RELIGIO VERA: ELUCIDAÇÕES SOBRE A EPISTEMOLOGIA DO SABER RELIGIOSO

June 1, 2017 | Autor: Eduardo Aydos | Categoria: Epistemology, Philosophy Of Religion, Epistemología, Filosofia da Religião
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RELIGIO VERA: ELUCIDAÇÕES SOBRE A EPISTEMOLOGIA DO SABER RELIGIOSO1 Eduardo Dutra Aydos

A humildade religiosa está em perfeito acordo com as pressuposições de uma sociedade democrática. Uma religião profunda deve reconhecer a diferença entre a majestade divina e a condição de criatura do homem; entre o caráter não condicionado do divino e o caráter condicionado de todo empreendimento humano. De acordo com a fé cristã, o orgulho, que procura esconder o caráter condicionado e finito de todo empenho humano, é a própria quintessência do pecado. A fé religiosa deve, portanto, ser uma fonte constante de humildade, pois deve encorajar os homens a moderar seu orgulho natural e atingir uma consciência satisfatória da relatividade até mesmo da afirmação da sua verdade máxima. Deve ensinar-lhes que a sua religião tem mais probabilidades de ser verdadeira se reconhecer o elemento de êrro e pecado, de limitação e contingência que aparece mesmo na afirmação da mais sublime verdade. Historicamente, a forma mais desenvolvida de tolerância democrática baseia-se precisamente nessas conclusões religiosas. (...) Seu ponto de vista foi expresso na ‘Aeropagítica’, de John Milton e em ‘Smoke in the Temple”, de John Saltmarsh. O último expressa perfeitamente a humildade religiosa que deve formar a base da democracia religiosa: ‘Não assumamos’ declara êle, ‘qualquer poder de infalibilidade em relação um ao outro... pois o que é evidente para alguém é obscuro para mim e vice-versa... até que o Senhor nos esclareça a ambos para um discernimento semelhante.” [NIEBUHR: 1965, 94/95 – tradução corrigida pelo autor]

Como aprendiz da ciência, formei desde as minhas primeiras reflexões sobre a “Ideologia e Utopia” de MANNHEIM2, uma compreensão das relações entre o valor e a verdade, que me acompanha ao longo de minha trajetória de vida. Essa convicção afirma: que essas categorias não se confundem, mas que, no limite, são indissociáveis uma da outra; como também o são, por necessidade ou conseqüência o ser e o deverser, o agir e o fazer, na totalidade da consciência e da realidade. E disso resulta o imperativo de perseguir, com honestidade e clareza - os pressupostos sobre a mesa de trabalho intelectual, e as descobertas submetidas à disciplina da ação - o máximo de objetividade possível, no esclarecimento mútuo dessa tensão que nos cobra, permanente1

Versão revista e ampliada da Primeira Parte do Capítulo 9 - O PARADIGMA ANCESTRAL NA EPISTEMOLOGIA DA RELIGIÃO, de “A planície de alétheia; contribuição para a (re)construção teórica de uma epistemologia de síntese e para a compreensão dos fundamentos paradigmáticos do agir e do fazer comunicativos em ciência política.” UFRGS, 1998, 315 fls. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Porto Alegre, BR-RS, 1998. Orientador: Marcelo Jerome Baquero. O texto original foi objeto de uma integração de conteúdos oportunizada pela reflexão contemporânea do autor, mercê de sua participação no Seminário “Reflexões 2008 - Religião e Meio Ambiente”, em forma de conferência versando sobre Umbanda e Meio Ambiente, promovido pela Universidade Federal de Santa Maria, Departamento de Psicologia, Laboratório de Psicologia, em 21/11/2008, em Santa Maria-RS. 2 MANNHEIM: 1952. A alusão da experiência pessoal do autor na elaboração de trabalho de conclusão para disciplina de Política II, do Curso de Ciências Sociais – IFCH-UFRGS, ministrada, no ano de 1966, pelos Prof.s Leônidas Xausa e José Antônio Giusti Tavares, aos quais o autor reverencia como os mestres de iniciação dos quadros que conformam hoje o decanato da ciência política gaúcha. 1

mente, a ambigüidade do recolhimento na academia e do afrontamento no mundo lá fora. Chegando, tardiamente, à síntese provisória desse entendimento - sobre o fundamento das coisas, a substância das formas e o mundo da vida - despojado, pelo sofrimento do ser, das concessões à vaidade das certezas cultivadas; e armado, pela inspiração do dever, contra as objeções da censura aos territórios proscritos pelo “não-saber científico”; sinto-me inteiramente à vontade para enfrentar um último desafio, e clarificar nele as razões finais, que me animam a oferecer à crítica esse texto... e no estado em que se encontra; o qual, desde logo se percebe, pela magnitude do seu escopo e pela esquemática da sua realização, inverte o parâmetro clássico da produção científica em épocas normais, constituindo-se em 90% de inspiração e, apenas, 10% de transpiração. Não pretendo, com isso, dizer que não transpirei nesse empreendimento. Até porque acredito que, honesta e corajosa, toda obra intelectual é a transpiração de uma biografia. Mas haveria que trabalhar muitas vidas, para precisar conceitualmente e ajustar empiricamente, nas suas proposições, todo o espectro da epistemologia de síntese. E nem tenho a pretensão de, assim, invocar o gênio - que me tenha alcançado a fortuna da sua inspiração; mercê do que pudesse descartar o rigor - que me tenha exigido a virtude na transpiração necessária à conclusão dessa obra. O que, simplesmente, pretendo é manifestar a minha humildade, diante dos temas e da ancestralidade do paradigma que me propus descortinar! E, nada melhor para isso, como tributo, também, do respeito que devo, em forma de transpiração, aos meus interlocutores, do que explicitar a origem daquela inspiração. E nada mais importante, aliás, para a efetiva demonstração do caráter totalizante do paradigma em desenvolvimento nesta tese3, do que submetê-lo a um derradeiro teste de consistência. Nesse sentido, é relevante o exercício empreendido na elaboração deste Capítulo. Nele se procura resgatar, à compreensão da Verdade, os conteúdos de Saber, que emergem na interpretação da Tradição das religiões profundas. Para concluir-se, afinal, pela convergência, entre si, dos conceitos e conteúdos que informam genérica e globalmente a Tradição Religiosa da Humanidade; e pela convergência, no modelo paradigmático da epistemologia de síntese, dos conteúdos dogmáticos mais fundamentais aos conceitos religiosos que vão analisados. É assim que, no terceiro Capítulo, do terceiro Título dessa tese, retorno ao ponto de partida, da minha experiência de vida e sala de aula, em busca do fundamento e do objeto que lhe deram origem: a PHÊNIX e a CRUZ, que, de alguma forma, simbolizam a essência dessa descoberta. 3

AYDOS, Eduardo Dutra: 1998: Nota 1. 2

Como a PHÊNIX, três mortes eu vivi intensamente, que me deram a força de renascer na perspectiva do AGIR COMUNICATIVO, que, de alguma forma este texto realiza. Foi assim que me tornei mais atento, quando deixei a cidade e busquei o recolhimento do campo; mais denso, quando fui traído pelos meus próprios companheiros de caminhada e por eles linchado em praça pública; e mais profundo, quando reconheci a existência como tragédia e nela assisti a passagem da Fernanda4. E foi na meditação da CRUZ, em forma do PRINCÍPIO DO CÍRCULO CRUZADO5 - como o deparei um dia no esoterismo de UMBANDA - que eu visualizei o sentido - o qual tenho por universal - da totalidade como dialética triádica. Isso que, me reconstituiu a Vida e me amparou no mapeamento das categorias desse FAZER COMUNICATIVO que é a epistemologia de síntese. Relembrando esse afrontamento originário do tema, me acerco da conclusão dessa obra, retornando ao seu ponto de origem. Agora, na perspectiva de contribuir para um resgate à dignidade do Saber religioso, no concerto dos demais Saberes - ou seja, da ARTE, da FILOSOFIA e da CIÊNCIA - mediante a demonstração da compatibilidade do paradigma epistemológico, no estudo da Tradição das religiões profundas.

1. A síntese de Plutarco sobre a VERDADE e o centro dos mundos do SABER... “de tudo que é e será” Uma visão de conjunto, é oportuno que seja descortinada neste ponto, para que se possa retomar, no encantamento de uma alegoria, o horizonte dessa investigação. Como PLUTARCO, na sua visão da PLANÍCIE DE ALÉTHEIA [apud DETIENNE, 1981:64]6, percebi que a VERDADE se encontra no centro de 183 mundos, reunidos em triângulo, a razão de 60 por lado, mais 3, distribuídos um em cada ângulo. Trata-se de uma expressão cifrada do filósofo, cujo simbolismo exige interpretação. Em sua inspirada alegoria, no centro de um triângulo, que figura os limites dos mundos laterais da contingência e dos três ângulos que permitem perscrutá-lo, os princípios e as formas de tudo que é e será, jazem imóveis e são imutáveis. E são circundados pela 4

Fernanda Varini Aydos, minha filha. MATTA E SILVA, W.W., 1992: MAPA-CHAVE nº 1. 6 Referência ao texto citado na epígrafe da Introdução de “A Planície de Alétheia”: “Os mundos não são infinitos... não existe apenas um, nem cinco, mas cento e oitenta e três. Reúnem-se em forma de triângulo, à razão de sessenta por lado; os três que restam estão colocados cada um em um ângulo. Os mundos vizinhos encostam, portanto, uns nos outros, no curso de suas revoluções, como numa dança. A superfície interior do triângulo serve a todos estes mundos, como sede comum, e se chama Planície de Alétheia. É aí que jazem imóveis os princípios, as formas, os modelos daquilo que foi e de tudo que será. Em torno destes princípios, encontra-se a eternidade, da qual o tempo foge como uma onda, dirigindo-se para os mundos. Tudo isso pode ser visto e contemplado uma vez, a cada dez mil anos, pelas almas humanas, caso estas tenham vivido bem; e as melhores iniciações desta terra são apenas um reflexo desta iniciação e desta revelação. As conversas filosóficas têm como razão de ser o fato de nos recobrar a memória dos belos espetáculos de lá, ou, senão, de nada servem.” PLUTARCO, apud DETIENNE, Marcel, 1981: 64. 5

