Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul (Volume 4) - Matriz Afro-brasileira

May 24, 2017 | Autor: Gizele Zanotto | Categoria: Religion, História e Cultura Afro-Brasileira
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Descrição do Produto

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Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul (Volume 4)

Matriz afro-brasileira

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Religiões e Religiosidades no Rio Grande do Sul (Volume 4)

Matriz afro-brasileira 1ª. edição Organização:

Mauro Dillmann

São Paulo/ SP – 2016 978-85-98711-16-4 [3]

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Imagem de capa: Tadeu Vilani Arte: Gizele Zanotto Editoração: Gizele Zanotto Revisão técnica: Gizele Zanotto Revisão de textos: Mauro Dillmann

R382

Religiões e religiosidades no Rio Grande do Sul: matriz afrobrasileira / organização: Mauro Dillmann.– São Paulo: ANPUH, 2016. v.4 : il.; 23 cm. (Coleção Memória & Cultura NEMEC/PPGH) ISBN 978-85-98711-16-4 V 4 – Matriz Afro-brasileira 1. História - Religião 2. Religião 3. Religiosidade 4. História Rio Grande do Sul 5. Religiões afro-brasileiras I. Dillmann, Mauro (org.) II. Série. CDU 94:21(816.5)

Ficha catalográfica elaborada por Simone G. Maisonave – CRB 10/1733

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COLEÇÃO NEMEC

Os estudos sobre Memória e Cultura (em suas variadas expressões materiais e imateriais) articulam várias abordagens, problemáticas e propostas de pesquisa desenvolvidas na área das Ciências Humanas. Coadunando perspectivas teóricometodológicas com análises empíricas, suas repercussões incidem no perceber e compreender como as relações sociais e históricas se articulam, dinamizam, desenvolvem e se cristalizam na perspectiva de seus agentes e da sociedade ampla que integram. Neste sentido, as repercussões das pesquisas excedem o espectro específico das discussões historiográficas para abranger, também, análises sociológicas, filosóficas, institucionais, do cotidiano, das visões de mundo e das ações decorrentes de tais compreensões. A coleção é proposta pelo Núcleo de Estudos de Memória e Cultura (NEMEC), vinculado ao Programa de PósGraduação em História da Universidade de Passo Fundo (PPGH-UPF). Coordenação: João Carlos Tedesco, Gizele Zanotto e Gerson Luís Trombetta Conselho Editorial: Arlene Anelia Renk, Bruno Antonio Picoli, Cândido Moreira Rodrigues, Christiane Jalles de Paula, Claudia Mariza Mattos Brandão, Gerson Luís Trombetta, Gizele Zanotto, Ironita Policarpo Machado, Jacqueline Ahlert, João Carlos Tedesco, José Zanca, Marlise Regina Meyrer, Marta Rosa Borin, Patrícia Carla de Melo Martins, Roberto Di Stefano, Rodrigo Coppe Caldeira, Teresa Maria Malatian, entre outros.

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PUBLICAÇÕES DO GTHRR/RS 1) História das Religiões e Religiosidades – Volume 1. Org. Gizele Zanotto. Passo Fundo: PPGH/UPF, 2012 Disponível para aquisição impresso https://clubedeautores.com.br

ou

ebook

em

2) História das Religiões e Religiosidades: espiritismo e religiões

mediúnicas – Volume 2. Orgs. Beatriz Teixeira Weber e Gizele Zanotto. São Paulo: ANPUH, 2013. Disponível para aquisição impresso ou ebook em https://clubedeautores.com.br

3)

História das Religiões e Religiosidades: Manifestações da Religiosidade Indígena – Volume 3. Org. Eliane Cristina Deckmann Fleck, 2014. Disponível para aquisição impresso ou ebook em https://clubedeautores.com.br

4)

História das Religiões e Religiosidades: Matriz afro-brasileira – Volume 4. Org. Mauro Dillmann, 2016. Disponível para aquisição impresso ou ebook em https://clubedeautores.com.br

5)

Em produção: História das Religiões e Religiosidades: As religiões protestantes no Rio Grande do Sul: história, fontes e metodologia de pesquisa – Volume 5. Orgs. Marta Rosa Borin e Vitor Biasoli

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GTHRR/RS O Grupo de Trabalho de História das Religiões e das Religiosidades – Núcleo Rio Grande do Sul, foi constituído em 2011. A partir de então vem progressivamente congregando pesquisadores e estudantes que se dedicam à análise e compreensão das tradições religiosas e culturais no estado.

GESTÕES DO GTHRR/RS 2011/2012 Presidente: Gizele Zanotto (UPF) Vice-presidente: Marta Rosa Borin (UFSM) 1º. Secretário: Gabriel de Paula Brasil (FAPA) 2º. Secretário: Anna Paula Bonnenberg dos Santos (UNISINOS) 2013/2014 Presidente: Gizele Zanotto (UPF) Vice-presidente: Marta Rosa Borin (UFSM) 1º. Secretário: Anna Paula Bonnenberg dos Santos (UNISINOS) 2º. Secretário: Vinícius Marcelo Silva (FAPA) Divulgação: Gabriel de Paula Brasil (FAPA) 2014/2016 Presidente: Mauro Dillmann (FURG) Vice-presidente: Gizele Zanotto (UPF) 1º. Secretário: Vitor Biasoli (UFSM) 2º. Secretário: Eliane D. Fleck (UNISINOS)

Participe do GTHRR/RS: 

 Blog do GTHRR/RS: http://gthrr-rs.blogspot.com.br/ Grupo de discussão: https://groups.google.com/forum/?hl=ptBR&fromgroups#!forum/gthrr-rs

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SUMÁRIO

Apresentação Mauro Dillmann

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“Praticando a magia e seus sortilégios”: feitiçaria e curandeirismo nos primórdios da República Nikelen Witter e Paulo Roberto Staudt Moreira Pai Raiol, o feiticeiro. A construção do preconceito religioso no conto de Joaquim Manuel de Macedo Marília Conforto Religiões afro-brasileiras em Pelotas: breves notas sobre a organização das entidades representativas Isabel Soares Campos e Rosane Aparecida Rubert Identidades, mediação institucional e modalidades de ação política no contexto das religiões afro-gaúchas Rodrigo Marques Leistner O Batuque gaúcho: Notas sobre a história das religiões afro-brasileiras no extremo sul do Brasil Marcelo Tadvald

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Religiosidades em Comunidades Quilombolas: algumas especulações Rosane Aparecida Rubert “Yomoja dele olódo, bàbá oròmi o!”: sensibilidades religiosas afro-brasileiras e representações patrimoniais das festas de Iemanjá em Pelotas e Rio Grande, RS Mauro Dillmann e Carmem G. Burgert Schiavon Borel do Xangô e o etnomusicólogo aprendiz de tamboreiro de nação Reginaldo Gil Braga

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Apresentação O historiador italiano Carlo Ginzburg 1 alertou que para os cristãos europeus de fins da Idade Média e início do período moderno, a começar pelos escritos deixados por Santo Agostinho, renovavam-se acusações de antropofagia ritual contra “seitas heréticas espalhadas pela África”. Associadas aos fenômenos de possessão – e não de êxtase – facilmente encontrados na África, era sobre tal continente e seus habitantes que recaíam todas as acusações possíveis que, no imaginário europeu, significavam pactos demoníacos e profanações dos ritos cristãos. Tais concepções, com algumas variações, chegaram com os portugueses ao território luso da América no século XVI e seriam perpetuadas, de uma forma ou outra, nos séculos seguintes. No Brasil, as crenças e as práticas rituais trazidas por africanos, reconstituídas e disseminadas neste território por diversos setores sociais, foram, do período colonial ao século XX, veementemente perseguidas e combatidas pelos grupos dominantes. É com tal constatação que o historiador João José Reis2 narrou a história de vida de um sacerdote africano, na Bahia do século XIX, chamado Domingos Pereira Sodré, indivíduo cuja trajetória foi desenrolada como parte de um contexto bastante marcado pelo embate cultural entre negros escravos, feiticeiros, curandeiros, chefes de casas de culto, de um lado, e senhores, policiais, autoridades políticas, de outro. É a vida deste líder religioso, o qual dominava a ordem dos sortilégios e feitiços, que serve como guia para Reis “narrar a história do candomblé na Bahia de seu tempo”. Seja através de exemplos concretos como a vida do referido sacerdote Sodré ou por caminhos imaginários, GINZBURG, Carlo. História noturna, decifrando o Sabá. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 95, 267. 2 REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 19, 318. 1

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como demonstrou Marlyse Meyer3 ao investigar “Maria Padilha” e sua “quadrilha”, um nome que “aparecia nos conjuros de feiticeiras portuguesas degredadas no Recife no século XVIII”, as práticas religiosas marcadas por batucadas e possessões, especialmente aquelas associadas aos africanos, foram vítimas de repressão, perseguição e punição, cujas manifestações sociais de intolerâncias chegam à contemporaneidade. Estudos sobre religiões e práticas de religiosidade de matriz africana – Candomblé, Batuque, Umbanda, entre outros – ainda hoje são importantes bases que possibilitam a compreensão e o conhecimento social capazes de romper com mistificações, preconceitos e intransigências religiosas existentes e constatadas atualmente na sociedade brasileira. Além disso, pesquisas sobre tais manifestações de religiosidade podem auxiliar a compreender os motivos pelos quais o Rio Grande do Sul tem se destacado no cenário nacional contemporâneo no que se refere à devoção aos cultos afro-brasileiros. Desde o Censo de 2000 é expressivo o número de sujeitos que se autodenominam como seguidores de crenças religiosas de matriz africana que, no sul do Brasil, possuem elementos peculiares que as distinguem de outras práticas religiosas africanistas desenvolvidas no país. Embora expressões de cultura religiosa afro-brasileira tenham sido objeto de estudos da historiografia há bastante tempo, no Rio Grande do Sul poucos estudos históricos significativos sobre religiões de matriz africana propriamente ditas foram desenvolvidos até os dias atuais. As religiosidades afrobrasileiras aparecem, em geral, como elementos subsidiários de análises, como temas tangenciais para o entendimento de questões muito mais voltadas à cultura popular, ao catolicismo popular, ao cotidiano escravo, entre outros, do que como objeto de estudo em si. Nosso objetivo, neste quarto volume da Coleção do Grupo de Trabalho História das Religiões e Religiosidades da Anpuh-RS, foi privilegiar estudos cujo foco fossem essencialmente as vivências e experiências religiosas de legado africano, em diferentes temporalidades. Nesse sentido, ou seja, problematizando aspectos da vida religiosa afrobrasileira, os textos reunidos nesta coletânea abordam tanto elementos institucionais, quanto aspectos práticos das experiências religiosas em 3

MEYER, Marlyse. Caminhos do Imaginário no Brasil. São Paulo: Edusp, 2001, p. 227. [ 12 ]

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determinadas situações históricas, que vão do século XIX à contemporaneidade, em realidades locais similares ou distintas, mas mantendo o Rio Grande do Sul como recorte espacial de pesquisa. Reuniu-se textos de diferentes áreas do conhecimento, não apenas pela ausência de trabalhos, no e sobre o Rio Grande do Sul, feitos por historiadores a respeito das vivências religiosas afro-brasileiras – ou afro-gaúchas, como se tem preferido dizer para ressaltar a especificidade regional –, mas também por se acreditar no importante diálogo que a História deve manter com a Antropologia, a Sociologia e até mesmo com a Música, principalmente quando o interesse está centrado no campo religioso de matriz africana. São estas áreas, com seus peculiares métodos de pesquisa, importantes referências para o refinamento das abordagens históricas, feitas por historiadores, no campo das religiosidades e das crenças. Com o tema Culturas religiosas afro-brasileiras no Rio Grande do Sul, os artigos deste livro dedicam-se notadamente a temas relacionados ao Batuque e à Umbanda, antes ditas, à “magia” e à “feitiçaria”. A diversidade teóricometodológica destes estudos reflete não apenas as diferentes áreas do conhecimento, mas também as distintas opções conceituais para a análise do fenômeno religioso. A relativa heterogeneidade das contribuições – pelas metodologias e abordagens – devem ser encaradas como tentativa renovada e plural de se pensar as religiões afro, principalmente pelas problematizações e fontes inéditas que muitos revelam. Os capítulos, em seus conteúdos, demonstram as relações entre as religiões, as religiosidades, o social e o político. Ou seja, tratam, em diversos espaços e tempos, de considerar como as religiões de matriz africana são praticadas, como são significadas socialmente por seus adeptos e pelos leigos e também como se produzem seus possíveis efeitos políticos. Os textos aqui reunidos são fundamentais não apenas para o refinamento, mas também para a construção de novos conhecimentos acerca da história das religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul. A referida ausência ou precariedade de estudos históricos sobre religiosidades afro-brasileiras desenvolvidas no e sobre o Rio Grande do Sul pode ser atribuída, em parte, à carência de fontes escritas que revelem tais particularidades destas experiências espirituais do passado. [ 13 ]

