do mesmo, ajudando de forma direta e indireta na produção dos alimentos e banhos16, na confecção dos indumentários e das roupas das entidades. Além de ajudarem financeiramente para as despesas dos rituais e das festas de obrigações. Os filhos de santo são três, mas somente um está frequentando o espaço sagrado, este filho comparece no terreiro apenas momentos antes dos rituais, o que implica dizer que ele não ajuda em nenhum processo de organização ritualística de sua casa, até porque ele é um menino de 12 anos de idade, o qual está estudando nos momentos em que os rituais são organizados. Os demais filhos ausentes17 da casa estão sempre ajudando com auxílios financeiros para manutenção do espaço sagrado e para que seus pontos fiquem sempre firmados. No rol dos homens médiuns que frequentam a casa temos também os tamboreiros que assim como qualquer casa de matriz africana são de fundamental importância para a manutenção da casa, uma vez que todo ritual inicia por intermédio desses agentes sociais que ao tocá-los emitem os sons que somados às doutrinas cantadas impulsionam as entidades a virem à terra resolver as aflições. Eles são três, mas somente Décio é consagrado para esta função, os outros vão para as festas e rituais quando a mãe de santo manda chamar e os paga pelo trabalho realizado. Para a sacerdotisa: O tamboreiros é importante por que ele é quem bate os tambores pra chamar as entidades pra vir ver os nossos anseios, sem o tamboreiros não tem teria nada, ele é de suma importância para o ritual como todo. Pela estrutura da própria religião. O tambor é de responsabilidade dos tamboreiros.18

Sendo assim, este espaço sagrado é um reduto de poder feminino, elas são as que comandam toda a estrutura, pois os homens assumem o posto secundário nas ordens e determinações do mesmo, 76

Mulher que presta é aquela que é vivida

por mais que estes estejam nos toques dos atabaques que é uma função primordial, mesmo assim eles não têm poder de mando. São todos admirados pela mãe de santo e pela mãe pequena. Algo semelhante foi visto por Ruth Landes (2002) no Candomblé da Bahia, onde esta autora afirmava que o Candomblé e, especialmente, o lugar das mães-de-santo na sociedade baiana chamaram muita atenção Landes, pois as mulheres eram quem canalizavam a vida na Bahia. É a partir dessas mulheres que ela passa a refletir sobre a própria condição feminina, fazendo uma leitura sensível do poder que detinham. Menstruação: um vermelho que suja e interdita Porém, esse poder é periodicamente barrado, pois nos dias em que essas poderosas mulheres menstruam, ficam interditadas de adentrar na casa de santo e de exercer tarefas primordiais para o seu desenvolvimento espiritual e da própria casa de santo. Essa questão ganha complexidade quando se pensa na Amazônia, local em que a pesquisa foi realizada, pois é uma região brasileira repleta de simbolismo que a caracterizam como uma região mágica ou encantada, devido crença de boa parte da população em botos, curupira, lobisomem, oiaras, matintas-pereira, encantados do fundo e da floresta, bichos visagentos, dentre outros. A crença nesses encantados gera outras ligadas a tabus como o menstrual, o qual tem a função de restringir o feminino de diversas atividades econômicas, sociais, religiosas, além de atividades profissionais, por ser considerado um período que gera intenso perigo a toda comunidade. O antropólogo Heraldo Maués (1990) em sua obra intitulada A Ilha Encantada faz uma análise da pajelança amazônica no distrito de Itapuá, localizado na cidade de Vigia-PA. Segundo Maués a pajelança é caracterizada como uma atividade de cunho religioso que tem a função de realizar curas por intermédio do pajé incorporado pelos encantados. Esses pajés realizam uma diversidade de curas em doenças consideradas naturais, de especificidade medicinal e nãonaturais, gerada “pela malinesa dos encantados”. Dentre as doenças ditas como naturais tem-se a suspensão que é a “interrupção anor77

Religião, Gênero e Poder

mal da regra de uma mulher menstruada, em que o sangue pode subir para a cabeça”, isso “pode ser provocado se a mulher, durante a menorreia, pisar no molhado ou no barro” (MAUÉS, 1990, p. 48). A antropóloga paraense Angélica Maués (1993) afirma que comunidade de pescadores Itapuá localizada na região do salgado paraense, a mulher é vista condição de inferioridade pela própria comunidade, e isso é tido como sendo algo normal, pois quando mulher ao menstruar, se torna sujeita a seu estado fisiológico, é considerada então “venenosa”, fonte de panema, e poluída, podendo assim azarar e até destruir, causar a morte de plantas ou animais. E o pior, podendo atingir também as pessoas no caso o homem, no seu trabalho da pesca, a atividade econômica mais importante da vila. Essa questão pode ser considerada como tabu devido excluir o feminino de diversas funções, o que é justificado pela sociedade itapuense como algo normal, pois a mulher menstruada é, de acordo com informações de pessoas da comunidade, instrumento de impureza, poluição e veneno que em contato com os outros seres (homem) pode ser o fator de panema (azar). Tal condição, na análise da autora, ratifica o status de sujeição feminino em Itapuá. E nas palavras de Angélica Maués (1993): À mulher, particularmente, por sua especificidade e ambiguidade em poder mover-se continuamente entre dois domínios distintos, o da cultura e o da natureza, a ocupação social que ela ocupa reflete exatamente esse modo de perceber as coisas. Ela se difere ou se opõem ao homem pela sua participação em processos naturais que impedem de uma interferência social direta, uma vez que eles não podem ser controlados por influência humana. Como esse controle a rigor não pode ser feito, entra em jogo, então os artifícios criados pela própria sociedade que através das regras culturais, em vigor para essa situação, realiza uma interferência que, de outro modo não é possível conseguir (MOTTA, 1993, p. 103).

Nas religiões de matriz africana, de acordo com Landes as mulheres mães de santo do Candomblé só poderiam assumir o maior posto sacerdotal após a menopausa, “período em que a mulher vira homem”. Em uma entrevista com Martinho do Bom Fim, Landes menciona: 78

Mulher que presta é aquela que é vivida

As mulheres são sagradas para os deuses quando no interior dos templos. Compreende? E se supõem que os homens sejam profanos pelas suas relações comerciais e com mulheres. Imagina-se que o sangue dos homens seja quente e isso é considerado ofensivo para os deuses, para quem as mulheres são preparadas. Martinho não se queixou do sangue quente das mulheres? Das jovens, sim. Ele acha que só devem ser sacerdotisas-chefes, mães, como são chamadas quando idosas e libertas de todo desejo e da menstruarão (LANDES, 2002, p. 77).

Edison Carneiro (1991) quando descreve o Candomblé também faz referências a importante presença feminina, pois segundo ele foram as grandes matriarcas quem fundaram esta religião em terras do novo mundo, e, “antigamente o Candomblé foi nitidamente um oficio de mulher” (p. 104). Eram elas (as yalorixás ou mães de santo) quem cozinhavam, “enfeitavam a casa por ocasião de festas, superintendiam a educação religiosa de mulheres e crianças. Outro indício está na marcada preponderância da mulher na história do candomblé (p. 104-105)”. Essas matriarcas descritas por Carneiro (1991) são em geral mulheres idosas, “respeitáveis, que cumpriam todas as suas obrigações como filhas durante várias dezenas de anos” (p. 105-106). Nesse sentido, apenas as mulheres idosas, isto é, que não menstruam é que podem assumir o sacerdócio e os postos elevados na hierarquia do Candomblé, isso se deve entre tanto fatores pela menstruação que as torna impuras. A esse respeito Roger Bastide (1978) menciona que mulheres menstruadas não podem fazer atividade nenhuma nas casas de santo, na verdade não podem se quer comparecer no espaço do terreiro quando menstruadas, pois as entidades tem horror do sangue expelido do corpo feminino quando do período das sangrias menstruais, segundo o mesmo: Mulheres menstruadas não devem nem mesmo assistir à festa, pois as divindades têm horror ao sangue catamenial; se uma delas ousa desobedecer, imediatamente os tambores o reconhecem, pois sua simples presença perturba o toque musical (BASTIDE, 1978, p. 25). 79

Religião, Gênero e Poder

Retornando nas análises da Tenda Espírita de Oxum na religião Mina Nagô, podemos perceber que o feminino está sob as regras da menstruação, ele é visto como um ser ambíguo. Na fala de Mãe Maria José percebemos que a menstruação é um período em que ela realizava rituais importantíssimos e em que o seu poder redobrava, em suas próprias palavras: Mas tem certo ponto que a menstruação pode deixar a pessoa mais poderosa, por que são duas energias ali, a positiva em contato com a negativa que faz com que este médium tenha mais poder, mais força (...) eu já senti (...) um dia eu realmente não tive como parar o trabalho, menstruei e tive que aguentar e até certo ponto em que a entidade não estava encaixada eu estava sentido uma força muito forte, fora do normal, e no momento em que a entidade de cabeça se apoderava e ela, nesse dia, veio com mais força, com mais poder (...)”19.

A ambiguidade da menstruação fica mais clara quando a Mãe Maria José afirma que não é tabu para ela20, porém é um período de restrição às demais filhas de santo quando menstruadas, uma vez que segundo ela é necessário saber lidar com esse sangue, haja vista que ele emana uma explosão de energia que uma simples iniciada não sabe lidar e por essa razão a mesma é interditada, e nas suas próprias palavras: Durante as 24 horas do início da menstruação os médiuns não podem vir na casa e não podem tocar em nada, se vierem não podem se envolver na corrente tem que ficar do lado de fora da corrente, por que o sangue o atrai muitos espíritos para a casa, muitas más influencias para a casa e quando uma médium está menstruado dentro da corrente esta fica pesada (...) Bom, mas há casos e comigo já aconteceu de um início de trabalho, e um trabalho muito importante a menstruação descer (...), então a entidade segura o fluxo, parando o fluxo, e quando terminava o ritual a menstruação voltava (...) (meu grifo).21

Mãe Maria José ao tratar da menstruação em sua casa, deixa bem claro que: 80

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Uma mulher envolvida por seu fluxo menstrual não pode vir na casa de santo e principalmente no período de obrigações (festas de santo), por que elas vão se prejudicar em suas evoluções espirituais. Esse prejuízo é por causa do Exu, que gosta de sangue, e então ele se aproxima com mais força daquela mulher, muitas vezes estas não consegue nem ficar de pé, e o que deveria ajudar a matéria daquela pessoa, a impede de progredir na sua espiritualidade (...) veja a cada obrigação as energias ajudam os médiuns a evoluírem ainda mais (...). Se ela entra em guma para perder energia é melhor nem aparecer aqui!22.

Essas informações relativizam a sangria menstrual, pois ela é vista de dois prismas um pelo poder da mãe de santo e outro como sendo a falta de poder das filhas, pois na condição de menstruação a mãe pode fazer determinados rituais que não poderiam de maneira alguma serem adiados. Por outro lado, as filhas não podem ir ao terreiro se estiverem menstruadas, mesmo que tais rituais sejam importantes. Mas essa assertiva é válida apenas para rituais de suma importância que por causa da lua ou por necessidade extrema do cliente consulente não podem mudar de data, somente nessa condição a mãe de santo poderia entrar no terreiro e fazer todo o trabalho. Nas demais datas essa questão não poderia ser realizada, pois inclusive a mãe de santo era considerada pela entidade, como perigosa. Em um relato de seu Rompe Mato23 me disse que não aceitava que a mãe de santo continuasse a menstruar, pois a sua missão ficava restringida, e segundo ele, ela foi criada para realizar tais trabalhos mediúnicos a todo instante que alguém precisar, e a menstruação era um entrave. Seja como for, no final de ano de 2010, surgiu um cisto no útero da mãe de santo, por isso foi retirado todo esse órgão, desde então ela não menstrua. Dessa forma, a construção sócio religiosa do tabu na religião Mina Nagô se estabelece como um importante meio de interdição para o gênero feminino, qual possui poder hierárquico, como mãe de santo, filha de santo ou participante/adepta da religião, mas está sempre presa por seu próprio ser, pois “lidar com mulher é lidar com tabus. É ter que se proteger de incríveis ambiguidades. (...). A mulher é marginal por si só, já que ela assume, mais claramente do que 81

Religião, Gênero e Poder

o homem, a dupla característica de ser humano e animal” (AUGRAS, 1989, p. 40). Então, devido o próprio corpo feminino e sua fisiologia, a mulher está fadada a servidão da espécie, por ser poderosa e perigosa, por essa razão não deve ser tocada, não pode entrar em rituais e nem realizá-los mesmo quando sacerdotisa. Dessa maneira, o tabu é menstrual é um eficaz mecanismo do gênero masculino para interditar o feminino inclusive nos espaços onde elas (as mulheres) têm poder hierárquico. Ela (a pessoa sujeita a liminaridade) está em perigo e o emana aos outros. Este perigo é responsável pelo interdito do gênero feminino em diversas sociedades, momento em que o indivíduo deve se retirar ou se afastar da sociedade de seu convívio pelo tempo em que as regras continuassem o fluxo (MEAD, 2009; CARNEIRO, 1991; VERGER, 1986). Esse interdito/afastamento do social se deve pela noção de que a sujeira será eliminada pela reclusão. Por outro lado, este perigo pode ser controlado quando o indivíduo se submeter à rituais de limpeza, onde o perigo passa a ser controlado (DOUGLAS, 2010). As entidades falam As entidades tem grande relevância quando se pensa na estrutura desta casa de santo, pois todas as determinações da mãe de santo são perpassadas pelos desejos das entidades. Em outras palavras, qualquer concepção criada neste espaço sagrado vem das entidades, inclusive a respeito da menstruação ser considerada pela mãe e pelos seus filhos como tabu. Nesse sento o Caboclo Sete Flechas, o atual chefe da mãe de santo afirma: Os rituais não podem ser realizados quando se tem a presença de uma mulher que está de regras, pois a menstruação é uma energia ruim, que pode prejudicar o próprio ritual e a mulher. Quem entrar para a Mina e para a Umbanda tem que saber que está rezando sobre uma cartilha que determina o que o médium pode ou não fazer, e, a menstruação é uma proibição. É uma proibição que não vem de agora, que foi estabelecida em outros tempos. 82

Mulher que presta é aquela que é vivida

O sangue menstrual traz o azar, ele quebra a força do ritual, do trabalho que está sendo feito. Chegar perto dessa energia ruim faz muito mal para as entidades, por que o fluido que vem é o que atrapalha, para os caboclos da mata, especialmente para os índios, isso é terrível. Eu não suporto. Quando a gente ainda morava na aldeia, há muitos anos atrás nos foi ensinado que a menstruação, uma mulher menstruada, deve ser proibida de entrar nas ocas com seus pais, irmão ou esposos. Já que esse sangue é pesado e destrutivo, por isso elas eram recolhidas em ocas distantes e ficavam por lá até a sangria passar. Isso agente aprendeu e temos isso como um conhecimento adquirido por uma hierarquia que deve ser respeitada. E respeitado por todos.

Uma segunda entidade de grande respeito na casa de santo é seu Boto Branco, o qual menciona que a menstruação: Os botos não gostam da menstruação, porque o cheiro do sangue nos atrai, já que quando a mulher está menstruada ela solta um cheiro... bem os botos não fazem mal a ninguém, nós somos atraídos, e queremos estar o tempo todo por perto da mulher que está menstruada. A cobra grande faz mal à mulher que entra no rio ou no terreiro menstruada, pois ela tem o poder de deixar resíduos de magia, quando isso acontece a mulher pode até ficar doida, louca. A cobra grande vive na água e na terra, o seu encanto é forte, e o sangue da mulher menstruada faz com ela se torne um elemento do encanto dessa cobra. Atração que é feita do cheiro do sangue por nós botos também ocorre o contrário de nós para a mulher, já que ela fica embebida pela magia do boto, encantada, mundiada, isso é ruim para a mulher, pois se tiver uma cobra por perto ela tem a possibilidade se encantar, esse encanto que a deixa em estado de loucura. Mas para os índios a menstruação é um intenso atrapalho.

Ainda nessa perspectiva o Caboco Corre Beirada pontua: A proibição da menstruação se deve pelo mistério do tempo. Na verdade é por causa da hierarquia, do respeito. Nos tempos antigo, antes de Jesus Cristo dava-se sangue para os 83

Religião, Gênero e Poder

ídolos, para os deuses. Mas quando Cristo morreu na cruz ele trouxe a vitória para os seus e sangue que escorreu dele serviu para lavar os maus da terra. Por isso o sangue de Jesus simboliza a vitória. Mas o sangue que desce da mulher todo mês é ruim, significa o mal. Por isso para muito retirar as mulheres menstruadas do terreiro é sinônimo de respeito. As casas que respeitam a tradição não permitem que as mulheres menstruadas entrem no terreiro. Até porque isso não foi criado a pouco tempo é uma norma que vem de muitos tempos atrás. Os índios como todo o povo da mata não suporta o esse sangue eles não permitem de maneira nenhuma. E uma filha que se preze sabe disso, elas nem se atrevem a discutir, porque a peia que elas tomam é muito grande, ai não compensa o atrevimento. A menstruarão não pode e pronto. Não deve vir mesmo! Veja só para as tribos indígenas, mas antigas quando as mulheres menstruavam havia dois significados, um para o sentido de alegria porque aquela jovem já poderia se casar e o segundo de tristeza, porque ela acabava de entrar em um período de constantes interdições, de afastamentos, pois quando elas menstruavam ficavam recolhidas em cabanas distantes dos maridos até o fluxo sessar, para que esse sangue não viesse a prejudicar os índios guerreiros. É por isso que a gente sempre diz que mulher que presta é aquela que é vivida. (grifo meu).

Para Dona Jarina: O sangue menstrual é algo que a maioria dos cabocos abominam, eu em especial não gosto. Acredito que uma filha ou uma mãe de santo que tenha respeito pela sua religião não deve aparecer no terreiro quando está nos seus dias. A menstruação é uma limpeza que o organismos da mulher está fazendo, essa limpeza atrai tudo o que não presta para ela, tanto é que ela fica irritada, tem muitas que até adoecem com dores de cabeça, inchaço nos seios, fraqueza... É uma fase ruim e aqui a gente trabalha com a mediunidade, isso quer dizer que quando a médium está desse jeito com corpo físico abalado, sua mediunidade é claro que também 84

Mulher que presta é aquela que é vivida

vai ser abalada, ai vai ficar com uma carga de energias negativas, até porque quando a gente vem renovar nossos axés aqui no terreiro, sai de nós muitas energias negativas que são atraídas pelos corpos fracos. Além do mais é respeito mesmo, coisa que não se deve questionar, não pode e pronto, a filha de santo e a mãe tem que criar um calendário que não se aproxime dos dias de menstruação, se coincidir marca outra data e pronto. O pior é agir contra os ensinamentos, você em sua religião faz o que ela não permite? Se faz, sabe das consequências! Assim é que acontece com nós.

Nesse sentido, o sangue menstrual ganha uma versão de abominável ou temível, pois prejudica as entidades da casa, em especial os cabocos indígenas como Seu Sete Flechas, mas também prejudica a filha de santo que atrai entidades consideradas ruins para mulheres neste estado físico, como a presença de exus que são atraídos pelo cheiro do sangue e fincam, segundo as entidades e a própria mãe de santo, chupando esse sangue. Além disso, o povo da agua como os botos quando baixam querem ficar o tempo todo do lodo dessa mulher menstruada, uma vez que o sangue o magnetiza. O sangue menstrual nas diversas sociedades é motivo de interdição, devido ser levado à condição mágica de impureza. Sua existência pode vir a prejudicar toda a estrutura social, isso porque as condições biológicas são tratadas a nível mágico, e assim, torna-se um agente de forte perturbação social. A antropóloga Ondina Leal (1995) afirma que o sangue menstrual é pensando como algo alheio a mulher, pois não é o mesmo sangue que se distribui nos tecidos de seu corpo, ele é identificado como “forte, nojento grosso”, por isso o fluxo menstrual é em grande parte “dissociado do próprio corpo” (p. 22). Devido essa dissociação esse sangue tem sido tratado, principalmente pelas sociedades patriarcais como elemento de repulsão. James Frazer (1982) faz uma importante referência quando apresenta diversas formas de uma pessoa se tornar perigosa para a sua comunidade em quase todos os humores humanos estão presentes. Freud (1996) também se remete aos diversos elementos biológicos humanos como as secreções, as quais são consideradas fonte de 85

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propagação de energia negativa tais como a saliva, lágrimas, secreções de vômitos, urina, excrementos, pus e o sangue especialmente o menstrual. Nesse âmbito as representações físicas e simbólicas referente ao feminino, o sangue menstrual é talvez um dos que mais desperte temeridade e aversão em diversas sociedades. Esse sangue não emana de uma agressão aos tecidos ou é proporcionado por uma lesão, ainda assim a força simbólica que representa o coloca no espaço das proibições do discurso, o tabu, e na associação com impureza; considerado signo do mistério e da maldição para muitas culturas (BEAUVOIR, 1980). Voltando as análises da casa de mãe Maria José, é notório que às falas das entidades descritas acima, são reflexo das produzidas pela sacerdotisa, ou o contrário. Mas, seja como for, quando se pensa no sangue menstrual eles têm discurso sempre no sentido de tabu e proibição, uma vez que remetem ao medo, aversão e respeito, o qual é o meio pelo qual uma mulher, seja ela sacerdotisa, filha de santo ou cliente deva ser afastada do espaço sagrado pelo tempo em que durar a sangria do fluxo menstrual. E a seguir veremos que os filhos têm a mesma perspectiva da mãe, o que não poderia ser diferente. Os filhos falam A visão recriada sobre a sangria menstrual é, como já foi visto acima, negativa, pois as mulheres são afastadas, não podem fazer nada nesse estágio, pois se assim fizerem, podem sofrer diversas penas que o povo de santo chama de peia, como dores de cabeça, no corpo, nas costas e perturbações. Por essa razão, elas não “se atrevem a vir menstruadas para cá para o terreiro”.24 E como não poderia ser diferente as filhas e os filhos de santo acreditam que a menstruarão é algo muito ruim, um perigo grande que elas próprias podem sofrer e fazer sofrer os outros. Segundo Marcelina: Quando eu comecei meu tratamento na Tenda em 1999 eu ainda menstruava, e por isso era impedida de participar dos rituais quando estava sob as regras. Isso era muito 86

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ruim, porque a casa ainda estava se estruturando e o calendário ainda não estava fechado, os rituais não aconteciam com frequência, e em muitos dias de festa e obrigação eu estava menstruada. Fiquei mal por muito tempo, senti fortíssimas dores de cabeça e nas costas. Eu já sabia o que era, por isso nem me assustei, tomei os banho e pedi misericórdia para os cabocos e pronto. Em muitos casos eu poderia ir assistir as festas grandes, que a gente considera como as mais importantes, minha querida, nesses dias quando voltava pra casa, ficava mal, era horrível. Na minha opinião, menstruar é um problema, porque sai de dentro de nós muita impureza é tudo aquilo acumulado durante o mês que está dentro de nós, então é claro que é só coisa ruim que está saindo. E se ir assim para o terreiro que é um lugar sagrado é algo como se você ofendesse a sua religião. É respeito mesmo. Tem uma doutrina de um caboco que se chama José Tupinambá que diz que quem faz o que Deus não quer um dia tem que pagar, então se não é permitida a entrada de mulheres menstruadas, não temos que questionar nada, temos apenas que aceitar que a nossa condição de mulher é difícil por causa disso.

Marcicleide, afirma que: Eu nunca fui para o terreiro quando menstruava pelo fato de pesar a corrente, a entidade não se aproxima, pesa pra mim e para as outras. Uma vez desceu a menstruação na hora do ritual, a entidade percebeu e me mandou sair do terreiro. As mulheres que estão de fora também atrapalham quando estão menstruadas. Em trabalho de segunda feira, desses de evolução espiritual e trabalho para os clientes da casa eu estava menstruada, entrei pra participar porque a mãe pequena não tinha ido e só eu sabia onde estavam as coisas, mesmo assim, a entidade quando chegou me mandou sair do terreiro. E foi incrível ele veio direto par mim e mandou sair. O certo mesmo é nem se aproximar do terreiro. Não pode tocar nos pontos das entidades, nem nas imagens nas louças, nos remédios, nos banhos e nas roupas. Se pegar eles passam a 87

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não ter mais o mesmo axé de antes, é como se perdesse o poder, o axé mesmo.

Pedrinho menciona: Eu tenho é medo de mulher menstruada, quando as minhas irmãs estão menstruadas eu faço de tudo pra não passar por detrás delas porque eu sinto dores de cabeça, fico com as costas pesadas, é muito ruim. Não posso dizer que sinto energias por causa da menstruação na corrente, nos rituais, porque elas são proibidas, não vão menstruadas. Eu acho que também elas não podem ir, é respeito como a minha mãe de santo fala.

Nesse sentido, a menstruação é algo de grande temor também entre os filhos e filhas de santo da Tenda Espírita de Oxum, onde se percebe que a permanecia de uma médium menstruada no espaço do terreiro pode prejudicar a própria médium, o terreiro, as entidades e os filhos homens, como é o caso do Pedrinho. Este último sente uma forte energia negativa que lhe acomete de fortes dores nas costas e na cabeça, quando uma mulher passa pelas suas costas. Seja como for, esses imaginários podem ser criados pelos filhos da casa devido as constantes informações que os mesmos recém a respeito dos problemas em que a menstruação pode vir a causar. Mulher boa é aquela que já é vivida Este título é uma fala pronunciada pelo caboco Corre Beirada em um trabalho de cura realizado na Tenda Espirita, onde ele me explicava que as interdições as quais as filhas de santo têm sido submetidas devido as sangria menstrual é o vetor causador de aversão feminina, pois as mulheres nesse estágio biológico são vistas como forte elemento de propagação, transmissão e manutenção de energias negativas. Por isso, segundo o povo de santo desta casa, elas (as filhas de santo) são afastadas das festas de obrigação ou de qualquer trabalho realizado no terreiro durante a mensuração. Essa assertiva é válida também para as mulheres que não são médiuns e vão para o espaço sagrado assistir aos rituais.

