Religiões e a influência dos seus dogmas no Direito das Famílias

May 31, 2017 | Autor: Marianna Chaves | Categoria: Direito, Direito de família, Laicismo, Familia, Religião, Laicidade
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ARTIGO

Religiões e a influência dos seus dogmas no Direito das Famílias MARIANNA CHAVES Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Coimbra; Mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa; Secretária de Relações Internacionais do IBDFAM; Advogada.

A relação da Igreja com o Direito remonta a muitos séculos. Já no Em 1857, todas as regras do Direito de Família passaram a constar século X, a Igreja Católica avocou a jurisdição sobre todas as matérias na Consolidação das Leis Civis, concebida por Augusto Teixeira de relacionadas aos sacramentos, especificamente sobre o matrimônio, em Freitas. Em 1890, o Decreto 181, de 24 de Janeiro instaurou no Brasil o Roma. No Brasil, até o ano de 1917, as Ordenações Filipinas regulavam casamento civil, como corolário da instituição da laicidade estatal. A o Direito Civil no Brasil. Todavia, a disciplina do Direito de Família laicização do matrimônio é considerada, ainda hoje, a mais obstinada sofreu algumas modificações trazidas por legislações esparsas. O De- discussão pública já ocorrida no Brasil relativamente à separação entre Igreja e Estado, desencadeando a manifestacreto de 03 de Novembro de 1827 outorgou ção dos líderes políticos daquele tempo que, ao Brasil o Direito matrimonial do Concíem ambos os sentidos, travaram por décadas a lio de Trento em sua plenitude, aprovando fio violentos debates.2 A laicização do matrimônio e legitimando formalmente a jurisdição caA implementação do casamento civil, em é considerada, ainda hoje, nônica, em sede de celebração e dissolução 1890, foi combatida arduamente pela Igreja matrimonial. a mais obstinada discussão Católica, cuja religião era uma imposição pública já ocorrida no Brasil Por ser uma reação da Igreja Católica à do Estado dada a inexistência dos registros relativamente à separação Reforma Protestante, o Concílio de Trento civis, estando as pessoas dependentes do batismo para serem registradas. De igual terminou por ficar conhecido como Concíentre Igreja e Estado maneira, o acesso ao casamento estava lio da Contrarreforma e publicou diversos reservado àqueles que praticassem a religião cânones com o intuito de impulsionar e oficial do Brasil. Anteriormente à aprovação robustecer o catolicismo. O casamento era do casamento civil no Brasil – que só se deu considerado exclusivamente como um sacramento, sendo aplicada a com o surgimento da República – os não católicos estavam impedidos pena de excomunhão a quem negasse esse juízo. Esse cânone foi adode convolar núpcias. Somente em 1863, com o Decreto 3.069, a união tado em Portugal, pelo Decreto de 12 de Novembro de 1564 e pela Lei entre pessoas que professassem outra religião foi autorizada, sendo de 8 de abril de 1569 e, no Brasil, pelo Bispado da Bahia, criado em 28 instituído o casamento de acatólicos no Império. Essa separação dos de janeiro de 1550.1





1 Cfr. QUEIROZ, Olívia Pinto de Oliveira Bayas. “O Direito de Família no Brasil-Império”. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/687/O+Direito+de+Fam%C3%ADlia+no+Brasil-Império Acesso em: 18/04/2015.

2 Cfr. CHAVES, Marianna. “Religião, sexualidade e famílias: dogmas espirituais como fundamento para a não regulamentação da união homoafetiva”, In: Revista IBDFAM: Família e Sucessões, vol. 9, mai./jun., pp. 25-51, 2015, p. 37.

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ARTIGO poderes temporal/espiritual era tão premente que no dia 09/11/1889 foi Para trazer exemplos mais recentes, basta recordar todo o debate apresentado o projeto do casamento civil e em janeiro do ano seguinte social e a odiosidade dos fundamentalistas religiosos à época do jula lei já se encontrava vigor. gamento da ADPF 132 e ADI 4277 pelo Supremo Tribunal Federal, O Código Civil de 1916 era um Diploma tecnicamente bem feito, que terminou por reconhecer as uniões homoafetivas como entidades entretanto já nascera socialmente defasado, com conceitos e juízos an- familiares. Também foi perceptível a luta travada pelos setores consercorados no século anterior, um verdadeiro retrocesso, fundamentado vadores e pela “Bancada da Bíblia” para tentar obstar a aprovação da em prescrições religiosas. Basta-se apontar o silêncio legislativo acerca EC 66/2010 (que instituiu o divórcio direto), de autoria do IBDFAM e das uniões não matrimoniais ou a falta de preocupação com os direitos apresentada pelo também baiano, dep. Sérgio Barradas Carneiro. da filiação havida fora dos laços do casamento.