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O campo privilegiado de estudo das religiões afro-brasileiras no Rio Grande do Sul tem sido a Antropologia e, nesse sentido, destacam-se – para citar apenas livros publicados, desconsiderando artigos e trabalhos acadêmicos, que nos últimos anos cresceram significativamente – o pesquisador Norton Corrêa com a autoria de O Batuque do Rio Grande do Sul. Antropologia de uma religião afro-riograndense (1992) e o pesquisador Ari Pedro Oro, com a organização da obra As religiões afro-brasileiras do Rio Grande do Sul (1994) e a autoria de Axe Mercosul. As religiões afro-brasileiras nos países do Prata (1999). Vale ressaltar, entretanto, que a historiografia gaúcha teve a contribuição de Dante de Laytano, que publicou, há algumas décadas, diversos artigos e alguns livros sobre essa temática, como A Igreja e os orixás (1960), embora sua análise tenha sido, basicamente, conduzida pelo viés folclórico da religiosidade. Mais recentemente, temos a publicação do antropólogo José Carlos Gomes dos Anjos intitulada Território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira (2006) e do musicólogo Reginaldo Gil Braga, com os livros Batuque Jêje-Ijexá em Porto Alegre (1998) e Tamboreiros de Nação. Música e modernidade religiosa no extremo sul do Brasil (2013). A fotógrafa Mirian Fichtner reuniu 153 imagens autorais de ritos e manifestações religiosas do Batuque gaúcho, da Umbanda e da Quimbanda em uma belíssima obra, Cavalo de Santo: religiões afro-gaúchas (2010). Sem considerar, portanto, os trabalhos apologéticos e laudatórios, são absolutamente escassos os trabalhos historiográficos sobre as religiões afro-brasileiras e seria equivocado desconsiderar a contribuição de outras áreas humanas e sociais. Este volume tem como objetivo colaborar na construção desse campo de estudos na historiografia sul-rio-grandense e tem como desafio compreender alguns dos múltiplos aspectos que se apresentam quando se busca estudar a vida religiosa do universo afro-brasileiro, tomando os devidos cuidados e distâncias em relação a ideologias e proselitismos. Sem a pretensão de apresentar-se o “tudo” e o “todo” a respeito da história do importante tema aqui tratado, buscase algumas renovadas problematizações que revelam plurais interpretações possíveis, de modo que, espera-se, sejam úteis para futuras pesquisas no âmbito da historiografia. Os textos desta obra, muito mais do que contribuírem para o melhor conhecimento das religiões de matriz africana e suas manifestações de religiosidade, indicam novas abordagens e possibilidades de análise que poderão, [ 14 ]

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quem sabe, ser desenvolvidos por outros pesquisadores interessados em identificar possíveis aspectos de transformações ou permanências nas práticas e saberes religiosos trazidas pelos negros há, pelo menos, dois séculos. A ordenação dos textos segue, por opção, um marco cronológico, abrigando, entretanto, e quando possível, aqueles cujas temáticas se aproximam. De modo geral, com os estudos contidos neste livro, pretende-se contribuir para a compreensão da História das religiões e religiosidades afro-brasileiras no Rio Grande do Sul. A historiadora Nikelen Witter e o historiador Paulo Roberto Staudt Moreira, no texto “Praticando a magia e seus sortilégios”: feitiçaria e curandeirismo nos primórdios da República, analisam práticas de “feitiço” e “cura” a partir do caso de um negro curandeiro-feiticeiro chamado Sebastião Gonçalves de Souza, morador da região de Soledade/RS entre o final do século XIX e início do XX, período em que foi acusado criminalmente de praticar magia e sortilégios, principalmente por envolver, em suas práticas terapêuticas, remédios à base de arruda, alho e guiné. Tomando por base um documento judicial como principal fonte, mas também jornais da época, os autores analisaram crenças sobre cura, discursos racializantes e repressores de práticas mágico-religiosas e terapêuticas afrobrasileiras, embora as acusações sobre o negro Sebastião também fossem motivadas por disputas políticas, clientelismos e estratégias de criminalização baseadas em noções de raça. Reprimir os curandeiros, mostram os autores, era uma manifestação tanto de medo por parte da elite branca, quanto de tentativa de disciplinarização das condutas, num período em que a crença social e comunitária na competência dos curandeiros era bastante difundida. A historiadora Marília Conforto, em Pai Raiol, o feiticeiro. A construção do preconceito religioso no conto de Joaquim Manuel de Macedo, analisa os preconceitos em relação às religiões africanas presentes em um conto do século XIX, do escritor brasileiro Joaquim Manuel de Macedo, especialmente, a formação de estereótipo do escravo africano como feiticeiro. No conto Pai Raiol, o feiticeiro, o principal objetivo de Macedo era tornar clara a toda sociedade a torpeza da escravidão e sua má influência – e perigo – à família senhorial brasileira; considerava que a falta de moralidade dos negros cativos e o uso de seus ‘bárbaros saberes’, seus feitiços, destruiriam as famílias. Os venenos e a feitiçaria de Pai Raiol seriam realizados em casas onde se praticavam os cultos (denominadas de Candombes), a seu ver, [ 15 ]

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“bárbaros”, e onde eram ingeridas “bebidas estranhas” ao som de tambores. A autora destaca que o pano de fundo da trama era demonstrar a religiosidade africana, acusada de charlatanismo, como um grande perigo para sociedade senhorial cristã. Mas ao “feitiço” recorriam livres e escravos, procurando conseguir favores e curas, pois, como demonstra a autora, “o escravo africano é o rei do feitiço”. As antropólogas Rosane Rubert e Isabel Campos analisam, no texto Religiões afro-brasileiras em Pelotas: breves notas sobre a organização das entidades representativas, a configuração do campo de organização umbandista em Pelotas, Rio Grande do Sul, na década de 1970, a partir da localização de uma fonte primária inédita: um livro de atas da então associação representativa dos terreiros de umbanda pelotense daquela época, a Diretoria da União de Umbanda da Princesa do Sul. As autoras mostram as estratégias e os mecanismos de atuação social e religiosa das entidades representativas não apenas para garantir certa unificação das práticas religiosas umbandistas, mas também para – a partir dos seus contatos com políticos e polícias locais, assim como dos seus empenhos em acomodar-se às moralidades e atividades das religiosidades cristãs hegemônicas – garantir a legitimidade e reconhecimento de suas expressões religiosas, em um contexto fortemente marcado pela criminalização, discriminação e perseguição. No entanto, as autoras reconhecem a tensão existente entre a unificação idealizada da religião e a lógica segmentária, inerente a esse campo religioso, principalmente, por exemplo, pelo fato de muitos terreiros pelotenses, atualmente, não se sentirem representados e não reconhecerem legitimidade do presidente da Federação Sul-Riograndense de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros. O antropólogo Rodrigo Leistner analisa modelos de associativismo e de organização político-institucional das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul contemporâneo, notadamente na região metropolitana de Porto Alegre. No seu texto, intitulado Identidades, mediação institucional e modalidades de ação política no contexto das religiões afro-gaúchas, o autor observou 11 entidades federativas de religiões de matriz africana, consultando estatutos e atas de fundações e realizando entrevistas com os participantes destas organizações, com o propósito de perceber os modelos associativos, a institucionalização das atividades de representação, as propostas de ação política e as construções identitárias. O autor constata que, as muitas associações africanistas gaúchas, não conseguiram, até [ 16 ]

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então, sucesso no trabalho de unificação diretiva e teológica em função do poder personificado que adquire o mandatário do templo (pai ou mãe de santo), não habituado e não disponível a atender determinações federativas. Além disso, tais coletividades são marcadas por “extrema personificação”, ficando os cargos diretivos ocupados de modo vitalício, embora estatutos destaquem necessidade de eleições periódicas. Ocorre, assim, uma burocratização das práticas religiosas (emissão de certificados, de “autorizações”, “carteiras”) – mediante pagamento de taxas ou anuidades – visando a garantir legitimidade social das mesmas. O antropólogo Marcelo Tadvald, em seu texto, O Batuque gaúcho: Notas sobre a história das religiões afro-brasileiras no extremo sul do Brasil, analisa aspectos históricos do Batuque gaúcho, tomando como referência a capital do estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, considerando a circulação dessa religião afrobrasileira para o exterior, como o Uruguai e a Argentina. Tadvald analisou aspectos particulares a respeito das dinâmicas de estabelecimento territorial e simbólico e de distribuição dessas comunidades religiosas desde o sul do país, com suas diferentes “nações”. Para tanto, valeu-se de fontes diversas como relatos coletados em suas experiências etnográficas e informações disponíveis em sítios virtuais e em dados oficiais a respeito do Batuque no Rio Grande do Sul. A antropóloga Rosane Rubert, no seu texto intitulado Religiosidades em Comunidades Quilombolas: algumas especulações, busca analisar religiosidades em comunidades quilombolas, estabelecendo conexões entre práticas religiosas do dito catolicismo popular com repertórios rituais e cosmológicos africanos da matriz linguístico-cultural banto. A autora parte do princípio de que existe um relativo ocultamento da matriz africana na constituição do que se convencionou denominar de “catolicismo popular” e se debruça sobre práticas como o culto aos santos, o batismo, os benzimentos e o culto aos mortos, preocupada em compreendê-los a partir de uma cosmologia de matriz africana e não, no sentido de negar o catolicismo ou de evocar a herança ancestral africana. Sua análise, com interessante descrição metodológica, está pautada em dados etnográficos de três comunidades quilombolas, estudadas e analisadas entre 2011 e 2015: Fazenda Cachoeira (Piratini), Maçambique (Canguçu) e Monjolo (São Lourenço do Sul). As práticas analisadas por Rubert, num exercício interpretativo que chama de especulativo, foram reiteradas pela memória dos grupos em suas próprias [ 17 ]

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narrativas, recriando experiências e suas formas de pensar a si mesmo enquanto coletividade detentora de referências afro. O historiador Mauro Dillmann e a historiadora Carmem Schiavon, no texto “Yomoja dele olódo, bàbá oròmi o!”: sensibilidades religiosas afro-brasileiras e representações patrimoniais das festas de Iemanjá em Pelotas e Rio Grande, RS, dedicam-se a identificar e analisar determinados aspectos das sensibilidades religiosas afrobrasileiras, notadamente das festas de Iemanjá nas cidades de Pelotas e Rio Grande, no litoral sul do Rio Grande do Sul, que se configuram como formas de representações patrimoniais. A partir da observação participante das práticas de celebrações festivas e devocionais contemporâneas, de entrevistas com determinados segmentos religiosos e de registros visuais fotográficos, apresentam reflexões sobre estas experiências religiosas de matriz africana, bem como seus possíveis sentidos e significados enquanto referências culturais e representações patrimoniais para específicos grupos sociais que partilham destas comemorações nestas cidades gaúchas. Finalizando nossa coletânea está o texto do etnomusicólogo Reginaldo Gil Braga intitulado Borel do Xangô e o etnomusicólogo aprendiz de tamboreiro de nação, no qual relata sua pesquisa sobre tamboreiros e toque de tambor no Batuque gaúcho a partir da sua “participação ativa” para exercitar o olhar “de dentro” e realizar sua etnografia musical. O autor traz sua própria experiência como aprendiz de tamboreiro de nação realizada com o “mestre” Borel do Xangô, entre 1999 e 2001, para refletir sobre autoridade do pesquisador, representação etnográfica e processos sociais pertinentes à aquisição da tradição religiosa e musical vivenciados pelos tamboreiros atuantes e reconhecidos no cenário batuqueiro local. O autor demonstra que tais processos de aquisição musical dos tamboreiros modificaram-se ao longo do tempo: se no passado, as experiências musicais eram adquiridas através da exposição direta aos contextos rituais, nos últimos trinta anos, os músicos têm aprendido a partir da orientação sistemática de tamboreiros mais experientes. Investigações sobre religiões e religiosidades afro-brasileiras no Rio Grande do Sul, escritas sob a perspectiva histórica, ainda estão para serem realizadas. De todo modo, os artigos reunidos nesta coletânea podem ser considerados boas demonstrações de como pesquisas acadêmicas estão contribuindo para a construção e consolidação de um conhecimento histórico, [ 18 ]

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cujos resultados são importantes para novas compreensões das religiosidades afro nas Ciências Sociais e Humanas. Do mesmo modo, pode, de forma relativa, contribuir socialmente, na medida em que o acesso a este conhecimento minimiza o preconceito e colabora para o desenvolvimento de posturas sociais mais respeitosas diante das diferenças religiosas, que são culturais e históricas no nosso Estado. Os textos desta obra lançam luz sobre diversos aspectos das religiosidades afro-gaúchas que, no passado ou no presente, sofreram ou sofrem, intransigências de variadas ordens. Todavia, é sobre aspectos genéricos e peculiares destas expressões religiosas que cada vez mais se demanda investigação, compreensão e conhecimento. Este livro é uma possibilidade, entre tantas possíveis, de compreensão das religiões e religiosidades afro no sul do Brasil. Gostaria de agradecer à Profa. Dra. Gizele Zanotto pela competente organização da Coleção, da qual se integra o presente volume, vinculada ao Núcleo de Estudos de Memória e Cultura (NEMEC), do Programa de PósGraduação em História da Universidade de Passo Fundo, e também pelo eficiente trabalho de editoração do livro. Agradeço ainda a todos/as os/as integrantes do Grupo de Trabalho História das Religiões e Religiosidades da Anpuh-RS e a todos/as pesquisadores/as que contribuíram com seus textos inéditos. Mauro Dillmann Coordenador do GT História das Religiões e Religiosidades, ANPUH-RS (2014-2016)