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Quando eu era convidada para os rituais, a mãe de santo logo me perguntava se estava de regras, e em todos os rituais em que fui convidada, não estava, por essa razão entrava e assistia aos rituais sem nenhum problema. Mas as clientes que participavam dos rituais para fins particulares só se faziam presentes quando não estavam menstruadas, e quando o trabalho ritualístico estava organizado para um determinado dia em que o fluxo menstrual baixasse, esse trabalho era logo remarcado para a semana seguinte, se a mulher não houvesse tocado em nada poderia utilizar o mesmo material caso contrário deveria comprar tudo de novo, pois os objetos tocados por uma mulher menstruadas, segundo a mãe de santo, perdem a eficácia. Essa questão está tão impregnada entre os filhos da casa e os clientes consulentes que em um ritual de cura em uma sexta feira dia 05 de outubro de 2012 quando eu assistia o ritual, Dona Jarina estava na cabeça da mãe de santo, após ter feito seu trabalho foi embora, e logo em seguida baixou seu Rompe Mato. Quando ele chegou afirmando que na frente do terreiro estava um exu masculino que, segundo ele, havia sido enviado para abalar o ritual. O Caboclo foi para fora do terreiro e despejou umas gotas de uma espécie de banho, acendeu um maço de pólvora, a qual foi queimada e todos tivemos que nos levantar e fazer uma encenação de limpeza quando a fumaça nos atingiu, pois eles acreditavam que essa fumaça estava limpando as coisas ruins de nossos corpos. Isso ocorreu, segundo essa entidade, devido ter uma mulher menstruada na assistência, isto é, entre os clientes que estavam assistindo o ritual ou entre os que estavam em busca de soluções para os seus problemas. Ele explicou que essa pessoa não deviria ir embora, mas limpar bem quando a fumaça se propagasse para eliminar o cheiro do sangue que estava atraindo o exu, caso contrário ele iria continuar na porta atrapalhando tudo. Assim, sem saber quem era a pessoa menstruada todas as mulheres se levantaram e fizeram uma espécie de limpeza quando a fumaça se propagava no ambiente. Nesse mesmo ritual, seu Rompe Mato realizou seu trabalho dando umas garrafas com ervas e uma água verde para dois clientes se banharem na frente do terreiro, ao terminar de fazer tudo, ele sobiu, ou seja, desincorporou. Imediatamente seu Zé Pelintra baixou 89

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e foi para o ronkó para trocar a roupa de Rompe Mato e vestir a sua, mas as suas indumentárias estavam todas fora do lugar e ninguém encontrava sua espada e a camisa branca. Ele dentro no quarto sagrado já estava estressado, pois já se fazia alguns minutos em que ele estava incorporando e nada de sua camisa chegar. Havia uma filha, Marcicleide que sabia por onde estava a camisa da entidade, mas ela não poderia entrar no terreiro devido estar menstruada. A entidade aflita gritava dentro do ronkó, mas as outras filhas ficavam a procura e sem encontrar levaram outras camisas que eram atiradas longe pela entidade. A filha menstruada estava do lado de fora do terreiro somente entoando as doutrinas e observava o que acontecia. Como não encontraram nada, ela foi obrigada a entrar, mas só pode apontar para as outras filhas onde a camisa poderia estar, pois a menstruação a impedia de pegar nas roupas que são, segundo a filha de santo sagradas. Essas questões mostram para todas as pessoas que se fazem presente no terreiro o temor que a menstruação causa para os membros desta casa de santo, pois esses impedimentos ocorrem, sem pudor, diante de todos os presentes. Em outro trabalho de segunda feira, dia 12 de setembro de 2012, o ritual teve início às 20:00 horas. A mãe de santo se preparou, fez orações e começou a entoar as doutrinas. Canta para os orixás, os senhores de toalha e em seguida para os cabocos. Ela se concentra, mas ainda assim nada acontece, ou seja, nem ela e nem os filhos e filhas de santo são incorporados. A mãe de santo se desespera momentaneamente, logo respira fundo e canta outra doutrina para Caboclo Sete Flechas, mas ainda assim não é incorporada. Todos ficaram apreensivos com que estava acontecendo. A mãe de santo segurou as mãos bem apertadas no peito e olhou pra traz, se arrepia e diz em voz alta que havia uma pomba gira entrando no terreiro. Disse também que ela (a entidade) não estava conseguindo adentrar. Segundo a mãe de santo, a presença da pomba gira estava impedindo que os cabocos pudessem ter passagem para as incorporações. Novamente foi pedida a pólvora, mas agora, com muita euforia e medo, todos se assustaram. Mas, a filha de santo não encontra90

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va, a tensão aumentou ainda mais. Depois de quinze minutos de tensa procura Marcicleide encontrou a pólvora que foi levada para fora do terreiro para ser queimada, a fim de expulsar o espirito ruim que estava atrapalhando tudo. Logo após o trabalho teve início sem problemas. Quase no final desse trabalho a mãe de santo me explicou que isso ocorreu devido a filha de santo Maria Luiza ter ido assistir o trabalho menstruada, a sacerdotisa mencionava “eu aviso que não pode, mas elas vem só dá nisso!” Sendo assim, o que se percebe é o importante tabu que é criado em tono da menstruação a qual é vista como horror ou como já dizia Mary Douglas (2002) um tabu abominável, que só pode danificar, prejudicar ou até destruir os rituais, mas com as interdições esse tabu pode ser apaziguado. Por essa razão, os adeptos da religião Mina Nagô consideram que a mulher que presta, que não precisa ser afastada, é aquela cuja sangria mensal já não escorre mais. Considerações finais: o sangue liga as entidades sem luz Na obra A floresta de Símbolos de Victor Turner (2005) o autor apresenta a ambiguidade nas classificações das cores entre os Ndembu, onde o autor demonstra que o vermelho tem caráter dubio, uma vez que ele pode aparecer como perigoso quando se pensa em sangue menstrual, por exemplo. Essa questão é confirmada na Tenda Espirita de Oxum, pois o sangue menstrual é visto como fator de grande negatividade. Por meio das ambiguidades trazidas por esse sangue as mulheres desse espaço religioso são afastadas. A Tenda é um espaço típico feminino, onde as mulheres são a maioria, inclusive no comando sacerdotal, porém o que se vê é o pensamento de uma mulher que se afastava e também afasta suas filhas de santo ou qualquer mulher que ainda sangra todo mês de sua casa de santo, no período da menstruação, demonstrando que o poder feminino está distante de si mesmas. Para essas mulheres suas condições biológicas as impedem de exercer com eficácia suas tarefas religiosas e a cada mês são apartadas do espaço sagrado do terreiro pelo tempo em que se estender o fluxo menstrual. Nesse âmbito, a mulher se torna um elemento de forte interdição no período de sua menstruação. Além disso, tem sua vida direci91

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onada pela figura masculina seja ele o marido ou as suas entidades que regulam e determinam não apenas suas vidas particulares como também suas vidas no santo. A carreira no santo, isto é, no sacerdócio, apresenta maiores prestígios quando elas atingem a menopausa, ou seja, período em que o povo santo considera que a mulher “vira” homem. Nesse sentido, a condição para comandar com melhor eficácia é ser masculino. Assim, o tabu menstrual se torna um problema do ser social que é a mulher, a qual entra no processo de interdição mesmo quando já é liberada ou está sempre submetida às interdições biológicas que fazem parte da estrutura corpórea demonstrando assim, que o problema do sangue menstrual não está em si no potencial poder de destruição, mas na própria figura feminina. De acordo com Mary Del Priore (2011), o sangue que é expelido todo mês torna a mulher um ser ambíguo e incompleto, faltante. Por essa razão, segundo Seu Corre Beirada “Mulher que presta é aquela que é vivida”. Referências bibliográficas ABREU, Marilande. A dominação feminina em terreiros de Tambor de Mina. In. Boletim da Comissão Maranhense de Folclore - nº 2. Maranhão: CMF, 2004. AUGRAS, Monique. O que é tabu? Rio de Janeiro: Coleção Primeiros Passos, 1989. BASTIDE, Roger. O Candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. CARNEIRO Edison. Candomblés da Bahia. Salvador: Museu do Estado, 1991. DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Querebentan de Zomadonu: etnografia da Casa das Minas. São Luís: EDUFMA. 1985. FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o Sincretismo Religioso: estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo; São Luís: FAPEMA, 1995. 92

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ter vários relacionamentos amorosos ou ainda se embriagar, pois se uma mulher agir dessa maneira é logo considerada infame. 4 Por Mina Nagô entende-se uma das tradições afro-brasileiras que segundo Vergolino (2000) é uma religião de composição “hibrida” de identidades “múltiplas por dentro”, devido cultuar orixás, voduns, encantados, caboclos e exus e que embora se aproximando de outras religiões de cunho afrobrasileiro tais como o Candomblé e o Tambor de Mina se configuram como uma tradição original legitimada no Estado do Pará, e que foi interiorizada para Abaetetuba-PA na década de 80 do século passado, segundo Margalho (2004). 5 Esse indício histórico não pode ser comprovado por vias de documentos, mas o que se tem é a memória do povo de santo e os escritos dos antropólogos Leacock (LUCA, 1999; LUCA, 2003). 6 Uma fala de uma zeladora de santo da umbanda, considerada por muitos como uma das mais antigas de Abaetetuba. 7 Primeiro e segundo sacerdotes de Mina em Abaetetuba. 8 Idem 9 Isso até o inicio do ano de 2010. 10 Entrevista com Mãe Maria José na Tenda Espírita de Oxum, no dia 15/04/ 2012. 11 Idem. 12 Entrevista na Tendo Espírita de Oxum, com a sacerdotisa Mãe Maria José, no dia 12/09/2012. 13 Idem. 14 O tocar aqui tem o sentido de mexer, trocar de lugar ou modificar. 15 Idem. 16 Deforma direta é quando elas estão na cozinha auxiliando o preparo dos alimentos e dos banhos e de forma indireta é quando as mesmas vêm em horário diferente da produção da comida para ajudar na limpeza da cozinha de santo. 17 Sua ausência se deve porque os mesmos estão empregados em Estados distantes, nas obras para a construção de prédios e estádios de futebol para a copa de 2014. 18 Entrevista na Tendo Espírita de Oxum, com a sacerdotisa Mãe Maria José, no dia 12/09/2012. 19 Entrevista na Tendo Espírita de Oxum, com a sacerdotisa Mãe Maria José, no dia 29/05/2011 20 Mas é importante ressaltar que hoje ela não menstrua mais e que quando ainda está sujeita â seus ciclos a mesma não realizava sempre seus traba95

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lhos menstruada, apensas quando os mesmos eram de suma importância que não poderiam ser remarcados. 21 Entrevista na Tendo Espírita de Oxum, com a sacerdotisa Mãe Maria José, no dia 29/05/2011 22 Idem. 23 Uma entidade da Mina Nagô, um caboco. 24 Fala de Mãe Maria José em uma conversa informal, no dia 06/06/2010.

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Capítulo 5 Da Morte à Vida: Poder e Prestígio Feminino na Figura da Pombagira Lindeuá Jefferson João Martins Baldez No Ilê Asé Odé Ofá Arô Nilé, localizado no bairro Icuí, na cidade de Ananindeua (PA), no dia 20 de janeiro de 2013 fiz observação de uma gira de Umbanda que teve início às 16 horas. Além da presença de caboclos e encantados, houve destaque para a manifestação da Pombagira Cigana, apelidada de Lindeuá, cujo nome em vida era Maria Júlia Alves da Silva, bailando com alegria, energia e sensualidade. Expressões que revelam autoridade, autonomia, segurança, reconhecimento e poder. As Pombagiras ao mesmo tempo que despertam sentimentos relacionados à sexualidade, sensualidade e poder também remetem a uma visão de perigo, ameaça e desordem. Entretanto, vistos de outra forma, essas mesmas características podem ser interpretadas como uma resposta do feminino frente à sociedade brasileira que ainda possui muitos traços patriarcais e que busca impor seus valores, controlando a moral e guiando a conduta feminina, forjando uma imagem da mulher, ora como alguém submissa ao homem, ora como alguém que subverte a ordem, logo representante de perigo. Considerando esses aspectos optou-se em fazer um paralelo entre a vida terrena de Pombagira Cigana Lindeuá e suas características e valores em forma de entidade. Tal estudo se torna necessário para a contribuição no que se chama de “lógica dos sujeitos múltiplos” para a qual: Não há só uma vida ideal de mulher, a partir da qual as teorias do ponto de vista recomendam que o pensamento comece. Em vez disso, devemos nos voltar a todas as vidas que são marginalizadas de maneiras diferentes pelos sistemas operadores da estratificação social (HARDING, 1993 apud CHANTER, 2001, p.93). 97

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Com isso, colabora-se para entender a representação do papel feminino das entidades afro-brasileiras na sociedade atual como uma resposta à forma como a mulher foi subjugada num passado mítico, além de observar seu poder e função mágica dentro do terreiro de Odé Sigbonilé (pai Mário, médium que incorpora a Cigana). Feminicídio e o estigma da “mulher da vida” A Pombagira Cigana Lindeuá, de acordo com o relato proferido por ela mesma no ritual, foi assassinada em 1813, porque não se submetia ao capricho e as vontades de homem nenhum, era “mulher da vida”, vivia nos cabarés alagoanos conforme queria, não aderindo aos rigores morais da época como a sociedade esperava. Essa história foi contada pela entidade numa área fora do Barracão1 enquanto os tambores recebiam as batidas dos atabaqueiros e as filhas de santo estavam em transe com outras Pombagiras. Alguns dos visitantes presenciavam aparentemente um pouco surpresos a gira, enquanto outros conversavam em particular com a entidade principal naquele momento. Chegada minha vez, me aproximei e de início a Cigana começou a contar sua trajetória de vida carnal e posteriormente suas características enquanto entidade: sensibilidade (ver, sentir, ouvir o que os humanos não conseguem perceber), leituras de mentes, ensinar simpatias, trabalhos para conquistar alguém que se deseja, entre outras qualidades. Neste momento, ao me levar por uma postura distinta e nada esperada de um cientista, me vi perguntando a ela o que responderia se eu perguntasse o que eu estava pensando naquele momento. A resposta foi direta, clara e em tom bem audível: ela me mandaria para longe, porque não estava lá para provar nada para ninguém. Eu pedi desculpas e a Cigana, com um ar de quem não tinha dado uma séria importância ao que eu tinha questionado, continuou seguindo o diálogo desta vez falando a respeito de um espírito de morto que me acompanhava, que fazia com que eu acordasse mais cansado do que quando tinha me deitado, além disso, era espírito de um parente, que “desencarnou”(morreu), mas que ainda não tinha se desligado definitivamente deste plano espiritual e que, mesmo que não fosse de sua vontade, estava me “atrasando”2. 98

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Espaço religioso e gênero feminino podem combinar situações de liberdade de expressão e privilégios ou manifestos contra uma tendência cultural machista, que está permanentemente impondo papeis, regras e comportamentos. Ioan M. Lewis (1977, p. 31) acerca das manifestações de possessão no feminino expressa que os cultos com estas características são: Movimentos de protestos tênues disfarçados dirigidos contra o sexo dominante. Eles desempenham assim papel significativo na guerra dos sexos nas sociedades e culturas tradicionais em que as mulheres não têm meios mais óbvios e diretos para promover seus objetivos. Até um ponto considerável eles protegem as mulheres contra os abusos masculinos e oferecem veículos eficientes para a manipulação de maridos e parentes masculinos.

Ou, como mostra Sonia Lages, (2012, p. 528) este aspecto do religioso é uma construção sócio histórica, que além dos sentidos próprios de manifestação adquire outros que “colaboram para com o fortalecimento dos sujeitos na luta contra as opressões sociais que recebem cotidianamente”. A morte de Cigana Lindeuá, assim como sua espera por alguém que pudesse dar suporte físico (material) a sua manifestação contestadora, ousada e, podemos dizer, de resistência post mortem, implica nada mais, nada menos, que a atuação e força motivadora de uma jovem que não se deixava subjugar. Estas características necessitariam se fazerem presentes mesmo depois que sua matéria orgânica se dissipasse, mas, mesmo que tivesse que esperar dezenas de anos para apossar-se de um novo corpo que, ironicamente, seria do sexo oposto, materializa-se, canta, bebe, aconselha, manda, esbanja charme, se faz respeitável. Finalmente alcança uma posição superior, realiza suas vontades3 sem que nenhum humano, especialmente um homem, que pudesse controlá-la, usá-la, dominá-la. Os papeis se inverteram, agora o médium é seu servo, abrindo espaço para a manifestação de Pombagira Cigana, onde ele perde o controle dos movimentos, das palavras, da autoridade, da mente, das vontades.4 99

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Em vida Lindeuá dependia de um homem para que pudesse sustentar sua família e a si mesma. O nome dela é Maria Júlia Alves da Silva, desencarnou-se em 1813 na cidade de Maceió, ela era alagoana, uma entidade de origem humilde onde teve que por não aceitar imposições familiares e do regime da época, né? Veio a procurar os portos, era uma menina, ainda e o único ganha pão era se prostituir. E ela arranjou senhor feudal que a tirou da vida da noite, né? Onde ela veio gostar de outro cidadão. E um tirou ela da noite e o outro ela amava. E por causa desse romance ela veio ser assassinada, em 1813, né? E era uma moça muito bonita, que teve vários homens, teve uma vida de noite, de prostituta (Pai Mário Sigbonilé - Candomblecista).

Por isso, o preço que pagara, além da submissão carnal (sexual), foi o preço da morte, de interrupção da sua vida ambígua (mulher e amante), que desejava ter, pois para a cultura patriarcal da época, a honra, símbolo honorífico do poder masculino, é o maior valor, mesmo que para conservá-la, seja necessário encerrar o relacionamento por meios homicidas. A forma de viver numa sociedade patriarcal repleta de pensamento machista em que a violência de gênero se justifica através do papel que homens e mulheres exercem na sociedade, junto com a imagem de “mulher correta”, mãe não é uma característica nova, é uma construção social ao longo do tempo. Como bem lembra Laura de Melo e Sousa (2009, p. 110): “‘ser mãe’ passou a significou ‘ser casada’, ser ‘boa esposa’, ‘humilde, obediente e devota’. A transformação da mulher que vivia em “tratos lícitos” em “mãe ideal” faziase por um eficaz adestramento digerido no cotidiano e consolidado no decorrer do tempo”. O patriarcalismo que aqui menciono se trata de um fenômeno civil, que dá direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, praticamente sem restrição; representa uma estrutura de poder baseada tanto na ideologia quanto na violência (SAFFIOTI, 2004 p.57-58), é importante para se perceber como a relação homem/mulher se dá culturalmente. Por isso, localizamos o caso da Cigana Lindeuá num momento em que o fenômeno do feminicídio era recorrente quando 100

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o marido, por exemplo, não estava satisfeito com a forma com que sua esposa estava agindo ou pretendia agir. É interessante, nesta ótica, perceber que essa força do feminino apresentada, não se limita a existir apenas em vida. Mesmo que Maria Júlia não tivesse a vida terrena que desejou e não obteve o prestígio, ou, no mínimo a liberdade que desejava, conquista tais direitos agora que se tornou uma entidade de importante destaque dentro do que se chama religiões afro-brasileiras. O Poder e a magia: faces preferidas da Pombagira A mesma Lindeuá que em vida levava o sustento para sua casa por meio da prostituição, na sua forma de entidade também é responsável, em parte, pela manutenção do terreiro. É uma entidade de personalidade irreverente, onde através da irreverência, ela que traz o lado da magia, do amor. Então é também uma entidade que em algumas situações trás o dinheiro para a construção da casa. Por ela ser um exu mulher ela também trabalha, ela também vai na rua, ela vai buscar o cliente, ela vai buscar coisas boas. Certo? É a mensageira da fartura. Por a casa ser de Oxossi, Oxossi governa tudo aqui dentro dessa casa. (Pai Mário Sigbonilé - Candomblecista).

Observa-se, aqui a relação do Orixá da fartura e da providência com o papel da Pombagira Cigana na arrecadação e busca de suprimentos (monetários, de clientela, de doações) para o Ilê. Entretanto, durante uma conversa informal, foi colocada a situação de que a Cigana passou um período relativamente longo afastada, em comparação ao que normalmente ela se apresenta, pois estava atraindo muitas “putas” para o terreiro. Esses episódios mostram que ao mesmo tempo em que se permite a ação da entidade (Lindeuá) para a arrecadação de bens para a casa, o Orixá regente da casa impõe controle quanto aos seus frequentadores. E é através da magia que esta entidade tem sua maior atuação com os frequentadores da casa e é por meio das práticas mágicas que ela obtém os recursos para as despesas necessárias. O termo magia é aqui empregado conforme a análise de Paula Montero (1994) em que a magia não deve ser entendida como algo arcaico e ausente 101

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de uma lógica racional, mas sim de um pensamento capaz de operar como um sistema reflexivo. A noção de magia não está dissociada da relação com o poder. Este termo, no contexto aqui analisado, faz referência à ideia da capacidade desta entidade em afastar o mal, trazer adeptos para a casa, veicular os negócios com clientes e de realizar os desejos de suas(eus) clientes. A solução para aflição, a busca de alguém que se deseja, aconselhamentos para uma situação delicada enfim, pessoas que buscam a felicidade estão sempre à procura dos serviços da cigana Lindeuá. Nilza Lagos (2007) mostra que a ideia de felicidade dos que buscam os serviços das Pombagiras está relacionada a “ter homens, ter dinheiro e beleza. Esta última se mistura com o dinheiro e sexualidade”. No caso encontrado no terreiro pesquisado percebeu-se que esse poder não se manifesta apenas diante das “simpatias” e “trabalhos”, mas de aconselhamentos, mesmo que isso possa se passar diante de uma situação vergonhosa para o cliente. Em uma das conversas da cigana Linedeuá com uma participante que estava sentada num dos bancos a entidade disse: “uma vez puta, sempre puta. Ele faz isso contigo porque tu deixa, tu aceita”. Neste caso, não há magia, não há trabalho nem simpatia, o poder se manifesta com a indignação da entidade frente à cliente devido ao fato de que ela não estava satisfeita com a forma que o relacionamento da pessoa presente estava se desenrolando, ou se enrolando. Aí, o poder se exerceu em forma de palavras, o poder das palavras poderia desenvolver o efeito de ação. A mulher a quem Lindeuá se dirigia poderia seguir ou não os seus aconselhamentos, entretanto a entidade exerceu seu poder de mando, de instrução, a responsabilidade passa a ser da cliente, de seguir ou não suas orientações.5 Não quero aqui fazer apologia às magias simpáticas, à eficácia total dos trabalhos das entidades, infalibilidade dos aconselhamentos e engrandecer o poder e conhecimento das entidades afrobrasileiras, apesar de admitir que esses elementos tenham reconhecimento social dos adeptos. Todavia os fenômenos religiosos que envolvem possessão, transmissão de mensagens que na maioria das vezes requerem inter102

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pretação, receitas de “trabalhos” que exigem uma disciplina e execução correta dos procedimentos a seguir e dos ingredientes a comprar desenrolam inúmeras situações e resultados que não podem ser muito previsíveis, tanto para a relação do cliente com seus próximos e com o(a) sacerdotisa, quanto para com a própria entidade. Nesse sentido Patrícia Birman (2005) expõe, muito bem, que: Por maior que seja a vontade de uma pomba-gira de transgredir as normas sociais, de punir os maridos cruéis, de fortalecer o poder de sua protegida contra as imposições destes, ela, a pomba-gira, não consegue ‘transigir’ com suas próprias características, negar a sua ‘natureza’ e, menos ainda, operar no interior da dinâmica social que em parte ela desconhece. As entidades ‘abrem caminhos’ que nem sempre a pessoa pode seguir, ‘fecham’ outros em momentos inconvenientes, prometem sucesso sem dar ao médium as condições para garanti-lo, punem seus inimigos sem levar em conta, por vezes, que as médiuns, apesar de tudo, precisam deles ao redor de si.

Neste sentido, a entidade faz o “trabalho bruto”, todavia a situação de cada caso – a eficácia deste trabalho, suas consequências e as pessoas que serão envolvidas neste serviço, direta ou indiretamente – passam necessariamente pelo método divinatório do jogo de búzios, para que se possa saber, por exemplo, se a amarração dará certo. Para que esse tipo de serviço surta efeito é preciso que já tenha havido um contato maior, para que a “amarração seja mais forte”, caso contrário, poderá haver a tentativa, mas sem muita esperança de sucesso. Caso o cliente trate diretamente com a entidade, esta poderá alertar ou não sobre as consequências, pois esses seres estão para servir aos anseios de seus clientes, mesmo que em algumas vezes a situação exija que se prejudique terceiros. É nesse contexto da magia, de transgressão do moralmente correto (socialmente estabelecido) que associa-se a noção do mal, da obscuridade e do perigo.

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Exus, Pombagiras e a relação com o mal Maldade, feitiçaria, magia negra, sacrifícios de animais e até mesmo humanos, notícias de assassinatos veiculados por exus e pombagiras são notícias nada incomuns nos meio midiático em vários cantos do Brasil6. É sabido que as entidades são ambíguas, possuem polos de poder, que serão exercidos conforme o desejo do sacerdote ou dos clientes. Mas o legado estigmatizado das religiões de matriz africanas deixado pelos rastros do período colonial e mais contemporaneamente os ataques que religiões cristãs fazem aos afro-religiosos levam a sociedade a enxergar de maneira distorcida, pouco lúcida e/ou absurda os empreendimentos das religiões afro-brasileiras. Mas não é apenas isso. Ricardo Mariano na obra Intolerância Religiosa (SILVA, 2007, p. 140) mostra que os próprios afroreligiosos contribuem, em parte, para a demonização dos cultos Este é o caso de vários pais e mães-de-santo que da chamada umbanda cruzada, no Rio Grande do Sul, por exemplo, que nomeiam exus com nomes de demônios bíblicos, o que permite a identificação imediata entre entidades afro-brasileiras e demônios. Da mesma forma, por conta da rivalidade entre os terreiros e dos problemas de relacionamento pessoal entre muitos de seus dirigentes e entidade representativas, pais, mães e filhos-de-santos acusam frequentemente uns aos outros de realizar feitiçaria ou magia negra, de trabalhar na linha da quimbanda ou com entidades da esquerda visando fazer ou praticar o mau.

Além disto, é comum na literatura religiosa afro-brasileira e nos noticiários midiáticos populares relacionar algumas entidades do panteão das religiões afro-brasileiras com a imoralidade e violência. José Jorge de Carvalho (1994, p. 103) dá um bom exemplo disso ao comentar sobre a entidade Mestra Ritinha que, através da médium que incorporava, tinha relações sexuais com os demais membros da roda, ou com algum dos participantes da gira. Este é um dos casos que o autor relata que se transpõem as ações simbólicas convertendo-se literalmente em atos reais. A interpretação feita por Carvalho (p. 104) é que: 104

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Com a obscenidade consegue-se aqui um deslocamento, uma abertura de um novo espaço significativo que, por enquadrar-se no campo ritualizado dos espíritos, consegue colocar-se além da censura e da culpa. Em outros termos, gera um novo estado de ser que cumpre a promessa de felicidade do ritual religioso, justamente ao transgredi-lo.

O mesmo autor, num outro artigo (CARVALHO, 1998, p. 21) comenta a respeito da mística nas tradições afro-brasileiras através dos cânticos7 enfatiza que “num mundo onde não há repressão, a ‘puta gostosa’ é algo positivo, desejado, isento de qualquer noção de pecado ou vergonha – uma utopia do prazer é aqui delineada e a zona passa a cumprir um papel simbólico”. Neste sentido, ao contrário do que acontece no caso anterior por ele presenciado, o simbólico permanece no simbólico, não parte para a literalidade. Mas, essa forma “sagrada tão crua e direta” provoca, tanto nos menos familiarizados com os temas afro-religiosos quanto com os íntimos, o choque estético semelhante ao que acontece quando nos sentimos “golpeados” por uma obra de arte. No campo da pesquisa uma relação direta feita a partir do discurso do sacerdote é em relação ao estigma demonizado que exu/pombagira ganharam ao longo de sua trajetória e a associação magia/poder: Então as pessoas fazem exu assim, com chifre e com rabo. Então o cara acabou adotando. Já que dizem que eu sou o diabo então eu vou usar o tridente. Mas se tu analisar bem, é. Netuno ele não é o diabo, porque o símbolo dele é um tridente, então se você pesquisar o que é um tridente simboliza força e magia. Certo? (Pai Mário Sigbonilé - Candomblecista)

Ao simbolizar força e magia o tridente, mais do que algo que rememore o diabo cristão simboliza os domínios, capacidades e qualidades que exu e pombagira dominam. Transpondo do lado sobrenatural para o natural os poderes dessas entidades (curar ou provocar doenças, unir ou desunir casais, fazer/desfazer feitiços) estarão de acordo com quem os evoca e com as suas qualidades ou graus de evolução espiritual do médium de incorporação. Mas os mais responsáveis por provocar, ou pedir que se quebre uma demanda é o 105

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próprio requerente. A isso cito uma fala proferida por Cabocla Mariana quando incorporada em pai Mário: Exu ele não é mal, Exu ele é o bem e o mal, quando alguém pede para fazer um trabalho quem fez a maldade não foi exu que fez, foi a pessoa que veio pedir, porque o Exu é tudo aquilo que a pessoa quer ser só que ela não pode ela pede para a pessoa fazer e faz, né? (Cabocla Mariana, incorporada em pai Mário).

É bem claro aqui que a questão das entidades da “esquerda”, exus e pombagiras, e suas atuações vistas comumente como algo demoníaco, dotada de atitudes simplesmente incentivadas pela ação do domínio contrário à ética cristã, não se configura, em grande parte dos casos, como uma constante religiosa stricto sensu, mas como um caso em que as expressões dos desejos humanos e sociais soam mais evidentes do que os casos de possessão por espíritos que, na concepção de alguns segmentos religiosos, principalmente neopentecostais, vem para matar, roubar e destruir. Tais ideias não limitamse apenas nas múltiplas faces afro-brasileiras das Pombagiras, mas ao gênero feminino. A esse respeito o sacerdote exprime E por esse nome, por esse título de ser um espírito ligado a magia, ligado ao ocultismo, ligado ao amor, muitas pessoas denigrem a imagem da tal entidade para tipo assim usar de um comentário errôneo sem saber o que tá dizendo. Julga sem conhecer. Então pombagira são mulheres, são espíritos maravilhosos, espíritos sábios, entidades em evolução espiritual. Aonde, por não serem espíritos totalmente evoluídos, ainda se prendem muito aos vícios terrenos como, por exemplo, as bebidas, cigarros, charutos, enfim, é isso (Pai Mário Sigbonilé - Candomblecista).

Posso afirmar que isto tudo representa uma herança do Brasil colônia em que Igreja, estado e sociedade eram os principais forjadores da imagem da mulher para que chegasse a sociedade atual com vestígios do legado associado ao mal: “A mulher, assim diabolizada, confundia-se com o mal, o pecado e a traição, tudo aquilo en106

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fim que ameaçava os homens ou o projeto normatizador da Igreja e do estado Moderno” (PRIORE, 2009, p. 100). Na exposição da autora encontramos dois tipos de atores: a mulher que é a causadora dos males, e a vítima que é o homem. No contexto da religião e da legião dos povos da rua, como são conhecidos os exus e pombagiras, o mal está não apenas na figura da mulher, mas ela, sendo um exu feminino tem os mesmo parâmetros dessa entidade. Ambos estão a serviço do demônio, segundo as religiões cristãs. Monique Augras (2009, p. 18-19) ao fazer uma análise da imagem da pombagira na iconografia umbandista mostra que “ela sintetiza os aspectos mais chocantes que a sexualidade feminina pode assumir frente à moral e os bons costumes” por isso: imagina-se facilmente o quanto essa característica pode assumir feições ameaçadoras numa sociedade ainda dominada por valores machistas, em que, muitas vezes, só existem duas categorias de mulher –descentes ou vagabundas – conforme o grau de assunção dos seus desejos sexuais.

Em campo, pude perceber que a ideia de mal, do papel da entidade, como foi dito anteriormente nas falas da cabocla Mariana está mais para o querer de cada integrante social da religião e do cliente Vai muito do seu discernimento, do teu lado justo. Por exemplo: se você pagar o mal com o mal não é justo. O justo é você chegar, quebrar aquele mal. As vezes até mesmo fazendo magia, ebó e usando exu, pedindo que ele leve aquela magia embora e traga uma boa energia. Então, quer dizer, aqui você pode pedir o bem e o mal. Então é a questão do livre arbítrio que todos nós temos. É a questão do, como eu posso te dizer, é a questão do discernimento de cada um. Que você sabe que existe uma lei de causa e efeito. Aqui tu faz, aqui tu paga (Pai Mário Sigbonilé - Candomblecista).