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ETERNIDADE - de onde o TEMPO foge como uma onda para os mundos da impermanência. A alegoria de PLUTARCO é, desde logo, exotericamente inteligível, eis que figura o processo do conhecimento na dinâmica de uma tensão diádica. Como refere DETIENNE: “o mito de Plutarco apresenta o interesse de unir fortemente, em um contexto religioso, o ato de Memória e a visão da Planície de Alétheia.” A MEMÓRIA, nesta figuração, designa o ato, pelo qual o ser humano, dotando-se de vidência, transcende os limites estruturais do tempo – passado, presente e futuro – e acede ao conhecimento da VERDADE eterna e imutável7 (correspondência com a dimensão do AGIR COMUNICATIVO na epistemologia de síntese). A visão dessa, por sua vez, retroage sobre a potência da Memória, na forma dos princípios e arquétipos que, por igual, transcendentais, conferem sentido e utilidade ao exercício do Saber nos mundos da contingência (correspondência com a dimensão do FAZER COMUNICATIVO na epistemologia de síntese). Uma figuração elementar da numerologia de Plutarco, por sua vez, desvela a VERDADE no centro de 183 mundos, cujos algarismos somam 12 aspectos, que, por nova contração revelam o TRIÂNGULO DAS FORMAS – o reflexo trinitário do DIVINO, ou as três dimensões estruturais da Sua Realidade Essencial (correspondência dos três CAMPOS DE ATUALIZAÇÃO DO SABER na epistemologia de síntese); e, os três ângulos que permitem visualizar a VERDADE, desde pontos diferenciados de observação, como três dimensões funcionais do conhecimento (correspondência dos três INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS na epistemologia de síntese). Não obstante, a numerologia de PLUTARCO encerra ainda, como uma chave para a corroboração dessa hermenêutica, um segundo nível de interpretação. Com efeito, segundo fórmula conhecida dos esoteristas 8, 1830 denota o Valor Secreto de 60. Desprezando-se, na interpretação, os zeros finais de 60 e 1830, verifica-se que a expressão de PLUTARCO designa o número 6 - um hexágono ou uma estrela de 6 pontas como o radical essencial dos 183 mundos existentes. Caracteriza-se, assim, pela figura formada por dois triângulos invertidos, o centro dos mundos, onde ele situa a Planície de Alétheia - o locus da VERDADE. Essa que ali jaz, circulada pelos limites que nela estabelecem - como LEI - a validade universal dos princípios e formas que encerra; isso mesmo que PLUTARCO designa por ETERNIDADE.9 “Neste plano de pensamento, a Memória não é apenas, como para os poetas e os adivinhos, um dom de vidência que permite a compreensão total do passado, do presente e do futuro, mas é, sobretudo, o último termo da cadeia de reencarnações. Seu valor é duplo: como potência religiosa, Memória é a água de Vida que marca o termo ultimo do ciclo das metensomatosis; como faculdade intelectual, é a disciplina de salvação que traz a vitória sobre o tempo e a morte, e permite conquistar o mais completo saber.” DETIENNE, Marcel, 1981:65. 8 O Valor Secreto de um Número - que expressa o seu radical essencial - é obtida pela muliplicação deste Número por ele mesmo mais um, dividindo-se o resultado por dois. 9 PLUTARCO faz questão de corroborar expressamente essa hermenêutica. Diz na sua alegoria que a sede comum da Alétheia é formada por um triângulo que tem sessenta mundos de cada lado, mais três outros mundos que formam os três vértices de um segundo triângulo. 7

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E o TEMPO, dirieis, que sentido faz? Ah! O TEMPO... É uma emanação da própria ETERNIDADE, nas suas ondas que se dirigem ao ESPAÇO dos mundos que lhe são exteriores. Sendo estes conformados pelos três lados - ou pelas três dimensões estruturais da realidade contingente; o TEMPO é conformado, a sua vez, pelos vetores de força, definidos pelos três ângulos dos interesses epistemológicos. Essas considerações, como se verá ao longo deste texto, são consistentes com uma figuração da PLANÍCIE DE ALÉTHEIA, como está desenhada na capa desta tese... e descrita no modelo formal-topológico que utilizei, como recurso heurístico, para a elaboração diagramática do paradigma triádico10:

Figuração geométrica do paradigma de síntese

Não é exclusividade de PLUTARCO, essa visão de mundo, que nos alcança o horizonte no conceito de ALÉTHEIA. Está presente no ensinamento dos grandes mestres de iniciação do Saber Religioso, que se designa por SOPHIA PERENNIS desde tempos ancestrais. E informa, ademais, a humilde pretensão desta Tese: o contribuir para uma operação de resgate intelectual, que permita reintegrarem-se na sua dignidade própria, como Saberes reconhecidos e respeitados, em escala planetária, os conteúdos de VERDADE, que se têm estruturado, ao longo dos tempos, nas tensões diádicas, que conformam os conhecimentos elaborados e acumulados pela CIÊNCIA, pela FILOSOFIA, pela ARTE e pela RELIGIÃO.

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Referido em Nota 5. 5

2. As categorias do agir e do fazer comunicativos, na epistemologia da religião Na conseqüência dessa abordagem, os conceitos elementares da epistemologia de síntese, cujas correspondências foram apontadas na alegoria de Plutarco, são trabalhados de forma mais sistemática, efetuando-se a sua identificação topológica num modelo paradigmático. Nessa démarche, são traduzidos por categorias afeitas ao mapa conceitual das tradições religiosas, os conceitos que desvelamos na elucidação do processo de auto-reflexão comunicativa. 2.1. O AGIR COMUNICATIVO de Deus – Auto-consciência da Divindade. A ordem de apresentação que adotei na Tese Doutoral, para explicitação do modelo paradigmático da epistemologia de síntese, que parte do agir comunicativo do homem, para depois reconhecer o seu fazer, será invertida para a análise do arcabouço teórico de uma EPISTEMOLOGIA DA RELIGIÃO. Essa inversão na ordem de apresentação respeita o postulado, segundo o qual, desde um ponto de vista, que apenas se pode presumir e, mesmo assim precariamente, o FAZER COMUNICATIVO DA RELIGIÃO sempre FOI, É e SERÁ, o reflexo de um Fundamento que o transcende e que nos acede ao conhecimento pelo recurso da intuição simpática – ou mística – o qual nos aproxima, pela humildade do entendimento e o dom da semelhança, ao Seu Modo de Ser, qual seja, o AGIR COMUNICATIVO DE DEUS. Com efeito, o estudo do Saber Religioso, se adotado hipotéticamente o ponto de vista da DIVINDADE, refere o processo da Auto-Consciência de Deus; Consciência Primeva e Causal que se desdobra na dramaturgia da Sua Alteridade, como Atualização da Divina Essência no mundo da Existência. É nessa Divina conseqüência que se consubstancia o AGIR COMUNICATIVO de Deus, como um Princípio Espiritual Polarizado - reflexos ativo e passivo do Princípio Espiritual Uno que reside na Planície de Alétheia, Essa concepção da Unidade Essencial de Deus e da Sua atualização/manifestação num Princípio Espiritual Polarizado corresponde, na tradição das religiões profundas, à figuração triádica da Divindade.

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Diagrama do Agir Comunicativo de Deus Verdade Absoluta de Deus - ou a Realidade Causal de Deus

O PRINCÍPIO ESPIRITUAL POLARIZADO OU O AGIR COMUNICATIVO DE DEUS O Princípio Espiritual Ativo

O Princípio Espiritual Passivo

2.2. O FAZER COMUNICATIVO na epistemologia do Saber Religioso. Desde o ponto de observação da Humanidade, entretanto, que é o foco dessa dissertação, a epistemologia do Saber Religioso é contingenciada pelas condições e limites de abrangência e desenvolvimento da nossa consciência pessoal e histórica, a respeito dos desígnios da Ideação Divina – que nos são dados e acessíveis ao entendimento como um FAZER COMUNICATIVO DA RELIGIÃO. Postulo, assim, no ponto de partida dessa reflexão, como categorias do FAZER COMUNICATIVO DA RELIGIÃO: a REVELAÇÃO, a LEI e o CAMINHO. O fundamento transcendental do que se representa no fazer comunicativo da Religião, é a VERDADE ABSOLUTA DE DEUS, que, não obstante, só nos é acessível modo relativo – através da REVELAÇÃO11; conceito este, que designa uma atualização da Ideação Divina, endereçada e apropriada pela intelecção humana, como experiência pessoal e singular da consciência liberta – do nosso Eu-Superior. Trata-se, neste caso, de uma certeza intuitiva, imediata, plena e incomensurável do Divino – a qual, não obstante, se determina e se delimita pelo contingenciamento existencial (espacial/temporal) e o limite substancial (material) do veículo que, destarte, a (re)vela.