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“Praticando a magia e seus sortilégios”: feitiçaria e curandeirismo nos primórdios da República Nikelen Witter1 Paulo Roberto Staudt Moreira2 Em julho de 1902, o Intendente Luiz Gonzaga de Azevedo, do município de Vila Rica, localizado na região central do Rio Grande do Sul, recebeu reclamações sobre as atuações do preto Sebastião Gonçalves de Souza e mandou que fosse preso e conduzido a sua presença. 3 A denúncia era de que aquele preto praticava "a magia e seus sortilégios, inculcando cura de moléstias com o fim de fascinar e subjugar a opinião pública, o que já havia conseguido em grande parte, por que já um regular número de fanáticos o cercavam". Devidamente convencido da culpabilidade do tal preto curandeirofeiticeiro, o Intendente encaminhou-o ao Delegado de Polícia, Major Horácio Manoel de Mello, junto com quatro breves e 3 vidros de sua propriedade. Os vidros continham insetos e cabelos que constavam terem sido extraídos das mulheres tratadas por Sebastião. Um dos vidros, porém, conteria a própria Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Leciona no Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Contato: [email protected] 2 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bolsista de Produtividade CNPq. Contato: [email protected] 3APERS – Juízo Distrital da Vila Rica, Auto Crime 1057, Autor: Justiça, Réu: Sebastião Gonçalves de Souza. 1

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feiticeira que flagelava a população do 5º distrito, devidamente neutralizada, segundo afirmavam os moradores, pela ação do tal médico-curandeiro.4 O Major Delegado de Polícia concordou com os encaminhamentos feitos pelo Intendente e pediu que Sebastião fosse penalizado de acordo com o artigo 157 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, aprovada em 24 de fevereiro de 1891, que determinava: Capitulo III - Dos Crimes Contra a Saúde Pública: Art. 157. Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilegios, usar de talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor, inculcar cura de molestiascuraveis ou incuraveis, emfim, para fascinar e subjugar a credulidade publica: Penas - de prisão cellular por um a seis mezes e multa de 100$ a 500$000. § 1º Si por influencia, ou em consequencia de qualquer destes meios, resultar ao paciente privação, ou alteração temporaria ou permanente, das faculdades psychicas: Penas - de prisão cellular por um a seis annos e multa de 200$ a 500$000. § 2º Em igual pena, e mais na de privação do exercicio da profissão por tempo igual ao da condemnação, incorrerá o medico que directamente praticar qualquer dos actos acima referidos, ou assumir a responsabilidade delles. (AHRS Fundo Legislação, nº 176) Preso quando trabalhava em sua lavoura, no mês de julho de 1902, Sebastião foi condenado quatro meses após (10 de novembro) a um ano de prisão e multa de duzentos mil réis. O Juiz Antonio José de Moraes Júnior determinou que o réu cumprisse a pena na Casa de Correção da Capital do estado. Podemos considerar o curandeiro-feiticeiro Sebastião Gonçalves de Souza como um daqueles homens e mulheres infames, estudados por Michel Foucault (1992, p. 180-181), personagens obscuros não ligados a qualquer tipo de glória – nascimento, fortuna, santidade, heroísmo ou genialidade – "que pertencessem a A ideia de que as feiticeiras podiam metamorfosear-se em animais estava cristalizada já na concepção de feitiçaria vinda da Europa, mas era também corrente (e ainda é) nas crenças de várias regiões da África. Sobre o processo de constituição da crença na metamorfose ver Ginzburg, 2012. 4

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essas milhares de existências destinadas a não deixar rastros". Estes personagens populares tornam-se palpáveis para a pesquisa histórica graças ao seu encontro com o poder: "sin este choque ninguna palabra sin duda habría permanecido para recordarnos su fugaz trayectoria". (FARBERMAN, 2005, p. 111). Tomando o documento judiciário como fonte principal, pretendemos através de uma análise de caso, captar algumas crenças compartilhadas sobre cura, e perceber o fortalecimento de um discurso racializante, que intentava higienizar culturalmente a sociedade brasileira através da repressão de práticas mágico-religiosas e terapêuticas não-brancas. Ou seja, "estamos ingresando en el mundo de las prácticas mágicas desde una ventana muy peculiar, que es el proceso judicial". (FARBERMAN, 2005, p. 111)  O município de Vila Rica, palco do enredo judiciário que condenou o preto Sebastião, foi elevado à categoria de vila pelo ato nº 607, de 14.07.1891, desmembrado de São Martinho. Em 1904, o nome do município passa a ser Júlio de Castilhos, uma homenagem a um de seus filhos mais diletos, prócer republicano, falecido no ano anterior. Já o curandeiro-feiticeiro Sebastião, morava no Rincão dos Padilhas, 5º distrito de Soledade, município vizinho a Vila Rica, há cerca de 10 anos. Em seu interrogatório, Sebastião declarava ter 30 anos de idade, casado, ser natural deste estado e ganhar a vida como lavrador. Soledade era Capela Curada desde 1846 e foi elevada à freguesia em 1857 (6º distrito de Cruz Alta), virando vila em 1875 e comarca em 1880 (extinta em 1892 e restabelecida em 1926). O Rincão dos Padilhas recebeu o nome de um dos primeiros fazendeiros ali instalados, chamado João Gonçalves Padilha, e depois a região recebeu o nome de Pinhal Grande (que em 1929 tornou-se distrito de Julio de Castilhos). (FORTES; WAGNER, 1963, p. 274) Segundo a historiadora argentina Judith Farberman (2005, p. 121) os pleitos que envolvem feitiçaria, tem sempre um caráter doméstico, começando por maledicências da vizinhança do acusado: "Son procesos en los cuales lo privado y lo público se confunden por completo o, más precisamente, en los que el proceso público es la culminación de una investigación privada preexistente". [ 23 ]

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Na verdade, foi do Major Napoleão Moreira Machado, subIntendente do 5º distrito, de quem partiu inicialmente a denúncia das condenadas proezas de Sebastião e quem efetuou a captura do delinquente e se precaveu contra os "propósitos hostis sustentados pelas lastimáveis idólatras do feiticeiro médico!". Note-se que o juiz descreve seguidoras, dando a entender que o público de Sebastião era composto, em grande parte, de mulheres. Da concordância entre o subIntendente do 5º distrito e do Intendente de Vila Rica é que surgiu o processo que ora usamos como base de nossas investigações. Como testemunhas são arrolados, contra o preto Sebastião, os seguintes cidadãos: Tenente Coronel Antonio Ramos Barroso, Major Napoleão Moreira Machado, Joaquim Barcelos da Rocha, Crescêncio Ferraz, Jose Pedroso Coccaro, Pedro Estrela de Villeroy, Antonio Pereira dos Santos, Capitão Appolinario Torres e Abilio Pereira dos Santos. Das cinco testemunhas apresentadas pela acusação e que efetivamente foram interrogadas, quatro diziam-se empregados públicos: Abilio Pereira Santos (26 anos, morador na vila); Crescêncio Ferraz (57 anos, casado, morador nesta vila), Napoleão Moreira Machado (28 anos, empregado público, casado, reside no 5º distrito), Pedro Estrela de Villeroy (39 anos, empregado público, casado, natural deste Estado). Apenas o criador Antonio Ramos Barroso destoava desta identidade socioprofissional, que na época equivalia (como verificaremos adiante) a uma comum postura político-partidária. Três das testemunhas moravam na sede da Vila Rica, sendo apenas dois, Antonio Ramos Barroso e Napoleão Moreira Machado, "residentes nas proximidades do sítio onde o réu Sebastião efetuava as suas condenadas proezas". Neste sentido, percebendo que as denúncias partiram de dois vizinhos poderosos de Sebastião, concordamos em parte com Farberman quando ela afirma que "la opinión colectiva es decisiva en la construcción de la hechicera" (2005, p. 122). O raciocínio está certo em parte, mas parece considerar a opinião coletiva excessivamente homogênea e unânime. Evidentemente que os clientes de Sebastião não concordavam com a perseguição por ele sofrida, tanto que ameaçaram ir atrás de seus captores e libertar o curandeiro, quando de sua retirada do Rincão dos Padilhas em direção a sede do município, em Vila Rica. Um mês antes da prisão do feiticeiro-curandeiro Sebastião, Vila Rica parou para assistir uma série de manifestações políticas, nas quais encontramos [ 24 ]

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os mesmos personagens que o satanizaram trinta dias depois. Usando notícias do jornal republicano A Convenção,5 os jornalistas de A Federação6 descreveram enfaticamente as comemorações cívicas ocorridas por ocasião da comemoração do dia 29 de junho, data da morte do Marechal Floriano Peixoto O passamento do "imortal consolidador do regime republicano" foi marcada com uma "modesta, mas imponente glorificação" à sua memória. As festividades foram organizadas pelo bizarro Club Julio de Castilhos, presidido pelo Intendente Luiz Gonzaga de Azevedo. Às 18 horas ocorreu uma procissão, que trazia no centro um retrato do Marechal, conduzido por algumas senhoritas. O miasma da guerra civil parecia ainda contaminar o ambiente municipal, gerando um civismo impregnado de belicismo, como se pode ver na descrição do andor que centralizava as atenções na procissão. 7 Andor com o retrato do Marechal, coberto de fazenda verde, ornado de topes de fita preta, uma fina placa das armas do Rio Grande, salientando-se na face da frente a inscrição em letras d'ouro: Os republicanos que não se descuidem e na face do fundo: À bala!8 Este andor, verdadeiro libelo ao antagonismo político, era conduzido pelos maiorais do civismo republicano local, os quais foram também personagens importantes do processo montado contra o feiticeiro/curandeiro Sebastião. Eram eles: o coronel Luiz Gonzaga de Azevedo, Intendente e presidente do Club Julio de Castilhos, major Pantaleão Pinto de Souza, juiz distrital, major Horário Manoel de Melo, delegado de polícia e o tenente-coronel Severo Correia de Barros. O Capitão Apolinário Torres fazia parte da guarda de honra; Pedro de Villeroy A Convenção era um jornal editado na cidade de Vila Rica, pelos republicanos locais, criado em 18.08.1901 e que teria durado até 1906. 6 O jornal A Federação era o órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense, criado em 1884 e editado na capital do Estado, Porto Alegre. Ver: FRANCO, 2000; HOHLFELDT,2006; PINTO, 1986; RÜDIGER, 1995. 7 Entre os anos de 1893 e 1895 o Rio Grande do Sul esteve envolvido em uma sangrenta guerra civil, entre duas facções políticas, conhecidas como maragatos (representados pelo Partido Federalista) e picapaus (ligados ao Partido Republicano Rio-Grandense). 8 Jornal A Federação: sexta-feira, 11.07.1902, nº 160, ano XIX, p. 2. 5

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estava lá também, representando a redação do jornal A Convenção; e Antonio Pereira dos Santos compareceu como diretor do mesmo jornal. 9 Aliás, anexo ao processo de 1902, encontramos uma página do jornal A Convenção que traz um artigo assinado por Pica-Pau (alcunha adotada pelos legalistas republicanos durante a guerra civil de 1893/1895) e intitulado "O Monge Sebastião. Um Par de Defensores". Acreditamos que chamar Sebastião Gonçalves de Souza de Monge seja provocar no imaginário da época, lembranças sobre movimentos messiânicos recentes, e ao fanatismo a eles associado, como Canudos e as peregrinações do Monge João Maria (KARSBURG, 2014). Ao longo do processo, encontramos reincidentes afirmações da existência de fanáticos seguidores em torno do monge Sebastião, que confiavam na eficácia de seus tratamentos e atemorizavam as autoridades pela sua potencial ação coletiva. Os jornalistas republicanos ironizavam a ação de um "um advogado muito caridoso, por prestar unicamente um favor a vítima feiticeira, ou talvez com a promessa de ser-lhe extraído do abdômen algum sapo, requereu certidão ao Carcereiro da cadeia, relativamente a prisão do Santo Monge, para impetrar em seu favor um habeas corpus". Este advogado ridicularizado pelos republicanos d'A Convenção chamava-se Irineu de Oliveira Goulart, era filho do major Melchior Goulart de Pontes (falecido em São Martinho, em 05.05.1886) e de Francisca de Oliveira Goulart.10 O que irritou as autoridades republicanas de Vila Rica e Soledade foi o dinamismo do advogado Irineu que, no mesmo mês em que Sebastião foi preso, impetrou uma ação de habeas corpus. Esta ação foi impetrada mesmo sem que as repartições públicas locais fornecessem as certidões solicitadas por Irineu, o que lhe fez usar como comprovante a sucinta notícia do processo, publicada no jornal A Convenção.11 A Federação - sexta-feira, 11.07.1902, nº 160, ano XIX, p. 2. – Cartório de Órfãos e Ausentes, Inventário, nº 257, Inventariado: Melchior Goulart de Pontes, Inventariante: Irineu de Oliveira Goulart, 1887, município de São Martinho da Serra, comarca de Cruz Alta; APERS - Inventário nº 53, Inventariado: Francisca de Oliveira Goulart, Inventariante: Irineu de Oliveira Goulart, 1888, município de São Martinho da Serra, comarca de Cruz Alta. 11APERS – Juízo de Comarca da Cruz Alta, Habeas-Corpus, 1902, auto: 1388, Requerente: Sebastião Gonçalves de Souza; APERS – Superior Tribunal do Estado do RGS, nº 470, 1902, 1º Cartório, Habeas-Corpus, Impetrante: Irineu de Oliveira Goulart, Paciente: Sebastião Gonçalves de Souza. 9