Considerações finais Considera-se, por fim, que Pombagira Cigana representa a resistência feminina, força, promove benefícios que sustentam seu filho (Odé Sigbonilé) e o Ilê em que desce. Está para além de uma entidade pouco evoluída, por mais que ainda carregue o estigma de 107

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mulher da vida, desenvolve um papel muito importante na arrecadação de bens materiais para a casa, aconselhamento, aproximações conjugais que estão por se desfazer ou por novos relacionamentos. Não é uma deusa do amor como Oxum, nem mãe dos orixás como Iemanjá, não é uma deusa sedutora como Oya, mas representa tudo aquilo que o ser humano quer ser, quer parecer ser e alcançar. Sedutora, provedora, aconselhadora ou mesmo, quando quer, uma mãe que acolhe e não deixa faltar nada para seus filhos no Ilê Asé Odé Ofá ArôNilé. Pombagiras e exus não podem ser comparados a demônios. Demônios, de acordo com a visão cristã, tem um papel bem definido de prejudicar a vida humana em todos os sentidos (material e espiritualmente), estão a serviço do ser malévolo supremo: Lucifer. Não atendem à suplicas nem dialogam com os seus contactantes, apenas agem por conta própria. As entidades afro-brasileiras tem o papel de praticar a caridade, mas especificamente de servir aos humanos, estão ligados aos humanos e a serviço dos mesmos, há diálogos longos de aconselhamento, apoio moral, e de auto-estima e agem a pedido de seus filhos, mesmo que para isso se prejudique outrem, todavia, esse mesmo outrem, caso procure essa mesma entidade pode solicitar o desfazer do prejuízo que lhe foi causado. Portanto a entidade é um poder que está a serviço de quem o manipula ou com quem estabelece laços, desde que se ofereça algo para isso, ao mesmo tempo que pode ser uma ferramenta de construção, é uma arma que promove destruição, é o principio do fazer e desfazer, do ligar e desligar. Nesses moldes, o cliente é um ser que através das pombagira, exus, pretos velhos, caboclos8 exerce sobre si mesmo e/ou sobre os outros um poder que relaciona intrinsecamente passado (mítico) e presente, sagrado e profano, realidade humana e realidade dos espíritos e deuses. Fazendo, assim, dinamizar a relação dos humano com os espíritos e divindades, sendo ele, muitas vezes, o responsável pelas forças motoras que faz fluir os diferentes contextos de seu meio social e religioso. A mesma Maria Júlia (Lindeuá) que se utilizou de um jogo amoroso (político) para se sustentar enquanto viva é a Pombagira Cigana que é digna de respeito, poder e reconhecimento no Ilê Asé Odé Ofá Arô Nilé, assim como o pai de santo Odé Sigbonilé é o mesmo que se apropria dos poderes dessa entidade para angariar 108

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fundos para si e seus filhos de santo. Da mesma forma, o cliente que roga pelas qualidades mágicas das entidades afro-brasileiras pode ser os mesmos que pedem auxilio terapêutico nos terreiros de Umbanda e Candomblé em Belém do Pará. Isso nos faz perceber que esses interesses, contratos e necessidades fazem parte de um corpus que envolve política, religião, magia e gênero, onde o limite entre ambos não são necessariamente definidos, mas que revelam mais do que simples jogos de interesses e sim características de uma religião dinâmica e diversificada quanto à sua estrutura, cosmogonia, representatividade social e pluralismo religioso, assim como fomentadora e propiciadora de novas identidades. Referências bibliográficas AUGRAS, Monique. Imaginário da magia: magia do imaginário. Petrópolis, RJ: Vozes; Rio de Janeiro: Editora PUC, 2009 BIRMAN, Patrícia. Transas e transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros, um sobrevoo. Estudos Feministas, Florianópolis 13(2)maio/agosto. 2005. Disponível em: . Acesso em 30/08/2013. CARVALHO, José Jorge. “A tradição mística Afro-brasileira”. In: Religião e Sociedade. 18 (2), 1998. Disponível em: . Acesso em 18/03/2013. CHANTER, Tina. Gênero: conceitos chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed. 2011. DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. São Paulo: Editora UNESP, 2009. LAGOS, Nilza Menezes Lino. “Arreda homem, que aí vem mulher...” Representações de gênero nas manifestações da Pombagira. Dissertação de mestrado. São Bernardo do Campo, 2007 LAGES, Sônia Regina corrêa. “Possessão e inversão da subalternidade: com a palavra, pombagira das rosas”. In: Psicologia e sociedade. 24 (3), 2012. Disponível em: . Acesso em 09/07/2013. LEWIS, Ioan M. Êxtase religioso: Um estudo antropológico da possessão por espírito e do xamanismo. São Paulo: Perspectiva, 1977. 109

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MONTERO, Paula. “Magia, racionalidade e sujeitos políticos”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. n. 26, 1994. MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. As senhoras dos pássaros da noite: Escritos sobre a religião dos orixás V. São Paulo: editora da Universidade de São Paulo: Axis Mundi, 1994. SAFFIOTI, Heleith I. B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2004. SILVA, Vagner Gonçalves da. (Org.) Intolerância religiosa: Impactos do Neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007. Notas do Capítulo 5 1 Espaço sagrado onde acontece o ritual nas religiões de matriz africana. 2 O espírito de morto referido aqui é o egum, espírito de pessoa que morreu, mas por alguma razão ainda permanece no plano terreno, prejudicando os vivos, mesmo que esta não seja sua intenção. 3 O termo “vontades” aqui empregado refere-se não a toda e qualquer vontade em termos mundanos. Alguns são adotados: consumir bebidas alcoólicas, fumo, palavrões entre outros. De acordo com o sacerdote Lindeuá morreu antes do tempo, sem ter cumprido sua missão terrena. E essa missão também faz parte em suas manifestações: trabalhos relacionados ao amor, sexualidade, conselhos. 4 A esse respeito o médium pode ou não ser consciente de alguns fatos que ocorrem durante o fenômeno da possessão, assim como a entidade tem limites para atuar. Um exemplo disso foi o que pude perceber quando o sacerdote relata que Lindeuá ficou um período sem se manifestar, pois sua presença estava atraindo muitas prostitutas e a reputação do local sendo comprometida. 5 Depois dessas afirmativas feitas pela entidade em público, a cliente e a Cigana se retiraram do local em que ocorria a gira e foram conversar em particular. 6 É preciso ressaltar que esse imaginário não corresponde ao que de fato pensam e fazem os próprios afrorreligiosos com relação a essas entidades. 7 Em especial um em que pombagira é chamada de “puta gostosa“ e “quem quiser puta igual tem que buscar na zona“. 8 O pedido de diferentes tipos de trabalhos varia de acordo com a entidade, apesar de todas serem dotadas de poderes para atender os mais variados tipos de trabalhos, há aqueles que não gostam de “trabalhar para o lado do mal”. 110

Capítulo 6 Novas Faces da Pajelança Cabocla na Amazônia: o caso da Pajé Zeneida Lima de Soure, Marajó Mayra Cristina Silva Faro Cavalcante Soure, na Ilha do Marajó/PA, é onde reside uma mulher pajé, chamada Zeneida Lima, ao mesmo tempo respeitada e polêmica, que passou a ser conhecida nacionalmente em 1998, quando a Escola de Samba Beija-Flor venceu o carnaval do Rio de Janeiro com o enredo “O Mundo Místico dos Caruanas” baseado em sua autobiografia “O Mundo Místico dos Caruanas e a Revolta de sua Ave” (1 ed., 1991). Contudo, as práticas e as crenças desta pajé divergem em vários aspectos daquelas conhecidas tanto por folcloristas quanto por antropólogos e historiadores, uma vez que busca uma maior integração com a natureza e a maioria das entidades com as quais trabalha são diferentes daquelas observadas em outros pajés estudados por autores como Galvão (1955), Maués (1990) e Villacorta (2000). Este trabalho, portanto, pretende analisar a pajelança apresentada por D. Zeneida Lima, cujas práticas e crenças possuem caráter mais “xamânico”, caracterizando-se pelo culto a Mãe Terra e a outras entidades míticas (como os caruanas, o Girador e Auí), apresentando também um acentuado discurso ecológico e autodeclarada ancestralidade indígena marajoara para suas práticas e crenças. Esta pajé também defende sua prática como sendo uma pajelança “pura”, verdadeira, opondo-se às outras formas de pajelança muito presentes na Amazônia em que se encontram, além dos elementos da cultura indígena, também das religiões afro-brasileiras e do catolicismo popular, com o qual a pajé tenta desvincular sua prática, no que refere, sobretudo, ao culto aos santos católicos. Os objetivos desse artigo consistem em apresentar a pajelança de D. Zeneida Lima, comparando-a com outras formas de pajelança descritas na literatura antropológica, e analisar o papel da mulher no contexto religioso e simbólico da pajelança em Soure. 111

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Soure: conhecendo o local da pesquisa Soure se auto intitula de a “Pérola” ou “Capital do Marajó”, um título que, além de indicar a beleza de suas praias e ambientes naturais, beneficia também a economia turística da cidade. Originou-se de uma antiga aldeia dos índios Maruianazes e Mundis, tornando-se posteriormente freguesia. Em 1757, recebeu a condição de Vila e em 1959 foi elevada à categoria de cidade por decreto-lei. O município se encontra a 87 quilômetros de Belém, é a maior cidade da Ilha do Marajó e está localizado no lado leste do arquipélago 1. Encontra-se às margens do rio Paracauari e de frente para outro município, Salvaterra. Para realização desta pesquisa foram feitas cinco viagens ao campo em períodos curtos entre os anos de 2009 e 2011, em que a metodologia utilizada foi a pesquisa de campo e bibliográfica, pautada em uma abordagem qualitativa que, de acordo com Minayo (2002), trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, correspondendo a um campo mais profundo das relações, dos processos e fenômenos que são difíceis de serem reduzidos à operacionalização de variáveis. Além disso, foram realizados estudo e análise da obra autobiográfica de D. Zeneida Lima e entrevistas com esta e outras mulheres pajés em Soure2, observando com isso uma considerável recorrência de mulheres ativas na prática de cura, sendo essas mulheres consideradas curadoras, parteiras ou pajés. Esse fato demonstra-nos que não há em Soure uma grande restrição a atuação da mulher no exercício da pajelança, como foi observado em outras localidades da Amazônia (MOTTA-MAUÉS, 1993; VILLACORTA, 2000; CAVALCANTE, 2008). O acesso à cidade de Soure não é fácil, e a viagem consiste em três etapas (saída de Belém até o porto de Camará; viagem de ônibus ou van de Camará até Salvaterra; e por fim, travessia de balsa de Salvaterra à Soure) podendo acontecer por meio de barco, que sai do Terminal Hidroviário nas Docas (em Belém), ou balsa, saindo de Icoaraci (próximo a Belém). Soure é uma das cidades do Marajó mais voltadas para o mercado turístico, oferecendo uma variedade de hotéis, pousadas, e investindo no artesanato e na cultura local. No entanto, a estrutura da 112

Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

cidade ainda não é a mais adequada tanto para receber turistas quanto para suprir as próprias necessidades da população. O sistema de transporte público, por exemplo, é precário, contando apenas com mototáxis, algumas kombis e pouquíssimos ônibus (sendo que estes dois últimos ficam mais frequentes nos fins de semana e, principalmente, em período de férias e feriados). As ruas centrais da cidade são a 1ª, 2ª, 3ª e 4ª ruas, onde se concentram diversas atividades sociais, econômicas e religiosas, que ocorrem em diferentes períodos do ano. Na 1ª rua localiza-se o trapiche de onde saem e chegam a balsa e pequenas embarcações, e também a praça principal, chamada Independência, que no mês de julho fica bastante movimentada. Na 2ª rua, encontra-se o espaço em que ocorre a feira de exposições que acontece durante o evento anual chamado “Marajó Búfalo Fest”. Na 3ª rua se encontram o Mercado Municipal, um importante ponto de mototáxi e ônibus, uma loja de artesanato e produtos regionais muito visitada por turistas, um dos hotéis mais antigos da cidade, a Igreja Matriz de N. S. de Nazaré, e outros pontos sociais e econômicos. A 4ª rua é a mais extensa da cidade e leva às praias e fazendas, além de ser onde acontecem festas de carnaval no mês de fevereiro. A cidade é dividida em oito bairros: Tucumanduba, Centro, Pacoval, São Pedro, Matinha, Bairro Novo, Macaxeira e Umirizal, e dispõe de quatro praias: Pesqueiro (a mais conhecida e visitada), Araruna, Barra Velha e Garrote. Ao caminhar pela cidade é comum ver búfalos nas ruas, soltos, andando, presos em alguma árvore ou puxando uma carroça. A figura do búfalo se tornou praticamente um símbolo da ilha, sendo bastante produzido e vendido o “queijo do Marajó”, feito do leite do animal. A pajé Zeneida Lima Zeneida Lima, a mulher pajé que começou a ser conhecida no Brasil em 1991 (com a publicação de seu livro) e mais ainda em 1998 (com o desfile da escola de samba carioca Beija-Flor) desperta, por um lado, muita admiração e, por outro, polêmica entre acadêmicos e leigos. Os resultados dessa pesquisa baseiam-se em algumas entre113

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vistas realizadas por mim com a pajé, entre os anos de 2009 a 2011, e na análise de sua obra “O mundo místico dos Caruanas da Ilha do Marajó” (2002). Meu primeiro contato com essa pajé, uma senhora bastante reservada e de difícil acesso, ocorreu em novembro de 2009 com uma entrevista na varanda de sua casa. Em uma de nossas conversas, a pajé definiu suas práticas como “pajelança marajoara”, e se diferenciou dos demais pajés que, segundo ela, praticam a pajelança da “linha do Maranhão e de São Sebastião”, que podemos entender como sendo a “pajelança cabocla”, amplamente estudada por Galvão (1955), Maués (1990) e muitos outros autores. Entende-se por pajelança cabocla como sendo um significativo aspecto da cultura brasileira, mais especificamente da cultura amazônica, e é uma religiosidade bastante presente em várias localidades da região, apresentando suas particularidades dependendo do contexto histórico-social e da localidade na qual está inserida. A pajelança cabocla segundo Maués (1990) é um conjunto de práticas e crenças xamanísticas que tem em suas expressões culturais diversos elementos da religiosidade indígena, africana e católica, mesclados em graus variáveis. Maués e Villacorta (2004) reconhecem uma nova perspectiva surgindo no campo da pajelança cabocla, vivenciada por D. Zeneida Lima em Soure e Maria Rosa em Colares (VILLACORTA, 2000), ambas são mulheres pajés que apresentam um discurso essencialmente ecológico, onde a natureza e o ser humano são interligados por uma “teia” cósmica, sagrada e o homem não poderia quebrar essa ligação, devendo respeitar e preservar a natureza e seus recursos. Esta “nova face” da pajelança é denominada por esses autores de “pajelança ecológica”. Contudo, é difícil afirmar se o discurso dessas pajés, e especificamente de D. Zeneida Lima, é efetivamente novo, atual, influenciado talvez pela mídia ou pela evidente destruição da natureza, ou se é um discurso originalmente antigo, reformulado ou ressignificado. Ou talvez, seja ambos. D. Zeneida Lima possui sete livros publicados, sendo o mais famoso “O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó” (2002), atualmente em sua 6ª edição, em que escreve sobre sua infância em 114

Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Soure, os conflitos familiares, alguns acontecimentos do cenário político da época, sua iniciação na pajelança, alguns conhecimentos de cura, sua estada no Rio de Janeiro, e outros eventos de sua vida até o início da idade adulta. Há, inclusive, um segundo volume já escrito pela pajé aguardando a publicação, e também um filme de longametragem dirigido por TizukaYamazaki chamado “Amazônia Caruana”, baseado na obra autobiográfica da pajé, mas ainda sem previsão de lançamento no cinema. Essa estreita relação de D. Zeneida Lima com a mídia é um fator que incomoda muitas pessoas, desde o simples morador de Soure ou um pajé ou curador(a) que vê a divulgação das práticas de cura e de uma pajelança geralmente diferente ou desconhecida por ele(a), até o estudioso acadêmico do tema, que se sente intrigado ou mesmo desconfiado diante de um estilo de pajelança, até então pouco estudado. Somado a isto, parte da população de Soure tem antipatia pela pessoa de D. Zeneida Lima devido a um acontecimento ocorrido há mais de vinte anos atrás, quando a filha do prefeito da época misteriosamente desapareceu. A menina era afilhada da pajé e sumiu após ter saído da casa desta. Algumas pessoas da cidade passaram a acusar a pajé de ter feito ritual de “magia negra” com a menina, mas nada foi encontrado pela polícia que comprovasse o envolvimento da pajé com o sumiço da criança, e a acusação do povo representava mais uma atitude de discriminação contra D. Zeneida Lima do que um testemunho verídico. Não possuo muitas informações sobre esse acontecimento, que, aliás, até hoje algumas pessoas recordam, mas preferem não falar muito, portanto, não me deterei muito nesse assunto. D. Zeneida Lima nasceu em 21 de julho de 1934 do matrimônio entre Angelino Rodrigues de Lima3 e Maria José de Andrade Figueira de Lima (sua segunda esposa), sendo que D. Zeneida foi a terceira dos doze irmãos. Sua avó paterna, Rosa, era negra, descendente dos africanos e, segundo o que a pajé escreve em seu livro, contava à Zeneida Lima ainda pequena histórias de Agontime, sua tataravó que nascera na África e era rainha do Daomé, cujo dois filhos (Adandoza e Gezo) com o rei Agongolo foram obrigados a deixar a terra africana e a viver no Brasil, e assim constituindo a descendência de sua família. Sua avó Rosa além de apresentar uma 115

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vasta memória das histórias do povo negro, demonstrava também possuir saberes ligados a cura e a magia. Ela também previu e avisou a mãe de Zeneida que esta era acompanhada pelas “energias da natureza”, e “pertencente ao Mundo das Águas” (LIMA, 2002, p.38). A pajé alega em seu livro possuir também uma descendência europeia e indígena. Sua avó materna, Leonora, seria de origem espanhola, que se uniu a um pajé caboclo descendente da tribo Sacaca da Ilha do Marajó, e dessa união nascera sua mãe, Maria José. Dessa forma, a pajé argumenta trazer em seu sangue o poder ancestral da magia e da cura, através de seus antepassados que representam as vertentes culturais negra, indígena e europeia. Ela seria, portanto, uma pajé de nascença que, manifesta seu dom ainda no ventre da mãe, chorando ou emitindo um som, e tal ocorrido não pode ser revelado publicamente antes do tempo, sob pena de a pessoa perder seus poderes. Além do choro no ventre de sua mãe, D. Zeneida aponta outros sinais que indicaram seu dom para a cura, como o pouso ou vôo de borboletas azuis em volta da barriga grávida de sua mãe (essas borboletas são manifestações de Anhanga, conforme explicou D. Zeneida em entrevista), a sensação da presença de caruanas perto de pessoas próximas da pequena pajé, como a sua mãe ou um amigo desta, que se sentiram “mundiados” (LIMA, 2002, p.50), e o nascimento de uma “coisa gêmea” junto com D. Zeneida, que era um ser de “forma redonda que possuía olhos, nariz, boca e todos os órgãos” (LIMA, 2002, p.52), uma criança mal formada, que depois de alguns minutos veio a falecer. Em entrevista, em julho de 2010, D. Zeneida me explicou que ela acredita ser esse um sinal de seu destino como pajé, pois seu bisavô teria dito a sua mãe que ao nascer ela viria com a lua. De alguma maneira, D. Zeneida acredita que a lua corresponderia a irmã, ou “a coisa gêmea”, que não se formou. Outros acontecimentos estranhos, descritos em seu livro, ocorreram ao longo da vida de D. Zeneida, ora com características amistosas e amigáveis ora perigosas e hostis, mas sempre misteriosas. Muitas vezes ela ficava seriamente doente, e apenas conseguia melhorar com a ajuda de um curador ou pajé, que receitava banhos e outros remédios à base de plantas. 116

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Entretanto, mais do que doenças misteriosas, que só eram curadas ou amenizadas por meio da intervenção de um pajé, D. Zeneida teve uma experiência marcante aos onze anos de idade, que a inseriu definitivamente no universo da pajelança. Acompanhada de seu irmão, sua mãe e da empregada caminhavam na mata, nas redondezas da fazenda onde residiam, para apanhar açaí. Quando ela estava um pouco afastada dos demais, sentiu um vento frio soprar sobre ela, e subitamente viu diante de si três seres semelhantes a seres humanos, que tinham a aparência de serem dois homens e uma mulher. D. Zeneida (2002, p. 136) assim descreve que: Os três seres estavam nus. Entre os braços e o corpo possuíam fina membrana, do mesmo tipo que ligava os dedos da mão. Os pés eram palmiformes, achatados, como de patos. A pele era de um azul intenso, brilhante. Ocorreu a mim que seriam seres da água. [...] Eles carregavam longos canudos em forma de cigarros e cachos de um fruto de bagas amarelas. Por gestos, ofereceram-me as frutas. Eu consegui balançar a cabeça negativamente. Sem outra razão passaram a me agredir. Meu corpo ardia com o castigo. Senti que desfalecia.

Desmaiou por um momento e quando voltou à consciência estava em outro lugar, ainda na floresta, mas na margem oposta do igarapé de onde, outrora, estava próxima. Sentia o corpo dolorido e as roupas que vestia estavam rasgadas. Viu novamente os seres azuis, que lhe ofereciam as frutas, e ela de novo negou. Eles continuaram a bater em Zeneida, que desmaiou profundamente e ficou inconsciente. Dezessete dias se passaram com Zeneida Lima desaparecida na floresta, quando finalmente a encontraram. Estava paralisada, enrolada em um emaranhado de cipós, os cabelos completamente embaraçados e o corpo apresentava manchas definidas com figuras de peixes, pássaros, cobras, flechas, máscaras primitivas. Quando o pai lhe perguntou o que havia acontecido, ela soltou uma gargalhada, depois pausava e emitia gritos, os olhos estavam arregalados, cheios de brilho e o rosto transfigurado, seu estado lembrava a loucura e o pânico. Afirmava ver os seres azuis que a chamavam para a mata, e não lembrava mais nada. 117

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Começou a sofrer crises de choro, gritos, risos, debatia-se e queria sair correndo para a floresta. Características da corrente-dofundo, a qual todos os indivíduos que nascem com o dom sofrem antes de tornarem-se pajés, e é descrita por Maués (2005) como um período de muito sofrimento, crises, doenças ou ataques de violência ou possessão descontrolada de espíritos e caruanas. O(a) pajé deve, então, submeter-se a tratamento com um pajé experiente, que irá afastar os espíritos e os maus caruanas, treinando o(a) futuro(a) pajé para que ele(a) possa controlar as incorporações. D. Zeneida só melhorou quando levaram mestre Elpídio para vê-la, que afirmou que a menina havia sofrido “flechada de Anhangá”. Também explicara que a mesma tinha o dom de ser curandeira, e não podia entrar na mata ou atravessar rios e igarapés na lua minguante, pois “é nessa lua que as resmas [que podemos entender como energias negativas] de Anhangá se espalham, ela tinha de fechar o corpo desde jitinha para que não acontecesse isso” (LIMA, 2002, p. 145). Apenas um ritual de pajelança poderia livrar D. Zeneida da flechada de Anhangá, mas esse ritual só pôde ser realizado três dias depois, pois era uma Sexta-Feira Santa, e em dias santos não se realiza pajelança. Esse respeito dos pajés perante os dias santos católicos pode ser entendido como um indício de que a maioria dos curadores se declara católica, como observa Galvão (1955) e Maués (1990). Mas, além disso, pode ser entendido como uma submissão culturalmente estabelecida, do catolicismo como sendo “superior” a pajelança, e realizar rituais de cura ou encantaria em dias santos (como a Sexta-Feira Santa e o Natal) pode ser considerado um pecado. Essa visão sacralizada dos dias santos é percebida também nas religiões afro-brasileiras, como observou Vergolino (1987) nos terreiros de Belém e faz a interessante afirmação de que “não se trata apenas de uma justaposição [de religiões ou crenças religiosas], mas que, de fato, os terreiros assimilaram e reinterpretaram esse calendário [cristão]” (p. 59). Maués (1992) relata que os pajés costumam se definir religiosamente como católicos, e não como seguidores ou líderes de uma religião ou culto, que seria a pajelança. Na realidade, ser pajé é muito 118

Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

mais uma função social e espiritual do que uma devoção ou pertença religiosa. Entretanto, observa-se que em Soure, D. Zeneida não se identifica como católica, e sim como pajé, denotando uma intencionalidade de firmar em si uma tradição cultural, aparentemente, indígena marajoara. Além disso, a pajé procura desvincular suas práticas e crenças do catolicismo popular, reverenciando não o Santo Antônio ou São Sebastião, tão adorado e respeitado por diversas comunidades amazônicas, mas sim o Vento, os Caruanas, o Girador (a divindade criadora conforme a pajé escreve em seu livro), a Mãe Terra, dentre outras deidades (LIMA, 1991/2002). É possível reconhecer de fato aspectos ancestrais ou xamânicos em suas práticas e crenças de cura, no entanto, observa-se também aspectos e pensamentos recorrentes do momento contemporâneo, como a ecologia desenvolvida conjuntamente à educação4 e a relação com a mídia. Decerto não existe religião ou cultura “pura”, mantida intocada e não influenciada por outras religiões e culturas. Entre semelhanças e diferenças de concepções espirituais, cada cultura assimila, reinterpreta, compartilha e se apropria de crenças, pensamentos e práticas ao interagir com outras culturas. D. Zeneida, então, foi sentada pajé aos onze anos de idade, pelo mestre Mundico de Maroacá, em Salvaterra. A preparação antes do “ritual de cruzamento” consistiu em algumas ações necessárias a serem feitas pela pajerana, ou seja, aquela que vai ser pajé (LIMA, 2002), deve seguir uma rigorosa alimentação, tomar nove banhos de ervas um a cada mês na lua crescente, durante nove meses, e não deve olhar para a lua cheia, até o dia do ritual de iniciação. O processo de formação como pajé durou um ano e dezessete dias, ao longo do qual aprendeu com seu mestre os rituais da pajelança (ou pajeísmo, como ela também denomina), o mundo dos caruanas sob as águas, as sete cidades encantadas, as deidades (como o Girador, Patu-Anu, Auí, Anhangá), e outros conhecimentos.

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Religião, Gênero e Poder

A concepção de pajelança e de mundo para D. Zeneida Lima A pajelança, de acordo com D. Zeneida (2002), é um culto oriundo dos indígenas, repassado aos caboclos e que hoje, em nossa civilização “são as últimas marcas de um culto em vias de extinção” (p. 16), pois estaria cada vez mais difusa entre elementos de outras religiões. Em sua concepção, D. Zeneida (1991, p. 32) explica que a encantaria: [...] representa um encontro entre o homem e as energias da natureza, os caruanas, companheiros do fundo, ou simplesmente, encantados. [...] Ainda lhe digo mais, a natureza é a grande mãe, a origem e o fim de todas as coisas. Não devemos violentá-la, porque estaremos violando a nós mesmos. Os que violam a natureza são punidos por Anhangá. [...] O respeito à natureza, a integridade e equilíbrio de seus elementos é a lei maior. Dentro desse princípio de que se tratarmos bem a natureza, ela nos dá tudo. A natureza possui energias insondáveis para os mortais. Essas energias se manifestam no pajé que se torna seu instrumento.

A pajé alega que os seus saberes e práticas seriam a sobrevivência de um culto originalmente indígena das tribos do Marajó. Nesse sentido, podemos inferir que a pajelança praticada por esta pajé se relaciona mais com a ideia de xamanismo clássico do que com a de pajelança cabocla. Compreende-se xamanismo como “um fenômeno religioso da Ásia Central e Setentrional (povos altaicos, buriatas, samoiedos, iacutes, tungues, voguls etc.) e das regiões árticas norte-européias (lapões)” (MONTAL, 1986, p.13), que remonta sua origem ao período Paleolítico. Segundo Alix de Montal (op. cit., p. 15), “a palavra xamã vem do tungue saman, aparentado com o sânscrito sramana e com o pâlisamana, que significa ‘homem inspirado pelos espíritos’ “, e afirma também que: Encontram-se fenômenos xamânicos similares entre os esquimós, entre os índios da América do Norte e da América do Sul; na Oceania, na Austrália, no sudeste asiático; e enfim, na Índia, no Tibete e na China. Trata-se, aqui, de um 120

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conjunto de práticas evidentemente adaptadas e amalgamadas a cada cultura, a cada crença, mas que em toda parte apresenta o mesmo conteúdo mágico-religioso e simbólico (MONTAL, 1986, p. 15).