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Na sua própria etimologia, o conceito da REVELAÇÃO, explicita o fato que a intelecção humana, no seu esforço de apreender o significado do FAZER COMUNICATIVO DE DEUS, nesse mesmo ato não o des-vela completamente, mas lhe retorna um certo grau de obscuridade e mistério (RE-VELA), a conta dos limites que nos impõem a materialidade da nossa percepção, o caráter relacional da nossa consciência e as condições objetivas da sua comunicação. 7

Porque somos humanos e falíveis diante da incomensurabilidade de Deus, a VERDADE eterna e imutável da Planície de Alétheia não nos pertence, mas tão somente a sua distante e fugaz contemplação e lembrança, como uma “realidade que se pretende alcançar” (Haqîqah no esoterismo sufi). Os outros dois aspectos dessa tríade, complementam a sua estrutura lógica e podem ser declinados como: a LEI (Sharí’ah, no esoterismo sufi) - objetivação da arquetipal da Sabedoria Divina; e, o CAMINHO (Tarîqah, no esoterismo sufi) - projeção interpretante dos desígnios Divinos no mundo da vida. 2.3. O AGIR COMUNICATIVO na epistemologia do Saber Religioso. Postulo, a seguir, como categorias do AGIR COMUNICATIVO DA RELIGIÃO: a TRADIÇÃO, a EPIFANIA e a IGREJA; categorias essas, que designam o modo como a Humanidade performa sua comunicação com a Divindade. A TRADIÇÃO é o grande repositório arquetipal da nossa aventura planetária. Conforma o conhecimento histórico, sistemático e cumulativo, do Agir Comunicativo da Divindade, eventualmente desvelado e (re)velado, mas, de qualquer forma, internalizado, pelo inconsciente coletivo da Humanidade. E que se projeta ao nosso entendi8

mento através dos procedimentos críticos e metodológicos manejados pelo Saber Religioso. O conceito de EPIFANIA12, designa a experiência concreta, vivenciada pelo intérprete de uma REVELAÇÃO. Conforma, destarte, o relato histórico ou simbólico que, ao nível da consciência dos seus protagonistas, corresponde, não ao conteúdo de VERDADE da manifestação divina, mas ao modo como se manifesta e que, destarte, condiciona e delimita a sua apreensão e transmissão pelos humanos protagonistas. Se poderia dizer, num sentido mais figurativo e lato, que as EPIFANIAS expressam, no agir comunicativo das Religiões, um referencial de identidade e sentido, semelhante ao que os “mitos fundacionais”13 desempenham no processo de integração de uma comunidade política. IGREJA, por sua vez, é a comunidade religiosa, que se articula no entorno da(s) EPIFANIA(S) e na esteira da TRADIÇÃO – movimento historicamente contingenciado de interesses sociais, políticos, econômicos e institucionais, que professa uma visão coletiva, mas sempre ainda particularizada, da Revelação, da Lei e do Caminho que demarcam o nosso entrelace com a Divindade.

“Epifania é uma súbita sensação de realização ou compreensão da essência ou do significado de algo. O termo é usado nos sentidos filosófico e literal para indicar que alguém "encontrou a última peça do quebracabeças e agora consegue ver a imagem completa" do problema. O termo é aplicado quando um pensamento inspirado e iluminante acontece, que parece ser divino em natureza (este é o uso em língua inglesa, principalmente, como na expressão I just had an epiphany, o que indica que ocorreu um pensamento, naquele instante, que foi considerado único e inspirador, de uma natureza quase sobrenatural).Epifania também possui o significado de manifestação ou aparição divina. Diversos personagens históricos, na maioria líderes religiosos, filósofos, cientistas, místicos, escritores, teriam tido experiências epifânicas, dentre eles: Buda, Moisés, Arquimedes (com o célebre grito "eureka", epifania que lhe permitiu formular a lei do empuxo), Maomé, Jacob Boheme, Friedrich August Kekulé (que descobriu a geometria da molécula de benzeno, ao sonhar com uma cobra engolindo o próprio rabo), James Joyce : pt.wikipedia.org/wiki/Epifania_(sensa%C3%A7%C3%A3o) 12

Verbete: “9.2.1.1.1.1.1. EPIFANIA (Do grego epiphainein, ‘manifestar’; raiz em phainein, “mostrar, fazer aparecer”) Termo que antes do Cristianismo designava as aparições dos deuses; veio a designar, posteriormente, a festa que ocorre a 6 de Janeiro, data em que Cristo se manifestou aos Gentios (na pessoa dos Magos) e a sua divindade foi revelada ao mundo. James Joyce apropriou-se do conceito de epifania e secularizou-o, dando-lhe uma conotação essencialmente literária que entretanto se institucionalizou no vocabulário crítico. A definição joyceana é largamente conhecida e frequentemente citada, embora surja apenas em Stephen Hero (edição e introdução de Theodore Spencer, Jonathan Cape, London, 1948), uma primeira versão de A Portrait of the Artist as a Young Man que é consensualmente considerada de inferior qualidade, foi rejeitada pelos editores, e o próprio autor não quis, posteriormente, que fosse publicada. Joyce apresenta o conceito nos seguintes termos: “Por epifania ele referia-se a uma súbita manifestação espiritual, presente quer na banalidade da fala ou do gesto quer num estado memorável da própria mente. (...) Importa destacar, como o autor de Ulisses o faz (op.cit., p.188), que o objecto da epifania é trivial, não se destacando por si só. A chave para compreender a excepcionalidade do momento está no papel activo da mente: um objecto que faça parte do nosso campo de visão quotidiano pode ser repentinamente resgatado da sua banalidade, através da focagem operada pelo nosso “olho espiritual”, parafraseando Joyce.” CARDOSO, Miguel, apud CEIA, CARLOS: E-DICIONÁRIO DE TERMOS LITERÁRIOS. ISBN: 989-20-0088-9. 2005. 13

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Categorias do agir comunicativo da religião Epifania

AGIR COMUNICATIVO DA RELIGIÃO Igreja

Tradição

2.4. A Dupla Tríade no modelo paradigmático do Saber Religioso A imbricação do FAZER e do AGIR COMUNICATIVOS da Religião é um processo dialético, no sentido que se pode dar à interpenetração de uma teoria da significação numa teoria da ação. Topograficamente, essa dialógica pode ser figurada pela superposição dos triângulos invertidos que figuram a dupla tríade, que dá origem ao modelo paradigmático da epistemologia de síntese.

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Dialética do agir e do fazer comunicativos da religião Revelação

Epifania

Lei

FAZER COMUNICATIVO DA RELIGIÃO ABSTRATO

CONCRETO

AGIR COMUNICATIVO DA RELIGIÃO Igreja

Caminho

Tradição

REVELAÇÃO como PRINCÍPIO, e TRADIÇÃO como ARQUÉTIPO, são conceitos-chave para o entendimento desta epistemologia. No primeiro caso, denota-se sempre uma VERDADE REVELADA; no segundo, uma TRADIÇÃO RECONHECIDA.14 Nessa denotação, o PRINCÍPIO é o VERBO, que imprime efetividade ao entendimento, no fundamento transcendental de cada religião; enquanto o ARQUÉTIPO é o RECONHECIMENTO que se atualiza no seu objeto e que se contingencia no respectivo modo de ser. A REVELAÇÃO não esgota a transcendência do seu próprio fundamento – qual seja, a VERDADE essencial de Deus. E a TRADIÇÃO, não se esgota na atualidade que lhe confere uma dada religião – ou seja, na REALIDADE imanente da sua codificação. Por conseqüência, as IGREJAS mantém com a TRADIÇÃO uma relação de duas vias: buscam nela elementos para a confirmação da(s) sua(s) EPIFANIA(S) e lhe agregam conteúdos específicos, desvelando, restaurando ou inovando sobre seu conteúdo de Saber. E, assim também, o CAMINHO descortinado por uma confissão religiosa, mantém com a REVELAÇÃO uma relação dialógica: busca nela os elementos necessários para a justificação da(s) sua(s) LEI(S) e professa os conteúdos parcelares da sua VERDADE, que se encontram acessíveis no patamar estabelecido do seu grau de entendimento. Sob o ponto de vista da epistemologia de síntese (AYDOS, 2002:53): os PRINCÍPIOS são “causas primeiras ou teleológicas do ser, que sob a forma da vontade ou desejo de saber, direcionam a efetividade e os impactos do entendimento no mundo da vida”; enquanto os ARQUÉTIPOS são “modos de ser primordiais, que determinam as possibilidades do conhecimento, pelas suas implicações lógicas derivadas ou sistêmicas”. 14

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Em conclusão, tanto a VERDADE de Deus, quanto a TRADIÇÃO do Saber Religioso, têm maior amplitude que o seu conteúdo REVELADO e RECONHECIDO no seio de cada confissão religiosa. Isso que confirma, o PRINCÍPIO DA TOLERÂNCIA e a CONVERGÊNCIA NA TRADIÇÃO, como os atributos definicionais por excelência da Sophia Perennis que integra o FAZER e o AGIR COMUNICATIVOS, na dialógica do Saber Religioso. Não significa isso, que os movimentos religiosos sejam, necessária ou efetivamente tolerantes e convergentes – afirmação que representaria uma contrafactualidade da sua história conhecida. Significa, entretanto, que tanto quanto ou enquanto deixam de sê-lo, engessam a Verdade de Deus Revelada, empobrecem a Tradição Reconhecida do Saber Religioso e se distanciam do que se possa conceber, em termos humanos e históricos, como o modelo ideal, necessariamente performativo e incompleto, de uma Religião Verdadeira. A restauração da dignidade dos Saberes, que se postula na epistemologia de Síntese , implica no reconhecimento de que existem fundamentos comuns a todas as divisões regionais do conhecimento - RELIGIÃO, CIÊNCIA, FILOSOFIA e ARTE. Divisões essas, que se estabelecem por mera conveniência do acesso à Planície de Alétheia, onde reside o conhecimento Uno na sua Divina Essência. 15

Nem a REVELAÇÃO, por conseguinte, é um privilégio do Saber Religioso, nem o Saber Religioso, por mais totalizante, e completo que o seja, abarca a totalidade do Conhecimento Humano, partícipe por inteiro, e em todos os seus aspectos parcelares, no mistério do Saber Revelado. Por isso que, RELIGIÃO, CIÊNCIA, FILOSOFIA e ARTE, no prospecto de uma epistemologia de síntese, se intercomunicam e se cobram mutuamente as respectivas aporias e os respectivos critérios de decisão. E, por conseqüência, também, a possibilidade de chegar-se, pela via da articulação e integração de todos os domínios do conhecimento, aos axiomas fundamentais que sustentam todas e cada uma das suas divisões estruturais – ou seja, a realidade a ser alcançada como a Sintese Unificada de todo o Saber – não pode construir-se pelo imperialismo regional do Saber Religioso. E, muito menos, pela imposição sectária de uma única, completa, inquestionável e, portanto, absoluta VERDADE REVELADA na esteira da Tradição de Todos os Saberes.16 15

AYDOS, Eduardo Dutra:1998.