10APERS

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Nesta ação, o advogado Irineu informava que o seu paciente se achava tranquilamente, no dia 13 de julho último, em sua casa situada no município da Soledade, no lugar denominado – Estrela12 – "quando foi inopinadamente surpreendido por uma escolta sob o Comando de José Silveira [Serafim José da Silveira], que sem nenhuma formalidade lhe deu voz de prisão a ordem do subIntendente deste primeiro distrito, Major Napoleão Moreira Machado". A prisão arbitrária e ilegal foi aceita sem qualquer resistência, pois o detido estava "convencido de sua inocência e confiante na libérrima disposição do artigo 72 da Constituição da República" –"A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade".13 Sebastião foi apresentado ao Major subintendente e este o mandou ao Intendente Municipal de Vila Rica, o qual, depois de interrogá-lo, mandou prendê-lo, “de onde só tem saído acompanhado por praças para ir ao cemitério fazer serviços de limpeza”. Irineu denuncia que Sebastião estava preso há 8 dias, sem saber o motivo, violando os artigos 214 e 215 do Código Penal do Estado. Como não foi preso em flagrante delito, sua prisão significava “constrangimento ilegal e abusivo”. Assim: "É pois, de todo ilegal a coação do paciente, que se vê por isso privado de exercer o seu trabalho manual, tão necessário a subsistência de seus filhos”. O Juiz da Comarca, Antonio José Moraes Júnior nega o habeas corpus (08.08.1902) e o advogado Goulart apela da decisão ao Superior Tribunal de Justiça do Estado, em Porto Alegre, que também rejeita a ação impetrada (26.09.1902). Coube ao advogado Irineu de Oliveira Goulart a apresentação da única testemunha de defesa no caso do curandeiro-feiticeiro Sebastião – Santos José Martins. Martins tinha então 60 anos, era criador, solteiro, natural deste Estado e assinou o seu depoimento. Este depoimento pouco acrescenta ao processo, pois Martins declara não ter contato com o acusado há muitos anos, mas atesta que "Cachoeira no Jacui, município de Soledade" (FARIA, 1914, p. 142). O termo paciente usado pelo advogado é aplicável em ações de habeas corpus, em que existe abuso de poder, "ameaça de coação à liberdade de locomoção". Vem do latim "patientem": o que sofre, o que padece. Ou seja, se contrapõe a agente já que é aquele "que recebe ou sofre a ação de um agente". Daí a insistência do advogado em salientar que Sebastião estava tranquilamente trabalhando em sua lavoura no momento da prisão. (BRUNSWICK, s/d, p. 833) 12 13

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nunca o viu praticando "práticas [...] maléficas, como seja feitiçaria, nem ato criminoso qualquer ou "praticar curativos por meio do emprego de breves". Mesmo que o depoimento de Santos tenha sido frustrante, a sua simples presença no palco judiciário ao lado do réu, materializa uma opinião comunitária positiva, aspecto que deve ter estimulado o advogado a convocá-lo.14 Nas perguntas feitas à testemunha de defesa, conduzidas pelo advogado Irineu, percebemos a sua tentativa em apresentar o réu como um pacífico lavrador, desconfigurando a imagem de feiticeiro maléfico construída pela promotoria. A apreensão dos breves – reconhecidos ingenuamente por Sebastião como sendo seus –só se justifica por serem considerados itens que, na ótica das autoridades, reforçava o caráter mágico das curas praticadas. Breve era um "papel com certas orações, que serve de capa a relíquias ou a flores bentas" (SILVA, 1922, p. 300), ou um "saquinho de pano ou couro, contendo uma oração qualquer, muitas vezes banal, pendente do pescoço por uma fita ou torçal, e supersticiosamente usado a impulsos de piedosas crenças ou como garantia contra toda sorte de perigos ou dificuldades" (CASCUDO, 1988: p. 144). Já que uma feiticeira rondava a comunidade causando malefícios, os breves deveriam ser manejados como proteção, obstáculos aos avanços das forças do mal. 15 As relações entre a testemunha de defesa Santos José Martins e o advogado Irineu eram antigas. Martins era filho de Tomás José Martins e Florisbela Maria Martins. Seu pai, Tomás, morava na Vila de São Martinho quando faleceu, em 1883,16 e deixou-o, enquanto filho primogênito, como seu testamenteiro. Entre as testemunhas do testamento do pai de Santos José Martins, 14Quatro

jurados do júri que condenou Sebastião, respondendo aos quesitos apresentados pelo Juiz, responderam que existia uma circunstância atenuante a seu favor, expressa no parágrafo 9º, do artigo 42do Código Penal da República: "Ter o delinquente exemplar comportamento anterior, ou ter prestado bons serviços á sociedade”. Infelizmente, nem tudo que influencia os autos está nos autos, mas é apenas mencionado pelos envolvidos em conversas de corredor e admoestações públicas dos advogados, assim ficaremos com esta dúvida sobre como se materializaram estes bons serviços deste negro curandeiro-lavrador para a comunidade. Terá ele participado da guerra civil Federalista? Ou terá sido esta a primeira vez que teve problemas com a justiça? 15 Enquanto uma testemunha dizia que "os fios de cabelo que continha um dos ditos vidros era a feiticeira que importunava os habitantes do quinto distrito deste município", outra destacava que um dos insetos apresentados é que era a feiticeira metamorfoseada. 16APERS – Cartório da Provedoria, Júlio de Castilhos, Testamento, nº 60, testador: Tomás José Martins, Testamenteiro: Santos José Martins, 1885, município de São Martinho da Serra. [ 28 ]

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temos Irineu de Oliveira Goulart e seu pai, o major Melchior Goulart de Pontes. 17 Tomás José Martins legou bens eminentemente rurais, com campo de criar, carretas toldadas, reses de criar, bois e cavalos mansos, éguas xucras, mulas mansas e xucras, ovelhas; além da escrava Júlia, parda, de 25 anos, idiota. 18 Como já dissemos anteriormente, duas das testemunhas que depuseram no processo moravam próximas ao sítio de Sebastião: o Major Napoleão Moreira Machado e o Tenente Coronel Antonio Ramos Barroso. Todas as patentes militares ostentadas pelos acusadores de Sebastião não se originavam no Exército, mas na Guarda Nacional. Sempre chamando-o de amigo, os editores do jornal republicano A Federação destacaram a nomeação de Antonio Ramos Barroso para Tenente Coronel Comandante do 3º Batalhão da Guarda Nacional de Vila Rica, em 1900 (posto que continuava exercendo em 1908).19 Em processos movidos por Antonio Ramos Barroso, em 1885 e 1894, motivados por cobranças de dívidas e roubo, sabemos que ele fora negociante, alugando uma casa comercial no Povo Novo.20 Em 1892, Barroso comprou terras na Serra Geral, no Rincão dos Padilhas e, anos depois, estava envolvido na tentativa de expulsão de alguns posseiros, um dos quais questionava a sua propriedade, chamando-o de intruso e 17APERS – Cartório

de órfãos e ausentes de Júlio de Castilhos, Inventário nº 211, Inventariado: Tomás José Martins, Inventariante: Santos José Martins, 1883, comarca de Cruz Alta. 18 Santos José Martins faleceu em sua residência em Júlio de Castilhos, sem deixar testamento, em 28.07.1908. Era amasiado com Flora Rosa Martins, com quem tinha 3 filhos. Ele deixou para seus herdeiros 28 quadras de sesmaria de campo, nos imóveis denominados de São Pedro e Santo Inácio, avaliadas em 38 contos de réis. Em 1900 foi medida a fazenda Santo Inácio, localizada a 9 quilômetros de Júlio de Castilhos e 18 de Tupanciretã. Dedicava-se a indústria pastoril e plantações de milho e arroz, nos banhados. Terreno e benfeitorias foram avaliados por pouco mais de 40 contos de réis. APERS – Cartório do Cível de Júlio de Castilhos, medição nº 317 e 318, Requerente: José Francisco de Sampaio, Requerido: Santos José Martins, Propriedade: Campos da fazenda Santo Inácio, 1900, município de Julio de Castilhos, comarca de Cruz Alta. APERS – Cartório do Cível de Júlio de Castilhos, Inventário nº 266, Inventariado: Santos José Martins e Severiano José Martins, Inventariante: Flora Rosa Martins, 1923, comarca de Cruz Alta; APERS – Cartório de Órfãos e Ausentes de Júlio de Castilhos, Inventário nº 543, Inventariado: Santos José Martins, Inventariante: Florisbela Pereira da Rosa, 1908, comarca de Cruz Alta. 19 A Federação, sábado, 06.10.1900, nº 231, ano XVII, p. 13; A Federação, sábado, 22.08.1908, nº 197, p. 1. 20 APERS – Tribunal do Júri, processo crime, nº 986, réu: Manoel Pereira de Lima, Vítima: Antonio Ramos Barroso, 1894, município de São Martinho da Serra, comarca de Santa Maria; APERS – Cartório do Cível, Ação sumária, nº 531, réu: Laureano de Oliveira Brizola, Autor: Antonio Ramos Barroso, 1885, município de São Martinho da Serra, comarca de Cruz Alta.

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que havia estragado "matas pertencentes a fazenda do estado [...] devastando e tirando madeiras, roubando matas virgens, para roças de milho”. 21 Estes e outros documentos relacionados à grilagem de terras nos levam a perceber na região de Soledade um ponto potencial de conflito agrário, com pequenos lavradores nacionais (muitos deles ex-escravos, indígenas, mestiços) sendo expulsos junto com as suas famílias por criadores de gado, bem mais poderosos, amparados por patentes militares e ligações com o Estado (ORTIZ, 2011). Assim, a figura do curandeiro-feiticeiro Sebastião, um destes lavradores que com sua mulher e filhos tocava uma pequena propriedade, toma uma dimensão social mais ampla, podendo atuar (ou ser visto como) uma liderança comunitária, pelo prestígio que acumulava em suas atividades mágicoterapêuticas.22 Parece evidente que o mundo político daquela região estava distribuído em lados diferentes neste processo de 1902, e que aspectos que não apareciam nitidamente nos autos, influenciavam os desdobramentos judiciários. Apropriações e desapropriações fundiárias, crenças mágico-curativas, disputas político-partidárias, clientelismos e dependências, estratégias de criminalização baseadas em noções biológicas de raça. O Promotor Público ad hoc Inocêncio Perciliano Garcia, tentando desmerecer as ações do advogado do curandeiro-feiticeiro, que recorreu ao Superior Tribunal do Estado impetrando uma ordem de habeas corpus em favor do mesmo, chama-o de patrono de Sebastião. Esta palavra nos dicionários da época inclui o papel de advogado, mas tem uma conotação bem mais ampla: padroeiro, protetor, defensor, padrinho. Talvez o Promotor Garcia procurasse estabelecer entre o advogado de defesa e o preto feiticeiro uma dependência que mesmo extrapolava a filiação política, já que na antiguidade romana, patrono era aquele indivíduo que alforriava um escravo, tornando-se o seu patrono e ele o seu liberto.23 O curandeiro negro Sebastião Gonzaga de Souza tinha 30 anos em 1902, nascendo, portanto, 21APERS

– Juízo Distrital de Vila Rica, Desejo de posse, nº 643, réu: Atanagildo de Lara, Autor: Antonio Ramos Barroso, 1895, município de Júlio de Castilhos, comarca de Cruz Alta. 22 Não nos estenderemos muito neste aspecto, mas cabe mencionar que vários líderes messiânicos, como parte de seu poder simbólico junto as suas comunidades, portavam esta faceta mágicoterapêutica(QUEIROZ, 1978; AMADO, 1978; DICKIE, 1996, 1998). 23 BRUNSWICK, s/d, p. 859; MORAES SILVA, Tomo 2, 1922, p. 412. [ 30 ]

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após a lei de 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre. Quase nada sabemos sobre a sua trajetória biográfica, assim como não temos ideia de quão remoto ou próximo era a sua experiência individual e familiar com a escravidão. Mesmo assim, percebemos como o seu fenótipo foi destacado como traço reforçador de sua culpabilidade. A racialização de Sebastião, ou seja, a sua identificação como preto, ocorre em dois ofícios do Intendente do município de Vila Rica, Luiz Gonzaga de Azevedo, um ao Delegado de Polícia (30.07.1902) e outro ao Juiz da Comarca, Antonio José Moraes Júnior (02.08.1902).24 Em seu relatório, redigido apenas um dia após receber o arrazoado do Promotor Público ad hoc, o Juiz Distrital Pantaleão Pinto de Souza descreveu todo o processo judiciário, mostrando a regularidade e correção do mesmo, e encerrou a sua verberação acusatória recorrendo, como último argumento conclusivo, a fisionomia do acusado: Todo o processo correu regularmente e dele o que resulta é a culpabilidade do réu. Di-lo as testemunhas que depuseram no sumário; di-lo a sociedade onde ele vive; dilo, finalmente, a própria feição característica do réu. A sua fisionomia, as respostas que dava ao ser interrogado, revela o grau avançadíssimo de sua perversidade, a sua inclinação para a prática do crime de que é acusado. Que a fisionomia dos indiciados afetava os procedimentos e os resultados judiciários, compreendemos bem, desde o período imperial (e mesmo hoje em dia). Mas a República parece ter tornado este elemento – parte integrante da racializada informalidade cotidiana –um argumento jurídico. Em seu relatório de 1897, o médico da polícia, Dr. Sebastião Leão, dialogou com as ideias que circulavam no meio científico e judiciário sobre a criminalidade, tomando como Luiz Gonzaga de Azevedo morreu abintestado, com 55 anos de idade, em 07.09.1909, em Tupanciretã, 2º distrito de Cruz Alta. Era casado com Francisca Correia de Azevedo e deixou 3 filhos. Era comerciante, natural deste estado e sua casa comercial foi avaliada em 27:545$020 réis.APERS – Cartório de Órfãos e ausentes, arrolamento, nº 1217, Inventariado: Luiz Gonzaga de Azevedo, Inventariante: Francisca Correia de Azevedo, 1909, município de Cruz Alta, comarca de Cruz Alta. 24