Tedlock (2008) aponta cinco características fundamentais que definem as atividades e perspectivas xamânicas, que são: a) a convicção de que todas as entidades (inanimadas ou não) estão imbuídas de uma força de vida holística, energia vital, consciência ou alma; b) a crença em uma “teia de vida” em que todas as coisas são interdependentes e interconectadas; c) a concepção de uma realidade complexa em que o mundo é construído em uma série de níveis conectados por um eixo central, que pode assumir a forma de uma árvore ou montanha; d) a capacidade do xamã em viajar por mundos espirituais, e de compreender e mudar eventos do mundo comum, podendo realizar tais coisas durante seu período de consciência normal ou em estados alternativos de consciência (por meio de jejum, alucinógenos, rituais e sonhos); e) os xamãs reconhecem que forças extraordinárias, entidades ou seres cujo comportamento em uma realidade ou mundo alternativo afetamos indivíduos e acontecimentos em nosso mundo comum, e por outro lado compreendem que ações ou rituais realizados na realidade normal podem afetar a esfera alternativa. O xamanismo foi amplamente estudado por Mircea Eliade, em especial na obra “Xamanismo e as técnicas arcaicas de êxtase” (1998), e apesar de não ter pesquisado o fenômeno in loco, é um dos estudiosos mais conhecidos quando se trata de xamanismo. Eliade (1998, p. 16) aponta uma primeira definição, e segundo ele “possivelmente a menos arriscada”, de xamanismo como sendo fundamentalmente uma técnica do êxtase. Nesse estudo, Eliade aborda com ênfase, entre outras práticas de cura e êxtase, o “voo mágico” ou “voo xamânico”, que consiste na viagem mística da alma ou consciência do xamã a outros mundos espirituais, superiores ou inferiores. Como Eliade (1998, p. 17) explica, o xamã é “o especialista em um transe, 121

Religião, Gênero e Poder

durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para realizar ascensões celestes ou descensões infernais”. Na pajelança cabocla ao invés de voo xamânico poderíamos chamar de “mergulho xamânico”, já que a viagem do(a) pajé se dá ao fundo das águas, o Fundo ou Encante, que é o lugar encantado onde habitam os seres mágicos que auxiliam o pajé. O xamã é, então, o sacerdote deste culto, o mediador fundamental entre os espíritos (de antepassados, de deuses e de animais) e os seres humanos. Dentre suas funções a principal é curar as mais diversas doenças e males, e que para Lévi-Strauss (2003) tal cura xamânica se processa por meio de uma manipulação psicológica na qual “a cura consistiria, pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar” (p. 228). Para D. Zeneida, o pajé não é somente o instrumento (ou “ave”) dos caruanas (seres mágicos que habitam o fundo dos rios e interior das matas, e detentores de grande poder tanto para provocar a cura quanto a doença) e a ponte de ligação com o mundo encantado, mas também um defensor e guardião da natureza e de sua sabedoria. Daí a razão do trabalho que desenvolve com a educação e a ecologia, por meio de uma ONG (Instituição Caruanas do Marajó) que a pajé fundou e mantém em Soure. Os caruanas, conforme esta pajé, são energias das águas, e explica que: São energias do fundo, energias do meio das águas e as energias da superfície, cada um tem, dentro da pajelança, tem um posto, cada um tem uma hierarquia, [...] quer dizer, então, cada um tem um domínio (entrevista de julho de 2010).

O domínio que ela se refere é o local onde reside cada caruana, ou seja, cada praia, rio, igarapé é habitado por um ou mais encantados. Os caruanas são os encantados das águas doces, e possuem caráter “positivo”, enquanto que os encantados das águas salgadas são denominados de caruás, possuem caráter “negativo” e geralmente efetuam malinezas, mas também têm o poder de curar.

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Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Na literatura antropológica, e especificamente no estudo de Maués (2005, p. 7), os caruanas, também chamados de companheiros-do-fundo, são seres: [...] normalmente “invisíveis” aos olhos dos simples mortais; mas podem manifestar-se de formas diversas. [...] São chamados de bichos do fundo quando se manifestam nos rios e igarapés, sob a forma de cobras, peixes, botos e jacarés. Nessa condição, eles são pensados como perigosos, pois podem provocar mau olhado ou flechada de bicho nas pessoas comuns. Caso se manifestem sob forma humana, nos manguezais ou nas praias, são chamados de “oiaras”; neste caso, eles frequentemente aparecem como se fossem pessoas conhecidas, amigos ou parentes, e desejam levar as pessoas para o fundo. A terceira forma de manifestação é aquela em que eles, permanecendo invisíveis, incorporam-se nas pessoas, quer sejam aquelas que têm o dom “de nascença” para serem xamãs, quer sejam as de quem “se agradam”, quer sejam os próprios xamãs (pajés) já formados: neste caso, são chamados de caruanas, guias ou cavalheiros. Ao manifestarse nos pajés, durante as sessões xamanísticas, os caruanas vêm para praticar o bem, sobretudo para curar doenças.

Os caruanas também podem ser pessoas que se encantaram, ou seja, que não morreram, mas misteriosamente desapareceram em um rio ou mata, e integram-se de uma forma mítica àquele lugar e/ou a algum animal, associado a sua história de vida. Por exemplo, o caruana Raimundo Pavão que se encantou nas proximidades da praia Cajuúna em Soure. D. Zeneida (2002) conta que esse caruana era um pescador e que um dia enquanto estava em sua embarcação nessa praia, provavelmente durante seu ofício de pesca, avistou um pavão sobrevoando seu barco. A ave volteou e se afastou para pousar então em: [...] um areal que aflorava das águas, surgido do nada. Tocando o pequeno barco para o areal, Raimundo notou que lá estavam muitos índios. Remou firme para lá e diante de seus olhos tudo desapareceu. A partir de então, Raimundo encantou-se assumindo as características de seu último estágio, ou 123

Religião, Gênero e Poder

seja, a de um pavão, tendo por missão proteger as três praias; Pesqueiro, Araruna e Cajuúna (LIMA, 2002, p. 84).

De acordo com a concepção de D. Zeneida, a função dos caruanas é: [...] em determinado tempo, preservar o equilíbrio natural, mas em sua grande maioria [os caruanas] dedicam-se à cura do vivente da Terra. [...] Finalmente, após cumprir as tarefas impostas pela Natureza, os Caruanas descem por uma Escadinha de Coral encantada, onde gradativamente são submetidos a uma transformação decrescente. Quanto mais desenvolvido o Caruana, mais ele percorre o caminho inverso para as profundezas. Sua aparência também vai se modificando até atingir sua forma mais elementar. Torna-se água novamente, a origem de tudo, o elemento principal e fundamental da vida, o que nos sustenta, dá forças e energias5.

A pajé também explica que os caruanas se originam das Sete Cidades encantadas que existem no fundo do mar, e de lá observam no grande espelho das águas, que ela chama de a Lírica do Mar, tudo o que os mortais fazem e invocados por um pajé eles podem vir socorrer os seres humanos (LIMA, 2002, p. 82-83). O pajé torna-se eixo de ligação entre os caruanas e os seres humanos, intermediando energias da natureza, formada basicamente pelos reinos animal, vegetal e mineral. Esses reinos estão presentes também no ser humano e quando estão desequilibrados provocam doenças e outros problemas de ordem emocional, mental e até mesmo econômico, conforme a explicação de D. Zeneida em entrevista. O pajé é responsável por tratar deste desequilíbrio no indivíduo, por meio de banhos e outros procedimentos. Para saber se as energias ou os reinos estão em equilíbrio ou não, a pajé explica que: Daí eu vô e dô uns enrolados, com três elementos da natureza, é uma pedra, um besouro e uma semente, aí você pega e depois fica dentro da cumbuca; essa cumbuca é preparada para fazer esse tipo de conferência das energias, depois disso eu pego os enrolados e abafo essa cumbuca com os enrolados, numa folha sagrada que ela tem o poder de reter essas energias ali. Daí eu levo pro tempo e deixo três dias, depois de 124

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três dias eu vô e tiro do tempo a cumbuca, tiro todas as folhas que eu botei, os enrolados de folha que eu botei, e pego os elementos e vô olhar e vejo a coloração. Às vezes eles ficam vermelhos, tem outros que ficam esverdeados. Tem vezes que tá tudo certo, você tá certa, suas energias estão certinhas. A partir daí é que eu mando... eu vejo o reino que tava... porque um representa a terra... a partir daí é que eu posso mandar as energias pra te curar (entrevista de julho de 2010).

Em sua cosmovisão e cosmogênese, D. Zeneida (2002, p. 222-229) explica que o mundo dos caruanas foi criado pelo Girador, a divindade primeva que possui a forma de uma grande igaçaba ou vaso. Sobre as águas primordiais pairou o Girador, do qual surgiu Auí, um ser altivo e luminoso, e seu povo, para o qual construiu sete cidades encantadas sobre as águas. Eles viviam em harmonia com a Natureza, até que um dia Auí transgrediu uma regra ditada pelo Girador, que não deveria se aproximar de lugares com desequilíbrios naturais. Auí avistou um redemoinho nas águas, provocado por Anhangá, tido como o “resto da natureza”, e ao olhar com mais atenção percebeu que o fundo das águas era feito do mesmo material que o Girador, o barro. Mergulhou em direção ao centro das águas e isso provocou um desequilíbrio na ordem natural. O que estava em cima foi para o fundo das águas, e o que estava embaixo emergiu à superfície. Assim, criou-se a terra firme, e Auí e seu povo passaram a habitar o fundo. O Girador então pairou no ar e lançou sobre a terra sementes da vida que originaram todos os seres viventes. O corpo de Auí foi despedaçado pelo redemoinho, e deu origem a várias coisas na natureza e também a seres mágicos, como o Peixe de Sete Asas coloridas, que conduz a alma dos pajés aos mistérios das Sete Cidades Encantadas. Além destas deidades, existe também PatuAnu, criado pelo Girador para governar os caruanas e realizar transformações nas cidades sob as águas, depois da imersão ao fundo. Outros mitos como este são contados na autobiografia de D. Zeneida, e se apresentam como novos e desconhecidos na literatura sobre mitologia da Amazônia, ao mesmo tempo em que contêm, como neste mito de criação, elementos padrões existentes em muitas mitologias, como a água como princípio de toda a existência, uma divin125

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dade primeva e criadora do mundo, e ao mesmo tempo distante deste, a ordem ou harmonia natural, a transgressão dessa ordem, a punição e “queda do paraíso”, o sacrifício do gigante que tem seu corpo repartido e dá origem a diversas coisas da natureza (ELIADE, 2001; CAMPBELL, 1990). Em seu depoimento, coletado em entrevistas, D. Zeneida conta que os rituais que realiza são para várias finalidades, além daqueles realizados para a cura dos indivíduos. Há um para agradecer a natureza, outro para pedir chuva (caso esteja fazendo muito calor) ou para pedir pelo sol (caso as chuvas estejam intensas), outro para proteger o indivíduo que entra na adolescência (caracterizando-se como um rito de passagem), para dar forças a uma pessoa que deseja alcançar um objetivo, há também rituais dedicados à Mãe Terra, para alimentá-la ou para curá-la quando uma área é devastada, há um rito fechado feito especificamente a Anhangá, no dia em que acontece o alinhamento da Terra, Lua e Sol. A pajé explica que: Os rituais de Anhangá, dentro da pajelança, eles são secretos, sabe? São rituais secretos porque o pajé... algumas pessoa veem, mas é com urtiga, sabe? Então o pajé se rola por cima da urtiga todinha, o servente bate o corpo do pajé tudo com urtiga. Então é um ritual, vamos dizer, pesado. Porque Anhangá, a energia de Anhangá, é pesado; ele faz isso... o servente do pajé faz isso, bate no pajé, pra acalmar essas energias na Terra, entendeu? Pra que essas energias, não haja tanto desgastes [desastres], tantas coisas ruins, ele acalma as energias dela. (Entrevista de julho de 2010).

Alguns dos instrumentos sagrados que ela utiliza são o maracá, que deve ser de três tipos: o maracá da cura (que contém penas da asa da arara azul), o maracá para marcar os ritmos da dança e dos cânticos (com penas do rabo da arara vermelha), e o maracá de espinho (enfeitado com espinhos e penas amarelas) que serve para afastar Anhangá nos rituais de cura; há também as cintas, amarradas no corpo da pajé; um cipó, que ela utiliza para delimitar um círculo sagrado; um arco e flecha; cigarros de tauari; cuias ou cumbucas contendo água e outras coisas. 126

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Enquanto pajé, D. Zeneida Lima afirma não ter sofrido discriminação pelo fato de ser mulher, e sim pelo fato de ser pajé, pelas práticas que realiza, tendo em vista que a pajelança ainda é uma prática marginalizada. Ela reclama ter sido alvo de perseguição e preconceito, sobretudo em sua cidade. Relata também que durante o período em que estava menstruada ela não poderia realizar pajelança, pois seu corpo “não estava puro para os caruanas” (entrevista de julho de 2010), deveria se alimentar somente de peixe e da parte inferior do mesmo e beber água apenas três vezes no dia. Também não poderia ter relação sexual durante a lua cheia e nem alguns dias antes de uma pajelança. Caso ela não seguisse essas regras, correria o risco de perder seu poder de cura. A mulher como pajé na Amazônia Em alguns estudos (MOTTA-MAUÉS 1993; VILLACORTA, 2000; CAVALCANTE, 2008) foi observado que em certas localidades amazônicas a mulher sofre restrição em ser pajé, ou que no mínimo sofre interdições que geralmente o homem não sofre. Em outras localidades, porém, encontram-se mulheres pajés consideradas mais poderosas até que os homens pajés. E em outras situações, é mais comum encontrarmos curandeiras, benzedeiras e parteiras, sendo esta última uma função exclusiva do sexo feminino. As interdições relacionadas a restrição da mulher na pajelança giram, muitas vezes, em torno dos ciclos fisiológicos femininos, e sobretudo, sobre o sangue menstrual e os simbolismos a ele atribuídos. A população considera que a mulher não consegue controlar os seus ciclos biológicos, e por essa razão não controlaria os seres e forças que nela atuariam. No período em que a mulher se encontra menstruada, diz-se que ela está “fraca” e não pode incorporar (CAVALCANTE, 2008). Deve aguardar que a menstruação pare, para voltar às atividades normais da pajelança. Ou então, ela deve aguardar até a menopausa, quando se “hominiza” (expressão empregada por MOTTA-MAUÉS, 1993), isto é, se assemelha ao estado natural masculino, sem ciclos menstruais, para então exercer seu dom. Koss (2004) escreve que a menstruação quer dizer “mudança de lua”, o que evidencia a relação da ciclicidade da natureza com o próprio corpo feminino, além de observar um dado amplamente co127

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nhecido de que o ciclo menstrual dura em torno de 28 a 29 dias, o mesmo período do ciclo lunar. Koss (2004, p. 14) escreve que: O que caracteriza o sangrar da mulher é a sua ciclicidade. Um conjunto de eventos fisiológicos que iniciam e terminam em um mesmo acontecimento: o fluxo sanguíneo, a menstruação retorna regularmente, como as estações. Nessa sua regularidade, ela está associada com o primeiro contar do tempo, seja o tempo da coleta e da caça, seja o tempo da semeadura e da colheita, seja o tempo da procriação e da gestação. E assim como o tempo, está também intimamente conectada com a lua, a cujo movimento cíclico respondem os oceanos, o ritmo cardíaco e o próprio pulsar da vida, em seu movimento de expansão e contração.

A autora defende que em algumas sociedades antigas, em que a mulher exercia certa importância no contexto social e religioso, o sangue menstrual era símbolo de poder e no momento em que a mulher encontrava-se menstruada era capaz de intermediar forças diferentes ou conectar-se com mundos diferentes, pois a mesma estava em uma condição liminar. Seja no parto, seja na menstruação, é no momento da passagem, quando deixa o interior do corpo da mulher e se manifesta no mundo exterior, que o poder contido no fluxo sanguíneo lança a mulher numa condição liminar, em que vida e morte, consciente e inconsciente se tocam. Nesses momentos, o véu que separa os mundos é tênue, muito sutil, possibilitando sua transposição. Por essa razão, as xamãs precipitam sua menstruação antes de iniciar um trabalho poderoso. [...] A habilidade para mediar as forças entre os mundos está intimamente relacionada com o menstruar (KOSS, 2004, p. 15).

Essa situação liminar é provocada em razão de serem atribuídos ao sangue menstrual poderes mágicos ligados tanto à vida quanto à morte, e resulta geralmente em diversas restrições sociais e religiosas para a mulher, que se diferenciam a cada sociedade. Motta-Maués (1993) realizou um estudo em Itapuá, vila de pescadores em Vigia/PA, acerca do papel da mulher na comunidade e na religião, e o quanto este papel está relacionado simbolicamente 128

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à fisiologia e ao ciclo biológico da mulher. A autora afirma que a mulher é vista como portadora da “desordem”, devido aos seus ciclos biológicos (confusos e incompreendidos pela população masculina itapuaense), enquanto que o homem é o portador da “ordem”. Motta-Maués verifica a existência de áreas definidas como de domínio feminino (a ‘roça’ ou agricultura e a religião católica) e masculino (a pesca, a caça e o xamanismo). Cavalcante (2008), por sua vez, aponta que em Condeixa (Ilha do Marajó) existe um número considerável de mulheres trabalhando como meuans, categoria que exerce uma assistência ao pajé que a “endireitou”, não atuando ativamente na pajelança. A maior dificuldade de mulheres se tornarem pajés é a não aceitação por parte da família, principalmente do marido, que não aceita a esposa se “libertar” durante os trabalhos, ou seja, beber e fumar. Falar do feminino na concepção desses indivíduos é lembrar da ideia de mulher enquanto um ser dócil, mãe dedicada e esposa recatada, indício de um forte sistema patriarcal, em que a mãe e os filhos são figuras subordinadas e dependentes da figura do pai. No município de Colares (PA), Villacorta (2000) observou que mesmo sendo limitado o exercício do gênero feminino na pajelança, havia mulheres pajés. Porém, elas eram discriminadas por parte da sociedade e chamadas de Matinta-Perera, feiticeiras do imaginário amazônico que, segundo a autora, mescla elementos mitológicos da cultura africana (as mulheres do pássaro da noite), pré-judaica (Lilith) e do cristianismo medieval (a bruxa). Acredita-se que a matinta é uma mulher ora de aparência idosa e feia, ora jovem e bela, que carrega consigo um fardo, herdado de família (de avó para neta), e que se contrariada ou desrespeitada pode lançar um feitiço, doença ou desgraça para um indivíduo. Anda sempre acompanhada de um pássaro, que com seu assobio anuncia a presença da bruxa. Sobre a recorrência de mulheres xamãs, observa-se que em algumas mitologias, como a da América Central, conta-se que a mulher nasceu ao mesmo tempo em que o primeiro nagual (xamã), e por isso ela é considerada tão capaz quanto ele, e às vezes até mais temível, no exercício do xamanismo. Sobre as mulheres xamãs, Montal (1986, p. 25) cita Dom Juan que diz que “de modo absoluto, elas 129

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levam ligeira vantagem”. E o próprio processo de iniciação das mulheres segue as mesmas etapas que dos homens no xamanismo. No estado do Acre em 2005 duas mulheres da etnia Yawanawá iniciaram a “dieta do mucá”, ou seja, iniciaram um processo ritual para se tornarem pajés. Elas são Raimunda Putani Yawanawá e Kátia Hushahu Yawanawá, sendo que a segunda atua mais ativamente como pajé na aldeia. Ambas passaram por um período de iniciação, onde ficaram um ano isoladas na mata, obrigadas a fazer abstinência sexual, comer apenas alimentos crus e beber apenas uma bebida especial à base de milho. Segundo informações na reportagem, essas mulheres sabiam das dificuldades e preconceito que enfrentariam, dentro e fora de sua aldeia, pois a tradição da pajelança era reservada, até então, aos homens. Tinham consciência do paradigma que estariam quebrando, e mesmo assim elas persistiram. O Rare, planta presente no processo de iniciação do pajé, é considerada muito sagrada para os Yawanawá, e somente os pajés ou os que pretendem se tornar pajés podem ter contato, a nível físico e espiritual, com a planta. Nas experiências místicas que as pajés tiveram, a figura do feminino era marcante e representava o espírito do Rare e da Jiboia (um dos, se não o principal, ser encantado no imaginário dos povos indígenas acreanos), como explica Kátia: O Rare é uma planta muito sagrada. A partir do momento que a gente come, a gente já planta ele dentro da gente. A partir desse momento, a gente já passa a ter o conhecimento e o poder do Rare. [...] Podemos tocar numa pessoa e dizer para ela que vai ficar boa. As nossas palavras são muito sagradas. Ele é uma planta, mas é espírito. Ele também tem uma mulher. Sempre é uma mulher tanto nele quanto na jibóia. Nos nossos sonhos é sempre uma mulher que traz o conhecimento. Ele é muito poderoso. 6

Dessa forma, as visões e sonhos com a “mulher que traz o conhecimento” reforçam a ideia (e a defesa) das pajés Yawanawá de que a mulher tem tanto poder e capacidade em ser pajé quanto os homens, pois as próprias forças sagradas se manifestam na forma de uma mulher. 130

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Tedlock (2008) escreve que em diversas culturas da Era do Gelo, a mulher exercia papel de grande importância, não de primazia, no xamanismo. Escavações arqueológicas no sítio do Alto Paleolítico chamado Dolní Vestonice, na República Tcheca, encontraram dois ossos da escápula de um mamute posicionados para formar os dois lados de um teto de resina de pinheiro. Embaixo havia um esqueleto humano, e na terra que o cobria, bem como nos ossos, viam-se traços de ocre vermelho, indicando que o corpo fora pintado de vermelho antes de ser enterrado. No entanto, esse túmulo não era de uma pessoa comum, pois encontraram também a ponta de uma lança de sílex próxima a cabeça do cadáver e o corpo de uma raposa posto em uma das mãos. Segundo a equipe de arqueólogos que estudaram o sítio, a raposa era um indício claro de que a pessoa no túmulo fora um xamã. Contudo, foi uma surpresa quando a análise do esqueleto revelou que o xamã em questão era uma mulher. Anos mais tarde, foi descoberto próximo do túmulo da xamã uma cabana de terra batida contendo ossos estriados e um forno grande com milhares de pedaços de argila cozida, alguns na forma de pés humanos, mãos, cabeças, e outros eram fragmentos de figuras de animais. A partir dessas escavações e estudos publicados por Bohuslav Kamí, o líder da equipe de arqueólogos, a pesquisadora Tedlock (2008, p. 14) defende que: Além de o esqueleto mais antigo conhecido de um xamã ser o de uma mulher, ela é também a primeira artesã de que se tem notícia que trabalhava com argila e a endurecia com fogo. Não fazia utensílios para casa, e sim talismãs ou figuras de algum tipo, talvez para usá-los em seus rituais e curas espirituais.

Esta autora argumenta que apesar das evidências da linguagem, dos artefatos, representações pictóricas, narrativas etnográficas e relatos de testemunhas, a significativa função das mulheres nas tradições xamanísticas de diversas culturas e épocas foi obscurecida e negada, e o fato de que “corpos e mentes femininos são especialmente dotados do poder de transcendência foi ignorado” (TEDLOCK, 2008, p. 14). 131

Religião, Gênero e Poder

Diante disso, então, como a mulher em várias sociedades teve sua participação limitada e às vezes subjugada na vida religiosa? Alguns estudos recentes na área da antropologia vêm buscando solucionar essa questão. Margaret Mead em seu livro “Sexo e Temperamento” (1999) apresenta importantes considerações sobre a construção cultural dos comportamentos e papéis femininos e masculinos (o termo gênero surge somente alguns anos depois do seu estudo), a partir de sua etnografia em comunidades da Nova Guiné. Esta autora lança luzes no caminho da pesquisa sobre gênero, demonstrando que este é muito mais um fator construído pela cultura, logo é relativo e suas configurações mudam de acordo com a sociedade em foco, do que um fator biológico, ou seja, universal, como alguns estudiosos afirmavam até o século XIX. Rita Segato (1998) retoma essa ideia e afirma que o gênero não é algo observável, pois é abstrato, ou seja, sua construção encontra-se muito mais na mentalidade social do que necessariamente no corpo humano. Para Segato (1998), o gênero se transpõe, é complexo, e o sujeito deve ser considerado uma composição mista, plural e não um ser monolítico, definido por características “femininas” ou “masculinas”, que na realidade variam conforme o contexto histórico e cultural, ou seja, o que é considerado característica feminina numa sociedade pode ser considerado masculina em outra. Nesse sentido, podemos perceber algumas razões (construídas socialmente) que tornam ora a mulher restrita ora ativa na atuação do xamanismo. Em Soure, é possível observar que as mulheres não sofrem extremas restrições em serem pajés e nem precisam esperar até a menopausa para atuarem na cura, no entanto, nos momentos em que estão menstruadas as mulheres não podem realizar rituais de pajelança, pois o corpo está “impuro” para receber os caruanas, como afirmou D. Zeneida em entrevista. Apesar de alguns estudos demonstrarem a dualidade do poder da mulher, representado pelo sangue menstrual, de caráter ora construtivo ora destrutivo, é o caráter negativo (destrutivo) que prevalece muitas vezes na ideia do(a)s pajés.

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Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Considerações finais O estudo sobre as mulheres pajés na Amazônia está se ampliando cada vez mais e vem demonstrando que elas participam do universo da pajelança de uma maneira ou de outra, seja agindo efetivamente como pajés ou xamãs, seja agindo como serventes ou meuans. Em todo o território amazônico elas são mulheres que curam, são as curandeiras, benzedeiras, parteiras e pajés, que possuem saberes das plantas curativas, da mata, das águas, dos ciclos da lua e da natureza. Em alguns locais são restritas ao conhecimento dos mistérios da cura e da encantaria. Mas, teimosas, insistem em adentrar nesse mundo místico, de transe e magia, e contrariando o sexo masculino, que geralmente predomina na pajelança, são castigadas socialmente e chamadas de feiticeiras, bruxas e matintas. Em contrapartida, noutros locais as mulheres assumem posição destacada, podem ser consideradas mais poderosas que os homens, e são reconhecidas como xamãs ou pajés. Com este estudo foi possível constatar que em Soure as mulheres não são restritas em serem pajés ou de atuarem na prática da cura. Pelo contrário, dentre os entrevistados (durante a pesquisa de 2009 a 2011, num total de cinco informantes) elas representaram quantidade maior do que os homens. Entretanto, devido ao seu ciclo fisiológico natural e aos simbolismos a ele atribuídos, a mulher pajé deve seguir certas restrições que o homem geralmente não segue. Em período de sangramento menstrual ela não deve realizar nenhum ritual de cura, pois está “impura” ou com as “correntes quebradas” (como afirmou uma outra pajé de Soure, não mencionada neste artigo), e também deve seguir uma dieta alimentar baseada em determinados tipos de peixes e não comer a parte da cabeça destes. Foi possível observar também em Soure uma diversidade de práticas e rituais de cura que se configuram de maneira diferenciada e nova no campo da pajelança, principalmente as crenças e práticas exercidas pela pajé Zeneida Lima. Essa constatação nos faz refletir acerca da dinâmica da cultura e religião, que estão em constantes mudanças e adaptações à realidade e ao tempo, e na pajelança não poderia ser diferente. 133

Religião, Gênero e Poder

A pajelança exercida por D. Zeneida apresenta-se de forma nova e desconhecida para os estudiosos do tema, entretanto, podese afirmar que ela apresenta aspectos ancestrais e ao mesmo tempo modernos. D. Zeneida é mulher e pajé, dois fatores socioculturais que foram marginalizados, mas que por meio de sua prática e atuação tornam-se destaques no âmbito social, político7 e midiático. E, sobretudo, a pajelança que passa a ocupar posição destacada, com livros publicados sobre o tema escritos pela própria pajé, sua participação no carnaval, produção de um filme sobre sua vida, etc. Com a atuação da pajé surge também uma problemática, pois a pajelança praticada por ela entra em conflito com as outras formas de pajelança (de Soure e de outras localidades da Amazônia). Qual é pajelança mais “verdadeira”, mais “antiga”? Embora essa pergunta seja praticamente impossível de ser respondida, e nem é pretensão desse estudo respondê-la, é importante refletir sobre essa questão, pois nos remete a disputa pelo poder simbólico, utilizando o termo de Bourdieu (1989), e implica aspectos objetivos e subjetivos, interesses pessoais e ideológicos envolvidos. Alguns pesquisadores, antropólogos e folcloristas não consideram a concepção da pajé Zeneida como válida, e alguns nos dão a entender que essa forma de pajelança não foi nada mais do que inventada, visto que muitas de suas crenças (como a ideia do que são os caruanas, e a criação do mundo) e práticas não foram igualmente observadas em estudos etnográficos, até então realizados (MAUÉS, 1990; GALVÃO, 1955; VILLACORTA, 2000). Contudo, não devemos ter uma visão generalizadora da pajelança na Amazônia, que evidentemente pode apresentar características próprias de um lugar para outro, pois há fatores complexos do ponto de vista histórico, social e cultural que ajudam a moldar as manifestações religiosas. Nesse sentido, é importante lembrar que a Ilha do Marajó teve uma das habitações mais antigas constatadas nas Américas pela arqueologia e foi habitada por sociedades indígenas sobre as quais temos, ainda hoje, pouco conhecimento sobre sua origem e cultura, e que essa cultura, demonstrada simbolicamente nos vestígios de cerâmicas marajoaras, não existiu em nenhum outro ponto da Amazônia ou Pará, apenas no Marajó (SCHAAN, 2009). 134

Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

Não pretendi aqui defender nem atacar a pajelança de D. Zeneida, mas levantar uma discussão e reflexão sobre as configurações que apresentam a pajelança na Amazônia, enfocando as práticas e crenças desta pajé e demonstrando as novas faces que a pajelança apresenta atualmente; faces essas, sem dúvida, mais femininas. Referências bibliográficas BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1989. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito (diálogo com Bill Moyers). São Paulo: Palas Athena, 1990. CAVALCANTE, Patrícia Carvalho. De “nascença” ou de “simpatia”: iniciação, hierarquia e atribuições dos mestres na pajelança marajoara. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA, 2008. ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001. _______. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998. GALVÃO, Eduardo. Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas. 2ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955. KOSS, Monika Von. Rubra Força: Fluxos do poder feminino. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2004. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. 6ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. LIMA, Zeneida. O Mundo Místico dos Caruanas e a Revolta de sua Ave. 1ª ed. Belém, 1991. ______. O Mundo Místico dos Caruanas da Ilha do Marajó. 6ª ed. Belém: Cejup, 2002. MAUÉS, Raymundo Heraldo. A Ilha Encantada: medicina e xamanismo numa comunidade de pescadores. Belém: UFPA, 1990. _______. Catolicismo popular e pajelança na região do salgado: as crenças e as representações. In: Catolicismo: unidade religiosa e pluralismo cultural. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 1992. 135