Assim, vê-se essa invasão da Religião no Legislativo não apenas nos debates anteriores à edificação e aprovação de qualquer legislação, O projeto original de Clóvis Beviláqua, antes da revisão pela comissão, afastava-se de concepções arcaicas. Pôs a mulher em melhor mas na própria presença de parlamentares cuja pauta e bandeira são situação jurídica, igual ao homem nas relações civis, amparou o reco- unicamente a religião. Não são raras as vezes que Deputados ou Senanhecimento da filiação natural e até mesmo da incestuosa e adulterina. dores sobem à tribuna e defendem ou repudiam determinado projeto de Além disso, a mulher não perdia a sua capacidade em razão do casa- lei ou lei com fundamento único e exclusivo em preceitos religiosos ou mento; a ela era permitido ser tutora, prestar caução fidejussória e ser passagens de livros santos. Declarações e citações religiosas não servem apenas para reforçar o papel imagético da Bíblia, mas também dão testemunha. Todavia, a comissão se opôs a tais disposições.3 certos ares de verdade ao discurso do parlamentar,4 em uma tentativa Uma luta hercúlea também foi encarada desesperada de legitimar exposições vazias, pelo senador baiano Nelson Carneiro para a em termos de razão, numa lógica de Estado aprovação da EC 9/77, que instituiu o divórlaico, onde a religião não deve – e não pode – cio no Brasil. Durante os acalorados debates, ditar os rumos de uma nação e certificar atos não foram poucas as comparações da mulher de agentes públicos. Foi perceptível a luta travada divorciada a meretrizes e a consideração do pelos setores conservadores e pela No ordenamento brasileiro, a tolerância divórcio como um genuíno apocalipse famie a proibição de discriminações de qualquer “Bancada da Bíblia” para tentar liar. Obviamente, não faltaram menções à natureza, com base na liberdade, igualdade obstar a aprovação da EC 66/2010 religião tendo, inclusive, um deputado leme dignidade da pessoa humana, são impebrado da “hora da Ave Maria” ao ocupar a rativos da Lei Maior. Além disso, há uma tribuna às 18h. A Igreja Católica imiscuiu-se proteção constitucional da família, em todas o quanto pôde no debate político tendo, incluas suas modalidades, com base no pluralissive, ameaçado de excomunhão os deputados mo familiar e na afetividade. Será que estes divorcistas. mandamentos constitucionais, numa lógica de Estado laico, poderão Desde então, a história se repete. Em um desrespeito sem fim pelo ser desrespeitados sob argumentos religiosos pelos Césares pós-moEstado laico, cada vez que surge um movimento legislativo para regu- dernos dos Poderes Executivo, Judiciário e, mormente, Legislativo? É lamentar uma situação existencial que a Igreja Católica ou as Igrejas óbvio que não! Evangélicas considerem “desviantes” do seu padrão único de família, É necessário vislumbrar a ideia da laicidade estatal em uma lógica tais comunidades de fé se arvoram de fiscais da lei divina e buscam se que é consagrada até mesmo na Bíblia Sagrada: “Dai a César o que é entranhar e influenciar o legislativo com seus dogmas. de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12, 17). Portanto, é preciso Se há liberdade religiosa e de crença, pautada na laicidade e inti- apartar a influência de doutrinas religiosas na edificação ou reforma mamente ligada com a ideia de democracia, essa mesma liberdade não de legislações civis, mormente relacionadas ao Direito das Famílias, pode servir de subterfúgio para influenciar a feitura das leis, de uma sob pena de vivermos em um Estado Clerical, sob o controle de forças maneira que – muitas vezes – busca vilipendiar direitos fundamentais religiosas, e apenas travestido de Estado Laico. de uma boa parcela dos cidadãos.





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MEIRA, Sílvio. Clóvis Beviláqua: Sua vida. Sua obra. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1990, pp. 151-152. 12

Sobre as citações religiosas durante a Constituinte de 1988, cfr. PINHEIRO, Douglas Antônio Rocha. Direito, estado e religião – a Constituinte de 1987/1988 e a (re)construção da identidade religiosa do sujeito constitucional brasileiro. Belo Horizonte: Argumentum, 2008, p. 34.

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