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laboratório a Casa de Correção de Porto Alegre. 25 Concordando com Sylvio Romero e Nina Rodrigues, este médico considerava "todo brasileiro mestiço" e discordava da perspectiva lombrosiana ao colocar como epígrafe de seu relatório a frase: "Não é o atavismo, mas o meio social que faz o criminoso". Sobre a questão da fisionomia, o Dr. Leão tinha uma visão peculiar, baseada no exame direto dos criminosos e das fotos dos mesmos depositadas na Oficina de Identificação, em sala da Casa de Correção da Capital. FISIONOMIA. EXPRESSÃO DO OLHAR. ― Os criminosos apresentam uma fisionomia especial? Dizem uns que sim;outros negam. A opinião popular é favorável e daí a afirmativa expressa nas frases figura patibular, cara de assassino, mal encarado, olhar de bandido! Tarde, o grande escritor francês, lembra que Jousse e Vauglans, comentadores das leis criminais, contavam entre os elementos de suspeita de um indivíduo à má fisionomia do mesmo. Os antropologistas italianos têm razão, a meu ver, sustentando a existência do traço fisionômico do criminoso. Este traço fisionômico depende das deformações, dos estigmas físicos especiais que são freqüentes nos criminosos. Para convencer-se desta verdade, em nosso meio, não é mister entrar na Correção para examinar os seus habitantes; basta consultar o álbum para encontrar esta fisionomia especial em quase todos os tipos que ai figuram. O olhar tem um quê de especial, que a prática torna bem assinalado, máxime nos caboclos, indiáticos e brancos. Entre os negros e crioulos a expressão do olhar não é tão desagradável. (LEÃO, 1897, Apud MOREIRA, 2009)

25

Ver: FIGUERÓ (2014), PESAVENTO (2009).

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Atuando como, digamos, um antropólogo criminalista, o Dr. Leão procurou amparar as suas impressões na observação empírica dos habitantes da correção. É no mínimo ousado o seu comentário de que os detentos brancos tinham um olhar de criminoso, enquanto "entre os negros e crioulos a expressão do olhar não é tão desagradável", já que tal observação estava longe de ser consensual nos profissionais atuantes no campo judiciário, principalmente em uma sociedade recém emancipada da escravidão. Noções racistas científicas grudaram como miasmas nos ex-escravos e negros, em geral vistos como representações de inferioridade física e cultural (SCHWARCZ, 1993). No caso dos processos judiciários, a fisionomia dos réus era caracterizada por marcadores fenotípicos, baseados em noções biológicas de raça (SILVA, 2015), que tornavam as feições de pretos como Sebastião Gonçalves de Souza, espelho dos preconceitos raciais de seus julgadores (MAGGIE, 1992). Todas as vezes que foi interrogado, Sebastião repetiu a mesma história, assumindo a propriedade dos breves e dos vidros apreendidos e se dizendo sempre ser um lavrador. Ou seja, ele assumia ter fornecido remédios, mas não se reconhece nos autos como curandeiro ou mesmo cita como um meio de vida a cura, como encontramos em outros casos similares. 26 Parece-nos que sua atividade de curandeiro-feiticeiro era subsidiária a sua dedicação à lavoura, de onde ele realmente retirava o seu sustento. Por outro lado, é bastante raro encontrar qualquer curandeiro, implicado processos-crime, que afirme ser esta sua profissão ou meio de vida. Pode-se aí fazer um elenco de hipóteses possíveis. A primeira e mais óbvia delas é o fato de que estando sob a acusação de curandeirismo, feitiçaria ou exercício ilegal da medicina, nenhum réu reforçaria as denúncias contra si, informando-se praticante das artes da cura. Nesse caso, não era incomum dizer-se somente um conhecedor genérico de infusões e mezinhas, cujas “receitas” são dadas por boa vizinhança, solidariedade e caridade cristã (WITTER, 2007). Outra hipótese, diz respeito justamente a regularidade e disseminação de determinados conhecimentos sobre curas. Logo, é possível que o próprio curandeiro não se considerasse um “especialista” até ter um número bastante significativo de atendimentos. A questão da lavoura sugere ainda que podemos encará-la tanto como uma função 26

Ver, por exemplo: MOREIRA, 2015, p. 68-83. [ 33 ]

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profissional basilar a outras atividades, como também podemos percebê-la dentro de um cotidiano que a naturalizava como necessidade. Logo, a existência de outras atividades talvez não fosse percebida com a mesma desatenção que hoje damos às nossas atividades paralelas. Porém, num mundo que já avançava rápido no sentido de categorizar profissionais, erguer a bandeira do lavrador podia silenciar a ideia de que outras atividades teriam um papel primordial para um sujeito sob acusação. (WITTER, 2001) O mais rico depoimento de Sebastião foi dado em Porto Alegre, junto ao Superior Tribunal do Estado, quando o seu habeas corpus foi julgado (e negado). Ele informou ter sido preso em 13 de julho: [...] por ter dado uns chás, como remédios, a uns vizinhos que lhe pediram. Perguntado se estes vizinhos, tomando os seus remédios, não adoeceram? Respondeu que as pessoas que tomaram os remédios ainda continuaram doentes, por que com a prisão não deixaram ele depoente terminar o curativo, sendo que ele depoente não viu, e nem sabe senão por ouvir dos próprio doentes, que os mesmos tomando remédio vomitaram cabelos, bichos, etc.; disse mais, que se tem algumas vezes aplicado remédios a doentes, não é porque exerça a medicina, mas somente por muitas instâncias das pessoas doentes, pois que a profissão dele depoente é a de colono lavrador; disse mais que não é verdade que as pessoas a quem ele deu remédios tenham ficado transtornados da cabeça, mas ele depoente afirma que essas pessoas estavam melhor; disse mais que os remédios que ele ministrava aos doentes, lhe foram ensinados pelo índio velho Mariano; que esses remédios consistiam em arruda, alho e guiné; disse mais, que nunca usou de benzeduras ou qualquer magia em relação aos doentes e que deles nada cobrava; disse mais que ele depoente fora iludido pelo índio Mariano. Segundo Farberman era normal em casos envolvendo curandeirosfeiticeiros, a "expulsão de resíduos corporais insolidos", cuja eliminação do [ 34 ]

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organismo tinha relação segura com o tipo de procedimento terapêutico usado no período, "que privilegia métodos tales como las purgas, las sangrías, las sobadas (masajes) y los vomitivos" (2005, p. 130). A exibição pública dos resíduos se assegura e demonstra o poder do curandeiro, também serve de prova palpável de seu delito sobrenatural. Muitos não são resíduos repulsivos, mas parecem ligados diretamente à experiência laboral dos envolvidos: "como tejedora expulsa lana, como pastora expulsa huesos de cabra, como productora de cestas expulsa simbol" (FARBERMAN, 2005, p. 131). Tal etiologia tem base xamânica: "La cura, que consiste habitualmente en la succión de la parte afectada, tiene por objeto sustraer el objeto patógeneo - manifestación material y visible del mal que el chamán habrá de exhibir como demonstración de su eficacia" (FARBERMAN, 2005, p. 133). A historiadora Laura Mello e Souza, estudando a bruxaria no Brasil colonial, encontrou vários casos de curas mágicas feitas através do sopro e da sucção. Segundo ela, a primeira técnica era de origem indígena (Tupinambá, Apopocuva e Chipaia) e a segunda era uma prática mágica compartilhada por africanos e europeus, “o que, mais uma vez, aproxima práticas mágicas comuns a sociedades tribais e a sociedades européias da época préindustrial, lançando por terra a possibilidade de distinguir rigidamente umas das outras”. Através da sucção, os curandeiros “chupavam” para fora do corpo de seus pacientes doenças ou malefícios – muitas vezes neutralizando a ação de outros feiticeiros –, que se materializavam nos “ingredientes imaginários” cuspidos para fora (no caso, lambaris e pregos). 27 Um dos indícios preciosos deste documento judiciário produzido pela criminalização das práticas terapêuticas do curandeiro negro Sebastião é a composição dos remédios por ele ministrados (ao que parece sugeridos pelo índio velho Mariano de Tal): arruda, alho e guiné. A raiz ou erva de Guiné possui várias denominações, como guiné-pipi, tipi, caá, erva-de-guiné, erva-das-galinhas, gambá, erva-de-alho, raiz-de-gambá. As denominações relacionadas ao alho e ao gambá se justificam pelo seu forte cheiro:

Souza diz que a eliminação dos malefícios extraídos pelo sopro ou sucção, poderia realizar-se também por via oral ou retal, e ainda para as mulheres, através da vagina(SOUZA,1986, p. 168-170). 27

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É uma erva que chega a mais de um metro de altura, ramificada, de folhas bem verdes, de onde sobressai uma haste longa, ao longo da qual se formam as flores pequenas e brancas e depois as sementes, em forma de ponta de flecha, que se pegam na roupa (STEFFENS, 2010, p. 48). Segundo o padre Steffens, jesuíta especialista em Fisiologia Vegetal e Ecologia, o uso mais frequente desta erva, não é o medicinal, mas o mágico. Em jardins domésticos, a erva de guiné costuma associar-se à Espada de São Jorge e à arruda na proteção dos lares contra as feitiçarias. Segundo Nei Lopes (2004: p. 314), a erva de Guiné é: Subarbusto da família das fitolacáceas de largo uso nos cultos afro-brasileiros, na feitura de amuletos e nos rituais de limpeza e fixação do axé. Umas das 'folhas fixas' do omieró, é igualmente conhecida como erva-de-guiné, guiné-decaboclo, guiné-piupiu e pipi. Sua raiz, altamente tóxica, ministrada em pós e em doses gradativas, provoca reações patológicas que vão da superexcitação, passando pelo 'amolecimento' cerebral, à morte, depois de mudez por paralisia da laringe. Por isso sua decocção foi conhecida, na época da escravidão, como 'amansa-sinhô', lendário veneno com que escravos humilhados se vingavam de senhores excessivamente vigorosos ou cruéis. Apesar de achar o seu uso medicinal controverso, o Padre Steffens considera a erva de guiné apropriada para doenças do sistema nervoso (espasmos, paralisias, histeria), sistema respiratório (tosse convulsiva, pneumonia, bronquite, rouquidão), enfermidades venéreas, problemas menstruais e abortos. O alho era recomendado pelo Doutor Pedro Luiz Napoleão Chernovitz (1996, p. 313) no tratamento contra vermes, seja misturado com leite quente, ou em forma de cataplasma aplicado no ventre. Já a arruda, outro elemento de cheiro forte, o mesmo doutor recomendava o seu uso apenas interno, fervida na água,

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para "amenorréia, clorose e histerismo" (p. 397). 28 Como as três doenças citadas eram, à época, consideradas “doenças de mulher”, talvez seja possível ligar o uso dessas ervas em especial à clientela feminina atribuída ao curandeiro Sebastião. Segundo o padre Steffens, o cheio forte destes três elementos – a erva de guiné, a arruda e o alho –, reforçaram o seu potencial uso mágico, além do medicinal, já que eram usados eficientemente como repelentes de insetos e mesmo cobras. Outro ponto que chama a atenção é a referência ao índio velho Mariano. Raros como réus em casos de curandeirismo, os índios são frequentemente apontados como curadores ou conhecedores de ervas. Tanto dentro da esfera popular (WITTER, 2001), como mesmo pela cultura produzida no seio das elites. Este último caso pode ser evidenciado pelas propagandas de remédios que povoam os jornais de fins do século XIX e início do XX, as quais com frequência informavam basear suas fórmulas em “antigas receitas dos índios” (WITTER, 2007). Sem um estudo direcionado, a pergunta que fica é se na mentalidade da população da época, as receitas dos indígenas para cura, e suas ervas, teriam uma aceitação ou crença de eficácia maior do que uma “erva de negro”. O porquê do temor aos curandeiros negros já tem sido suficientemente estudado pela historiografia, no entanto, a crença nos remédios indígenas no princípio do século XX ainda merece maiores estudos. O curandeiro-feiticeiro Sebastião morava em Soledade, zona caracterizada por terras de matas, de onde era extraída a erva-mate e onde lavradores nacionais usufruíam de acesso à terra, mesmo que de forma informal e ilegítima (ZARTH, 1997; ORTIZ, 2011). Em seus depoimentos, ele atribui ao índio Mariano de Tal a recomendação de algumas das ervas usadas e se diz traído pelo mesmo, indicando a presença de população nativa nesta área e a ocorrência de trocas culturais. O Dr. Langaard praticamente reforça as conclusões de Chernovitz. Com relação a arruda diz: "Planta natural da Europa meridional, cultivada nas hortas, da qual se usa a erva, que tem cheio muito ativo e um tanto desagradável. Seu efeito é incitante, antélmintico e emenagogo. Aplica-se na amenorréia e nos incômodos histéricos. Dá-se em dose de 3 oitavas a 1 onça em infusão em 24 horas". O alho era usado internamente "como vermífugo, muito principalmente contra lombrigas e ascarides; também é recomendado na febre intermitente, areias e pedras na bexiga, escorbuto, cólera e hidropsia" (LANGAARD, 1872, p. 201-272). 28