Religião, Gênero e Poder

_______. Uma outra invenção da Amazônia: religiões, histórias, identidades. Belém: Cejup, 1999. _______. Um aspecto da diversidade cultural do caboclo amazônico: a religião, 2005. Disponível emhttp://www.scielo.br/pdf/ ea/v19n53/24092.pdf.Acesso em 22/05/2008. MEAD, Margaret. Sexo e Temperamento. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. MINAYO, M.C.S. (org). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2001. MONTAL, Alix de. O Xamanismo. São Paulo: Martins Fontes, 1986. MOTTA-MAUÉS, Maria Angélica. “Trabalhadeiras” e “Camarados”: relações de gênero, simbolismo e ritualização numa comunidade amazônica. Belém: UFPA, 1993. SCHAAN, Denise Pahl. Marajó: Arqueologia, Iconografia, História e Patrimônio. Erechim/RS: Habilis editora, 2009. SEGATO, Rita Laura. Os percursos do gênero na Antropologia e para além dela. Série Antropologia, 236. Brasília, 1998. TEDLOCK, Barbara. A Mulher no Corpo de Xamã: O feminino na religião e na medicina. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. VERGOLINO, Anaíza. A semana santa nos terreiros: um estudo sobre sincretismo religioso em Belém do Pará. In: Religião e Sociedade, 14/3, 1987. VILLACORTA, Gisela M. Mulheres do Pássaro da Noite: pajelança e feitiçaria na região do Salgado (nordeste do Pará). Dissertação de mestrado em Antropologia da Religião, apresentada no Departamento de Antropologia da UFPA. Belém, 2000. Notas do Capítulo 6 1 Informações retiradas do site: www.paraturismo.pa.gov.br. 2 A pesquisa que embasou este artigo resultou no trabalho de conclusão de curso em Ciências da Religião pela UEPA em 2010 e na produção de uma dissertação de mestrado em Ciências da Religião, defendida em 2012. 3 Um influente político e advogado, que nos anos 30 e 40 atuava ao lado de Justo Chermont e Magalhães Barata, sendo este último, inclusive, o padrinho de nascimento de Zeneida Lima (LIMA, 2002). 4 D. Zeneida Lima fundou a “Instituição Caruanas do Marajó – Cultura e Ecologia” que coordena junto com sua família, onde desenvolvem projetos na área de educação. 136

Novas faces da pajelança cabocla na Amazônia

5

Extraído do site . Acesso em 30/11/2010. A matéria sobre essas pajés Yawanawá e a entrevista com elas está disponível em . Acesso em 15/08/2012. 7 A pajelança do Marajó foi declarada como patrimônio cultural imaterial do Pará em 28 de outubro de 2010, com o Projeto de Lei Ordinária Nº 289 da deputada estadual Ana Cunha (segundo informação no site: http:// www.caruanasdomarajo.com.br/noticias28-04-2010.php). 6

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Religião, Gênero e Poder

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Capítulo 7 A Construção da Identidade Ecológica no Candomblé Jeje Savalu: leituras a partir da fala de uma Sacerdotisa Jeje Manoel Roberto Ferreira Chagas As religiões de matriz africana chegaram ao Brasil numa época em que a relação com a natureza era bem diferente da forma como encontramos hoje. A atitude do homem moderno difere da atitude das populações consideradas “tradicionais”. Para o afrorreligioso, as plantas e as ervas são sagradas e fundamentais para a sua prática litúrgica, pelo fato de que eles possuem o conhecimento necessário para o uso desses elementos, tanto para uso medicinal, como para os ritos de cura e de iniciação. Sem natureza não tem religião, sem folha não tem divindade, e o culto torna-se inoperante. Na feitura de santo, é depositada uma grande quantidade de folhas abaixo de uma esteira, devidamente preparada para esse ritual. O iniciado é orientado para deitar sobre as folhas, que são escolhidas de acordo com a especificidade de cada divindade. Neste ensaio, serão analisadas as diferentes formas em que os adeptos do Candomblé1 Jeje Savalu vêm construindo uma identidade ecológica e como se dá a relação com a natureza, sem, no entanto, focalizar o protocolo litúrgico. A descrição dos dados coletados está relacionada à fala da Sacerdotisa Gayaku Jokolosy e de outros savalunos. Os relatos são fontes para interpretação e análise de conteúdo, além da observação participante e entrevista realizada no campo em 2013. Ao enfatizar a relação do Candomblé com a natureza, no que se refere ao mote ecológico como elemento aglutinador da tradição, é possível compreender o processo de “purificação” do Candomblé, quando este descarta alguns elementos considerados negativos e estigmatizados por força da intolerância religiosa e do preconceito. Em contrapartida, procura agregar e legitimar um 139

Religião, Gênero e Poder

novo conceito que venha gerar o reconhecimento do candomblé como religião “ecológica” na luta para se afirmar e desmistificar os rótulos de “poluidores da natureza”, por conta das práticas religiosa que inclui as oferendas que são depositadas nos espaços públicos, e pela imolação de animais. No entanto, é importante perceber o esforço dos savalunos que cultuam as divindades Voduns em afirmar os elementos positivos que inclui a relação com a natureza por força da tradição, que possa contribuir para elevar o nome da comunidade religiosa diante de rótulos atribuídos pela sociedade moderna ao longo do tempo. A Sacerdotisa Gayaku Jokolosy informa que no Candomblé Jeje Savalu, as ervas são utilizadas para a limpeza da alma, o banho serve não apenas para limpar o corpo e, sobretudo, para renovar a energia e equilibrar o espírito de acordo com os problemas apresentados, sob a supervisão e indicação das divindades para o uso correto das folhas e ervas indicadas para cada caso específico. Nesse contexto, percebe-se a importância da intervenção da sacerdotisa, quando utiliza o conhecimento tradicional em prol da comunidade, e assume uma postura de psicóloga espiritual. Pois a vida em si, se traduz como um ritual que pode ser visto nas diferentes atividades humanas, como o agradecimento, o louvor, a oração e o respeito às divindades. Para o Pejigã Gankónã (Alan) “O candomblé é de fato uma religião ecológica, porque essa religião não está apenas, em constante relação com a natureza, mas porque o Candomblé é considerado a própria natureza”. Nesse discurso fica evidente a apropriação do termo ecológico que vai além da relação entre religião e natureza, não basta falar apenas do vínculo estabelecido, e sim demonstrar que o termo “ecologia” foi incorporado à tradição africana. Na tradição iorubana o Iroko é representado no Brasil por uma árvore de grande porte denominada de gameleira branca, porém o Loko na tradição (Jeje Savalu) representa a floresta inteira e não apenas uma árvore e está devidamente representado na Amazônia por uma jaqueira.

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A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Apresentando o campo religioso: Associação Funderê Oyá Jokolosy Conheci a Sacerdotisa Gayaku Jokolosy e o Pejigã Gankónã (Alan) durante o Evento “Axé da Natureza”, ocorrido em Junho de 2012 no auditório da SEFA (Secretaria da Fazenda). Porém, o primeiro contato in loco com a Gayaku Jokolosy e a comunidade ARFUOGY (Associação Funderê Oyá Jokolosy) foi em Julho de 2013. O encontro aconteceu no dia 29/07/13 as 17:00 horas conforme combinado por telefone, inicialmente fui recebido pelo Gankónã (Alan) e por outros membros da comunidade, que se mostraram bem receptivos, fiquei numa área próxima à entrada principal da casa conversando e aguardando a chegada da Gayaku Jokolosy. Apesar da grande intensidade de trabalhos litúrgicos, a sacerdotisa me recebeu com alegria e demonstrou grande disposição em colaborar com a pesquisa. Em seguida fui convidado para entrar em uma sala mais reservada para iniciarmos a conversa sobre a temática do projeto de pesquisa. A minha intenção era apenas de falar sobre o projeto e me apresentar à comunidade savaluna, para que num segundo momento pudesse iniciar a entrevista sobre a relação da comunidade com a natureza. Contudo, o ambiente estava tão propício e harmonioso que o trabalho começou a fluir a partir desse primeiro encontro. Gankónã (Alan) chama a atenção para o foco do discurso ecológico distorcido, quando utilizado de forma preconceituosa e racista para atingir um alvo previamente estabelecido, caracterizado como racismo ecológico. Atualmente, se fala muito de racismo ecológico que é justamente a tentativa de determinados grupos fundamentalistas de outras religiões que se utilizam do argumento ecológico para tentar instituir leis que venham proibir nossas práticas. Felizmente ainda podemos contar com a Constituição Federal de 05 de Outubro de 1988, que vem garantir uma liberdade de culto religioso (Entrevista realizada em Julho de 2013).

Para Gankónã, o foco do racismo ecológico2 está direcionado para as religiões de matriz africana, dificilmente alguém direciona o olhar para a procedência da carne bovina e suína, e para a forma 141

Religião, Gênero e Poder

como esses animais são tratados nos matadouros brasileiros, que passam por cima das convenções e tratados internacionais que não são atendidos no quesito de como devem proceder e tratar os animais durante o abate. Gankónã diz que quando se fala de ecologia3 nas religiões de matriz africana o racismo entra em cena. “A nossa religião utiliza o conceito da sustentabilidade que está diretamente relacionado com a preservação do meio ambiente e inclui todo o ecossistema”. A relação do afrorreligioso com a natureza proporciona a proximidade com o sagrado de forma intensa. Só aquele que detém o dom verdadeiro, é capaz de usufruir uma experiência única repleta de sacralidade e leveza. Somente quem vivenciou esse encontro, é capaz de descrevê-lo com alegria e emoção conforme relatado por Gayaku Jokolosy. Em minha trajetória como sacerdotisa da religião de matriz africana, passei por uma experiência inesquecível, onde fui transportada numa viagem inusitada de percurso vertical e ascendente, cujo ponto de partida estava representado por uma floresta de árvores frondosas de grande porte, que conectavam o solo sagrado da floresta à longevidade celeste. O início da viagem foi marcado por uma sensação de leveza flutuante, meu corpo deslocava-se suavemente por toda a extensão vertical da floresta exuberante com seus contrastes de cores verdejantes, sentindo um suave cheiro da mata que me levava em direção ao topo, que estava revestido de intensa folhagem e encobria parcialmente o reflexo luminoso do cosmo sagrado. Quando meu corpo ultrapassou o topo da grande árvore, percebi que estava diante de um feixe de luz recrudescente que refletia muita paz e harmonia, possibilitando o meu encontro com a divindade. Ao retornar dessa sensação, foi como despertar de um lindo sonho, repleto de magia e mistério. Este fato ocorreu há 27 anos atrás, logo após o assentamento das divindades Gbessen e Agué, protetores das matas e das florestas (Entrevista realizada em Julho/2013).

Para Gayaku Jokolosy, falar da relação do afrorreligioso com a natureza sagrada não é uma tarefa simples, isso requer muita força e determinação para enfrentar os obstáculos que cercam essa rela142

A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

ção. A experiência religiosa é traduzida na vivência e na determinação diária, necessária para conduzir uma casa de tradição africana. A Sacerdotisa Gayaku Jokolosy tem 36 anos de experiência de culto religioso, atualmente desenvolve um importante trabalho à frente da comunidade do Candomblé da nação Jeje Savalu, é uma senhora muito respeitada pelo seu dinamismo religioso, alcançou um lugar de destaque devido a sua simplicidade, humildade e respeito pela religião, pelos voduns e por todas as pessoas. Gayaku desenvolve a prática litúrgica da casa junto com os adeptos da comunidade savaluna e não se exime dos serviços como a preparação dos materiais que serão utilizados nas oferendas e no processo litúrgico. Antes de se iniciar no Candomblé, Gayaku Jokolosy passou pelo culto de Pena e Maracá e pela Umbanda. Após receber o Deká no Jeje, a sacerdotisa informou que para firmar todos os fundamentos do Jeje Savaluno, ficaria na obrigação de assentar o Vodun Lokô, que mora na floresta, estabelecendo a relação com a natureza por morar numa árvore que simboliza a proteção das florestas, dos animais e de toda a mata. Para o Pejigã Hunsijé (Aldryn) o assentamento do Vodun Lokô, impossibilitaria de receber os caboclos de Pena e Maracá, oriundos da região amazônica. Assim, para não perder essa linha já cultuada anteriormente, houve a necessidade de assentar Kitembo que é uma adaptação da Umbanda com o Candomblé de Angola. Ou seja, é necessário fazer oferendas ao i’nkisse Kitembo que pertence ao Candomblé de Angola e aos caboclos da Umbanda que são doutrinados em outros ritmos e costumes e tem como adoração, no caso de Kitembo, toda uma simbologia de acordo com a nação específica. Tanto o Keto como o Jeje e Angola se apropriam do Candomblé de Caboclo que seria um pouco da Umbanda amazônica. Gayaku Jokolosy explica que “esse conhecimento é específico da casa”, e vem sendo repassado com riqueza de detalhes ao seu neto Hunsijé (Aldrin) e aos outros filhos de santo que possuem cargos na casa. Esses filhos de santo vêm se apropriando desse arcabouço de informações, por via de transmissão oral, sobre o Candomble Jeje Savalu na sua concepção amazônica, constituído de maneira que envolve diferentes tradições de Angola, Jeje, Candomblé de Caboclo e Pena e Maracá. 143

Religião, Gênero e Poder

Dessa forma, as pessoas que já recebiam caboclos na Mina e na Umbanda e que posteriormente se iniciaram no Candomblé, depois de um período de um ano, são preparadas para receber os caboclos de nação, dando passagem para seus antigos caboclos, mantendo a tradição já existente na região amazônica. Os caboclos angoleiros possuem muito “chamego” e aproximação com a mata, são denominados de “índios” porque vivem na floresta, seus cânticos fazem referência às flores, as cachoeiras, aos rios e a mata. As regiões brasileiras como o semi-árido e o sertão são conhecidas como região de Boiadeiros que demonstram um imenso amor à pátria, afirmando em seus cânticos que são brasileiros. Gayaku Jokolosy afirma que os primeiros que aqui chegaram foram os angoleiros, posteriormente vieram os Jejes, nesse sentido explica-se a importância do acolhimento de Angola. Quando a casa é de nação Jeje, a abertura aos caboclos se dá por meio da nação Angola. Nos cânticos da Umbanda, os caboclos fazem adoração aos santos católicos, por iniciativa e por necessidade como resistência para a manutenção de suas práticas religiosas. Como o Angola acolheu os caboclos, seus cânticos fazem referência tanto aos santos católicos como para os orixás e i’nkisses. Gayakú Jokolosy relata sobre a chegada de seu caboclo no ritmo de salvas O meu caboclo é o Pena Branca, que possui uma salva muito bonita, a sua chegada é feita com uma toalha branca acompanhada de ritmo de salvas. Os cânticos de caboclos estão diretamente relacionados com a natureza, com a mata, com os rios, igarapés e cachoeiras. Para se chamar um caboclo de nação, é necessário enfeitar o ambiente com folhas, frutas e flores que são os principais ingredientes que compõe as oferendas. Na região amazônica é comum encontrar oferendas compostas com castanha do Pará, abóbora, melão e amendoim (Entrevista realizada em Setembro de 2013).

As salvas falam da exaltação a Deus, à natureza, a pátria, aos santos católicos, a Jesus e a virgem Maria. 144

A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

É mais É mais É mais De um

que um caboclo que um guerreiro que um caboclo Deus verdadeiro

A conexão com a natureza na comunidade Jeje Savalu é intensa, e pode ser percebida a partir de seu vestuário que é feito exclusivamente de tecido de algodão, dispensando o uso de tecido sintético. Isso demonstra a forte relação com os elementos naturais e com os produtos oriundos da terra. Hunsijé (Aldrin) informa que os voduns são representados pela natureza e possuem forte relação com os animais que tem admiração Gbessén é representado pelo arco-íris por causa das cores, pois essa divindade é dona de todas as cores. No reino animal, Gbessén tem predileção pelo pavão que o representa. No dialeto de Dã o animal que representa Gbessén é a cobra. Nesse sentido, quando eu vejo uma cobra, por força do hábito, eu digo que estou vendo a minha divindade. Em algumas danças, Gbessén faz uma representação da cobra, em alguns cânticos, Gbessén apresenta uma dança num passo que vai até o chão, como se o mesmo estivesse preparando um bote que é típico das cobras. Gbessén significa adoradores da cobra sagrada. Oyá tem admiração pela borboleta e pelo búfalo. Conta a história que Oyá se transformou num búfalo durante o pôr do sol para se esconder nas matas (Entrevista realizada em Setembro de 2013).

Gankonã (Alan) explica que o termo “panteão” não se aplica as divindades do candomblé Jeje Savalu4, porque faz referência a uma visão hierarquizada. Mehrunã Rinurudecy (Nalva – Mãe pequena do Candomblé Jeje Savalu) relata que o sacrifício, tanto animal quanto vegetal e mineral é sempre feito em favor da vida e da harmonia entre os humanos, o respeito pela natureza começa pelo silêncio. Quando precisamos entrar na mata primeiramente pedimos licença, a entrada deve ser feita sem barulho e sem algazarra. A utilização dos recur145

Religião, Gênero e Poder

sos da natureza deve vir acompanhada do sentimento de preservação desses elementos conforme explica Rinurudecy (Nalva) Quando iniciei no Candomblé, a minha mãe me levou na mata e disse que tínhamos que entrar em silêncio, que ninguém deveria achar graça e fazer barulho. Isso foi o primeiro ensinamento que ela me repassou, ao entrar na mata, a gente bate paó que é uma maneira da gente se comunicar com os voduns, o paó são palmas que indicam alguma coisa que queremos dizer aos voduns, ou seja, é um tipo de comunicação entre os humanos e as divindades.

Rinurudecy (Nalva) explica que para manter a energia dos voduns a gente forra o chão com as folhas que também são utilizadas nas obrigações. No bejeressun5 usa-se as folhas (aman) também para forrar o chão para evitar o contato do animal com o solo, ou seja, entre os igbás6 e a terra ficam os amans7 . Assim, compreende-se a relação inevitável entre os voduns e as folhas, por isso são importantes, pois estão relacionadas diretamente aos voduns, usa-se folha para cada divindade de acordo com a preferência de cada vodun. Correspondência entre Divindades do Candomblé e do Tambor de Mina. Candomblé Keto-

Mina Jeje-Fon

Candomblé

Candomblé Angola-Congo

Nagô (Orixá)

(VODUN)

Jeje-Savalu

(I’NKISSE)

(VODUN) Olorum ou

Mavu Lissa

Mawú

Zambi ou Zania Pombo

Oxalá

Olissa

Oulissá

Lembá ou Lembarenganga

Ogun





Sumbo Mucumbe

Oxossi

-

Otolú

Mutalambô ou Tauamim

Omulú

Sapatá

Azowany

Burumgunçô ou Cuquete

Xangô

Badé

Heviossô

Cambaranguaje ou Zaze

Yansã

Oiá

Abesam

Bamburucema ou Matamba

Oxum

Naê

Olodumaré

Aziri Topodum

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Kaya/

Dandalunda

A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Yemanjá

Abé

Aziri Tobossi

Caiala

Oxumaré



Gbessen

Angorô

Ossaim

Agué

Agué

Catendê

Exú

Eleguá

Elegbá

Mauambo

Nanã-Burukê

Nanambiocô

Vodun Nã

Zumbarandá

Irokô

Odã Lokô

Lokô

Kitembo

Logun Edé

Inyarrô

Vodun Aderé

Gongobila Angorô Meia

Ewá

-

Yewá

Yobá

-

Vodun Cobá

-

-

Bafamo Deká

-

-

Fonte: Pejigã Hunsijé (Aldryn)

No candomblé Jeje Savalu, o termo sincretismo é substituído pelo termo similar. Nesse sentido, o termo designativo utilizado pelos adeptos é “grupo de divindades”, que dispensa a visão hierárquica entre os deuses voduns, conforme demonstrado no quadro do grupo de divindades de diferentes nações.

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Religião, Gênero e Poder

QUADRO DE CARGOS / FUNÇÕES DO CANDOMBLE JEJE SAVALU

GÀNIYÁKU

Maior cargo do terreiro, de responsabilidade da senhora mais velha no que se refere ao culto de santo na casa.

MÈHÙNNÀ

Cargo feminino da segunda pessoa mais velha da casa. Doté é o termo usado para o cargo masculino.

EKEDJÍ

Cargo feminino, porta voz do vodun. Ela é quem auxilia os Voduns.

DELÉ

Cargo feminino que auxilia a Gayaku e a Donné em diversos rituais.

KPÉJÍGÀ

Cargo masculino de extrema importância na casa, por se tratar de um cargo de confiança. É ele que zela pelo Peji* dos Voduns.

HÙNTÓ

Pai do Hún** e chefe dos tocadores dos atabaques.

HÙNGBÒNNÙ

Cargo masculino – conhecedor dos axés.

SENMATO SÉMÃ VODUNSÍ VODUNSÍSEN

ou

AHUN Cargo de quem detém o conhecimento das ervas. Pessoa que entra em transe e cultua vodun. Qualquer pessoa que cultua vodun.

Fonte: Gayaku Jakolosy e Hunsijé (Aldryn).

Para Hunsijé (Aldryn), são chamados de Ji voduns, a família dos voduns que moram no céu; Tó voduns, famillia dos voduns que habitam as águas e Dyi voduns para a família dos voduns que habitam a terra. *

Quarto onde é guardado o assentamento do vodum da casa. Atabaque

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A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Nanã (respeitável senhora) habita nas águas salobres e nos pântanos, e sua morada é no barro (kó no dialeto fon). As oferendas destinadas a essa divindade não deve ser arriadas em pratos de vidro ou esmalte, para Nanã a comida é oferecida somente em prato de barro, assim como para Exú. Na mitologia da criação, Mawu pediu para Nanã o barro para criar os humanos, nesse contexto percebese a importância desse elemento da natureza. Da argila é feito o prato de barro (najé no dialeto fon). Hunkó é o nome de um quarto feito de barro que é a preferência dos voduns que tem ligação com esse elemento da natureza, sendo que no espaço urbano o hunkó foi adaptado para a construção de tijolo e cerâmica. Para o preparo do banho de ervas, as folhas são devidamente maceradas e é feito um Canto de adoração a Agué, acompanhada de uma sequência de palmas ritmadas (paó), que significa saudação e evocação ao vodun como sinal de respeito. Tudo que é usado no candomblé Jeje tem que passar pelo ritual de batismo e consagração. Mehunã Rinurudecy (Nalva) explica que a folha da costa é uma das mais importantes e mais usadas no candomblé Jeje Savalu pelo fato de serem atribuídas a determinados fundamentos de grande importância, dentre eles podemos destacar os fundamentos que compõem o bejeressum, no sentido de proteger os animais que são destinados ao sacrifício, para que eles não percebam ou visualizem o momento derradeiro dessa prática. O orindum (folha da costa) é também utilizada no dassen e no goronesín (conhecido no candomblé como obi d’água), usado para esfriar a cabeça (bori) que significa dar comida a cabeça, utilizada nos animais sagrados, além de ser uma folha utilizada por todas as nações, isso por si só já e suficiente para confirmar a sua importância. Um detalhe fundamental no uso das folhas está relacionado pela forma como e quando ela é colhida. A folha que é retirada de manhã tem uma finalidade e se for colhida a tarde, a finalidade muda, ou seja, dependendo do horário da colheita a folha pode servir para diferentes finalidades. Outro detalhe a ser destacado é a questão de gênero, se a folha é macho, serve para uma coisa e se é fêmea a finalidade muda. 149

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As folhas da palmeira real (Azan no dialeto fon) são utilizadas para defender a casa e para renovar as energias. Nas casas dos fons elas são plantadas na entrada, uma de cada lado. A palmeira real também é usada para a confecção da roupa (Mariwo) do Vodungun. Para abrir a casa é necessário evocar a energia de Elegbá, para depois espalhar milho branco por toda a casa para aumentar a energia positiva e em seguida espalha-se folhas da palmeira real por todo o baracão para neutralizar as energias negativas. Para harmonizar a casa são utilizadas as folhas de akokô, samambaia e palmeira real. As folhas também servem como enfeite e são colocadas nas paredes da casa de acordo com o gosto das divindades como folha de algodão, baronesa e lágrima de Nossa Senhora. O uso do dialeto fon é algo recorrente na casa de Gayaku Jokolosi, com o objetivo de aproximar a energia das divindades de acordo com a tradição. A defumação faz parte da liturgia da casa, seus ingredientes são extraídos da natureza como mirra, incenso, bejuin, breu branco, miri, favas raladas de aridan e obi. As folhas de algodão branco, de preferência do vodun Lissá, são muito utilizada no candomblé Jeje. Mawu é um deus andrógino na mitologia africana, essa divindade se sentia muito só e por esse motivo ele criou Lissá, porém não resolveu o problema da solidão. Como ele já havia criado quase tudo que existe no mundo, ele resolveu criar os humanos. Assim Mawu chamou os outros voduns para participarem da criação dos seres humanos, ensinando-os como agradá-los. Para cada um de seus filhos, Mawu deu um lugar, para que esses pudessem habitar e ensinou os seres humanos a cultuar cada um dos elementos da natureza e os voduns. Elegbá é o filho caçula de Mawu, dotado de grande astúcia que o levou a ocupar o primeiro posto de adoração. É o vodum que gera o infinito, infinita vezes, é o dono do tempo, “é comum ouvir que Elegbá atira uma pedra hoje e mata um passarinho ontem”, por ser universal e detentor do controle sobre o tempo. Tem as encruzilhadas como sua morada, é o Dono de todas as ruas. É representado por uma espiral, ele gira infinitas vezes, é universal, utiliza todas as línguas, pois é responsável pela comunicação. 150

A construção da identidade ecológica no Candomblé Jeje Savalu

Hunsijé (Aldryn) explica a identificação de Elegbá nas outras nações. Nas outras nações Elegbá é conhecido como Exú e é associado por algumas pessoas com o mal. É um vodun extremamente brincalhão, por vezes usa um gorro dividido nas cores vermelho e preto que de acordo com o itan (história) Elegbá viu dois amigos felizes conversando e resolveu passar no meio dos dois amigos, sendo que um viu apenas um lado do gorro na cor vermelha e o outro só viu a cor preta. Os dois amigos começaram a discutir sobre a verdadeira cor do gorro, um afirmava que era preto e o outro insistia que era vermelho, causando uma polêmica entre eles, que para Elegbá isso não passava de uma grande diversão (Entrevista realizada em Setembro/2013).