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Frederick COPLESTON S.J. (HISTORIA DE LA FILOSOFIA, op. cit.), fica a meio caminho deste reconhecimento. Reconhece a existência e a incompletude de uma Filosofia Perene, COPLESTON, mas quando refere a perspectiva de uma Religião Veredadeira, não lhe reconhece o mesmo estatuto epistemológico. Prefere, neste caso, concentrar-se na possibilidade da demonstração apologética de uma e única REVELAÇÃO, que considera total, absoluta e completa no respectivo conteúdo de VERDADE; enquanto reserva a todas as demais manifestações do Saber Religioso o epíteto da respectiva particularidade, relatividade e incompletude. Ensaiando afirmar-se como um princípio de tolerância, essa hermenêutica esbarra na inconseqüência dos seus próprios fundamentos. Sem a perspectiva de uma efetiva convergência no entendimento daquilo que se vislumbra como a totalidade de um Saber Compartilhado com a Divindade, a tolerância religiosa é uma impossibilidade lógica e 12

Essa tarefa missionária e iluminada cobra, de cada um dos seus pretendentes, uma capacidade de intelecção para além do dogma – ou seja, para além dos paradigmas estabelecidos – em qualquer dos domínios do conhecimento. Essa dimensão do conhecimento intelectual que SCHUON denomina metafísica17, remete ao fundamento epistemológico, segundo o qual, o Espírito Humano, ideado por Deus à Sua imagem e semelhança”, corresponde – no setenário dos seus três aspectos significantes e dos seus quatro aspectos estruturantes – às Faculdades Espirituais do seu Divino Arquiteto. Cobra-lhes, também, o reconhecimento necessário de que, para os desígnios do Princípio Espiritual Uno e da sua intelecção pelo homem questionador, não existe diferença de Época, de Raça, de País, de Cultura, de qualquer sorte de idiosincrasia pessoal, grupal ou institucional, que justifique a priori ou por definição o privilegiamento do acesso à VERDADE. E muito menos a sua prosélita ostentação por este ou aquele movimento filosófico ou artístico, científico ou religioso. Com efeito, a dupla tríade do agir e do fazer comunicativos da religião, sempre e sob quaisquer circunstâncias, apenas tangencia o círculo completo, incomensurável e inesgotável da Verdade Absoluta de Deus. Manifestações históricas diversas dessa compreensão dialética pontuam aspectos igualmente diferenciados dessa fonte primeva do Saber Religioso. A par de outras significações herméticas, talvez nessa linha de interpretação se desvele o sentido próprio do anagrama tradicional conhecido como o Escudo de Davi ou o Sêlo de Salomão.

o ecumenismo se delimita pelos prospectos de uma cooperação meramente pragmática e circunstancial. O excerto que, a seguir se transcreve, é paradigmático dessa ambigüidade radical: “El que haya habido en el mundo muchas religiones —budismo, hinduismo, zoroastrismo, cristianismo, mahometismo, etc. — no prueba que el cristianismo no sea la verdadera; para probarlo haría falta refutar por completo toda la Apologética cristiana. Pues, lo mismo que es absurdo hablar como si la existencia de varias religiones desautorizase ipso facto la pretensión de toda religión a ser ella la verdadera, así también es absurdo hablar como si el sucederse de las distintas filosofías demostrase ipso facto que ni hay ni puede haber una filosofía verdadera. (Naturalmente, al hacer esta observación no quiero decir que en ninguna otra religión salvo en la cristiana haya valores verdaderos. Es más, entre la religión verdadera [revelada] y la verdadera filosofía hay esta gran diferencia: que mientras la primera, como revelada, es necesariamente verdadera en su totalidad, en todo lo que es revelado, la filosofía verdadera puede serlo en sus líneas y principios más importantes, pero sin llegar a ser completa en ningún momento. La filosofía, obra de la mente humana y no revelación de Dios, crece y se desarrolla: sus puntos de vista pueden cambiar y renovarse o aumentar en número, gracias a nuevos enfoques o al planteamiento de problemas nuevos, a medida que se descubren más datos, varían las situaciones, etc. El término «filosofía verdadera» o filosofía perenne no ha de entenderse como si denotara un conjunto estático y completo de principios y aplicaciones, no susceptible de desarrollo ni modificación.)” COPLESTON: Frederick, HISTORIA DE LA FILOSOFIA - Tomo I, Grecia y Roma. LIBER e-book. Mas que, para evitar o equívoco de meramente dar um nôvo sentido ao conceito filosófico da metafísica – tornando-o polissêmico, preferimos designar simplesmente como a contemplação da transcendência. 17

13

Conformação sígnica do Saber Religioso – a Estrela de Davi Epifania

Revelação

Verdade Absoluta de Deus

Lei FAZER COMUNICATIVO DA RELIGIÃO AGIR COMUNICATIVO DA RELIGIÃO Tradição

Igreja

Caminho

Com efeito, as pontas do hexágono formado pela dupla tríade (do agir e do fazer comunicativos da religião) nessa representação geométrica, tocam pontualmente apenas seis pontos do círculo figurativo da Verdade Absoluta de Deus. Girando o hexágono sobre o seu próprio eixo, outros pontos serão tocados – e assim desvelados – conformando-se, pela sua fixação numa determinada configuração do respectivo espaço de propriedades, uma confissão religiosa diferenciada. E assim sucessivamente, pelo que, o conhecimento acumulado das religiões profundas, tomaria a forma de uma grande mandala, tangenciando múltiplos e pontuais aspectos do grande e incomensurável círculo da Sabedoria Divina. O conteúdo de VERDADE que nos é, individual ou coletivamente, acessível, resta, assim, condicionado à diversidade, pelas condições performativas únicas da consciência, respectivamente, de cada pessoa ou de cada confissão religiosa18. Por isso que estas – respeitáveis e desejáveis na sua própria diversidade – tanto quanto e enquanto pretendam oferecer e apropriar-se de uma resposta definitiva e última ao mistério do SER e do ABSOLUTO, tão somente a parcializam e velam. Por outro lado, a convicção religiosa do homem questionador – aquele que humildemente exercita as faculdades indivisíveis da sua razão e sentimento, e as exacerba, até mesmo pela consciência dos seus limites, na fundamentação transcendental do saber religioso – a integra e unifica.

18

Referência às três funções signicas (interesses epistemológicos) e às quatro funções estruturantes (ou quatro relações originárias de sentido) que a epistemologia de síntese integra no seu modelo paradigmático, cfr. AYDOS:2002, 157/179. 14

Que essa integração e unificação no conteúdo mais nuclear, essencial e profundo da resposta humana ao mistério de Deus, é um caminho possível de ser palmilhado desde qualquer confissão religiosa consistentemente estruturada, é uma condição lógica, que a própria mandala, formada pela figuração de duas ou mais confissões religiosas tangenciando o círculo da Verdade Absoluta de Deus, nos defronta.

Do tangenciamento fragmentário da Verdade à totalidade sintética do Saber Religioso Verdade Absoluta de Deus

Axioma da totalidade sintética ou da atualidade convergente da Religio Vera

Com efeito, é um axioma da epistemologia de síntese, que o percurso consequente das categorias que integram agir e o fazer comunicativos, de quaisquer religiões profundas, na grande mandala da Sabedoria Divina, é convergente ao mesmo e idêntico ponto central. Justo ali, onde residem os princípios e arcanos fundamentais do Saber Religioso. A Religio Vera que se atualiza na convergência destes percursos, não é uma profissão religiosa excludente de todas as demais. E, muito menos, um atributo que se possa reconhecer em todas as religiões, pelo tão só respeito à sua dignidade formal intrínseca. Trata-se, com efeito, de uma qualidade adjetiva, que não se afirma pela mera postulação do respectivo rótulo por um movimento religioso, nem pela idiosincrasia das suas verdades reveladas ou do seu conteúdo de tradição reconhecida - mas, que se reserva às religiões e/ou aos religiosos que os professam em Espírito e Verdade, e de tal maneira que não se lhes possa confrontar a violação dos pressupostos epistêmicos do Saber Religioso.