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Podemos recorrer a alguns documentos interessantes para nos ajudar a pensar a cartografia social da vizinhança do curandeiro-feiticeiro Sebastião e seus possíveis clientes e adversários. Em 1875, a Câmara Municipal da Vila de Soledade informou que das suas rendas, que somavam 3:319$420 réis, mais de 85% derivavam do imposto sobre a erva-mate (2:841$320 réis). Quase dez anos depois, a situação não havia se alterado, como podemos perceber no ofício dos vereadores, respondendo ao ofício circular da presidência da província, de 19.03.1883: [...] a agricultura neste lugar é rotineira, e não vai além da plantação de feijão, milho e trigo para a manutenção dos plantadores, principiando recentemente a desenvolver-se a industria comercial do fumo, além da erva-mate, que é a principal indústria local, e sendo a sua exportação de cem mil arrobas [...] a indústria pastoril não tem desenvolvimento comercial, porque as fazendas apenas se mantém conservando o necessário para o seu trabalho e consumo. Magníficos podiam ser os seus efeitos, porque os campos ubérrimos prestam-se para a criação de gado em grande escala, mas o abigeato, campeando altivo, tem infligido terror e desânimo aos fazendeiros [...]. 29 Outro documento, mais próximo cronologicamente, informa que de conformidade com o disposto no artigo 25, § 7º, da Lei Eleitoral nº 35 (25.01.1892), a Câmara Municipal de Soledade remeteu para o Presidente do Estado, Júlio Prates de Castilhos, em 6 de agosto de 1896, o Alistamento Geral dos Eleitores do Município, qualificados de acordo com esta referida legislação. Este documento, composto de 900 eleitores, nos fornece um observatório, mesmo que imperfeito, já que esta primeira lei eleitoral da República excluía (segundo o artigo 2º, § 3º) os mendigos, os analfabetos, as praças de pret (excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior), os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto que importe a 29

AHRS - Autoridades Municipais, Soledade, maço 272, lata 153. [ 38 ]

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renúncia da liberdade individual. Ali também não estavam representadas, obviamente, as mulheres, principais clientes de nosso personagem principal. Mesmo com estas limitações – e todas as fontes as têm! –esta lista eleitoral nos permite uma certa visibilidade da cartografia social de Soledade nos últimos anos do século XIX, principalmente no aspecto socioprofissional. Ocupações de Soledade (1896) Ocupação Nº Grupos 1. Agência 12 Sem Ocupação Definida 2. Barbeiro 1 Prestação de Serviço 3. Caixeiro 5 Comércio em Geral 4. Carpinteiro 9 Prestação de Serviço 5. Criador 117 Agropecuária 6. Curtidor 1 Comércio em Geral 7. Empregado Municipal 8 Cargo Público 8. Empregado Público 16 Cargo Público 9. Ferreiro 2 Prestação de Serviço 10. Lavrador 619 Agropecuária 11. Marceneiro 1 Prestação de Serviço 12. Não consta 16 Sem Ocupação Definida 13. Negociante 86 Comércio em Geral 14. Pároco 1 Prestação de Serviço 15. Pedreiro 3 Prestação de Serviço 16. Proprietário 1 Agropecuária 17. Sapateiro 2 Prestação de Serviço 18. Total de eleitores 900 Alistamento Geral dos Eleitores do Município de Soledade - 1896. AHRS Autoridades Municipais, Soledade, maço 365, lata 196. Agregar as ocupações ou profissionais é tarefa sempre delicada e fadada a eventuais deficiências analíticas, por isso usamos, para tal fim, a metodologia aplicada por Thompson Flores (2012, p. 265-267) nos processos judiciais que investigaram crimes praticados na fronteira meridional do Brasil (1845-1889). [ 39 ]

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Como podemos ver na tabela acima, confirma-se um perfil nítida e profundamente rural, com grande destaque para os lavradores, que representavam 68,78% do total de eleitores qualificados. Se reunirmos todos do ramo agropecuário, teremos um total de 737 nomes, perfazendo 81,89 %. Em seguida, temos as ocupações relacionadas com o comércio (92) - 10,22 %; sem ocupação definida (28) - 3,12 %; cargos públicos (24) - 2,67 %; e prestação de serviços (19) - 2,12%. Duvidamos que a extração de erva-mate, que dominava a economia local em anos anteriores, tenha desaparecido, assim, supomos que os indivíduos envolvidos com esta indústria estivessem incluídos entre os lavradores. A sociedade e a economia de Soledade deviam girar em torno desta base agropecuária e outras ocupações estavam a ela solidamente atreladas, como os negociantes, que deviam comercializar os excedentes produtivos para fora da localidade, suprindo-a com mercadorias e insumos diversos. 30 Entre os 900 eleitores desta lista de Soledade, de 1896, não há médico algum listado, apenas um barbeiro. Como já dissemos, o município de Vila Rica foi desmembrado do de São Martinho em 1891. Alguns anos antes, em 15 de fevereiro de 1887, os vereadores de São Martinho informaram ao Vice-Presidente da Província sobre o recebimento e execução da circular nº 183, de 14.01.1887, que versava sobre os artigos 41 e 42 do Regimento de 03.02.1886, “para que não consinta exercício de medicina a indivíduo que não esteja legalmente habilitado”. Os vereadores argumentaram com o representante imperial no sentido da necessária relativização na aplicação deste preceito legislativo, adaptando-o às realidades locais. Eles informaram: [...] existe nesta Vila um moço oriental de nome Sabino Posada, que conquanto não esteja legalmente habilitado, Os 12 indivíduos ocupados com agências são uma incógnita a parte, já que não existe consenso historiográfico sobre o significado desta denominação. Silva Júnior (2004, p. 199), ao investigar os integrantes das sociedades mutualistas que funcionavam no Rio Grande do Sul entre 1854 e 1940, exterioriza o seu espanto a respeito do termo agências, dizendo: "(seja qual for o sentido da expressão), porque amiúde este parece ser um eufemismo para pobres sem qualificação profissional". Pensando em zonas com perfil rural, tal eufemismo profissional pode ter sido usado para descrever aqueles indivíduos sem uma profissão reconhecida ou que viviam em uma liminar existência ocupacional, transitando entre experiências laborais diversas, talvez as mesclando frequentemente. 30

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tem exercido a medicina com muita felicidade. Ora, não tendo nesta vila nem no seu extenso município médico formado, a Câmara e mais autoridades tem tolerado o exercício da medicina por Sabino Posada por reconhecer nele bastantes habilitações. Acresce mais que é sumamente humanitário, acudindo a todas as chamadas, sem exigir contribuições, aceitando por gratificação do seu trabalho o que lhe quiserem dar, o que não tem acontecido com os médicos formados que aqui tem residido e que foram muito infelizes em sua clínica, não acudindo a chamado algum, sem serem bem recompensados. São estes os motivos que atuam no ânimo dos habitantes desta Vila e seu município, a preferirem a um curandeiro e não um médico formado, como os que aqui tem vindo. Por isso é que tanto esta Câmara, como as demais autoridades, tem consentido que Sabino Posada exerça a medicina, não só ele como qualquer outro com iguais habilitações; se comete erro é em benefício da humanidade sofredora de seu município.31 O texto acima traz um ponto importantes para o debate, o qual já se encontra inserido nas pesquisas historiográficas sobre saúde há algumas décadas. Trata-se dos documentos reiteradamente encontrados pelos pesquisadores, nos quais as Câmaras Municipais do século XIX e princípios do XX afirmam sua proteção aos ditos curandeiros e “pessoas não habilitadas”. A alegação de que estes eram aceitos por conta da falta de médicos cai por terra nos próprios documentos. Se no texto acima os vereadores juntam o argumento de que os médicos que aparecem cobram caro demais para os bolsos da população; em AHRS - Autoridades Municipais, maço 265, caixa 158. Já no ano anterior a população de São Martinho publicou no jornal A Federação (18.09.1886), na Seção Livre, um longo abaixo-assinado de "residentes no termo", em apoio ao dr. Sabino A. Posada, que nos 3 anos que ali vivia, tinha o respeito de todos. Este Dr. destacou-se nas epidemias de coqueluche e febres malignas, quando fabricou quase mil vidros de seu "afamado extrato de Cambara, Angico e Eucalipto, distribuiu entre a pobreza com liberalidade, mormente onde com mais intensidade grassava tão cruel enfermidade, e com tanta felicidade que não perdeu nenhum de seus doentes, tanto desta enfermidade, quanto de outras de que tratou durante o tempo já mencionado". Curiosamente, entre os nomes que referendavam o abaixoassinado estava o do proprietário Antonio Ramos Barroso, uma das principais testemunhas contra o preto Sebastião. Jornal A Federação: sábado, 18.09.1886, nº 213, ano III, p. 3. 31

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outros lugares, não raro, as Câmaras irão alegar a competência dos curandeiros, frente a incompetência dos médicos. O argumento era a forma como a população percebia tais curadores e qual conceito formava sobre eles. A competência de um curador – médico ou curandeiro – passava, portanto pelo “bom conceito” que esse angariava junto aos cidadãos. A construção do “bom conceito” junto à comunidade se fazia por elementos diversos, nem sempre tangíveis num primeiro momento, como a competência objetiva ou subjetiva (uma boa explicação das razões de um fracasso poderia valer o mesmo que uma vitória), a postura pública, os discursos, a participação na vida da população e a caridade, por exemplo. Tais elementos demonstram, com muita clareza, que as escolhas do povo, longe de se fundamentarem na “ignorância” e na “superstição”, correspondiam a uma lógicaprópria, capaz de determinar e impor limites à atuação daqueles que “alegavam” o poder de curar (WITTER, 2001, p. 99). Por outro lado, o “bom conceito” com certeza recebia ainda outros filtros como cor, posição social, até mesmo as características da clientela poderiam contar. O lavrador preto Sebastião, que sabia ler e escrever, e vivia em uma região fortemente rural, caracterizada pela pequena e média lavoura e pela extração de erva-mate, poderia justamente se tornar incomodo quanto maior fosse a sua clientela. É preciso lembrar que a influência sempre ultrapassou em muito sua ação sobre os corpos. A lógica do dom, após a impagável restituição da saúde, colocaria uma grande quantidade de clientes curados sob a necessidade de restituir a dádiva (WITTER, 2007). Mesmo em princípios do século XX, a transição das relações de cura para as relações de mercado, como bem mostra o texto da Câmara de Vereadores colocado acima, não estava ainda concluída. Afora isso, podemos somar as tensões da terra marcada pela presença de matas e alguns campos, a qual era provavelmente ponto de atração de segmentos sociais destituídos de propriedades fundiárias, muitos dos quais egressos do cativeiro. Nesse espaço, os diálogos entre o preto curandeiro-feiticeiro Sebastião e o índio velho Mariano de Tal nos permitem entrever um denso processo [ 42 ]

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de mestiçagem ou hibridização cultural. Esse poderia demonstrar, conforme Faberman, que a feitiçaria constituía um campo de hibridização cultural privilegiado, sendo que esta "parecia dominar uma multiforme cultura mestiça". Segundo Jacques Poloni Simard: "'el mestizaje no implica necesariamente relaciones armoniosas ni tampoco borra la jerarquía y los prejuicios sociales que tienen lugar en una sociedad en un momento dado'"; estes profissionais e suas artes podiam ser denunciados como maus e criminosos, "pero lo cierto es que esas mismas perturbadoras personas participan intensamante de espacios relacionales multiétnicos, vulnerando la pretendida rigidez de la sociedad de castas". (FARBERMAN, 2005, p. 143) O processo é uma mostra clara dessas tensões que se seguiram ao pósabolição. O medo branco da onda negra ainda se fazia presente e marcava de forma indelével as relações. Em especial, as que estavam conectadas também com a expansão do Estado e a disciplinarização das condutas da população, o que, sem dúvida, incluía a repressão aos curandeiros.