Os voduns considerados mais humildes são os que moram na terra, as suas roupas são feitas de palha e murin também conhecido como madrasta, eles gostam de roupas mais simples, rústicas e sem exageros. O i’nkisse Kitembo tem sua morada nos cupinzeiros, as oferendas a ele destinadas são arriadas nos cupinzeiros. O vodun Parará que é da família de Sakpatá, é o dono do formigueiro e o seu animal preferido é a formiga e a saúva. Hunsijé (Aldryn) informa que na comunidade Jeje Savalu, o respeito aos mais velhos é um ensinamento que é repassado cotidianamente, preservando-se a hierarquia da casa, para os filhos de santo, é priorizado a idade do tempo em que cada adepto é formado ou iniciado, nesse aspecto, a idade cronológica fica em segundo plano. Um adepto de quarenta anos de idade cronológica e cinco anos feito no santo deve pedir a benção a um adepto de vinte anos de idade de vida e com sete anos de iniciado. Nesse sentido, a prioridade hierárquica seguida à risca pelos adeptos, refere-se à idade de formação no processo iniciático. Assim, respeitar os mais velhos, filhos de santo ou não, é sempre observado e obedecido em todos os momentos da vida social, tanto dentro quanto fora do terreiro, isso reflete uma questão de cidadania e de bom convívio em comunidade. 151

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A nação Jeje é a nação que mais cultua a natureza, e as casas Jejes geralmente ficam próximas ou no entorno de áreas verdes. É necessário também um poço de água potável para a liturgia. No meio urbano, essas casas tiveram que fazer algumas adaptações ou adequações para manter seu ciclo litúrgico, devido à ausência da mata. As plantas consideradas sagradas são cultivadas em pequenos vasos de açodo com a disponibilidade do espaço e do ambiente. A relação do Candomblé com a natureza representa o vínculo entre céu e terra; humanos e divindades. O Jeje Savalu e Jeje Mahim são os que mais cultuam os elementos da natureza. Vudun Agué: o dono da mata, das plantas e das ervas San man, san Vodum Sem folha, sem vodun Jokolosy explica que quando um adepto vai ser iniciado em ágüe (Ossaim em Keto), é construída uma casa, forrada toda de folhas desde o chão até as paredes para que o iniciado seja recolhido nesse ambiente em busca de energia da divindade. A casa Jeje Savalu, até o presente momento já iniciou quatro pessoas no Vodun Agué. Uma das árvores consideradas mais sagradas no Candomblé Jeje Savalu é a aroeira ((Ewê pupá ), a sua folha é utilizada para diversas finalidades, incluindo o banho dos adeptos. Cântico de evocação da energia do Vodun Agué no dialeto fon Amá si vodun ô Amá si vodum ô Oné amá hundê vodun Oné amá hundê vodun Amá si é vodun ô O ancestral esposo das O ancestral esposo das O ancestral senhor das O ancestral senhor das O ancestral esposo das

folhas folhas folhas chegou folhas chegou folhas. 152

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O conhecimento sobre o segredo das folhas e ervas foi dado a Agué por Mawu que é considerado (Deus) para os Jejes. Agué passou a ser detentor sobre os poderes das florestas. Depois de criar a terra, Mawu criou os seres humanos. O mito de Ossaim8 refere-se à utilidade das ervas como elemento de cura para as enfermidades humanas tanto físicas quanto espirituais, motivo pelo qual levou Ossaim a impedir a sua destruição. O poder mágico das plantas, folhas e ervas não leva em conta a propriedade fitoterápica do princípio ativo do vegetal, mas necessita inevitavelmente da relação com as divindades por meio da ação humana para ser potencializado. O aridan é uma fava muito utilizada no Candomblé Jeje Savalu, sendo que cada divindade possui a sua fava de preferência. O aridan é de vodun Gun, porém é utilizado por todos os voduns que gostam de gerrear. O poder relacionado ao sentido presente em cada elemento natural, não é suficiente. É necessário, portanto, a intervenção humana para atribuir um novo sentido simbólico, essa intervenção exige preparo e conhecimento dos elementos naturais e sua relação com cada divindade, das fórmulas mágicas e manipulação correta das ervas dentre outras habilidades e segredos repassados pela tradição oral, capaz de extrair a força mágica na medida certa para responder e alcançar os objetivos pretendidos. As religiões de matriz africana postulam uma cosmologia própria no sentido de sacralidade da natureza e de suas divindades, possuem uma ética específica e contribuem na construção de uma relação “ecológica” de respeito à diversidade natural e humana. Certamente que esta reflexão ainda é incipiente, no sentido de que a consciência e prática ecológica ainda estão sendo historicamente construída. Apesar da querela estabelecida entre aqueles que se afirmam como ambientalistas e ecologicamente corretos e os adeptos das religiões de matriz africana, sobre o aspecto maléfico ou não das oferendas e obrigações religiosas que são depositadas no meio ambiente, cabe destacar que a preocupação do povo de santo está relacionada com a manutenção e preservação das espécies consideradas sagra153

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das, incluindo plantas e ervas imprescindíveis para a realização dos rituais mágico-religiosos. Para Hunsijé (Aldryn) o vodun Agué é o grande protetor da flora, os voduns são um fato da natureza e o seu assentamento deve ser feito com algum elemento da natureza, dentre esses elementos, o mais utilizado é o itá (pedra) que representa o vodun que de acordo com a divindade, a pedra escolhida pode vir do mar, do rio ou da cachoeira. O itá quando é batizado e passado pelo fundamento da consagração, passa a ser chamado de otá (pedra consagrada). Vodun Lokô é o grande protetor da fauna e tem a floresta como sua morada, ele protege os animais e só permite a caça para a subsistência humana. A permissão para caçar é concebida por meio de um ritual que envolve uma sequência de palmas (paó no dialeto fon), feita no pé de uma árvore, significando uma atitude de reverência na intenção de evocar a energia do guardião das florestas. A caça de caráter esportivo não agrada essa divindade, e o caçador poderá sofrer as conseqüências de sua atitude meramente utilitária. Todos os voduns têm a sua fruta de predileção. A fruta preferida de Gbessen é a jaca, de Sakpata é o abacaxi, de Lokô é a jaca, de Abesan é a jinja, do Vodum Gú é a pitanga. As casas Jejes têm afeto com a natureza e com os animais, na tradição Jeje o animal que afasta a morte é o cachorro. O sacrifício e as oferendas: deveres e obrigações para a manutenção do axé O sacrifício9 de animais nas práticas rituais das religiões de matriz africana, ainda é visto, no mundo contemporâneo, como uma questão polêmica. Em alguns Estados brasileiros existem propostas de lei no sentido de proibir o sacrifício de animais em rituais, por conta de uma suposta preocupação referente à “crueldade” com animais que são submetidos à imolação. Seria de fato uma preocupação voltada à defesa dos animais, ou uma atitude de discriminação vinculada ao “racismo ecológico” dirigido as religiões de matriz africana? Essas propostas de lei tem gerado manifestações de repúdio e de inconstitucionalidade. 154

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O Art. 5º da Constituição Federal de 05 de Outubro de 1988 estabelece que: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Para a Gayaku Jokolosy, o animal que vai ser submetido ao sacrifício passa primeiramente pelo ritual, ele é reverenciado, respeitado e sacramentado, é conduzido por um processo que envolve rezas, cantos e outros ritos de preparação de acordo com a tradição africana. O respeito pelo animal é fundamental, não sendo permitido nenhum excesso que possa ultrapassar o nível crítico da imolação. Antes de ser levado para a imolação, o animal para por um período de no mínimo de três dias de preparação. Levando-se em conta que o verdadeiro significado da palavra “sacrifício” está relacionado ao “sacro ofício” e “santo ofício” que aponta para a ação de realizar algo considerado sagrado, ou seja, o vocábulo em questão, não está inserido no campo de outros vocábulos que tratam ou representam uma ação de barbárie ou crueldade, conforme o entendimento equivocado de algumas pessoas fundamentalistas ou não. Gankónã informa que a visão distorcida sobre o sacrifício de animais, vai além da falta de conhecimento sobre a necessidade dos cultos das religiões de matriz africana. Na verdade trata-se de uma atitude racista e preconceituosa, que por vezes se sustenta no discurso ecológico com a desculpa de proteger os animais de atos de crueldade. Nem todos os rituais e oferendas, necessitam de sacrifício. Em algumas oferendas, o afrorreligioso leva algum tipo de animal (pombo, preá) para que seja solto na mata, em agradecimento a divindade, mas esse ritual, mesmo que não envolva o sacrifício e sim a soltura do animal na mata nativa, ainda encontra barreira que impede a prática desse ritual, com a desculpa de que o animal não deve ser solto na mata porque não é nativo da região e se for solto poderá causar um desequilíbrio populacional de uma espécie que não é autóctone, mas que pertence ao grupo restrito a oferendas. Para Gankónã é indubitável que o problema não está relacionado com o tipo de sacrifício ou oferenda que se pretende realizar, mas está direcionado, sobretudo, a uma atitude de discriminação e 155

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intolerância religiosa, e como alvo dessa atitude discriminatória temos as religiões de matriz africana, identificadas e estigmatizadas como detentoras de práticas de poluição do espaço urbano. É, no entanto, impossível fazer qualquer progresso no estudo de poluição ritual se não podemos enfrentar a questão de saber por que a cultura primitiva está propensa a poluição e a nossa não (DOUGLAS, 2012, p. 94).

A citação refere-se a dois tipos de cultura, a primitiva e a moderna. Para as sociedades modernas a poluição ambiental é uma questão de estética e higiene, ou seja, uma grande poluição é identificada como ofensa religiosa e que geralmente é atribuída à cultura considerada “primitiva”. Gankónã (Alan) fala sobre as oferendas que são depositadas no meio urbano, geralmente são identificadas pela população como lixo, que é deixado nas encruzilhadas pelo povo de santo que por sua vez, não relaciona lixo com oferendas. As oferendas são identificadas como axé. No caso dos resíduos que são depositados nas ruas e são identificados como lixo, é de responsabilidade do município e do poder público, fazer o recolhimento e apontar um destino final para esse material. Nesse sentido, percebe-se a necessidade que o povo de santo tem de vincular ao conhecimento tradicional já existente no contexto religioso, com o discurso ecológico, na intenção de construir uma identidade que possa facilitar a prática religiosa, sendo que o único instrumento legal que a comunidade afrorreligiosa possui é o dispositivo constitucional. No entanto, é preciso chamar atenção para o fato de que o termo “ecológico” pode ser utilizado de forma dualista, ou seja, ao mesmo tempo pode ser incorporado como atitude que possibilite a afirmação de um grupo no campo político, por outro lado, pode ser usado por grupos fundamentalistas para formalizar propostas de leis para que sejam instituídas em favor dos animais e contra os supostos atos de crueldade. Mas não podemos deixar de focalizar o que realmente está por trás dessa aparente defesa dos animais, quando olhamos atenta156

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mente para o pano de fundo do enredo preservacionista, iremos encontrar um mosaico que compõe as práticas discriminatórias, cujo principal objetivo é desqualificar e anular as práticas das religiões de matriz africana. Para Hunsijé (Aldryn), existe uma preocupação constante da comunidade com o meio ambiente. Os materiais utilizados nas oferendas são biodegradáveis, isso reflete a lógica do candomblé Jeje, no sentido de que o culto a natureza implica diretamente a uma atitude de preservação. No culto a Iemanjá (Aziri Tobossi para os savalunos), que tem sua morada no mar, as oferendas destinadas a essa divindade como vidros de perfume, só é despejado no mar o conteúdo líquido, o vidro é recolhido para ser reaproveitado e não poluir o ambiente. A lógica consiste em agradar a divindade, se Iemanjá mora no mar, não tem lógica a ação de degradar ou poluir à morada da divindade. No tempo religioso Funderê Oyá Jokolosi, todos os adeptos tem seus próprios utensílios para comer e beber, isso evita o desperdício de material e evita o uso de materiais descartáveis. Os adeptos que estão recolhidos na casa para o processo de iniciação, utilizam somente copos e pratos esmaltados e de barro, de acordo com a tradição. Gayaku Jokolosy relata que infelizmente, ainda não foi possível alcançar todos os objetivos que contemplam a atitude ecológica, devido à postura de alguns adeptos que ainda estão desinformados sobre essas práticas de sustentabilidade ambiental. As oferendas e os sacrifícios praticados pelos afrorreligiosos servem não apenas para agradar as divindades, como também para outros fins como a manutenção do axé10. O animal utilizado nos rituais pode servir de alimento para a comunidade religiosa e para os visitantes, o restante que não pode ser aproveitado é depositado diretamente na terra para ser consumido por ela. O sacrifício é considerado um elemento que ocupa o centro do culto das religiões africanas, porém não existe apenas um tipo de sacrifício, essa distinção está relacionada com o desejo do adepto e geralmente aquilo que se deseja alcançar está vinculado à experiência de fraternidade e de contato com o sagrado, que por sua vez remete a ancestralidade. 157

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Para Gayaku Jokolosy a religião é o instrumento que aproxima o ser humano do sagrado e pode ser compreendida como uma forma de organização social que tem a capacidade de reconstruir um mundo perdido, que ficou pra trás, mesmo que seja de forma simbólica. Para o povo de santo existe uma relação entre o plano material e o plano divino, e essa relação é evidenciada por meio do sacrifício e das oferendas, tudo aquilo que é ofertado às divindades, é compartilhado por toda a comunidade. Hunsijé (Aldryn) adverte que o povo de santo dispõe de conhecimento sobre a anatomia dos animais que serão sacrificados, e sabem exatamente como proceder durante a imolação, para que estes não venham sofrer quando manipulados de forma incorreta, quando recebem incisões e perfurações desnecessárias, o conhecimento anatômico facilita a ação com incisões nos pontos vitais, evita o sofrimento sem excesso. O animal destinado ao sacrifício, não é escolhido de forma aleatória, mas é orientado pela força vital contida em todas as coisas. Portanto, o sacrifício possui uma lógica própria que corresponde à tradição africana que postula uma filosofia própria de concepção do universo e do homem, e não deve ser compreendido como um ato bárbaro. A morte do animal certamente terá um propósito comum, a vida será oferecida em favor de outras vidas, para refazer o campo harmonioso que rege a manutenção da espécie humana. No candomblé existe todo um preparo para a prática do bejeressun. O local deve ser forrado para que o ohun seja coletado num recipiente apropriado para não respingar e cair no chão, evitando assim uma possível “invasão” de energia negativa, quando isso ocorre, o ohun não pode ficar exposto, deve ser encoberto com panos apropriados. Entretanto, a casa que está preparada, não abre espaço para energias contrarias, pois estas devem ser despachadas. O bejeressun não deve ser relacionado com ato de crueldade, os animais destinados a esse fim, chegam dias antes da prática ritual e são entregues aos pejigãns da casa para que sejam preparados e destinados a obrigação. Durante o período de preparação, o animal é sacramentado, numa relação de respeito que envolve cuidados típicos da liturgia de matriz africana. O ohun está distribuído em três 158

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categorias representadas pelas cores vermelho, preto e branco. Os elementos que detém axé são encontrados nos reinos animal, mineral e vegetal. Para Jokolosy a parte invisível está na combinação desses elementos portadores de muito axé que renovam, ampliam, distribuem e restabelecem a força vital numa relação estreita entre os homens e os voduns. Todo sacrifício, assim como toda a oferenda presente na iniciação e consagração, implica diretamente a transmissão de energias. O sangue vermelho está diretamente ligado com a vida em todas as fases da existência tanto do animal quanto humana; o vegetal é representado pelo azeite, óleo e seiva, assim como pelo atim que é composto de pó sagrado, o mineral é representado pelos metais como o cobre, bronze e chumbo. O sangue preto é representado pelas cinzas dos animais sacrificados e o sangue branco é representado pelo plasma do caracol que é o animal de predileção de Oxalá. Quando oferecido a esta divindade proporciona a paz a todos da casa como sinal de amor e união, nessa ocasião todos ficam de preceito e utilizam roupas brancas por 16 ou 21 dias. Para Hunsijé (Aldryn), para compreender a relação do afrorreligioso com o cosmos sagrado é preciso conhecer como o universo foi criado na concepção africana de acordo com o mito de origem. Sakpata (médico dos pobres) guarda os segredos sobre as doenças e suas respectivas curas dentro de uma cabaça que é uma espécie de semente e está relacionada com o mito da criação. Conclusão A riqueza do povo de santo está relacionada à preservação de sua tradição que envolve a plena harmonia entre os homens e a natureza numa relação imanente. Cada ser humano deve acreditar no seu potencial, mesmo sem conhecer a divindade que reina em cada um de nós. A riqueza não está relacionada a dinheiro e bens materiais, más está diretamente ligada com forma de como nos relacionamos com a natureza e com as divindades, quem tem uma divindade 159

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presente em sua vida e detém o conhecimento dos fundamentos religiosos, tem muito mais do que bens materiais. O vínculo entre religião e natureza perpassa por uma gama de questões que inclui não apenas o conhecimento tradicional, mas está relacionado à apropriação de um discurso ocidental referente a práticas ecológicas e sustentáveis, cuja principal intenção é de construir uma identidade ecológica que seja capaz de minimizar a intolerância e a discriminação contra as práticas e rituais das religiões de matriz africana. Neste ensaio, buscou-se compreender a relação do Candomblé Jeje Savalu com a natureza, com suas divindades, incluindo a mitologia de origem e o discurso ecológico, que vem sendo construído no espaço urbano amazônico. Os savalunos se reconhecem como parte integrante da natureza e priorizam o sentimento de louvor e reverência preservado nos ritos e no cotidiano da vida religiosa, percebendo o mundo com olhares distintos dos ensinamentos que nos foram repassados pela ciência moderna. Nessa relação, à ecologia e a dimensão religiosa estão sempre presentes em todos os elementos que integram a natureza e o universo. Portanto, no centro do debate encontra-se à dimensão do sagrado que constitui uma condição importante para a mudança do aspecto predatório para o campo da relação de uma ética sustentável. As oferendas, nesse contexto, estão relacionadas à dinâmica da reciprocidade, uma contra-dádiva em resposta a dádiva inicial, ofertada pela natureza. Mauss (1950) interpreta a dádiva no sentido de intercâmbio, de reciprocidade positiva e não no sentido utilitarista, de recuperação de bem e sim no resguardo de seu prestígio, seu mana, sua integridade espiritual. Com relação à prática do sacrifício, é comum perceber, uma certa ambivalência atrelada ao discurso ecológico, instituída pela sociedade moderna e atribuída as práticas religiosas de matriz africana, que se apropriam desse discurso, mas ao mesmo tempo demonstram a necessidade de manter o enredo sacrificial para acalmar as divindades e receber em contrapartida um equilíbrio entre os seres humanos e o cosmos sagrado, impedindo dessa forma a geração de conflitos. 160

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Segundo Piazza (2005, p. 7). “Para o africano, moral e religião são a mesma coisa, pois tudo depende da atuação dos espíritos. As ações que prejudicam a convivência humana e ou o equilíbrio das forças naturais são rigorosamente punidos pela autoridade tribal ou reparados por ritos religiosos [...]”. Por esse motivo, o afrorreligioso ao adentrar no espaço místico, procura tomar algumas precauções, como fazer rituais característicos, marcados pelas oferendas para aventurar-se no espaço sagrado e obter permissão para utilizar os recursos naturais, da mesma forma que se vê na obrigação de respeitar o próximo, a natureza e a própria vida. Referências bibliográficas COSTA JUNIOR, Josias da. O espírito criador – Teologia e Ecologia. São Paulo: Fonte Editorial, 2011. DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo; tradução Mônica Siqueira Leite de Barros, Zilda Zakia Pinto – 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. FERRY, Luc. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem; tradução Rejane Janowitzer – Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. GIRARD, René. A violência e o sagrado; tradução Martha Conceição Gambini; revisão técnica Edgard de Assis Carvalho. – São Paulo: Edotora Universidade Estadual Paulista, 1990. MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício; tradução Paulo Neves. 1ª edição. Cosac Naify Portátil: São Paulo, 2013. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva; tradução Antônio Filipe Marques; revisão da tradução Ruy Oliveira. Lisboa – Portugal: Edições 70, 1950. PIAZZA, Waldomiro O. Religiões da humanidade. São Paulo: Edições Loyola, 2005. SANTOS. Juana Elbein dos. Os nagô e a morte: Pàde, àsèsè e o culto Égun na Bahia; traduzido pela Universidade Federal da Bahia. 14 ed. – Petrópolis, Vozes, 2012.

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Notas do Capítulo 7 1 Porém sabemos que um ano antes, em 1807, nas terras da fazenda Boa Vista, pertencentes ao engenho de Herminigildo Netto, no distrito Madre de Deus (perto de Santo Amaro), existiu uma congregação ritual aparentemente mais estável, liderada por Antônio, um jovem escravo angola. Antônio foi preso e identificado nos documentos como “presidente do terreiro dos candombleis”. Trata-se do primeiro registro da palavra “candomblé”, um termo provavelmente de origem banto. Nessa expressão,”candombléis” parece utilizado como sinônimo de batuque, podendo referir-se a prática de curas e/ou adivinhação, mas o título de “presidente” sugere uma incipiente organização hierárquica de uma coletividade religiosa. Como comenta Rachel Harding, a palavra “candomblé” surge no momento em que o termo “calundu” deixa de ser utilizado. PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Rio de Janeiro: Editora Unicamp, 2007, p. 126. 2 Racismo ecológico ou ambiental se refere a qualquer política ou diretiva que afete ou prejudique, de formas diferentes, voluntaria ou involuntariamente, a pessoas, grupos ou comunidades por motivo de raça ou cor. Esta ideia se associa com políticas públicas [...]. Robert Bulart – Sociólogo e Diretor do Environmental Justice Resource Center. Fonte: Revista ECO 21, ano xv, nº 98, Janeiro/2005. 3 O termo ecologia, como conceito científico, deve o seu nascimento ao biólogo alemão Ernst Häckel (1834-1919), que oferece uma definição do referido termo em 1866, quando falas da relações entre organismos. Ou seja, trata-se de um estudo das relações entre os sistemas vivos entre si e com o seu meio ambiente. Não se trata, portanto, apenas de um estudo dos seres vivos em si, mas das relações existentes entre eles. Contudo a ecologia hoje é de domínio multidisciplinar que desperta interesse não apenas às ciências da natureza, mas também à filosofia, à teologia, à ética. Algumas teorias estabelecem uma ligação entre esses variados saberes e a ecologia (COSTA JUNIOR, 2011, p.25). 4 Os Savalus chegaram ao Brasil em meados do século XVII, juntamente com outras etnias. O barracão (Candomblé) de Anjunsun – Sakpata (rei de Savalu, África) foi fundado mais tarde pela africana Gaiacu Satu, em Salvador, Bahia e recebeu o nome mais conhecido por Cacunda de Yayá. Savalu é uma cidade da República do Benin, localizada no departamento de Collines a uns 70 quilometros da cidade de Dassa-Zoumé, onde existe o templo de mesmo nome dedicado a Nanã Buruku. O termo Savalu vem de “Savé” que era o lugar onde se cultuava Nanã. 162

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Momento no ritual em que se imola os animais para produzir entre a pessoa e a divindade. 6 Objetos sagrados confeccionados com recipientes de barro ou bacias esmaltadas. 7 Folhas sagradas. 8 É de todos conhecido que o Orixá Ossaim é o Orixá das ervas, das plantas sagradas e medicinais, mágicas, litúrgicas. Todos os mitos relativos a Ossaim falam de seus poderes mágicos de curar e do domínio das plantas. Ossaim, conta uma das lendas, guardava as folhas sagradas numa cabaça que foi quebrada por Iansã, que provocou uma ventania espalhando-as por todos os cantos. Cada Orixá se apropriou de uma quantidade delas. Ossaim só conseguiu esconder as mais secretas, mas continuou dono do poder mágico, e, por isso, todos tem de lhe pedir licença para usar as folhas. BRAGA, Julio. Oritameji: o antropólogo na encruzilhada. Feira de Santana: UEFS, 2000, p. 181. 9 Para Mauss e Hubert (2013. P27-28), “o sacrifício é um ato religioso que só pode se efetuar num meio religioso e por intermédio de agentes essencialmente religiosos”. Nesse sentido, palavra sacrifício sugere imediatamente a ideia de consagração. 10 O axé é a força vital, é o conteúdo mais importante do “terreiro”. É a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir. Sem axé, a existência estaria paralisada, desprovida de toda a possibilidade de realização. É o princípio que torna possível o processo vital. Como toda força, o axé é transmissível; é conduzido por meios materiais e simbólicos e acumulável. É uma força que só pode ser adquirida por introjeção ou por contato [...]. Mas esta força não aparece espontaneamente: deve ser transmitida. Todo objeto, ser ou lugar consagrado só o é através da aquisição do axé. Compreende-se assim que o “terreiro”, todos os seus conteúdos materiais e seus iniciados, devem receber axé, acumulá-lo, mantê-lo e desenvolvêlo. Para que o “terreiro” possa ser e preencher suas funções, deve receber axé. O axé é “plantado” e em seguida transmitido a todos os elementos que integram o “terreiro”. SANTOS (2012).

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Capítulo 8 A Construção da Identidade Política a partir da Trajetória de Três Sacerdotisas do Candomblé Angola em Belém, Pará Luis Augusto Barbosa Teixeira Até da década de setenta do século XX predominava Belém do Pará a denominação Batuque1 para as religiões de matriz africana praticadas na cidade. O Candomblé religião de origem baiana surge como uma nova forma de ver o mundo, entre os adeptos das religiões locais. Para os sacerdotes dos antigos Batuques, o Candomblé era visto como uma forma de ampliar o conhecimento ritualístico e foi com este objetivo que muitos se iniciaram nesta religião. Esse discurso pode ser pensado como disputa de poder neste cenário religioso. O que ocorre é busca da autolegitimação, ou seja, status de identidade. (BOURDIEU, 2002) A partir da década de 1950 se inicia o êxodo à Bahia para buscar iniciação em uma nova matriz religiosa alterando todas as estruturas semânticas das religiões locais. Nos anos 1990 surge a preocupação com a identidade, ou seja, delimitar a qual nação de Candomblé pertence os sacerdotes. O pertencimento são afirmações identitária ora Ketu, ora Angola, ora Jeje2. São construídas por bandeiras políticas. Neste período do culto denominado Batuque destacava-se o misticismo presente em rezas, encantados, juremeiros, benzedeiras, indígenas. Assim como o panteão universal, panteão este, que perpassa todo o conceito de território - divindades. Pensar nesse panteão é refletir sobre os entres sobrenaturais presente na terra do Pará como Verequête, Mariana, Jarina, São Sebastião, Boto, José Tupinambá, Nanã, Santa Barbara, Rei da Turquia, Badé, Exu, Juremeiros, João da Mata, Pretos Velhos etc. O que está em jogo até na década de 70 são as religiosidades de nível pessoal e subjetivo que possuíam como principal objetivo festejar os encantados, comemo165

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rar graças alcançadas, sem buscar identidade e legitimidade que são objetivos presentes na atualidade. Esses Batuques agrupavam variações simbólicas e semânticas de estruturas e redes culturais. As festas em casa simples, sobretudo no bairro da Pedreira contam a história tanto da religião, mas também, da economia e da política desse bairro. Nesta época viviase “aglutinações” entre mina e candomblé. Se você encontrar pai de santo falando que tem 50 anos aqui em Belém, ele tá mentindo. Antigamente era comum de acontecer, as pessoas fazerem cantigas de Candomblé misturado com toque de Mina, pois as pessoas não tinham conhecimento e faziam muito essa mistura (Entrevista realizada Edson Santana no dia 17/05/12).

Afirmar que religião e política dentro do Candomblé Angola construíram a identidade de ser Angola é refletir sobre como a implantação de políticas públicas para religiões de matriz africanas no Brasil. Atualmente, Mãe Katia, Mame’to Nangetu e Mãe Beth são as três sacerdotisas que se destacam na cena belenense e para além, adentram debates políticos nacionais devido às lutas políticas de afro-religiosos. Todas estas três as sacerdotisas tem seu espaço político. Mãe Beth é mais nova angoleira que se afirma nesse campo, por isso, sua trajetória se deu “de Jaciluango à Brasília”, no sentido de buscar intensamente esses contatos políticos. Mãe Katia estabelece sua estratégia de atuação política vinculada precisamente com os políticos profissionais. Mame’to Nangetu devido possuir um filho de santo professor universitário consegue alcançar os grandes projetos, como Cine Club e a radio Azuelar “Eu Sou Angoleira”, Mame’to Nangetu: tempo político (...) porque tudo que era do povo Bantu foi queimado nossa história foi queimada, por exemplo, hoje a gente não vê quase pessoas falando de Angola se iniciar no Angola; e nós do Angola a gente vem daquela cultura daquele aprendizado daqueles ensinamentos como se aprendeu na casa matriz, 166

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como por exemplo, minha casa matriz é de Salvador que vem deu uma descendência do Bate Folha, terreiro de lá na Mata Escura. Minha avó foi uma das primeiras, a senhora Samba Diamongo e ai a gente come de mão (...) nós somos filhos da terra a gente absorve tudo a terra quanto, mas a gente se tiver contato com essa terra é melhora para nós (Entrevista realizada no dia 25/03/ 2013).

Mame’to Nangetu filha de Jiorlando, neta de Samba Diamongo, bisneta de Manuel Bernadinho da Paixão fundador do Bate Folha Salvador, Bahia - apresenta essa linhagem carregada de estruturas simbólicas que permeiam o poder, e que dá suporte de legitimidade à Mame’to Nangetu na “lógica do santo”, ou seja, a descendência. O Mansu Mansubando Kekê Neta é considerado modelo de Candomblé Angola para os sacerdotes de varias nações, fundada em 1988 para o culto Nkisse3 Nzumbarandá4. Essa criação do modelo se dá a partir da busca de legitimidade almejada em via de políticas públicas. Eu Mame’to Nangetu fui ano 1980 para salvador com a Francisca Ester que tomou o kijino dela com Astianax fomos pra casa dele lá do pai de santo lá no Beiru agora Tancredo Neves pra trazer o inkisse dele lá da casa. Lá era tumba jussara do Manoel Rufino de Sousa e lá eu sou uma testemunha e Mãe Ester e toda a Bahia que ele saiu na muzenza. Quando ele trouxa o candomblé para o Pará ele era angola até a dijina dele ‘angorese bessevi’ isso é dijina de angola (Entrevista realizada no dia 25 de março de 2013).

Giddens (1991) formula uma indagação para entender a questão da identidade na pós-modernidade “É a busca da auto-identidade uma forma algo patética de narcisismo, ou ela é, ao menos em parte, uma força subversiva quanto às instituições modernas?” (p.110). Faz pensar que o terreiro/religião se constitui com um grande teor institucional nas “consequências da modernidade” produz marketing para as disputas dos bens simbólicos na sociedade. A corrida de identidade é a corrida de poder simbólico que “é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica” (BOURDIEU, 2003, p.9). A identidade possui a função de angariar 167

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aspectos para seu poder e o chefe se torna centralizador daquilo que porta em seu discurso. Religião é uma necessidade da vida humana e, às vezes a religião funciona para ascensão social, o Candomblé possui esta característica. Para o povo do santo é criado um paralelismo entre as religiões de matriz africana com academia, pois considerava que se iniciar no Candomblé está no mesmo patamar que o doutorado para os acadêmicos. Vejo esta migração de outras religiões afro-brasileiras ao Candomblé está ligada a um desejo de ascensão social, visto que, no discurso do povo de santo, o Candomblé é mais bonito, mais chique etc. Mame’to Nangetu conhece a religião com “sete anos, vim de uma tradição que minha avó iniciada na Jurema, minha família trabalhava com mestre de Jurema”. Sua família veio para Belém na década de 1940 de Natal, Rio Grande do Norte para Belém do Pará. Trabalhavam como mestre de Jurema e todo esse sistema influenciou Nangetu que recebe uma preta velha chamada Maria do Abaité. Nas conversas com esta sacerdotisa, sempre aborda o inicio do Candomblé em Belém acentuando as deficiências de tatás5 e kotas6. Mame’to quando começa abrir sua casa inicia tatás7 e kotas8 para auxilias as estruturas religiosas. Mãe Nangetu destaca a importância do Banju filho de Seu Cicero, um baiano, para a consolidação do candomblé em Belém: Passar por aquele problema de não ter quem tocar, uma ekedi, monta todo um corpo diplomático do terreiro como kota, com tatá, com kambanos, e isso ai já veio a partir de uns quinzes anos pra cá, que começou essa a organização, por exemplo, no Mansu uns vinte anos (Entrevista realizada no dia 25 de março de 2013).