3. As FUNÇÕES SÍGNICAS do Saber Religioso

15

As implicações epistêmicas dessa dialógica remetem à complementariedade de princípios e arquétipos, onde realça o sentido construído para os conceitos de RAZÃO, PARADIGMA, CRÍTICA, MÉTODO, SABEDORIA PRÁTICA e CONSCIÊNCIA e sua correspectiva elaboração, pelas categorias lógicas que articulam a dinâmica dos INTERESSES DO CONHECIMENTO – como teoria, praxis e poiésis – e sua imbricação nos CAMPOS DE ATUALIZAÇÃO DO SABER (AYDOS, 2002:52/60). Em se tratando da esfera do Saber Religioso, essa análise sugere: (a) como interesse da fundamentação transcendental, a humildade do entendimento, que se supera pela RESIGNAÇÃO do intérprete aos desígnios da Sabedoria de Deus; (b) como interesse da estruturação teórica do significado, a fortaleza da convicção, consubstanciada na FÉ RACIONAL que comove os prospectos do homem questionador19; e, (c) como interesse da compreensão participativa do saber, a pureza da consciência, que viabiliza o pressuposto do acesso ao saber religioso, nos consectários de uma VIDA ESPIRITUAL intensa. Os conceitos subjacentes, que designam a conformação triádica dos interesses epistemológicos, desvelam o conteúdo e significado próprios e sistêmicos, de conceitos que ora integram as várias disciplinas intelectuais e práticas dos estudos religiosos. Neste sentido, a RESIGNAÇÃO mística dos intérpretes, encontra na TEOLOGIA os seus fundamentos e na LITURGIA o seu objeto; a FÉ RACIONAL que os inspira, tem na MEDITAÇÃO o seu fundamento e na ORAÇÃO o seu objeto; e a VIDA ESPIRITUAL INTENSA que sustenta o esforço do saber religioso, encontra seu fundamento na ASCESE dos postulantes e no seu APOSTOLADO o respectivo objeto. Essa hermenêutica encontra a sua representação topográfica no diagrama dos Interesses Epistemológicos do Saber Religioso, como segue:

A expressão homem questionador é emprestada do ‘Catecismo Holandês’, apud: VOEGELIN: 1988: “Extraí-o do Novo Catecísmo de 1966, encomendado pela hierarquia dos Países-Baixos e convencionalmente chamado o Catècísmo Holandês. O seu capítulo de abertura tem o título "O Homem Questionador"; e na primeira página encontramos a seguinte passagem: "Este livro ... começa por nos interrogar sobre qual é o significado do facto de que nós existimos. Isto não significa que nós começamos por tomar uma atitude não-Cristã. Significa simplesmente que nós, também, como Cristãos somos homens com mentes questionantes. Devemos estar sempre prontos e capazes de explicar como a nossa fé dá uma resposta à questão da nossa existência." 19

16

Interesses Epistemológicos TEOLOGIA RESIGNAÇÃO (Humildade do entendimento)

LITURGIA

Revelação

Epifania

Lei

FAZER COMUNICATIVO DA RELIGIÃO ABSTRATO

CONCRETO

ASCESE VIDA ESPIRITUAL (Pureza da consciência)

AGIR COMUNICATIVO DA RELIGIÃO

APOSTOLADO

Igreja

Caminho

Tradição MEDITAÇÃO FÉ RACIONAL (Fortaleza da convicção) ORAÇÃO

Essa dinâmica dos interesses epistemológicos ganha uma expressão amplificada20 nos conceitos vertentes do modelo paradigmático da Epistemologia de Síntese (em letras minúsculas) aos quais correspondem as categorias do agir e do fazer comunicativo do SABER RELIGIOSO (em negrito e letras maiúsculas). EPISTEMOLOGIA DA RELIGIÃO: categorias do núcleo sígnico e constelação das subtríades dos interesses epistemológicos, em sua correspondência na DIVISÃO FUNCIONAL DO SABER RELIGIOSO.[1] CATEGORIAS EPISTEMOLÓGICAS

PRINCÍPIOS E ARQUÉTIPOS

Auto-reflexão comunicativa: O PRINCÍPIO DUPLO-GERANTE

CATEGORIAS DO NÚCLEO SÍGNICO

DIVISÃO DO SABER RELIGIOSO

PRIMEIRIDADES

TERCEIRIDADES

SECUNDIDADES

FAZER TOLERANTE

Princípio: REVELAÇÃO

Aplicação: CAMINHO

Organização: LEI

AGIR CONVERGENTE

Representação: IGREJA

Expressão: EPIFANIA

Arquétipo: TRADIÇÃO

Interesse da Fundamentação Transcendental do Entendimento: RESIGNAÇÃO

Princípio: Razão

Parcialização: PROFECIA

Justificação: GNOSE

Adjudicação: ARCANO

Metafísica TEOLOGIA

Arquétipo: Paradigma

Consensualização: DOUTRINA

Formalização: SAGRAÇÃO

Institucionalização: CULTO

Epistemologia LITURGIA

Interesse da Reconstrução Teórica do Significado: FÉ (RACIONAL)

Princípio: Crítica

Suspeição/Astúcia da Fé: EVOCAÇÃO

Restauração: VISUALIZAÇÃO

Recolhimento: CONCENTRAÇÃO

Hermenêutica MEDITAÇÃO

Arquétipo: Pesquisa

Demonstração: INVOCAÇÃO

Corroboração: VERBALIZAÇÃO

Observação: VOLIÇÃO

Metodologia ORAÇÃO

Interesse da Compreensão Participativa do Discurso: VIDA ESPIRITUAL

Princípio: Sabedoria prática

Totalização: CARIDADE

Internalização: CONVERSÃO

Reflexão: ORDENAÇÃO

Ética APOSTOLADO

Arquétipo: Consciência

Empatia: MEDIUNIDADE

Postulação: INICIAÇÃO

Convicção: MISSÃO

Política ASCESE

Proto-síntese da linguagem: SOPHIA PERENNIS

Nesta concepção paradigmática, o Princípio Espiritual Uno, Causa Incriada de tudo o que existe, polarizou-se, no processo da Sua Auto-Reflexão (Alteridade de 20

Tabelas nºs 6 e 33 na Tese Doutoral (conteúdo revisado). 17

Deus), dando lugar ao PRINCÍPIO DUPLO-GERANTE - que, à Sua vez, Se reflete no Agir e no Fazer Comunicativos da Religião, aqui designados como o FAZER TOLERANTE e o AGIR CONVERGENTE.21 A dinâmica da Auto-Reflexão Divina, conformada pelo jogo dos interesses epistemológicos desvela-se, por sua vez, em cada um destes, como Primeiridade, Secundidade e Terceiridade lógicas; sub-tríades,22 na esteira das quais convenciona-se uma divisão da Sophia Perennis nos conteúdos disciplinares da TEOLOGIA, LITURGIA, MEDITAÇÃO, ORAÇÃO, ASCESE e do APOSTOLADO, comuns a religiões. Nesta visão sintética, a dialógica da RESIGNAÇÃO, desvela o percurso do entendimento na tensão triádica da razão e do paradigma, que se resolvem, na esfera do Saber Religioso, como TEOLOGIA e LITURGIA. A dialógica da FÉ RACIONAL, figura a tensão diádica da crítica e da pesquisa, que se projetam nos prospectos devocionais da MEDITAÇÃO e da ORAÇÃO. E a dialógica da VIDA ESPIRITUAL contempla os ditames da sabedoria prática e da consciência, que se consubstanciam na ASCESE e no APOSTOLADO dos caminhantes. Estas seis Divisões do Saber Religioso – TEOLOGIA, LITURGIA, MEDITAÇÃO, ORAÇÃO, ASCESE e APOSTOLADO – se originam, a sua vez, de subtríades lógicas que performam, intepenetrando-se, a dramaturgia do espírito humano no acercamento da VERDADE de Deus. Os tópicos que seguem explicitam, topograficamente, essas articulações de sentido. 3.1. No interesse epistemológico da RESIGNAÇÃO O fazer comunicativo da TEOLOGIA tem por fundamento do seu representámen um acercamento PROFÉTICO da Verdade de Deus, cuja objetivação – processada pela GNOSE, como saber que promove a emancipação da mera convenientia (AYDOS, 1998: 176/178) – objetiva-se nos ARCANOS de uma tradição religiosa. Já o agir comunicativo da LITURGIA compreende a expressão da DOUTRINA cujas implicações – mediadas pela SAGRAÇÃO ritualística do seu próprio simbolismo – repercutem na conformação de uma comunidade de CULTO.

21

Oportuno advertir que o sentido de CONVERGÊNCIA que trabalho difere daquele que nos oferece o senso comum. Não a visualizo como um ponto de consenso, a ser progressivamente atingido; mas, como o resgate progressivo de uma origem comum reconhecida, cujo esclarecimento desvela uma totalidade de sentido. Também, o conceito de TOLERÂNCIA deve ser denotado. Não implica em relativização da verdade ou, até mesmo, dos dogmas religiosos; mas nos impõe a aceitação em princípio da possibilidade que o entendimento que particularmente professamos não se esgote como totalidade de sentido. 22 Referência à lógica triádica de PEIRCE, 1977. 18

Núcleo sígnico da RESIGNAÇÃO Profecia

Sagração

Arcano

FAZER COMUNICATIVO DA TEOLOGIA ABSTRATO

CONCRETO

AGIR COMUNICATIVO DA LITURGIA Doutrina

Gnose

Culto

3.2. No interesse epistemológico da FÉ RACIONAL O fazer comunicativo da MEDITAÇÃO tem por fundamento do seu representámen a EVOCAÇÃO de um estado de consciência, que se objetiva – pela VISUALIZAÇÃO da memória intersubjetiva – num estado de CONCENTRAÇÃO mental, a sua vez, constitutivo e orientador do entendimento. Na tensão dialógica da ORAÇÃO, que lhe corresponde enquanto agir comunicativo, INVOCA-SE a Potência Espíritual do entendimento – e o poder ínsito da sua VERBALIZAÇÃO – na perspectiva de promoverse uma adesão VOLITIVA da comunidade de fé.

Núcleo sígnico da FÉ RACIONAL Evocação

Verbalização

Concentração

FAZER COMUNICATIVO DA MEDITAÇÃO ABSTRATO

CONCRETO

AGIR COMUNICATIVO DA ORAÇÃO Invocação

Visualização

Volição

19

3.3. No interesse epistemológico da VIDA ESPIRITUAL O fazer comunicativo do APOSTOLADO, encontra seu fundamento transcendental na expressão do Amor Divino, que se reconhece na prática da CARIDADE, e se que se objetiva – potencializando a CONVERSÃO das consciências – no simbolismo da ORDENAÇÃO dos hierofantes. Já na disciplina da ASCESE religiosa, que lhe corresponde enquanto agir comunicativo, a empatia MEDIÚNICA face aos desígnios da Divindade – exercitada nos rituais da INICIAÇÃO – imprime um sentido de MISSÃO, que estigmatiza e compromete o acercamento do Saber Religioso.