Abreviaturas AHRS - Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul; APERS - Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul;

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Pai Raiol, o feiticeiro. A construção do preconceito religioso no conto de Joaquim Manuel de Macedo Marília Conforto1 A reflexão revisita o conto Pai Raiol, o feiticeiro de Joaquim Manuel de Macedo tendo como eixo de análise a contribuição da literatura brasileira do século XIX na formação do estereótipo do escravo africano como feiticeiro. Partimos da análise sócio-discursiva demonstrando como a narrativa através das vozes do narrador e dos personagens constrói um discurso preconceituoso sobre a religiosidade africana. As categorias de narrador, personagem e o tempo-espaço social possibilitaram criar uma identidade religiosa dos escravos preconceituosamente construída pela voz da elite dominante materializada no plano ficcional do conto. Em artigo da revista Carta Capital publicado em 16 de maio de 2014 Jean Wyllys criticou a decisão da Justiça Federal do Rio de Janeiro que definiu a umbanda e o candomblé não seriam religiões por não possuírem um texto escrito como a Bíblia, o Alcorão e não venerarem uma só divindade suprema. A crítica de Jean Wyllys se deu em resposta a decisão em primeira instância do Ministério Público Federal que solicitou a retirada do site Youtube, de vídeos de cultos evangélicos neopentecostais que promovem a discriminação e intolerância contra as religiões de matriz africana. O preconceito contra as religiões de matriz Professora Dra. aposentada da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected] Dedicamos o ensaio a Saul de Medeiros – Saul’Ogum pelo diálogo sobre os caminhos do sagrado afrobrasileiro. 1

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africana no Brasil não é um assunto novo. Fomos buscar na literatura do século XIX um conto que trata a religiosidade africana, ficcionalmente, como um mal trazido pelos escravos para o Brasil. No ano de 1869 Joaquim Manuel de Macedo publicou o romance As vítimasalgozes. Quadros da escravidão. Ele reuniu nos três contos: Simeão, o crioulo; Pai Raiol, o feiticeiro e Lucinda, a mucama. Na leitura dos três contos encontramos o registro ficcional de três estereótipos em relação aos escravos africanos: o escravo bêbado e assassino, em Simeão, o crioulo; a feitiçaria que destruiu a vida dos senhores e suas famílias em Pai Raiol, o feiticeiro e a escrava que destruiu as relações familiares utilizando a sua sensualidade como arma no conto Lucinda, a mucama. Para entendermos a questão do preconceito religioso é importante um olhar sobre a história social da diáspora africana. O africano ao ser colocado em um navio tumbeiro tornava-se uma peça, um instrumento de trabalho. Perdia a sua identidade étnica tornando-se um negro2 escravo e portando não produtor de cultura. Destituído de sua humanidade era tratado como um “ser movente” na concepção jurídica3 e figurava no cotidiano como um indolente, assassino, fujão ou feiticeiro, só para citar alguns exemplos. Para compreendermos melhor o lócus social desse “ser movente” é importante resgatar o conceito de escravidão. Mário Maestri (1985) ressalta que, Um indivíduo submetido pela força não é, necessariamente, um escravo. Comunidades “primitivas” aprisionavam inimigos estrangeiros para sacrificá-los em cerimoniais. Nem a compra de seres humanos com objetivos econômicos cria, forçosamente, relações escravistas (MAESTRI, 1985). São necessárias, segundo o historiador, três características para definir relações escravistas: Sobre a negação da etnicidade africana e a denominação ‘negro’ o capítulo: “Escravo africano igual a negro” em Alberto da Costa e Silva. A manilha e o libambo: A África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Fundação Biblioteca Nacional, 2002. 3 A condição jurídica do escravo é uma importante fonte para o estudo do processo de escravidão no aspecto da coisificação já analisada por Jacob Gorender e Perdigão Malheiros. 2

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 O cativo é considerado como simples mercadoria, deve estar sujeito às eventualidades próprias dos bens mercantilizáveis – compra, venda, aluguel etc.;  A totalidade do produto do seu trabalho deve pertencer ao senhor. A remuneração que o cativo recebe sob a forma de alimento, habitação, e etc. deve depender, ao menos formalmente, da vontade senhorial;  O status; escravo deve ser vitalício e transmissível aos filhos (MAESTRI, 1985:3). O conceito de escravidão de Maestri também é revisitado por Gorender na análise da comparação com o padrão de vida da população livre brasileira. Gorender aponta que o padrão de vida dos escravos ainda era mais baixo. Afinal o escravo era um instrumento de trabalho, somam-se a isso as extenuantes jornadas de trabalho entre 12 e 20 horas, a perversidade dos castigos, a péssima alimentação e a desagregação familiar a qual as populações africanas foram submetidas a partir da organização do tráfico africano. Citando o historiador Joseph Miller, Gorender ressalta que: Metade dos africanos chegados ao porto do Rio de Janeiro, já no início do século XIX, morria no decurso dos quatro primeiros anos de vida no Brasil. Se recordarmos que somente sobreviviam até aportar ao nosso país 40% dos capturados em algum lugar do interior da África, ou seja, quatro em dez, impõe-se a conclusão de que somente dois desses quatro sobreviventes ultrapassavam o quarto ano de vida e sofrimento (MILLER, apud GORENDER, 2000, p. 45). A condição de mercadoria, o status vitalício da escravidão além do tratamento dispensado ao cativo está em relação direta com a sua condição de vida, já exemplificado por Gorender e Joseph Miller, e podem ser considerados como fatores sociais importantes na construção ficcional dos estereótipos sobre o escravo por Joaquim Manoel de Macedo em Vítimas-algozes. Quadros da

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escravidão. Além da narrativa literária é importante lembrar que a chamada doxa4 ou a sabedoria popular, cunhou uma série de frases a respeito do cativo feitorizado que logo se tornaram parte de sua identidade e certamente poderiam ser ouvidas por um estrangeiro que chegasse a uma cidade brasileira em meados do século XIX. Citamos como exemplo: ‘coisa de negro’, o café é o negro e o negro é o café, os escravos são ‘pés e mãos do senhor’, um escravo ‘para marido’ e para os escravos são necessários três ppp: ‘pão, pau e pano’ essa última frase é uma das orientações do padre Antonil no trato dos escravos.5 E a frase ‘um escravo para marido’ aparece na voz da Raquel no romance de Joaquim Manuel de Macedo O moço loiro, publicado em 1845. Essa visão do personagem africanoescravo como um ser bárbaro, perigoso, que precisava apanhar para ser domado ganha no texto literário descrições que confirmavam a ideia que a sociedade tinha a seu respeito. Para entendermos o processo de formação do estereótipo em relação aos africanos cativos será importante definirmos preconceito e tempo-espaço. O romance de Macedo ao reconduzir as “vozes sociais” sobre o cativo na narrativa literária deixou para os historiadores uma importante fonte para a pesquisa onde tempo cronológico, o lócus social do escravo e o modo de produção escravista criaram o que denominamos um tempo social do discurso. Segundo Antônio Olímpio Sant´Ana preconceito: É uma opinião preestabelecida, que é imposta pelo meio, época e educação. Ele regula as relações de uma pessoa com a sociedade. O preconceito nasce com base em estereótipos, as pessoas julgam as outras. Por isso o preconceito é um fenômeno psicológico. Ele reside apenas na esfera da consciência e/ou afetividade dos indivíduos e por si só não fere direitos. Ninguém é obrigado a gostar de alguém, mas é obrigado a respeitar os seus direitos (SANT’ANA, Apud, MUNANGA, 2005, p. 62). Utilizamos aqui o conceito de doxa a partir de Aristóteles. Sobre o tratamento dos escravos, alimentação e doenças e a formação do tráfico para o Brasil ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. 4 5

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Como já referido o romance foi publicado em 1869 sintetizando através de três histórias as bases do preconceito étnico em relação aos escravos. Temos assim o seguinte esquema para analisar a relação linguagem-preconceito:  TÍTULO: é um oximoro: “Vítimas-algozes”. O escravo é vítima do sistema que o escravizou e um algoz, pois a violência é a marca da sua relação com a sociedade Imperial e ela é demonstrada na construção dos personagens escravos e no enredo das três histórias;  LINGUAGEM: São usadas de três formas distintas: PEDAGÓGICA: “Cuidado com os escravos”. É importante alertar para o perigo de se ter escravos privando da intimidade doméstica. Ou seja, o cativo deve ficar reservado ao trabalho no eito. CRÍTICA: Os escravos (os negros) são um cancro social e não a escravidão. Nesse ponto é importante ressaltar que a crítica coloca nos ombros dos cativos a responsabilidade pela violência contra seus senhores. É importante nos lembrarmos do tempo de escritura e publicação do romance. Em 1869 apesar de já termos por parte de alguns setores da sociedade críticas sobre o modo de produção escravista é importante ressaltar que as críticas são no sentido de reformar a instituição escravista e não aboli-la. É o que denominamos emancipacionismo. Quando nos referimos sobre a questão pedagógica do uso da linguagem é importante ressaltar que o eixo da trama narrativa se dá no espaço doméstico. E no caso específico do conto analisado a propriedade rural na qual Pai Raiol irá trabalhar. É uma pequena propriedade que têm nos braços do dono e de alguns escravos a força motriz para o seu desenvolvimento. Diferentemente das grandes propriedades onde a importância do braço cativo no trabalho agrícola norteia também as decisões políticas sobre o modo de produção escravista que podem ser percebidas nas leituras dos discursos jornalísticos, políticos e religiosos da época, e no caso da nossa análise o ficcional.6 Sobre o emancipacionismo e a abolição enfocando as questões políticas, sociais e econômicas conferir os trabalhos: COSTA, Emília Viotti. da. Da senzala à colônia. 3ed. São Paulo: Brasiliense, 1989, 6

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PRECONCEITUOSA: A construção dos personagens e o narrador definem o locus social do negro na sociedade brasileira. A análise da construção dos personagens é muito importante no decorrer da leitura observamos a construção do seguinte binômio: Bondade/Brancura e Maldade/Negritude (grifo nosso). Os senhores são retratados como bons, honestos, brancos, de olhos claros, cabelos anelados e pele alva. Por sua vez, os escravos são retratados como: violentos, dissimulados, negros, olhos escuros expressando sua maldade, cabelos crespos e a pele marcada por cicatrizes e mutilações. O tempo é um conceito importante para a análise da formação do estereótipo e preconceito que se constrói acerca do cativo. Segundo o Dicionário de conceitos históricos o verbete tempo é definido como o “estudo de atividades e produções humanas, ou seja, da cultura, ao longo do tempo” (SILVA, 2010, p. 390). As questões sobre o tempo tais como: medi-lo, sua organização, as relações do tempo e trabalho, as relações entre o tempo e espaço além das formas de medilo sempre estiveram no horizonte de pensamento das diversas civilizações. Esses questionamentos levaram a inúmeras invenções modificando a forma como a sociedade se relacionava com o tempo. A escrita da história também foi influenciada pelas transformações na conceituação do tempo. Duas concepções sobre o tempo são importantes como norteadoras das reflexões: a primeira é a noção de tempo cíclico em que o tempo que parece finalizar aponta para um novo começo. Silva resgata o exemplo da reencarnação onde a morte significa uma nova vida para a civilização hindu e, portanto, o tempo é cíclico. A segunda forma de pensar o tempo é o tempo linear, onde haveria um único início e um único final, ou seja, um único início para o mundo, universo e história. Novamente o exemplo é extraído da religião, a crença judaico-cristã que influenciou o mundo ocidental em diversos momentos como a Idade Média, o Iluminismo, etc. (SILVA, 2010, p. 390-391). LIMA, Lana Lage da Gama.Rebeldia negra e abolicionismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981 e GRAM, Richard. Escravidão reforma e imperialismo. Trad.: Luiz João Caio. São Paulo: Perspectiva, 1979.

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Jorge Luis Borges ao refletir sobre o tempo o considerou também como uma sucessão. E observa que a noção de tempo é essencial: Quero dizer que não podemos prescindir do tempo. Nossa consciência passa continuadamente de um estado a outro, e isto é o tempo: a sucessão. Parece-me que Henri Bérgson disse que o tempo era o problema central da metafísica. Se esse problema tivesse sido resolvido, tudo teria sido resolvido. Felizmente, acho que não existe nenhum risco de que ele se resolva; ou seja, continuaremos sempre ansiosos. Sempre poderemos dizer, como Santo Agostinho: ‘O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei. Se me perguntarem, ignoro’ (BORGES, 2011, p. 6768). O tempo está em associação direta com a matéria, segundo Marcio Doctors: Na ação de mudança que é capaz de imprimir sobre ela, modificando-a e reordenando as relações especiais. Percebemos hoje que, antes de ser espaço o Universo é tempo. Isso significa dizer que a forma material é atravessada pelo tempo, que ele garante a plasticidade da matéria, moldando o espaço. Regido pela mudança, o tempo constitui a potência do ‘entre’, ele é ‘em passagem’, manifestando-se nos interstícios da matéria, na passagem entre uma forma e outra. O espaço, então, passa a ser visto como matéria informada, e a forma é percebida como expressão cinemática da ação do tempo sobre a matéria. E a vida, como percepção das potências do tempo, é mudança (DOCTORS, 2003, p. 07). Deslocando a noção de Doctors para o conto Pai Raiol, o feiticeiro temos o tempo-espaço e a formação do preconceito religioso que pode ser percebido através do que denominamos tempo-espaço da linguagem que é desdobrado em três possibilidades de leitura/análise segundo o esquema abaixo: [ 55 ]

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Tempo-espaço da Linguagem: 

Tempo-espaço social/econômico: A escravidão X economia; O modo de produção escravista teve sua origem no modelo de ocupação-exploração das terras coloniais brasileiras a partir de 1530 pela Coroa portuguesa. Os grandes ciclos econômicos: o açúcar, a mineração, o café, o charque entre outros que fariam a colônia brasileira cumprir sua função histórica – enriquecer a Metrópole portuguesa – sempre tiveram o braço escravo como sua principal fonte de mão de obra. Segundo Nelson Werneck Sodré: A propriedade territorial, constituindo a ossatura em que repousa a articulação econômica, por ser a terra o bem por excelência, e servindo para discriminar a posição das classes sociais, deve ser complementada, entretanto, no estabelecimento do regime de trabalho. Com ele se completa, e adquire toda a sua amplitude, a estrutura da produção. Ora, o regime de trabalho só pode encontrar uma saída na empresa colonial, a da escravidão (SODRÉ, 2002, p. 63-64, grifo nosso). A importância do braço escravo ultrapassou a questão econômica para ser o elemento agregador e unificador do Estado Nacional brasileiro em um momento em que a América espanhola cortava os laços da exploração colonial com a Espanha. Nesse sentido é importante resgatar a análise de Jacob Gorender: O que, no fundamental, permitiu ao poder central o triunfo sobre tendências fragmentadoras e a manutenção da unidade nacional foi a existência de uma classe dominante nacionalmente coordenada pelo interesse comum de defesa da instituição escravista (GORENDER, 2000, p. 13, grifo nosso). A escravidão foi extremamente importante economicamente para os planos de ocupação e exploração do Brasil pela metrópole portuguesa e posteriormente tendo continuidade através da política Imperial brasileira. O mesmo não pode ser dito a respeito das populações da África subsaariana. O [ 56 ]