O que me chamou atenção da Casa de Nangetu são as variedades de atividades realizadas. Mansu Nangetu é o terreiro onde tudo está centralizado no sagrado, no ritual nos cultos do panteão angoleiro e há também o Instituto Nangetu, associação civil fundada a partir do terreiro, que agrega várias atividades, sobretudo o Cineclube e a distribuição de cestas básicas que os afro-religiosos de 168

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Belém recebem do MDS. São atividades diferentes que dividem o mesmo espaço físico. A casa da Mame’to congrega os dois eixos que se complementam. Segundo Brito: Assim, antes de compreender como os membros do Mansu Nangetu e a própria Mam’etu Nangetu atuam e contribuem dentro do campo religioso, especificamente nas inserções político e social que estes passam a ter com o cineclube, teremos que adentrar ao universo em questão: o Mansu e o seu papel social por meio do Instituto Nangetu (BRITO, 2012, p. 108).

Participei de vários eventos no Mansu assim atentei uma divisão política entre o sagrado/ritual, o Mansu Nangetu, e o profano, associação Instituto Nangetu. Outra questão que se encontra é o debate de negritude e de relações étnico-raciais que acontece no terreiro e a aproximação do movimento negro com a casa, especialmente por um dos seus filhos. Também há um vínculo muito forte com o Carnaval através da Escola de Samba Deixa Falar, sediada no bairro Jurunas, cujo presidente é filho de santo de Mame’to Nangetu. Não se pode negar que a bandeira de identidade Angoleira é carregada. A sacerdotisa Nangetu é conhecida na mídia e no espaço afro e político e, quando possui oportunidade de falar ressalta a nação da qual faz parte. Seu blog (http://institutonangetu.blogspot.com.br/ ) é um canal para divulgação da nação, da religião, dos rituais e atividades desenvolvidas pelo instituto. O imaginário presente entre o povo do santo de que esse terreiro é um “modelo” de Candomblé Angola se dá não apenas devido a questões rituais, mas por causa do status que Nangetu conquistou a partir das políticas públicas. Sua associação é umas das mais fortes em Belém, as atividades são continuas e divulgadas em seu blog que é atualizado diariamente. A trajetória de Mame’to se destaca na bandeira de luta da afirmação da Nação Angola. É uma das pioneiras dentro de Belém a adentrar nesse ethos político.

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Mãe Katia: herdeira e política Mame’to Katia da nação Angola herdou o Abassá Afro-Brasileiro Konzenzala de Kafunge9 de sua mãe Maria de Nazaré Andrade de dijina Mame’to Ria Nkice Azaeunan Ua Nzambi. Esta sacerdotisa esta extremamente vinculada com as políticas que ocorrem no espaço da cidade. Em sua memória narra nasce e se educa no bairro da Pedreira e na rua que residia havia vários terreiros como da Mãe Lolo, Vovó Sisi, Dona Neide de Josué (vó da Katia mãe da Maria de Andrade), Vó Camila, Mãe Lucimar, Mãe Nazaré, Mãe Helena, Mãe Zenaide. Na casa da Vovó Sisi lembra que havia uma festa que duravam sete dias para São Raimundo Nonato e quem presidia o ritual era o caboco Zé Raimundo. A casa lotava várias pessoas vinham para prestigiar a mãe de santo, pessoas de vários lugares de Belém. Vó Camila também está na sua lembrança, pois adotava criança que estavam na Colônia do Prado para cuidar; possui uma media de trinta filhos adotivos e quatro biológicos. Pai da Nangetu faz parte desse universo “saudosista” da Mãe seu pai possuía um som que tocava na casa da Mãe Lucimar no dia de São Jorge. E assim Mãe Katia conta que na década de 70 e começo da década de 80 surgi ‘um candomblé’, porém havia uma grande dificuldade de produzir, por vários motivos como, língua, ritual, pessoas etc. Com isso, o candomblé era uma miscelânea assim como Nangetu narra que no começo da religião se mistura mina, umbanda, ketu, angola etc. Mãe Katia narra que Manoel da Joia na década 60 se inicia em salvador que é primeiro angoleiro de Belém, porém não relata o nome da mãe que iniciou, porém na entrevista com Nangetu diz que deve ser Mãe Roxa, porém não tem certeza. Segundo Katia Manoel da Joia se instala em Belém, sem a estrutura que se tem de modelo de candomblé. Informantes narram que Astianax saiu com a Dandalunda do pai, com canto de angola, mas toques de mina. Mas todas as nações ligadas ao candomblé, elas tem uma dificuldade muito grande com material humano, porque na realidade nós formamos verdadeiros clãs dentro das nossas casas, então esses clãs obedecem a um comando de 170

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uma hierarquia, então você tem os cargos hierárquicos da casa, que vai do cambono até a Mame’to, que é a mãe, a dirigente da casa. A gente tenta manter essa tradição do candomblé mesmo tendo vindo de Tambor de Mina, minha mãe tendo passado pela Umbanda, depois pelo Tambor de Mina, e a gente vai tentando manter, sempre adaptando, aperfeiçoando, devido à carência a falta de conhecimento mesmo, era a falta de recursos, de axé, falta de conhecimento de ter o pertencimento até empírico, os primeiros candomblés que se cantava em Belém havia certa miscelânea com iorubá, com outras tradições de origens iorubás. Aqui na nossa casa depois de anos, acho que uns 10 anos, quando fomos começar a procurar, pesquisar, se educar, se lapidar, dentro daquela cultura que estava ali, até então estava muito fechada, que quem tinha esse conhecimento não repassava (Entrevista realizada no dia 10/04/13).

Katia relata seu primeiro contato com o candomblé foi na casa da Mãe Ester e depois na casa do Tatá Walter. Rememora que Mãe Cléa esposa de Walter e sua mãe Maria de Andrade realização o primeiro candomblé angola na FEUCABEP 10 na gestão do Pai Hyder. Também diz que seu contato pessoal foi na casa do Pai Hyder diz, Ter mesmo contato, dentro de uma casa, foi na casa do Pai Hyder, era pra ter sido meu pai de santo, por divergências pessoais e compatibilidade do gênio, é não rolou... mas assim meu primeiro contato mesmo de se manifestar até passar por um processo, obí, foi na casa do Hyder – Nazareno de Morais. (Entrevista realizada no dia 10/04/13)

Mãe Katia foi iniciada em 1993, entretanto bolou11 no santo em 1988 quando estava grávida da sua primeira filha que hoje é Makota da casa, no ritual para o inkisse Kafunge12 de Maria de Andrades, com Mikaia13. Iniciou-se com a irmã de Mame’to Akobaroni que posteriormente veio falecer em 1989 para 1990 teve que suspender tudo já em 1993 inicia com Mame’to Akobaroni. Assim hoje Mãe Katia se afirma na política e representa na sua voz a sua origem. 171

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A associação liderada por Mãe Kátia que também se intitula Konzenzala, nome que se refere ao nome do terreiro e ao inkisse de sua mãe, Kafungê. Esta associação tem 10 anos. Quando perguntei a ela por que fundar uma associação, diz: Eu comecei a participar dos encontros, dos movimentos, e das conferencias, dos seminários, e ai senti uma necessidade de que a casa tivesse uma representação cultural, até para dar conteúdo para essa participação, não só a questão religiosa, e como na época, tinha essa necessidade, ai começou a se fomentar a historia da associação afro-cultural de Konzenzala, que na realidade é o titulo da casa. O intuito daquele momento era esse, de formar a associação, hoje é outro, como eu tenho um histórico dentro do movimento afrorreligioso, não só uma questão empírica, mas hoje com a questão cultural, com a questão política e social, eu pretendo para este ano 2013 dar legitimidade política a associação, poder começar a desenvolver algumas coisas aqui mesmo no espaço, a pesar de que a gente já desenvolve, festa de são João, muito embora a casa esteja sem funcionamento este ano de 2012, por conta do meu envolvimento na política partidária, no PSOL, participando da campanha do Edmilson Rodrigues que foi candidato a prefeito, e também pela questão deu estar organizando a casa no sentido de estar aterrando a casa (Entrevista realizada no dia 10/04/13).

Também pergunto; Porque a senhora observou que havia a necessidade do afro-religiosos estar na frente buscando políticas, nesta função social, como foi este “ponta pé” da senhora? Responde: Na realidade eu já era envolvida com algumas instituições como a FEUCABEP, e eu fazia parte do INTECAB, e eu recebi o convite da Mame’to Nangetu, coisa de 14 anos atrás para integrar o INTECAB e ai comecei a participar com ela, eu tenho ela como se fosse a minha mãe, a partir do convite dela, de estar indo para os seminários, conferencias, encontros, reuniões, roda de conversas, tudo que estava envolvido o movimento naquele momento para buscar políticas públicas, foi através da Mame’to Nangetu, havia necessidade por que eram poucos afrorreligiosos que participavam, e eu entrei 172

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como, tipo relações públicas, daquele grupo convidando outras pessoas para vim “engrossar o caldo”, para todo mundo participar e fazer um grande movimento, dentro daquele movimento que já existia ali, que estava enfraquecendo, com poucos elementos, então a minha função. Mais ou menos, era essa trazer as pessoas, então criamos uma dinâmica na época que a Mame’to era coordenadora do INTECAB, funcionava a casa dela e a gente tinha conquistado é fazer parte do projeto fome zero e eu comecei a levar nomes de terreiros, de lideranças para serem contemplados também, com essas cestas básicas e tentar trazer essas pessoas para o movimento (Entrevista realizada no dia 10/04/13).

As atividades que a Associação Afro-Cultural de Konzenzala já realizou foram: ação de saúde; rituais da casa; ações sociais; palestra sobre DST’s e AIDS; Verificação de pressão e glicose. Nas eleições de 2012 Mãe Kátia realizou a locução oficial da Campanha de Edmilson Rodrigues, para ela esta opção política foi uma questão pessoal, não decorreu por sua liderança como afrorreligiosa. Outra questão que se observa é a relação próxima como se pode observar com outros políticos: Eu tenho relação com o Fernando Carneiro, vereador eleito, e devo assumir uma assessoria dentro do mandato dele, e será um alguém que poderá representar os afrorreligiosos ou não, mas é uma relação minha Kátia Haddad com Fernando Carneiro. Não tem nada a ver com a questão da minha militância religiosa (Entrevista realizada no dia 10/04/13)

Pergunto qual é fronteira entre eu religioso e eu político como mostra Mãe Katia. Qual é finalidade dessa separação ou união de força?! Pensar nos candomblés fora do seu local de nascimento, Bahia é refletir em lutas dos espaços legítimos nas casas de santo. Afirma sua nação é perceber a teias de identidade que estão sempre em jogo de poder.

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Da descendência do Jaciluango à Brasília: Mãe Beth Elizabeth Pantoja angoleira de dijina Mame’to Muagile sai do quilombo da colônia do Guajará Mirim no município de Acará aos setes ano de idade. Vem de sua terra com problemas sérios de saúde. Narra que quando passava na frente dos igarapés ficava inerte seu corpo não se movia depois começou a desmaiar e cair. Nesse problema sua mãe resolve trazê-la. Mas Mãe Beth nos narra sua história a partir do não querer ser religiosa, diz “sou baixinha, pretinha, quilombola, mulher e ainda mais macumbeira era uma palavra que usava antigamente” (Entrevista realizada no dia 28/05/13). Todo este trabalho se concentra na memória e no ato de rememorar, logo “enfatize-se o retorno à consciência despertada de um acontecimento reconhecido como tendo ocorrido antes do momento em que esta declara tê-lo sentido, percebido e sabido” (RICOEUR, 2007, p. 72). De 14 a 23 anos o problema agravou-se: “fiquei muito doente mesmo de tomar remédio pra doido de andar porre na rua e de passar noites e noites na rua sem dormir vendo ou ouvindo coisas a incorporação veio”. (Entrevista realizada no dia 28/05/13) A história de vida se concentra no ato de rememorar que “enfatiza-se o retorno à consciência despertada de um acontecimento reconhecido como tendo ocorrido antes do momento em que se declara tê-lo sentido, percebido, sabido” (RICOEUR, 2007, p. 72). Narra que para chegar ao candomblé angola “foi preciso perder a consciência eu estava atravessando a rua e subindo a escada em qualquer lugar minha mente sumia eu não sabia onde estava não reconhecia ninguém” (Entrevista realizada no dia 28/05/13). Vendo as coisas agravarem sua mãe leva para pai de santo da umbanda Ronaldo Pereira Lobato, passou quatro anos nessa casa, todavia, “só ia quando brigava com a família, eu dava passagem e ficava bem e sumia depois de três meses eu voltava porque não queria” (Entrevista realizada no dia 28/05/13). Nesse enredo o pai de Mãe Beth, Seu Joaquim da Cruz Leite resolve vender tudo e vem à Belém devido a problema de saúde de sua esposa, mãe da Mãe Beth. 174

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O pai teve que vender tudo, vendi tudo era marreteiro, tinha sitio, e veio pra Belém para cuidar da saúde dela e um dia desesperada saiu correndo no meio da rua e foi cai na casa do Bassu Pai e sem conhecer. Depois passou a ser filha do seu Osmar Arauna, pois seu primeiro pai morreu (Entrevista realizada no dia 28/05/13).

Mame’to diz que “até acompanhava sua mãe ao terreiro, pois auxiliava carregando as sacolas etc. Aquele cheiro fazia mal doía muito à cabeça; gostava de olhar, mas não queria participar”. (Entrevista realizada no dia 28/05/13) “A minha inkisse é o vendo que você retira é fogo é o raio né a minha inkisse é a rainha dos mortos chamados de eguns” (Entrevista realizada no dia 28/05/13). Mãe louva sua inkisse observando a contemplação como sacerdotisa da nação Angola. Depois que entrei na angola “eu adquiri paz, união na minha família saúde que não tinha progredi economicamente” pois meu inkisse meu deu o espaço pois fiz um contrato com minhas entidades que eu ia ceder e ate da confiança de receber eles direitinho cultuaram eles direitinhos ascender as velas e tudo que tinha de direito mas se eles me dessem a minha meu espaço se eles me derem (Entrevista realizada no dia 28/05/13).

Mãe Beth entra no candomblé angola a partir de um convite de um irmão de santo Antônio Alves Guimarães com dijina Luandê, entra na casa Rudembo Axé Di Jaciluango em 1989 onde se inicia com Tatá Torodê de nome civil Raimundo Walter da Silva do Inkisse Hosi Mocombi: “fique 14 anos nesta casa. Recebi meu cargo com 10 anos. Quatro mulheres eram o esteiro da casa ficamos apoiando o Kutala, inaugurei minha casa com 14 anos” (Entrevista realizada no dia 28/05/13). Mame’to dá ênfase que pertence a uma família de Salvador “sou de angola da família de Tumba Juçara de salvador da Mãe Branco de Colodina uma mãe de santo famoso em salvador super reconhecida também tem casa aberta no rio de janeiro” (Entrevista realizada no dia 28/05/13). Hall nos ajuda a pensar sobre essa identidade que se apresenta no jogo político. Essa afirmação mostra que, 175

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A identidade está profundamente envolvida no processo de representação. Assim, a moldagem e remoldagem de relações espaço-tempo no interior de diferentes sistemas de representação têm efeitos profundos sobre a forma como as identidades são localizadas e representadas. (HALL, 2006, p. 19)

A história da fundação casa de Mãe Beth está centrada em dois períodos quando funda o Terreiro da Caboca Itá para festeja sua caboca, Itá em 1986 localizado no bairro do Jurunas na passagem Dr. Brito n° 150A, e, em 2003 quando recebe seu Kijino funda o Rudembo Gunzo Ti Buburucema que começa fazer filhos de santo que hoje possuem uma média de 14 filhos que estão na Casa. Este terreiro localizado na Terra Firme foi lhe dado de presente de um cliente, suas orações sempre pedia “não precisa ser grande do tamanho da minha saia já basta” (Entrevista realizada no dia 28/05/13). Mãe é uma militante política, que busca políticas públicas para sua associação, mas será que uma forma que os candomblecistas têm de buscarem status na sociedade belenense entre outros afrorreligiosos? Criando assim uma relação de saber e poder. A identidade é criada de fora para dentro do grupo, por meio de incorporação em projetos e programa sociais que contemplam políticas de identidade estratégicas, voltadas para a realização de certos objetivos (GOHN, 2008, p. 67).

Contudo, “o que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo” (POLLAK, 1989, p.8). Vejo que essas políticas é maneira do qual a uma eficácia simbólica na identidade do grupo, ou seja, é através desse sistema que os afrorreligiosos conseguem status. O Instituto Bamburucema de Cultura Africana - ICBAN é presidido por Mãe Beth é Conselheira de Igualdade Racial, Conselheira Municipal do Negro, Conselheira de Idosos e Conselheira de Negro e Negras do Pará (há 2 anos). O Instituto Bamburucema de Cultura Africana nasceu em 2003, porém nasce com o nome ARCUABÃ. Desde sua fundação Mãe Beth está no movimento social, hoje a associação se chama Instituto Bamburucema de Cultura Afro – Amazônica. Para ela o objetivo da associação como 176

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É capacitar essas pessoas. Para ter uma renda; o maior objetivo é essa “capacitação” do meu povo carente para eles terem a renda própria, para saírem da pobreza e violência então eu faço essas oficinas rápidas, como meio deles ganharem um dinheiro rápido como manicure (Entrevista realizada no dia 28/05/13).

A partir das entrevistas podemos observa que a associação ainda não está legalizada, não possui CNPJ. Ao perguntar para a Mãe O que levou a senhora fazer tudo isso na associação? Obtive a seguinte resposta: Eu sempre tive esse espírito de humanidade de querer ajudas às pessoas; eu tenho trabalhado também com deficiente, tetraplégico; eu redivido as cestas, e contemplo essas pessoas; eu não trabalho só a minha comunidade do bairro, é em Outeiro, Pratinha, Jurunas, Cremação; associação não é só essa parte religiosa; é você poder ajudar o ser humano, então passei a trabalhar e lutei muito para conseguir estas cestas, foi 2,3 dias de trabalho andando por que isso foi um encontro feito da rede de saúde dos terreiros que aconteceu aqui no Beira-Rio, e veio o ogãn que é secretario de igualdade racial, e perguntou para nós, se o Pará, já recebi cesta básica. Então dissemos que não, então mandei urgente fazer uma pesquisa em Belém, e mandar o nome das pessoas necessitadas, para o governo federal. Fui bater de casa em casa, para saber onde estava os afrorreligiosos. Após a pesquisa de três meses depois veio a cesta; mais para 1000 pessoas, vai pra o INTERCAB, e depois de divide para casa terreiro. Ficou na casa da Mame’to Nangetu. E é um trabalho gratificante porque você sabe que vai matar a fome de algumas pessoas. Ano passado veio 6 a 8 vezes ao ano; sempre 50 cestas, este ano já veio três vezes. Agora eu tenho muita vontade de tirar esses documento e avançar mais para ajudar mais minha comunidade (Entrevista realizada no dia 28/05/13).

Atividades proposto pela ICBAN: Café da manhã com palestras sobre a Lei Maria da Penha; Cineclubes; Distribuição de cesta básica; Palestras sobre violência, drogas, DST’s, AIDS; Distribuição de preservativos, café da manhã para os Dias das Mães com palestras, e sorteio de cestas básicas. 177

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Mame’to Beth participou de vários de eventos ao longo do ano de 2012 como: Conferencia Nacional de Cultura; Encontro Nacional no Rio de Janeiro sobre Diversidade Cultural; Oficina de Construção de Projetos, no estado do Maranhão; Congresso Nacional da Cartografia Social em Manaus e Conferencia das Mulheres. ICBAN recebe apoio do Instituto Nangetu (Instituto Nangetu de Tradição Afrorreligiosa e Desenvolvimento Social) por meio do empréstimo de materiais como: data show e caixa amplificada de som, usados nas reuniões de Cine Clube. Nos estudos de religiões afros no Pará percebemos que há uma grande corrida de legitimidade e uma das formas que os afros determinaram foi através das políticas assistencialistas. Considerações finais Nessa história política há uma corrida de legitimidade há uma corrida de status no campo afrorreligioso de Belém. O centro é o poder político e poder religiosos nesse angoleiros de Belém; Bourdieu nos ajuda a refletir que a religião contribui maximamente para a manutenção da ordem política, logo, reforça o poder simbólico das divisões entre ordem política e simbólica, pela aquisição da função precisa, no sentido de contribuir na continuidade ordem simbólica do poder simbólico (BOURDIEU, 2003). Falar de Candomblé Angola é falar de identidade, ou seja, “está profundamente envolvido no processo de representação” (HALL, 1992, p. 19) essa representa é construída a partir das políticas públicas que os afros modelam sua religião. O angola em Belém não nasce nos bantus na Bahia, mas sim, nas busca da iniciação legítima cobrada pela FEUCABEP e a volta desses novos candomblecistas com suas táticas para ser visto na geografia mineira e umbandista. Atentar essa questão é adentrar nos sistemas das políticas. Afirmar que Angola é uma identidade política é perceber a importância colossal nos ethos político dentro das casas de santo assim. O candomblé angola é uma identidade política, pois a afirmação do pertencimento angoleiro só se dá a partir dos vínculos precisos com as políticas. Hoje se ver as casas de Angola movimentadas por uma bandeira politica ora políticas públicas. 178

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Capítulo 9 Metodismo e Homofobia Cordial: uma análise da Carta Pastoral “Igreja e a Questão do Homossexualismo” Tony Welliton da Silva Vilhena Em pleno ano de 2013, quando da eleição de um pastor com um extenso histórico de posicionamentos homofóbicos e racistas para a presidência da Comissão de Minorias e de Direitos Humanos da Câmara Federal, a sociedade, sobretudo as igrejas cristãs, vê-se envolta num debate fervoroso sobre as relações entre a fé e a diversidade sexual. Mas na Igreja Metodista brasileira esse tema tem sido alvo de reflexão desde o ano de 1999, pelo menos. Pois, em agosto daquele ano, o Expositor Cristão, jornal oficial da Igreja, trouxe na coluna Palavra Episcopal um artigo do bispo Adolfo Evaristo de Souza – falecido em 2011 – intitulado “A família nos diferentes contextos” (SOUZA, 1999: 24). O objetivo do artigo era defender a família frente aos ataques do liberalismo filosófico e da modernidade. No texto, entre as várias depravações que no entendimento do bispo Adolfo Evaristo enfraqueciam a instituição familiar, como a poligamia, casamentos mistos, adultério e incesto, duas de suas citações mereceram maior reação de setores mais progressistas da Igreja: o feminismo e o sodomismo – citado como homossexualismo masculino e feminismo. Tanto que na edição de outubro daquele ano o Expositor teve que publicar um “Pronunciamento sobre artigo publicado” elaborado por redatores/as e escritores/as das revistas da Escola Dominical – espaço formativo semanal onde a Igreja é dividida por faixa etária para fazer estudos bíblicos e aprofundamentos doutrinários, que vieram a público manifestar sua “indignação e repúdio” àquelas palavras polêmicas, concluindo que a “Igreja deve ser terapêutica e não acusatória, moralista e generalizante” (MACIEL, 1999: 11).

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Registra-se, neste momento, a primeira vez que se tornam públicas na Igreja Metodista brasileira as tensões sobre o posicionamento institucional diante da questão da homossexualidade. Logo em abril do ano seguinte, o Colégio Episcopal1 se apressa em emitir um posicionamento oficial diante da temática, publicando a Carta “Igreja e a questão do homossexualismo: uma orientação pastoral”. Sendo que anos depois, em 2007, no auge da polêmica do Projeto de Lei 122/1996 que visa a criminalização da homofobia, os bispos produziram um novo documento intitulado “Pronunciamento do Colégio Episcopal sobre o projeto de lei acerca da homofobia”. Em ambos documentos, em síntese, há um posicionamento contrário a prática de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, argumentando ser esta uma manifestação de sexualidade contrária aos padrões bíblicos, mas, aos mesmo tempo, os documentos propõem acolhimento sem preconceito e discriminação aos homossexuais, inibindo as posturas mais conservadoras de interdição e perseguição a estas pessoas. Desta forma, busca-se abrandar a hostilidade aos homossexuais expressa nas linhas dos documentos em tela, enquadrando-se plenamente no conceito trabalhado pelos pesquisadores Marcelo Natividade e Leandro Oliveira (2009) de “homofobia cordial”. Para estes autores, Enquanto certas formas de discriminação segregam indivíduos, marcados como diferentes e inferiores, A homofobia cordial aproxima-os daqueles que exercem posição de superioridade moral, em uma relação de assujeitamento. Esta relação assimétrica pode implicar engajamento emocional dos sujeitos envolvidos, favorecendo a perpetração de formas muito sutis de sujeição e violência (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009: 129, grifo meu).

Este artigo visa analisar estes documentos de um seguimento do protestantismo histórico, no caso, o metodismo, buscando apresentar quais os elementos ideológicos constituintes destes discursos. A ênfase das análises será na Carta “Igreja e a questão do homossexualismo: uma orientação pastoral”, pois a mesma tem função normativa, deliberando como os membros da Igreja devem se comportar frente ao assunto. 184

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Os conteúdos dos documentos serão expostos de forma detalhada para que revelem o que as letras não dizem ao primeiro olhar. Embora a Igreja Metodista, através de seus bispos, tenha se manifestado formalmente sobre a temática, o que já pode ser considerado um avanço, e tenha expressado uma certa solidariedade com as pessoas que sofrem discriminação e preconceito por serem homossexuais, o que parece indicar que os documentos são elaborados na tentativa da classe dirigente da Igreja projetar-se como vanguarda ou elite intelectual religiosa, será que ela se diferencia de outros segmentos cristãos que são incisivamente intolerantes e teologicamente fundamentalistas ao tratar da diversidade sexual? Teologia do sacrifício: acolhimento para conversão Abominamos o pecado, mas amamos o pecador. Este chavão é o mais repetido quando seguimentos cristãos são convidados a explicar o porquê das tensões existentes sobre a visita, participação ou integração de pessoas homossexuais em suas igrejas. É uma forma de afirmar que as pessoas homossexuais até podem ser aceitas, mas somente se negarem parte daquilo que as constituem, como se esta essência, a orientação sexual, fosse algo portátil e optativo. Não refletem que “a homossexualidade não é uma opção que depende da vontade do indivíduo, como uma deliberação consciente, mas nenhuma orientação sexual o é, assim como não é algo da ordem de uma causa específica” (SOUSA FILHO, 2009: 114). É neste mote que segue a orientação pastoral metodista, tanto na carta “Igreja e a questão do homossexualismo”, quanto no “Pronunciamento do Colégio Episcopal sobre o projeto de lei acerca da homofobia”. A postura de condenação sumária das vivências homoafetivas é uma herança da produção teológica judaico-cristã que forjou a cultura ocidental. Para a mestre em Bíblia Luiza Etsuko Tomita, A religião judaico-cristã tem sido a grande responsável pela ideia de perversão sexual, visto que foi ela que estabeleceu, na cultura ocidental, o que é ‘natual’ e o que é ‘antinatural’, tecendo as normas éticas que orientam a vida social. A ética cristã, hoje, já está deixando de considerar a homossexualidade como desvio da natureza. Porém, a teologia do sacrifício, 185

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que é baseada na teologia da cruz (a qual interpreta equivocadamente a cruz de Cristo, como o único caminho para atingir o céu, isto é, a exigência de sofrimento na terra para ser feliz após a morte) atinge em cheio também o homossexual que quiser seguir a fé cristã: ele ou ela deve manter-se casto, abstendo-se de relações sexuais, o que significa a rejeição de seu mais íntimo erotismo e, quiçá, de sua própria natureza (TOMITA, 1999: 11).

Logo de início, fica um indício de que os bispos metodistas não têm interesse em desenvolver um texto na perspectiva de orientação para a diversidade sexual - conjunto de possibilidades de indivíduos constituírem (subjetivamente) e expressarem (objetivamente) seus desejos “quer por pessoas de outro sexo, quer por pessoas do mesmo sexo, quer, ainda, por pessoas de ambos os sexos” (SOUZA, 2010: 10). Pois, já no título da Carta Pastoral aparece a palavra homossexualismo, reducionismo que tenta englobar de modo negativo as vivências e sentimentos diferentes do padrão da heterossexualidade – comportamento sexual de atração e/ou relação entre pessoas de sexos opostos, mais objetivamente: homem e mulher. É típico do emprego da expressão homossexualismo ensejar noção de comportamento patológico às práticas que se diferenciem da heterossexualidade. De início, o documento já remete o leitor, pretensamente os membros da Igreja Metodista, ao tratamento das relações homoafetivas como doentias, antinaturais, logo, passíveis de tratamento clínico, psicológico e/ou espiritual. Ao longo do documento, que consiste em duas laudas, a palavra de conotação pejorativa homossexualismo aparece treze vezes. Já a palavra homossexualidade, substantivo mais apropriado que sugere condição e processo de orientação que se dá ao longo da vida, surge apenas duas vezes. Cabe ressaltar que a questão da terminologia não é problema de somenos importância. Visto que é na terminologia empregada que se perpetuam ou se desconstroem discursos preconceituosos e/ou discriminatórios. Agindo desta forma, o Colégio desprezou que: Desde a década de 1980 as instituições da saúde começaram a rever os significados diante dessa sexualidade subordina186

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da: em 1985, o Conselho Federal de Medicina, no Brasil, considerou sem efeito o parágrafo 302.0 do Código Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS), que catalogava o “homossexualismo” como desvio e transtorno sexual. Em 1991, a Anistia Internacional passou a considerar violação dos direitos humanos a proibição da prática homossexual. Em 1993, a OMS tornou sem efeito o código 302.0 - que vigorava desde 1948 (FURLANI, 2007: 154).