Núcleo sígnico da VIDA ESPIRITUAL Caridade

Iniciação

Ordenação

FAZER COMUNICATIVO DO APOSTOLADO ABSTRATO

CONCRETO

AGIR COMUNICATIVO DA ASCESE Mediunidade

Conversão

Missão

4. As FUNÇÕES ESTRUTURANTES do Saber Religioso No esclarecimento dos pressupostos epistêmicos do Saber Religioso, um passo adiante se faz necessário. A par das funções sígnicas, a epistemologia de síntese oportuniza a análise das Funções Estruturantes do processo cognitivo. Dois procedimentos são cruciais nesse mister: a identificação dos três CAMPOS DE ATUALIZAÇÃO DO SABER; e, a figuração dos quatro ESTÁDIOS PERFORMATIVOS DA CONSCIÊNCIA RELIGIOSA – ou, daquilo que se poderia designar como as quatro VIRTUDES TEOLOGAIS. Na figuração dos Campos de Atualização do Saber, que designam – como se foram campos de força – as regiões de estruturação, onde se processa a auto-reflexão comunicativa, socorremo-nos das categorias utilizadas por MATTA E SILVA (1992: Mapa Chave nº 1), que diferencia três aspectos ou reflexos do Divino Princípio, segundo os respectivos locus de atuação, quais sejam: o Universo, a Natureza e a Humanidade. 20

Para designar o Divino Princípio que atua na Humanidade, utilizamos o conceito da DIVINA PROVIDÊNCIA23 – cujo atributo essencial é a atualização do AMOR DE DEUS. Para designar o Divino Princípio que atua no Universo, utilizamos o conceito da DIVINA CONSEQÜÊNCIA – cujo atributo essencial é a atualização da SABEDORIA DE DEUS. Para designar o Divino Princípio que atua na Natureza, utilizamos o conceito da DIVINA POTESTADE – cujo atributo essencial é a atualização da VOLIÇÃO DE DEUS. PROVIDÊNCIA, CONSEQÜÊNCIA e POTESTADE, são, destarte, os campos de atualização de Deus, cujas propriedades perfazem o equilíbrio estrutural triádico dos Seus desígnios. O entendimento, sobre cada um e o conjunto destes três reflexos da Ideação Divina, é, em grande parte, medida da profundidade e do alcance de cada confissão religiosa, como intérprete da REVELAÇÃO e partícipe da TRADIÇÃO. É, também, no quadro referencial destes três aspectos da Ideação Divina que se estrutura o palco de suas divergências e o horizonte de sua convergência possível.

Campos de atualização do saber religioso CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA PROVIDÊNCIA – AMOR DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA HUMANIDADE

TEOLOGIA RESIGNAÇÃO (Humildade do entendimento)

LITURGIA

Revelação

Epifania

CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA CONSEQÜ CONSEQÜÊNCIA – SABEDORIA DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NO UNIVERSO

Lei

FAZER CONVERGENTE

ABSTRATO

CONCRETO

APOSTOLADO VIDA ESPIRITUAL (Pureza da consciência) ASCESE CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA POTESTADE – VOLIÇÃO DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA NATUREZA

AGIR TOLERANTE Igreja

Caminho

Tradição MEDITAÇÃO FÉ RACIONAL (Fortaleza da convicção) ORAÇÃO

O privilegiamento, pelas confissões religiosas, de um ou outro desses três campos de manifestação ou reflexos da Ideação Divina, como se visualizassem, respectivamente, as três cores primárias da refração da Luz: de um lado, aprofunda o conhecimento de cada um dos seus aspectos fundamentais; mas, de outro, vela o reconhecimen-

“The three powers, which I have just named – Providence, Man, considered as the Kingdom of Man, and Destiny – constitute the universal ternary. Nothing escapes their action; all is subject to them in the universe; all except God Himself who, enveloping them in His unfathomable Unity, forms with it the Sacred Tetrad of the ancients, that immense quarternary, which is All in All and outside of which there is nothing.” D’OLIVET (1915: XII). 23

21

to da integridade de cada um e de todos esses aspectos, na unidade compósita da mesma Luz Branca, que os contém a todos.24 É, por conseguinte, sobre os nexos que se impõem ao entendimento, na intelecção possível desses três reflexos da Ideação Divina, que se pode desenvolver o debate mais fecundo da diversidade desejável, e da convergência possível das confissões religiosas. Se Deus é BOM, se Deus é JUSTO e se Deus é OMNIPOTENTE, cada um destes atributos da Divina Essência deve resolver-se, na sua integridade própria e na unidade compósita da Ideação Divina. Essa mesma Unidade do Ser Espiritual, na esclarecida hermenêutica de FABRE D’OLIVET conforma, com Seus Três Reflexos o Quaternário Sagrado das tradições ancestrais, “que é a Totalidade na Totalidade e fora do qual não há nada”25. E, como o Espírito de Deus se reflete no Espírito do Homem, esse Quaternário Sagrado – estrutura da Ideação Divina – encontra a sua correspondência nos quatro pressupostos estruturais da intelecção humana que, na epistemologia da religião podem ser designados como as suas QUATRO VIRTUDES TEOLOGAIS, ou quatro estádios da alma, para o acesso à intelecção plena dos mistérios da Fé.

Quatro Virtudes Teologais CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA PROVIDÊNCIA – AMOR DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA HUMANIDADE

TEOLOGIA RESIGNAÇÃO (Humildade do entendimento)

LITURGIA

CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA CONSEQÜ CONSEQÜÊNCIA – SABEDORIA DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NO UNIVERSO

CALAR Revelação

Igreja

Lei

FAZER CONVERGENTE

QUERER

SABER

ASCESE VIDA ESPIRITUAL (Pureza da consciência) APOSTOLADO CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA POTESTADE – VOLIÇÃO DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA NATUREZA

AGIR TOLERANTE Igreja

Caminho

Tradição MEDITAÇÃO

OUSAR

FÉ RACIONAL (Fortaleza da convicção) ORAÇÃO

Essa alegoria da refração da Luz encontra-se em SCHUON, op.cit, p. 4/5: “Si está permitido poner un ejemplo en el orden sensible para ilustrar la diferencia entre los conocimientos metafísico y teológico, podemos decir que el primero, que llamaremos «esotérico» cuando se manifieste mediante un simbolismo religioso, tiene conciencia de la esencia incolora de la luz y de su carácter de pura luminosidad; tal creencia religiosa, por el contrario, admitirá que la luz es roja y no verde, mientras que otra creencia afirmará lo contrario. Las dos tendrán razón en tanto ambas distinguen la luz de la oscuridad, pero no la tendrán en tanto la identifican con tal o cual color.” 25 D’OLIVET, op. cit. Cfr. Nota 23. 24

22

OUSAR, QUERER, CALAR e SABER, nesta mesma ordem de estruturação, são estádios da consciência na construção do SABER RELIGIOSO, cujos pressupostos implicam: (i) na ousadia do afrontamento, pelo homem questionador, da árvore da ciência: (ii) seguida pela vontade determinada da sua apreensão; (iii) temperada pela laboriosa e silenciosa preparação da mente para o entendimento; e, que (iv) culmina na iluminação do espírito, correspondente ao nível de acesso que é merecedor, no tempo que se completa cada ciclo de desenvolvimento, neste plano da existência. CALAR para OUSAR, projetando-se, em seguida, como QUERER para SABER, e nesta ordem sequencial, são determinações do espírito que refletem o sentido da autoreflexão comunicativa no plano da existência, a sua vez e precipuamente, como princípio de PODER e como capacidade de REALIZAÇÃO. Nessa hermenêutica, desvela-se a emergência de um simbolismo universal no prospecto da Tradição: o percurso da CRUZ como caminho da VERDADE no escôpo do Saber Religioso. O Espírito que se desloca, de uma atitude prévia de concentração e silêncio, para a ousadia do questionamento no mundo da vida, acumula POTÊNCIA de realização; e, nesta mesma conseqüência, quando o direciona, pelo exercício da sua vontade, na via de acesso ao entendimento, apropria-se do Saber como capacidade de EXECUÇÃO em face do que lhe oportuniza a PROVIDÊNCIA e lhe faculta a CONSEQÜÊNCIA da Ideação Divina. Simbolismo da Cruz: “A Epifania aponta como Caminho o equilíbrio da Vontade e do Discernimento” CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA PROVIDÊNCIA – AMOR DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA HUMANIDADE

TEOLOGIA RESIGNAÇÃO (Humildade do entendimento)

LITURGIA

CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA CONSEQÜ CONSEQÜÊNCIA – SABEDORIA DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NO UNIVERSO

CALAR Revelação

Epifania

Lei

FAZER CONVERGENTE

QUERER

SABER

APOSTOLADO VIDA ESPIRITUAL (Pureza da consciência) ASCESE CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA POTESTADE – VOLIÇÃO DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA NATUREZA