Contudo, por ser um documento datado no ano 2000, pode-se alegar que não havia, no período, a orientação que evitasse a utilização do sufixo ismo pelo idade, nem que há treze anos atrás houvesse a repercussão com a força e velocidade que tem hoje as campanhas de reconhecimento da cidadania e dos direitos humanos das populações abrigadas na sigla LGBT2. A Carta é dividida em três partes não numeradas: “Introdução” / “Por que esta orientação pastoral sobre o tema do Homossexualismo?”, “O que diz a Bíblia sobre o assunto?” / “Consideraremos alguns textos bíblicos que abordam o assunto” e “Conclusão” / “Orientações Pastorais: Com base nestas reflexões bíblicas como devemos agir?” (IGREJA METODISTA, 2000). No início da Carta, o Colégio Episcopal diz que o tema do homossexualismo tem sido tratado como tabu na igreja, principalmente quando se depara com um caso, mas que para a sociedade o tema é visto com mais “naturalidade”. Em seguida, reconhece que existem provas científicas mostrando que tal expressão de sexualidade não se trata de preferência sexual ou resultado de escolha, mas sim de uma tendência natural, orgânica, “tão natural como a sexualidade entre homem e mulher” (ibid.). Todavia, quando parece que o discurso está caminhando à frente de seu tempo, que os ares de um novo milênio desanuviavam os fundamentalismos de uma igreja protestante histórica frente à diversidade sexual, há uma interrupção abrupta no raciocínio com uma mixórdia argumentativa que questiona que tipo de vida a sociedade contemporânea tem produzido para depois concluir, em desalento, que esta mesma ciência que avançou a ponto de descobrir a naturalidade da homossexualidade evolui lado a lado com a miséria e a 187

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violência. Ou seja, para os bispos metodistas brasileiros, os avanços científicos perdem sua legitimidade já que ao mesmo tempo a sociedade não consegue atacar e superar seus problemas sociais. Apontando para outra contradição da contemporaneidade, o fato de se falar muito de paz, mas se gastar milhões em armamentos, os bispos finalmente chegam ao seu destino final: desmoralizar a sociedade enquanto produtora de valores liberais. São taxativos e afirmam que Por tudo isso é que percebemos a ausência de condições da nossa sociedade em ditar normas no campo da moral. Um mundo guiado somente pelo saber humano não tem condições de produzir justiça e felicidade, caminha, sim, para a morte. Por isso não podemos aceitar o homossexualismo como uma expressão natural e normal de sexualidade, porque uma resposta apenas científica não é suficiente para determinar nossa posição” (ibid., grifo meu).

Adiante, os bispos tentam despertar no leitor uma série de questionamento sobre a homossexualidade. A Bíblia fala sobre o assunto? É correto? É pecado? Pois suas respostas a essas perguntas definirão o posicionamento “bíblico-teológico e pastoral da Igreja Metodista” para o tema. Compreendendo a conjuntura da Carta Pastoral em análise, retoma-se a lembrança das tensões vividas poucos meses antes, provocadas pelo desastrado artigo do bispo Adolfo Evaristo, e vê-se que o que os bispos estão preparando parece ser um melhoramento discursivo das ideias já publicadas pelo referido bispo no ano anterior. Em análise do discurso, sabemos que o processo de elaboração de um texto reivindica para si a memória – tudo que já foi dito sobre – o tema que se aborda. Quando um discurso se apropria de formulações preconcebidas e “esquecidas” em autoria e origem, ele está lançando mão do que se chama interdiscursividade. Como expõe Eni P. Orlandi sobre o interdiscurso, “é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o ‘anonimato’, possa fazer sentido em ‘minhas’ palavras” (1994: 33-34). 188

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São interdiscursos do texto a retomada do sentimento de conflito entre fé cristã e vivência homoafetiva, a impossibilidade de se fazer uma leitura do texto sagrado que permita uma relativização das abordagens e o tratamento hostil para com as pessoas que tenham orientação não-heterossexual, considerando o homossexualismo uma anormalidade antinatural. Pois como o estudo “A inclusão dos homossexuais no protestantismo” assevera, O posicionamento histórico do Protestantismo sempre foi o de rejeitar a homossexualidade, ora condenando-a como pecado, ora explicando-a como doença ou resultado de uma influência “demoníaca”. Além disso, a postura habitual das igrejas Protestantes tendo sido a de interditar a participação de homossexuais nos mais diversos aspectos da experiência religiosa coletiva (BARRETO; OLIVERIA FILHO, 2012: 118).

Outrossim, no caso da Carta Pastoral estudada, é flagrante que a memória que ela utiliza para pautar-se é a do artigo do bispo Adolfo Evaristo, que já tinha causado muita celeuma há poucos meses antes. Este fenômeno de permitir que um discurso “transpire” ideias muito bem conhecidas de estilo, autoria e intenções é chamado de intertextualidade (ibid.). O artigo do bispo Adolfo Evaristo aparenta ser o intertexto da Carta Pastoral. Pois é lá que o homossexualismo será apresentado como depravação, “abominação aos olhos de Deus” e dito que “o liberalismo presente em Igrejas tradicionais é abominação a Deus, provocando o juízo dEle” (SOUZA, 1999: 24). Quando alas mais progressistas da Igreja se pronunciaram contra o artigo do bispo, considerando que ele se afastava da tradição metodista e pedindo para que não se ignorasse a realidade de “famílias diferenciadas que desejam o amor e o acolhimento em nossas igrejas” (MACIEL, 1999: 11), alertaram que “rejeitar essa realidade ou fechar os olhos a ela pode até afastar tais pessoas da Igreja Metodista, mas não do Reino. A graça é maior do que modelos! Ela acolhe, aceita, renova, favorece” (ibid.). Foi então que, para tentar minimizar o mal estar que já extrapolava o circuito interno da Igreja, o Colégio Episcopal lançou nota assinada pelo seu presidente, bispo Paulo Lockmann, dizendo que o 189

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artigo de um bispo “externa sempre a opinião do bispo que a assina” (1999: 11). Aparentemente, afastava deste modo o Colégio Episcopal daquelas opiniões que repercutiam muito mal. O interessante é que num breve lapso de tempo, o teor do artigo volta exalado nas palavras da Carta Pastoral assinada por todos os bispos, logicamente, contando-se aí com os bispos Adolfo Evaristo e Paulo Lockmann, evidenciando que a neutralidade de outrora era apenas uma estratégia de preservação da autoridade, mas que sempre houve concordância com aqueles posicionamentos. Sendo que agora as expressões de homofobia estão bem mais abrandadas, calibradas em palavras mais sutis, em argumentos menos impactantes. Mas nada que altere o cerne da questão, o tratamento diferenciado e profilático às pessoas homossexuais. Não muda o teor, muda a entonação. Enquanto o artigo do bispo Adolfo Evaristo apresenta doze ocorrências de palavras fortes como “abominação” ou “depravação” para expor uma série de preocupações com a instituição familiar, a Carta Pastoral, com maior sobriedade, traz apenas duas citações da palavra “abominação”, sendo que uma está contida numa citação de um versículo bíblico. Atenuar o discurso é uma tentativa de agradar diferentes grupos formados internamente na Igreja, desde os mais conservadores até os mais liberais. Mas em um olhar mais aguçado, conclui-se que nada que venha romper a cadeia de ideias que entrelaçam os dois textos. Eles emitem um único discurso, em sintonia admirável quando comparados. Pois é no campo destes discursos – que na verdade se fazem uno – que se impõem as virtudes comportamentais exigidas aos membros da Igreja Metodista. Para Norman Fairclough, na obra “Discurso e mudança social”, O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem suas próprias normas e convenções, como também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado (FAIRCLOUGH, 2001: 91).

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Deste modo, o discurso oficial metodista reproduz uma tendência do segmento evangélico de aproximação e acolhimento de pessoas homossexuais, não mais o estranhamento e a exclusão, para, taticamente, inseri-las num processo de “regeneração moral” rumo à “libertação do homossexualismo”, é a homofobia cordial (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009: 129), a desidratação da radicalidade da homofobia religiosa mais irascível. A Carta Pastoral, ao situar o homossexualismo como prática moralmente inconcebível e condenável, mas passível de uma mudança que o anule, favorece, insidiosamente, os discursos sustentados por “segmentos religiosos conservadores mais radicais que subtraem a legitimidade às identidades LGBT e às reivindicações por cidadania correlatas” (ibid.). A homossexualidade na bíblia: bases de um discurso insipiente A segunda parte da Carta Pastoral visa comprovar os argumentos anti-homoafetivos através de trechos bíblicos que supostamente condenam as práticas que fujam da heterossexualidade, que neste caso passa ser uma conduta compulsória às pessoas que pretendem ser da religião cristã. Nesta altura do documento, os bispos lançam mão de textos do livro de Gênesis (Gn.), do Antigo Testamento, destacando versículos dos capítulos 18 e 19. É a clássica história da destruição das cidades de Sodoma e Gomorra. Conta a história judaica que Deus enviou dois anjos em forma de homens para destruir as duas cidades, devido ao clamor que subia aos céus denunciando a gravidade dos pecados cometidos lá. Ao chegarem em Sodoma, Ló, uma das poucas pessoas justas da região, ofereceu hospedagem aos homens em sua residência. Os anjos de início recusaram, dizendo que pernoitariam em praça pública, mas diante da insistência e bondade de Ló, acabaram aceitando o convite. Às altas horas da noite, quando família e hóspedes já se preparavam para deitar, uma turba de homens de Sodoma, desde os jovens até os velhos, cercou a casa de Ló e pediu que ele trouxesse os seus hóspedes para que fossem estuprados. Ló, ultrajado com a situação, chega a oferecer as suas duas filhas virgens no lugar dos 191

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hóspedes, mas os homens de Sodoma não aceitam a proposta. Quando inicia a tentativa de invasão da casa, os hóspedes revelam seus poderes sobrenaturais, cegando temporariamente a súcia. Ao raiar do dia os anjos recomendaram que Ló e sua família deixassem imediatamente a cidade sem olhar para trás, pois a mesma seria destruída junto com seus habitantes. Quando Ló e família já estavam seguros, o texto narra que Deus fez chover do céu enxofre e fogo, destruindo tudo em Sodoma e Gomorra. Mas, a mulher de Ló, talvez por curiosidade ou apego ao passado, olhou para trás e, por causa disso, acabou se transformando uma estátua de sal. Usando este texto como referencial para um posicionamento bíblico-teológico da Igreja Metodista, os bispos dizem que “fica claro a prática do homossexualismo como um dos símbolos das abominações, com as quais Deus não aprova e nem se agrada” (IGREJA METODISTA, 2000). Resumem que a tentativa dos moradores da cidade de Sodoma em manter relações com os hóspedes de Ló ilustra todos os pecados que causaram a desgraça que sobrecaiu nas duas cidades vizinhas ao Mar Morto. Neste ponto, mais uma vez, o artigo do bispo Adolfo Evaristo parece como inspiração, já que lá esta mesma história bíblica mereceu grande destaque, inclusive com uma nomenclatura não muito usual hoje em dia, o sodomismo, em referência ao desejo dos homens de Sodoma em manter relações sexuais com outros homens de fora da cidade. Existe um axioma exegético que diz que interpretar um texto fora do contexto é pretexto. Quando os bispos apresentam a história de Sodoma e Gomorra, buscando fundamentação bíblica para sustentar seu posicionamento nada favorável à participação de pessoas homossexuais na vida da Igreja, sem trazer à tona a conjuntura do evento, eles remetem os leitores da Carta propositadamente ao equívoco. Uma (re)leitura honesta desse texto aponta para outros caminhos interpretativos. É bom lembrar que, antes da tentativa de sexo não consentido entre os homens de Sodoma e os dois homens hóspedes de Ló, Deus já planejava destruir as cidades. A ênfase do texto está no tratamento desumano com os estrangeiros. Pois era lei para aqueles povos sempre cuidar bem de seus imigrantes, sem oprimi192

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los. Os imigrantes deveriam ser tratados como concidadãos para que o povo israelita sempre lembrasse que já viveu como imigrante em terras egípcias. Segundo a mestre em Bíblia Luiza Etsuko Tomita, O texto da destruição de Sodoma e Gomorra é o texto clássico que serviu para releituras sobre as abominações sexuais. A exegese deste texto mostra que o mandamento aqui violado é o do dever da hospitalidade, de extrema importância na antiguidade, na época tribal israelita, onde existe grande rivalidade entre as tribos e qualquer disputa é um estopim para guerras fratricidas. Além disso, é possível verificar a incrível desvalorização do corpo da mulher, em relação às normas patriarcais de dever de hospitalidade, de solidariedade entre homens. As referências a esse texto em outros textos do Antigo Testamento mostram que não há referência nem a estupro, nem a abuso sexual, nem a práticas homossexuais (TOMITA, 1999: 11, grifo meu).

Outras citações bíblicas inseridas na Carta fazem referência aos versículos do livro de Levítico (Lv), do Antigo Testamento. O primeiro é Lv. 18.22 – capítulo 18, versículo 22 – que diz “não se deite com um homem como se fosse com mulher: é uma abominação”; e o segundo é Lv. 20.13 que diz “o homem que deita com outro homem, como se fosse mulher, está cometendo uma abominação”. Ainda hoje esses textos surgem com força nos discursos evangélicos como fundamento cabal para não permissão de qualquer aceitação ao acolhimento aberto, sincero e inclusivo às pessoas homossexuais na Igreja. O nome do livro, Levítico, provém do nome de Levi, em torno do qual se formou a tribo de Israel escolhida para exercer a função sacerdotal. Este livro é um ajuntamento histórico de textos que situam o povo de Israel em relações aos outros povos e sua própria organicidade interna. Não é por caso que este livro apresenta uma vasta lista de regras e mandamentos, entre eles os tabus sexuais, que visam preservar a rotina cultural e cultual das comunidades. Não que houvesse uma preocupação exclusiva com a homossexualidade e suas consequências. Pelo contrário, o tema da homossexualidade na Bíblia é tema para além de secundário. Essa preocupação é limi193

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tada a momentos específicos, conforme o contexto vivido, instabilidade de governo interno ou aproximação com outros povos. Para o doutor em Bíblia Erhard Gerstenberger, não é possível identificar corretamente uma proibição à homossexualidade de forma generalizada nos textos de Levítico (1999: 80). Não é coerente escolher somente os versículos que chamam a atenção das práticas de “um homem se deitar com outro homem” e desprezar completamente a sequência de orientações com o mesmo valor de importância como, por exemplo, guardar o sábado, fazer sacrifícios de animais, não colher tudo para que sobre para os pobres, não oprimir, explorar ou odiar o próximo, não comer nada com sangue, não cortar as pontas dos cabelos em redondo nem aparar a barba, etc. É interessante perceber que os discursos evangélicos são intransigentes na defesa literal dos raros textos bíblicos que apresentam algum comentário contrário às práticas homoafetivas, entretanto, conseguem relativizar perfeitamente sobre as outras exigências bíblicas que não refletem mais a realidade dos nossos dias. As proibições estreitamente culturais e as leis de pureza não são os únicos conteúdos da pregação do livro Levítico (...). Para nosso entender e sentimento esses mandamentos mistos culminam na exortação de amar o próximo’ e ‘amar o estrangeiro’ como a si mesmo. Isto quer dizer: todas as exigências propostas no livro de Levítico, seja, elas de cunho cultural ou ético, servem entre outras coisas para a finalidade central, a saber: a de proteger a esfera divina de Javé (...). A condenação brutal de pessoas homossexuais em Lv. 18 e 20 não é universal na Bíblia. Ela se deu dentro de situações especiais em determinados momentos da história de Israel ou do judaísmo iniciante. Provavelmente os autores ou compositores de Levítico se sentiam ameaçados por qualquer atividade sexual (GERSTENBERGER, 1999: 81,86).

Tendo poucas citações do Antigo Testamento, os bispos se animam com a possibilidade de encontrar no Novo Testamento versículos mais favoráveis aos seus argumentos. Tanto que deixam suspirar um certo alívio ao escreverem “finalmente, no Novo Testamento a linguagem não permite qualquer dúvida”. O que deixa desnudar 194

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uma possível insegurança na fragilidade de sua tese usando os versículos isolados e descontextualizados do Antigo Testamento. Seguindo na tentativa de responder a autopergunta formulada “o que diz a Bíblia sobre o assunto?”, os bispos seguem agora fazendo as citações do Novo Testamento, especificamente de Romanos (Rm) 1. 26-27, que diz que Por isso, Deus entregou os homens a paixões vergonhosas: suas mulheres mudaram a relação natural em relação contra a natureza. Os homens fizeram o mesmo: deixaram a relação natural com a mulher e arderam de paixão uns com os outros, cometendo atos torpes entre si, recebendo dessa maneira em si próprios a paga pela sua aberração;

E Primeira Carta aos Coríntios (I Cor.) 6.9, que diz o seguinte, “vocês não sabem que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não se iludam! Nem os imorais, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os depravados, nem os efeminados, nem os sodomitas”. Os versículos escolhidos são de livros atribuídos ao serviço religioso do apóstolo Paulo de Tarso, que assessorou diretamente as primeiras comunidades cristãs naquela época utilizando cartas, onde registrava orientações diversas, conforme a realidade de cada grupo específico. É interessante refletir que quando Paulo escreve suas cartas, mediante as perseguições sofridas por causa de sua fé e a poucos anos da referência religiosa dessas comunidades, o Cristo, ter sofrido a morte mais desonrosa que existia, ele está em pleno debate com o judaísmo e as religiões pagãs. Paulo não tem a expectativa delas serem normas definitivas de uma das maiores religiões monoteístas que temos hoje no mundo. Esta canonização veria séculos depois. Em Romanos, Paulo demonstra que ainda não conhecia pessoalmente aquela comunidade cristã de Roma. Mas por ser um centro cosmopolita da época, sabia do cotidiano daquela sociedade e das ameaças ao desenvolvimento do grupo de cristão que se reunia. Parte da comunidade cristã de Roma havia herdado do judaísmo um desejo por regras formais, era o cristianismo judaizante. Outrossim, essência das práticas pagãs eram introduzidas no culto. 195

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Para Tomás Hanks, A intenção de São Paulo em Romanos 1.27 não é condenar todos os atos homoeróticos entre homens, mas somente certos tipos: atos sexuais vinculados aos cultos idólatras; atos sexuais caracterizados pela injustiça e exploração; atos promíscuos comuns nos banquetes idólatras e nas orgias; atos homossexuais de homens casados e atos de abuso sexual a jovens e crianças – sendo a pedofilia uma expressão homoerótica dominante na cultura greco-romana (1999: 92).

Já a comunidade de Coríntios é uma comunidade dividida em disputas pela liderança do movimento. Coríntios era uma metrópole na época. Em seu porto circulavam pessoas de diferentes nacionalidades, culturas, religiões, (re)produzindo tendências, repercutindo notícias internacionais e fazendo negócios. Paulo ao escrever a missiva intenta promover unidade e retirar algumas dúvidas que foram enviadas por membros da comunidade. Não é à toa que o versículo escolhido pelos bispos está justamente no texto onde o apóstolo tenta convencer que as disputas internas da comunidade tinham que ser resolvidas intramuros, não em tribunais ou com juízes de fora da comunidade. Não por condenar a Justiça de seu tempo, mas por criticar o excesso de competição que havia entre os seguidores do cristianismo na cidade. Adiante, os bispos dizem que “alguns alegam que Jesus nada disse sobre o homossexualismo. É verdade!”. É interessante notar que os textos bíblicos escolhidos para exemplificar, conforme os bispos metodistas, o quanto Deus desaprova as práticas homoafetivas não são retirados dos Evangelhos – livros de Mateus, Marcos, Lucas e João, que são biografias da vida de Jesus Cristo, entidade religiosa que deveria ser o referencial. Desconcertados, deixando transparecer que a quantidade dos textos, os objetivos para os quais foram escritos e a dimensão que eles têm diante de todo o restante da Bíblia são insatisfatórios para as suas conclusões, os bispos deslocam uma fala de Jesus, do Evangelho de Mateus (Mt) 5. 17-18, que diz “não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim para revogar, vim para cumprir. Porque 196

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em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem i ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra”. E assim, encerram o que deveria ser o “coração” do texto de forma tímida, deixando uma sensação de incompletude discursiva. Considerações Após os bispos tentarem a todo custo dobrar textos bíblicos para encaixá-los conforme a (in)capacidade dos seus esforços teóricos e a necessidade de se impor perante a Igreja e à sociedade como vozes do respeito e da tolerância, o que lhes daria mais notoriedade e firmeza nas atribuições de direção do Metodismo no Brasil, o que resta é um documento singelo em conteúdo, rasteiro em informações, pobre em teologia, mas decididamente defensor da institucionalização da heterossexualidade compulsória – “construção de uma conexão naturalizada entre ‘sexo’, ‘gênero’, ‘desejo’ e ‘práticas’ heterossexuais (que) requer uma desqualificação de modos de vivência da sexualidade e do gênero que sejam dissidentes em relação a esta norma” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2009: 125). Vê-se que na conclusão do documento é retomado o chavão abominamos o pecado, mas amamos o pecador. Em seguida, mas sem a fundamentação bíblica, que neste caso poderia ser realmente extensa e elucidativa, os bispos asseveram que “sobre hipótese alguma devemos ter uma atitude preconceituosa e discriminatória em relação aos homossexuais. São pessoas carentes de respeito e amor” (IGREJA METODISTA, 2000). Aqui se retoma os aspectos da homofobia cordial, nas proposições de receptividade às pessoas homossexuais, mas que de forma inaudível querem dizer “venha, achegue-se, depois se converta ou vá embora!” (ibid.). Seguindo com o tom conciliador, em desarmonia com o que apresentaram no resto do texto, os bispos definem que “não devemos considerar os homossexuais mais pecadores do que alguns que estão dentro da igreja, que são mentirosos, maldizentes, injustos (...). Igreja tem a tendência de considerar um/a adúltero/a um/a pecador/ a mais aceitável do que um homossexual” (ibid.). E num discurso pleno de homofobia cordial, o Colégio de bispos entende que 197

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O homossexual é, em muitos casos, uma tendência de ordem orgânica e/ou emocional, também, e como tal deve ser considerada. Ter homossexualidade não é pecado em si mesmo, o pecado é a prática desta tendência. A Igreja pode e deve contribuir para a reversão desta tendência da homossexualidade, por ser ela contrária ao padrão bíblico cristão da moral (ibid.).

Neste trecho os bispos se perfilam aos discursos evangélicos que propõe o tratamento e a cura para esta tendência. No estudo “Homossexualidade, gênero e cura em perspectivas pastorais evangélicas”, Marcelo Natividade aborda a retórica evangélica que condena as relações sexuais/afetivas que não se configurem dentro da norma do casamento cristão – homem e mulher. O autor observa que para estes segmentos do cristianismo O que foge ao padrão é pecado e, portanto, desordem na sexualidade, comportamento que precisa de restauração, do “reparo” divino. Um impulso sexual natural (heterossexual), que foi pervertido em sua origem por experiências traumáticas e pela prática de certos pecados, é passível de ser restaurado pela comunhão com o Espírito Santo, em um processo que envolve cura das memórias, busca de santificação, disciplina e libertações. A extinção (ou mesmo a atenuação) dos desejos homossexuais, assim como a emergência de um impulso heterossexual natural, é almejada como possibilidade de conformidade ao destino concebido por Deus (NATIVIDADE, 2006: 124).

Finalizando, a Carta Pastoral da Igreja Metodista contribui para um marco regulatório jurídico-burocrático que está no pano de fundo dos recentes embates dados no âmbito interno das instituições religiosas e suas representações na esfera pública: o heterossexismo. Para Roger Raupp Rios, que é juiz federal e membro do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos – Clam/IMS/UERJ, A ideia de heterossexismo apresenta-se como alternativa a esta abordagem, designando um sistema em que a heterossexualidade é institucionalizada como norma social, política, 198

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econômica e jurídica, não importa se de modo explícito ou implícito. Uma vez institucionalizado, o heterossexismo manifesta-se em instituições culturais e organizações burocráticas, tais como a linguagem e o sistema jurídico. Daí advém, de um lado, superioridade e privilégios a todos que se adéquam a tal parâmetro e de outro, opressão e prejuízos a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e até mesmo a heterossexuais que porventura se afastem do padrão de heterossexualidade imposto (2009: 62-63).

No Brasil temos um caso muito atual. Um pastor evangélico, que em um conchavo político ascendeu como deputado para a presidência da Comissão de Minorias e Direitos Humanos da Câmara Federal, e, usando de suas atribuições legítimas, tenta aprovar projetos como o de “cura gay” ou frear a tramitação de propostas de leis que ampliem os direitos das populações LGBT, ele está defendendo este marco do heterossexismo. E documentos como a Carta Pastoral produzida pela Igreja Metodista do Brasil, através de seus bispos, estão alinhados a este movimento, numa solidariedade mútua, mesmo que não assumida. Nestas circunstâncias, a partir do heterossexismo, as distâncias doutrinárias entre correntes do cristianismo tão diferentes são mitigadas. A Igreja Metodista, que tem em seu histórico uma postura política de denúncias às injustiças e defesa dos direitos humanos, tomada por uma espécie de síncope teológica, opta, nesta questão, agora estar lado a lado com movimentos que vivem das sinecuras do poder e dos privilégios de compor o que Gramsci chamou de hegemonia – em suma, a liderança nos domínios econômico, político, cultural e ideológico de uma sociedade, construção de aliança, mantida por alianças, não importante o nível ou caráter destes acordos (apud. FAIRCLOUGH, 2001: 122). Referências bibliográficas BARRETO, Maria Cristina Rocha; OLIVEIRA FILHO, José Evaristo de. “A inclusão de homossexuais no protestantismo”. In: Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, vol. 4, n. 8, p. 117-135, dez. 2012. 199

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FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: UNB, 2001. FURLANI, Jimena. Mitos e tabus da sexualidade humana: subsídios ao trabalho em Educação Sexual. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. GERSTENBERGER, Erhard S. “Devem eles e elas morrer? Homossexualidade no Antigo Testamento e no Oriente Médio Antigo (cf. Levítico 20,13)”. Mandrágora, São Bernardo do Campo, ano 5, nº 5, p. 73-88, 1999. HANKS, Tomás. “Hermenéutica y homofobia: Romanos”. Mandrágora, São Bernardo do Campo, ano 5, nº 5, p. 89-96, 1999. IGREJA METODISTA. Carta “Igreja e a questão do homossexualismo: uma orientação pastoral”. São Paulo, abr. 2000. IGREJA METODISTA. Cânones. São Paulo: Imprensa Metodista, 2012. LOCKMANN, Paulo de Tarso de Oliveira. “Palavra do Colégio Episcopal”. Expositor Cristão. São Paulo, p. 11, out. 1999. MACIEL, Renilda et al. Pronunciamento sobre artigo publicado. Expositor Cristão. São Paulo, p. 11, out. 1999. NATIVIDADE, Marcelo. “Homossexualidade, gênero e cura em perspectivas pastorais evangélicas”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 21, n. 61, p. 115-132, jun. 2006. NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro. “Sexualidades ameaçadoras: religião e homofobia(s) em discursos evangélicos conservadores”. In: Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n. 2, p. 121-161, 2009. ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, [1994]. RIOS, Roger Raupp. “Homofobia na perspectiva dos Direitos Humanos e no contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação”. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009. SOUSA FILHO, Alípio de. “Teorias sobre a gênese da homossexualidade: ideologia, preconceito e fraude”. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (org.). Diversidade Sexual na Educação: problematizações 200

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Sobre os Autores Alysson Brabo Antero Licenciado em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará. Especialista em Mídias na Educação pela Universidade Federal do Amapá. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará. Membro do Grupo de Pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). E-mail: [email protected] Daniela Cordovil Bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará, onde desenvolve pesquisas sobre religiões de matriz africana, neopaganismo, relações de gênero e sexualidade. Líder do grupo de pesquisa Neoesoterismo e Religiões Alternativas (NERA) e membro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). E-mail: [email protected] Jefferson João Martins Baldez Graduado em História pela Escola Superior Madre Celeste. Especialista em Relações Étnico-raciais pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Pará. Mestrando do programa de Pós-graduação em Ciências da Religião. Membro do Grupo de Pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). E-mail: [email protected] Lucielma Lobato Silva Licenciada em História pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Relações Étnico-raciais pelo Instituto Federal de Educação do Pará. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará. Membro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). Email: [email protected]

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Luis Augusto Barbosa Teixeira Licenciado Pleno em Ciências da Religião e mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará. Membro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA) e do grupo de pesquisa Neoesoterismo e Religiões Alternativas (NERA). Email: [email protected] Mayra Cristina Silva Faro Cavalcante Licenciada em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade do Estado do Pará. Focalizadora de Danças Circulares dos Povos, com formação pela ONG Mana-Maní. Desenvolve pesquisas sobre pajelança cabocla na Amazônia, cultura e imaginário amazônico e sobre o Novos Movimentos Religiosos no Brasil. Membro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). Email: [email protected] Manoel Roberto Ferreira Chagas Licenciado em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia, Pará. Especialista em Metodologia de Pesquisa Científica pela Universidade do Estado do Pará. Mestre em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará. Membro do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). Email: [email protected] Maria de Nazaré Fonseca de Senna Pereira Graduada em História pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Educação para as Relações Étnico-raciais pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Estadual do Pará. Membro do grupo de Pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). E-mail: [email protected]

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Tayná do Socorro da Silva Lima Graduada em Licenciatura Plena em Letras, Língua Portuguesa, pela Universidade do Estado do Pará. Especialista em Educação para as Relações Étnico-raciais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade do Estado do Pará. Membro do Grupo de Pesquisa Religião e Cultura e do grupo de pesquisa Religiões de Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). Email: [email protected] Tony Welliton da Silva Vilhena Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Especialista em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade do Estado do Pará. Membro do grupo de pesquisa Movimentos Sociais, Educação e Cidadania na Amazônia. Email: [email protected].

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