AGIR TOLERANTE Igreja

Caminho

Tradição MEDITAÇÃO

OUSAR

FÉ RACIONAL (Fortaleza da convicção) ORAÇÃO

Evocativo, pois, do poder da VERDADE e da capacidade de realização do SABER RELIGIOSO, esse SINAL VIVIDO DA CRUZ – referenciado ao Mito Fundacional, ou à Tradição reconhecida, de todas as religiões profundas – designa as linhas de 23

força e identifica o percurso do espírito, que se orienta por estes princípíos e pauta a sua conduta na prática das virtudes teologais.26 É significativo, também, o fato que, neste cruzamento de forças, performam-se: as quatro etapas da vida, desde a gestação silenciosa, a ousadia do nascimento, a vontade do crescimento e a sabedoria do amadurecimento; e a dramaturgia das quatro estações do ano, a começar pela hibernação da seiva, o desabrochar da primavera, a exuberância do verão e a beleza pacífica e diferenciada das cores do outono. Nesta figuração epistemológica, a disposição dos conceitos não é zodiacal ou geodésica. Obedece critérios e nexos de correspondência conceituais. Assim, o leitor, mais atento, ao aprofundar esta linha de entendimento, poderá verificar que o simbolismo da cruz aqui desvelado, embora dispondo em hemisférios diferenciados as potências do quaternário – CALAR – OUSAR – QUERER – SABER – reproduz fielmente o fluxo de movimentação magística, conforme os cânones da Doutrina Yântrica (RIVAS NETO, 1996: 270). Basta para confirmá-lo, que se leia o direcionamento das respectivas linhas de força (nas linhas vermelhas pontilhadas), seguindo as flechas direcionais do próprio diagrama de RIVAS NETO, no sentido anti-horário, que é o da invocação das potências divinas, como a seguir figurado: Correspondência conceitual do simbolismo da cruz na movimentação magística (Doutrina Yântrica)

CALAR

SABER

OUSAR

QUERER

Neste diagrama, a flechas cheias em vermelho, percorrem, numa disposição gráfica distinta, os mesmos nexos de sentido que figuramos na representação do sinal da cruz: desde o CALAR, na direção do OUSAR; e, desde o QUERER, na direção do SABER. Já as flechas vermelhas pontilhadas, representam o percurso a ser realizado pelos respectivos agentes e instrumentos de apoio, para a completação da operação magística.

26

Obra de referência para o aprofundamento dessa temática encontra-se em GUÉNON, René: LE SYMBOLISME DE LA CROIX, Véga, París, 1931. Gallimard. 24

O que assim se descortina, no diagrama da movimentação magística formulado por RIVAS NETO (1996:270), é que o simbolismo do sinal da cruz (no direcionamento das setas azuis) é um processo aberto, eis que a energia que flui das setas verticais se dispersa na direção das setas horizontais, sem que o seu fluxo se complete no ciclo do quaternário. Demonstra-se, destarte, a necessidade: (i) da intervenção expressa da invocação e do conhecimento divinatório do respectivo executor; e, (ii) da mediação de recursos instrumentais (caso da água na pia batismal); para que, (iii) se canalize a energia dispersa no universo, pelos próprios termos do ritual, para os respectivos pontos de captação no cruzeiro mágico. Só, assim, o ciclo desse simbolismo, se fecha e se completa na sua intencionalidade expressa. A disposição topográfica destas virtudes no pantáculo do Quaternário varia conforme o substrato da respectiva representação, quer se refira ela à expressão sintética do Quaternário Sagrado na perspectiva da auto-reflexão comunicativa do Saber Religioso, que é o objeto de estudo da Epistemologia de Síntese, quer se refira ela aos diferentes reflexos do Princípio Espiritual Uno e sua dinâmica no Mundo da Criação. Exemplificativa desta segunda acepção é a disposição destes conceitos no emblema da Ordem de Aquário (FERRIERE, 278) – a ordem de apresentação, em movimento circular e no sentido anti-horário, procede como: saber > querer > ousar > calar.

Representa-se, neste caso, um ciclo involutivo – epistemologicamente, um fazer comunicativo – quando o que se trata é da materialização da energia sutil. Neste sentido, propriamente teúrgico, invoca-se o conhecimento das Hierarquias Superiores que SABEM, e por isso QUEREM, e assim OUSAM, e por fim CALAM na latência do resultado da obra feita.

25

Já no paradigma epistemológico – e no Simbolismo da Cruz que nele se implica – o substrato dessas categorias opera num sentido inverso como: calar > ousar > querer > saber. Apreende-se, neste caso, a perspectiva de um agir comunicativo, configurando o ciclo evolutivo da energia densa em busca do conhecimento, que opera a partir do POTENCIAL acumulado de intelecção do Iniciado, que sustenta a OUSADIA do afrontamento da sua própria ignorância e promove, pela aplicação da VONTADE, uma apropriação de SABER, na consequência do seu esforço e na medida do seu merecimento.

5. As três PRAXIOLOGIAS do Saber Religioso Em seqüência, é relevante esclarecer que, na dialética do FAZER e do AGIR COMUNICATIVOS da religião, o processo da sua instituição, como CAMINHO e como EPIFANIA, é articulado e consolidado através de PRAXIOLOGIAS – ou seja, intervenções, via de regra institucionais, que performam suas funções sígnicas no plano da existência. 27 Utilizando-se, então, de uma designação neutra – neste sentido que, desde logo, não se identifique com esta ou aquela confissão religiosa – postulamos que as praxiologias do saber religioso compreendem: (i) o modo como as religiões promovem o APRENDIZADO de seus adeptos; (ii) o modo como as religiões procedem a PASTORAL dos seus fiéis; e (iii) o modo como as religiões celebram o respectivo CERIMONIAL.

Praxiologias da Religião CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA PROVIDÊNCIA – AMOR DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA HUMANIDADE

TEOLOGIA RESIGNAÇÃO (Humildade do entendimento)

APRENDIZADO

LITURGIA

CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA CONSEQÜ CONSEQÜÊNCIA – SABEDORIA DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NO UNIVERSO

CALAR Revelação

Epifania

Lei

FAZER COMUNICATIVO DA RELIGIÃO

QUERER

SABER

APOSTOLADO VIDA ESPIRITUAL (Pureza da consciência) ASCESE CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA POTESTADE – VOLIÇÃO DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA NATUREZA

CERIMONIAL

AGIR COMUNICATIVO DA RELIGIÃO

Igreja

PASTORAL

Caminho

Tradição MEDITAÇÃO

OUSAR

FÉ RACIONAL (Fortaleza da convicção) ORAÇÃO

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Maior aprofundamento do conceito de praxiologia, como síntese aplicativo-expressiva do impacto dos princípios e arquétipos dos interesses epistemológicos nos campos de estruturação do saber, pode ser encontrado em AYDOS, 2002:152/157. 26

O paradigma da epistemologia de síntese, aqui aplicado ao estudo do Saber Religioso, realça, destarte, desde o entrecruzamento das linhas de força que integram o simbolismo da cruz, uma articulação complexa de conteúdos e conceitos, que pretendem servir de guias e parâmetros ao exame de cada religião em particular e do seu potencial de convergência. O diagrama sintético do Saber sintetiza, na sua inteira abrangência, o conteúdo dessa investigação conceitual.

Abrangência do Saber Religioso CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA PROVIDÊNCIA – AMOR DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NA HUMANIDADE

TEOLOGIA RESIGNAÇÃO (Humildade do entendimento)

APRENDIZADO

LITURGIA

CAMPO DE ATUALIZAÇÃO DA DIVINA CONSEQÜ CONSEQÜÊNCIA – SABEDORIA DE DEUS: O PRINCÍPIO QUE ATUA NO UNIVERSO

CALAR Revelação

Epifania

Lei

FAZER COMUNICATIVO DA RELIGIÃO Religio Vera Sophia Perennis

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SABER

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6. Escôpo da investigação e conclusões preliminares Na seqüência dessa análise, tratar-se-á de desenvolver - sob o prisma da epistemologia de síntese e na perspectiva da aplicação e teste da sua consistência no resgate a ancestralidade do Saber Religioso – uma análise da compatibilidade teórica e da intercomplementaridade com o modelo paradigmático, que eventualmente venham a apresentar os conceitos básicos da Divindade, elaborados por três diferentes Tradições das religiões profundas28. Essa tarefa não resultaria possível se, ao homem questionador, não fosse lícito outorgar-se a licença da investigação intelectual, sobre os arcanos das confissões religiosas, às quais não se encontra vinculado; e, de buscar respostas, na sua própria comu28

A escolha das Tradições religiosas aqui trabalhadas, é preciso advertir, não intenciona preterir quaisquer outras do campo de abrangência dessa operação de resgate conceitual e da consideração que lhes merece a sua dignidade intrínseca - segue, simplesmente, o descortino daqueles conteúdos, que as contingências da vida me tornaram, de alguma forma, imediatamente acessíveis, e que a inquietude intelectual me impôs à consideração em maior profundidade: a filosofia religiosa hindú, a tradição abrâmica (hebraico-cristã-islâmica) e a teogonia de Umbanda. Note-se, não obstante, o caráter abrangente dessa escolha que, de alguma contempla as tradições religiosas predominantes do Oriente e do Ocidente, sem preterir-se, no entanto, os cultos populares de raíz na tradição Afro-brasileira. 27

nidade de crenças e experiências, para os interrogantes que emergem nessa trajetória. Assim também e, por conseqüência, não haveria também sentido no seu percurso, caso não fosse dada ao homem questionador, a licença para, encontrando alhures da sua comunidade originária de crenças, um conteúdo de Saber mais conforme aos pressupostos e expectativas da sua intelecção, viesse a professá-lo em Espírito e Verdade.29 No momento de crise moral e intelectual que vivenciamos, essa licença instigante e necessária, traduz-se no princípio da TOLERÂNCIA, que emula o dever do questionamento à insuficiência dos dogmas que promoveram esse naufrágio; e, cumulativamente, no ideal da CONVERGÊNCIA, que promove a busca dos parâmetros de VERDADE que permitam, pela identificação dos fundamentos válidos, onde quer que se encontrem, a reconstrução necessária do Saber Religioso, ainda que isso implique o afrontamento do anátema tradicional (extra ecclesia non salvatur)30. Contrariamente, postulamos que fora de uma IGREJA, o homem questionador não se posiciona, necessariamente, alheio à REVELAÇÃO ou fora da TRADIÇÃO, cuja UNIDADE ESSENCIAL é a condição possível e, hoje, necessária, para a refundação de uma vida espiritual intensa, compatível com o estado atual da civilização planetária. É possível, pois, que sob o ponto de vista de cada confissão religiosa, os conceitos até aqui desenvolvidos e aqueles que, a partir de agora, serão expostos, correspondam em parte e parcialmente destoem do que a intelecção particular de cada observador considere o seu próprio e reconhecido paradigma do Saber Religioso.

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Essa observação, que pode parecer estranha no regime de liberdade intelectual, que é a herança válida e consistente da Modernidade no limiar Século XXI, não é, entretanto, carente de sentido. Vivenciamos nesse tempo, o esgotamento de dois paradigmas: o da autoridade moral – tradicionalmente um baluarte do Saber religioso – em face da idiotia integrista de uns, que não são capazes de perceber o quanto o seu discurso religioso, formal e substancialmente, perdeu sentido e conseqüência na contemporaneidade; e o da liberdade intelectual – tradicionalmente um baluarte do Saber acadêmico (científico e filosófico) – cujos pressupostos e a própria razão de ser, como parâmetro da OBJETIVIDADE possível do real, falecem diante do relativismocultural, que campeia em todas as esferas da vida acadêmica e faz adeptos, e abre brechas, também, nos paradigmas da institucionalidade democrática. Em reação ao nihilismo resultante – que representa o grande obstáculo epistemológico à liberdade nesta quadra da civilização – mentes inquietas e brilhantes podem ser seduzidas pelo recurso de uma reação frontal, e reverberar contra a ideologia massificante da sociedade amoral, o anátema de todas as inquisições: EXTRA ECCLESIA NON SALVATUR. Essa observação ganha pertinência quando, no ambiente de pluri-religiosidade – num mundo em que convivem pacificamente diferentes confissões religiosas – aquele anátema tende a reduzir, ainda mais, a sua invectividade, para pretender significar que fora da sua comunidade originária de crença o homem questionador não encontraria a salvação. Não se trata, por outro lado, essa colocação do problema da liberdade na contemporaneidade, de uma mera conjetura ou hipótese de trabalho acadêmica. Um dos intelectuais mais brilhantes e polêmicos do Brasil contemporâneo – num texto de igual quilate, que põe a nú, impiedosamente, as vertentes da nossa degradação moral – escorrega nessa ortodoxia e afirma: verbis – “é impossível que uma religião, qualquer que seja, se proponha como superior às outras; mas, pelas mesmas razões ainda (o que já não será tão agradável aos ouvidos de hoje), nenhum indivíduo concreto pode «superar» a religião em que está.” (CARVALHO, dez, 1981). 30

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É desejável que estes pontos de convergência e de divergência sejam esclarecidos. Pois, quando e naquilo que um cristão disser, sobre os conteúdos substanciais refletidos no paradigma epistemológico da tradição religiosa oriental, que isso é cristianismo com nomes diferentes – e vice-versa, com aplicação, também, às outras tradições religiosas – havendo espírito de tolerância neste mútuo desmascaramento31, estaremos fundando, conjunta e participativamente, um patamar sólido de diálogo e reconhecimento inter-religioso. Essa proposta não desconhece, mas afronta, de um lado a desqualificação ínsita de uma tradição religiosa pelo uso que se tem dado ao conceito do sincretismo religioso; de outro lado, o anátema da heresia que, tradicionalmente, atinge aquele que, fora dos degraus da iniciação formalmente reconhecida, segundo os cânones de uma dada instituição religiosa, lhe aporta ao entendimento a gnose da sua própria experiência vivida. Historicamente, e não há como fugir dessa constatação, todas as religiões atuais foram sincretistas no processo da sua fundação – todas herdaram arcanos e mandamentos trabalhados pelas comunidades de crenças de onde se originaram – e reside, aliás, nessa ousadia, o valor integrativo da sua contribuição nos prospectos da Tradição, que informa o conceito amplo do Saber Religioso. De outro lado, se existe uma realidade incontornável, no estado da civilização midiática desta pós-modernidade, é que, o processo de massificação na sociedade contemporânea é bifronte. Assim como nos conduz ao limite da cultura da violência e da sua justificação por todos os sofismas de uma sociedade sem parâmetros de julgamento e verdade, também gera, nas cinzas do seu cotidiano, uma revigorada demanda destes padrões que, também, já não se conforma e delimita aos públicos cativos das diferentes confissões religiosas. A grande mudança, neste setor e neste sentido da pós-modernidade, é que estão, também, abaladas as divisões tradicionais que sempre prevaleceram, entre os iniciados de cada confissão religiosa – a quem se privilegiou historicamente o acesso esotérico ao Saber Religioso e, até mesmo, a possibilidade do seu ‘questionamento’, desenvolvimento e refundação –, e o comum dos mortais – a quem sempre reservaram o catecismo das verdades compartimentadas e delimitadas, e os rituais hipnóticos mais adequados ao consumo em massa do código simplificado e da entrega em boa fé da consciência desperta, à hegemonia eclesiástica de plantão em cada tempo e lugar. O que a mudança dos tempos põe em questão e, no nosso entender, dissolve no cadinho da sociedade de massas, é aquilo que alguns ainda acreditam vigorar no in31

Inspira-nos aqui o sentido cunhado para a sociologia do conhecimento por um dos espíritos mais lúcidos intérpretes da ciência social nascitura na primeira metade do Século XX: verbis - “A totalidade, na acepção que a concebemos, não é uma visão imediata e eternamente válida da realidade, atributo exclusivo de um ôlho divino. Também não é uma visão auto-suficiente e estável. Pelo contrário, uma visão total implica tanto a assimilação como a transcendência das limitações de pontos de vista particulares. Representa o processo contínuo da expansão do conhecimento e tem como objeto, não alcançar uma conclusão eternamente válida, mas estender o mais possível o campo visual.” (MANNHEIM: 1952, P. 98). 29

consciente coletivo da Humanidade: verbis – “o fato, óbvio em si mesmo, de que, para a massa comum dos seres humanos, um caminho de ascese intelectual e de conhecimento está barrado pelo desejo mesmo de «viver» e desfrutar das sensações, que é a ocupação normal e corrente da maioria; e que para estes, portanto, a única via possível é a da fé religiosa, que não requer qualificações intelectuais maiores, mas apenas a boa-vontade, que deve ser o apanágio comum de todos os homens, independentemente dos seus dons intelectuais.”(CARVALHO, dez 1981). Enquanto as Igrejas perderam sua autoridade moral, quando são incapazes de impedir, e muitas vezes sequer de afrontar o genocídio, o drogadicídio, a destruição da natureza, a violência social e o totalitarismo político; e enquanto as demais instituições sociais não conseguem preencher a sua lacuna, de forma a estabelecer parâmetros consequentes e convincentes para uma cultura de respeito, tolerância, convergência e paz. O homem comum, medianamente ilustrado, e mergulhado no cotidiano alucinante de sensações e de obrigações que lhe é dado viver – não por orgulho ou idolatria, mas por absoluta necessidade de auto-defesa espiritual – reprogramou o seu próprio código de Saber Religioso. Adote ou não uma confissão religiosa formal, este cidadão comum agrega na sua vida cotidiana conteúdos e experiências, e na sua consciência da divindade, categorias e conceitos de diversa origem e conseqüência. Pode ser, por exemplo, zen no desjejum, protestante no trabalho, católico à boa mesa, consumista no supermercado, espírita ou umbandista diante da necessidade, maçom para todos os fins de direito, e temperar tudo isso com máximas de Kahlil Gibran e literatura de auto-ajuda, interesse pelo Calendário Maya e consultas esporádicas ao Tarot e aos astros. E o mais paradoxal é que este perfil típico, pode ser atualizado tanto por um temente confesso de Deus Uno, quanto por um agnóstico de carteirinha, na grande massa dos deserdados da confissões religiosas que povoam a face do Planeta. Por maior que seja a repulsa da sua idiosincrasia desafiante, pelos guardiães da Fé estabelecida, o sincretismo de vida que o homem comum expressa diante do sagrado na sociedade midiática, é a grande ousadia da contemporaneidade na linha do conhecimento. Ao contrário de destruir as tradições esotéricas e as suas idiosincrasias eclesiais, essa atitude as afirma; mas ao contrário de submeter-se passivamente, à sua particular e catequética visão do sagrado, o homem comum da sociedade midiática acerca-se proativamente da Árvore do Conhecimento. Sem condições, talvez ou ainda, para beber da sua seiva, colhe das suas folhas e frutos a infusão que lhe permite sorver porções de Saber Religioso, suficientes para continuar existindo na Torre de Babel da contemporaneidade. Sem condições de retorno à ignorância original, de uma fé puramente mimética ou impositiva, essa maioria massiva do cidadão comum postula, pelo seu simples modo de ser, a superação da intolerância dogmática como princípio e do elitismo iniciático como arquétipo da Religião Verdadeira.

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Sua adesão aos parâmetros de uma Verdade decidível, e sua contribuição para a restauração de uma autoridade moral a respaldar a Constituição da Paz, são cruciais para a superação do nihilismo catastrófico que tem ceifado expectativas, projetos e vidas na saga da violência que nos assola. A(s) confissão(ões) religiosa(s) que sobreviverá(rão) aos efeitos deste cataclisma, com capacidade para influir na reconstitucionalização do futuro, será(ão) aquela(s) que conseguir(em) oferecer resposta ao sentido do sagrado, que emerge nessa epifania do cidadão comum do Século XXI. Se este texto, de alguma forma, contribuir nessa direção – ou pelo reconhecimento, ou pela crítica que lhe oferecerem – terá cumprido o seu intento. Gravataí, 27 de fevereiro de 2011. (Revisado em 01/09/2015)

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