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processo de escravização imputado às populações de regiões como: Luanda, Benguela, Estados do Delta do Niger, Senegal, Angola e Moçambique, foram alvos durante 350 anos de um cruel processo de desorganização cultural, política e econômica. A retirada sistemática de suas populações que reduzidas à condição de ‘peças’, desumanizadas e vendidas enriqueceram duplamente Portugal, não só através do comércio como também do trabalho feitorizado, base da exploração econômica brasileira, como já foi mencionado. O cotidiano dos senhores e escravos no Brasil passou ao largo do que denominamos tranquilidade. O grande volume documental: processos crimes, anúncios de fugas, formação de quilombos e a literatura, entre outros, são fontes sempre revisitadas pelos historiadores para a reconstituição da história social da escravidão brasileira, mas também apontam para a tensão e a violência que pautaram as relações senhores-escravos. Foram muitas as estratégias utilizadas pelos portugueses no processo de dominação do grande número de cativos africanos necessários para mover a economia brasileira. À coerção física como forma de obrigá-los ao trabalho somamos a negação dessas populações africanas como produtoras de cultura, de seus ritos religiosos, festivos e fúnebres como importantes fatores no controle do contingente africano deslocado com a diáspora africana. A partir das fontes documentais pode-se perceber que o pensamento que era consenso à época sobre o africano cativo poderia ser assim descrito: se o negro escravo é ser um instrumento de trabalho, logo ele não é humano e, portanto, não é produtor de cultura.  Tempo-espaço cronológico: Crise da mão-de-obra escrava; O tempo cronológico para nossa análise é o ano de 1869, data de publicação das histórias de Macedo. Passaram 19 anos da lei Euzébio de Queiros que em 1850 aboliu o tráfico de africanos para o Brasil. Mesmo assim é necessário ressaltar que: O escravismo colonial se conjugou intimamente ao predomínio do latifúndio. O que, na trajetória da colonização portuguesa, decorreu da própria escravidão, organizada em torno do eixo da plantagem produtora de bens de exportação, bem como do processo de legalização da propriedade da terra por meio da instituição das [ 57 ]

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sesmarias. As doações de áreas públicas feitas através destas foram suspensas em 1822 e definitivamente extintas pela Lei de Terras de 1850, quando passaram a ser consideradas legais somente as aquisições de áreas públicas mediante compra (GORENDER, 2000, p. 71). A citação de Gorender demonstra a importância do binômio braço escravo/grande propriedade rural na formação econômica do Brasil. Indo além das questões econômicas ela pode ser observada em diversos momentos na história brasileira, como a influência política dos senhores de terras, no momento da Independência. Autores como Mário Maestri, Clóvis Moura e Jacob Gorender entre outros apontam que a data de 7 de setembro de 1822 foi uma substituição da opressão portuguesa pela opressão de seu herdeiro fixado em solo brasileiro. Foi o Império e senhores de escravos que juntos mantiveram o espaço territorial brasileiro unido quando da série de rebeliões que assolaram o Império tornandose conhecidas como “Revoltas do Brasil Império”. Na análise de Gorender: O que, no fundamental, permitiu ao poder central o triunfo sobre tendências fragmentadoras e a manutenção da unidade do território nacional foi a existência de uma classe dominante nacionalmente coordenada pelo interesse comum de defesa da instituição escravista (GORENDER, 2010, p. 13). Com uma estimativa de entrada de um total de braços cativos da ordem de 3,8 milhões de africanos para o período escravista brasileiro a lei de 1850 representou um duro golpe à instituição escravista. O aumento do preço dos escravos, a necessidade crescente de seus braços para a lavoura cafeeira e o comprometimento do governo Imperial na defesa dos interesses dos senhores escravocratas deflagrou a denominada crise da mão-de-obra escrava. Com a crise cresce a necessidade da imigração europeia e a ideia do emancipacionismo, ou seja, reformar a instituição escravista sem aboli-la. É nesse contexto de tempoespaço social que a narrativa de Macedo pode ser enquadrada. Flora Süssekind em texto introdutório para as histórias folhetinescas chama atenção para a literatura exemplo onde será defendida a tese de que: [ 58 ]

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A escravidão é um mal, transforma os cativos em algozes e os senhores em vítimas, escravos – como parábolas que propõem ao leitor uma única conduta possível – a emancipação gradual – com relatos singulares, mas exemplares da mesma regra geral – a escravidão é um cancro, ‘sífilis moral que infecciona’ as casas e fazendas senhoriais – que se poderiam definir as três novelas que compõem As vítimas-algozes (SÜSSEKIND, apud, MACEDO, 1991, p. XXIII). A organização do processo econômico de ocupação e exploração brasileiro, o pacto político entre Império e senhores como construtores do tempo cronológico em que o autor escreveu forneceu elementos para a construção da trama ficcional que denominamos tempo discursivo percebido a partir das vozes dos personagens, narrador e do próprio autor no prefácio que escreveu para as histórias.  Tempo-espaço discursivo: O que é possível enunciar; Vítimas-algozes é uma das poucas narrativas ficcionais, que o autor faz uso de sua própria voz colocando o seu fazer literário a serviço das questões sociais. No prefácio do autor que recebeu o título de “Aos nossos leitores” em diversos momentos percebemos a preocupação de Macedo em alertar aos senhores sobre as questões sócio-econômicas advindas da crise da mão-de-obra escrava. Ele dividiu o prefácio em quatro partes, na primeira ele alerta aos leitores que fugirá da ficção para, Contar-vos em alguns romances histórias verdadeiras que todos vós já sabeis, sendo certo que em as já saberdes é que pode consistir o único merecimento que porventura tenha este trabalho; porque na vossa ciência e na vossas consciências se hão de firmar verdades que vamos dizer. Serão romances sem atavios, contos sem fantasias poéticas, tristes histórias passadas a nossos olhos, e a que não poderá negar-se o vosso testemunho (MACEDO, 1991, p. 01).

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Nas outras partes do prefácio Macedo justifica a trama narrativa a partir de razões sociais, morais e históricas. Faz questão de lembrar da revolta no Haiti como um fato importante a ser considerado pelos senhores brasileiros e seus escravos domésticos e rurais: Esquecemos o Bug-Jargal, o Toussaint Louverture e o PaiSimão;7 o escravo que vamos expor a vossos olhos é o escravo de nossas casas e de nossas fazendas, o homem que nasceu homem, e que a escravidão tornou peste ou fera. Contar-vos-emos, pois em pequenos e resumidos romances as histórias que vós sabeis, porque tendes sido delas testemunhas. Se pensardes bem nestas histórias, deveis banir a escravidão, para que elas não se reproduzam. Porque estas histórias veracíssimas foram de ontem, são de hoje, e serão de manhã, e infinitamente se reproduzirão, enquanto tiverdes escravos. Ledes e vereis (MACEDO, 1991, p. 05). Mesmo alertando os leitores que não escreverá ficção Macedo faz questão de ressaltar o papel social do escritor ao declarar: Pobre escritor de acanhada inteligência, rude e simples romancista sem arte, que somente escreve para o povo, não nos animaremos a combinar planos de emancipação, nem presumidos de ciência procuraremos esclarecer o público sobre as altas conveniências econômicas, e as santas e irrecusáveis lições filosóficas que condenam a escravidão. Como, porém, é dever de cada um concorrer a seu modo, e nas suas condições, para o desenlace menos violento desse nó terrível, e servir à causa mais melindrosa e arriscada, porém indeclinável, que atualmente se oferece ao Segundo nota de rodapé de Flora Süssekind em texto introdutório do romance, Bug-Jargal foi o herói do romance homônimo de Victor Hugo, escrito em 1818 e publicado em 1821. A ação se passa em São Domingos durante a revolta dos negros. Toussaint Louverture teve importante participação na revolta dos escravos em São Domingos em 1791. Sobre Pai-Simão a autora escreveu que não foi localizada qualquer referência. 7

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labor e à dedicação do civilismo, pagaremos o nosso tributo nas proporções da nossa pobreza, escrevendo ligeiros romances (MACEDO, 1991, p. 04). A citação acima é também um bom exemplo do discurso que pode ser enunciado em tempos de poder dos grandes cafeicultores/senhores de escravos. Ao mesmo tempo em que Macedo avisa que irá contar histórias verdadeiras ele ao defender o papel social do escritor e da literatura em época de tantas discussões sobre o uso e o fim da mão-de-obra escrava o faz com cuidado quando ao final de sua defesa ressalta que escreverá “ligeiros romances”.

Pai Raiol, a formação do preconceito8 Ao revisitar Vítimas-algozes. Quadros da escravidão, sintetizando, temos a primeira edição que é de 1869, houve uma segunda edição em 1896 e depois a narrativa foi esquecida até ser resgatada na Fundação Casa Rui Barbosa onde em 1988, por ocasião do centenário da abolição da escravidão, recebendo uma terceira edição no ano de 1991. A partir dos números de edições que a narrativa recebeu podemos inferir que a escravidão como objeto de matéria ficcional é datado no tempo e espaço. O tempo o ano de 1869 marcou o período das discussões em torno do projeto emancipacionista que pregava a reforma da instituição escravista visando retardar e quem sabe prolongar o sistema escravista. O espaço é o do Brasil independente e como já foi mencionado foi à custa da instituição escravista que se pôde manter unido territorialmente e a continuação da casa real portuguesa conduzindo os destinos políticos do país. Tomando o conceito de tempo cronológico a narrativa de Joaquim Manuel de Macedo, no prefácio, “Aos nossos leitores” é possível entender a motivação do autor na escolha da personagem escrava como personagem A narrativa Vítimas-algozes. Quadros da escravidão foi objeto de análise pela autora nos livros: O escravo de papel. O cotidiano da escravidão na literatura do século XIX. Caxias do Sul: EDUCS, 2012 e Faces da personagem escrava.Caxias do Sul; EDUCS, 2001. 8

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principal ao invés de moças casadoiras, senhoras, senhores, óperas, cafés, espaços urbanos e rurais. A narrativa de Vítimas – algoz não foge à regra das descrições sobre as elites e a vida mundana dos senhores. Mas principalmente as histórias folhetinescas de Macedo tinham por objetivo alertar a sociedade sobre o perigo da convivência dos senhores com seus escravos. Portanto ele não estaria criando nenhuma situação embaraçosa para os grandes escravocratas: colocaria no papel tudo que socialmente se comentava a respeito dos cativos. É nesse contexto que podemos inserir as três histórias de Macedo. O autor considerava a instituição escravista como um “mal” e é a partir dessa ideia que as tramas são construídas formando os estereótipos. Segundo Macedo (1991) a escravidão era um “mal enorme que afeia, infeccionava, avilta, deturpa e corrói nossa sociedade”, e a sociedade ainda se apegava a ela como a “desgraçada mulher que, tomando o hábito da prostituição, a ela se abandona com indecente desvario” uma instituição tão corruptora da moral como a ordem escravista. Macedo é realista sobre a necessidade da reforma da instituição escravista. Ele acreditava que não se extirparia o cancro sem dor. Utilizando essa metáfora, o autor comparou a sociedade a um organismo que possui um cancro infeccionando-o e enfraquecendo-o. A escravidão era esse cancro que, por toda a parte, trazia a má influência, os vícios e os crimes. Apesar de reconhecer que a escravidão fora um instrumento de riqueza agrícola do país, ele a condenava. Segundo Macedo: A escravidão, que é cancro social, abuso inveterado que entrou em nossos costumes, árvore venenosa plantada no Brasil pelos primeiros colonizadores, fonte de desmoralização, de vícios e de crimes é também ainda assim instrumento de riqueza agrícola, manancial do trabalho dos campos, dependência de inumeráveis interesses, imenso capital que representa a fortuna de milhares de proprietários, e portando a escravidão para ser abolida fará em seus últimos arrancos de monstro cruelíssima despedida (MACEDO, 1991, p. 03).

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Era mais enfático ainda quando afirmava que era a instituição escravista a fonte de todos os vícios e crimes, mesmo que ele tivesse feito fortuna de milhares de proprietários ao longo da história brasileira. Por isso e pelo poder que exerciam os escravocratas, a crítica do autor à escravidão possuía limites. Para burlar essa ‘vigilância senhorial’, Macedo enfatiza a ideia de que “não nos animaremos a combinar planos de emancipação, nem presumidos de ciência procuraremos esclarecer o público sobre as altas conveniências econômicas, e as santas e irrecusáveis lições filosóficas que condenam a escravidão” (Macedo, 1991, p. 03). Além do compromisso cívico com as discussões, o principal objetivo de Macedo ao escrever as três histórias que compõem o romance, era tornar bem clara a toda sociedade a torpeza da escravidão e sua má influência na família senhorial brasileira. A forma que o ficcionista tratará a questão sem se incompatibilizar com os senhores será: as descrições físicas das personagens escravas revelarão a partir do diálogo a falta de moralidade dos negros cativos e o uso de seus ‘bárbaros saberes’ para destruir as famílias, e o tratamento preconceituoso dado às questões da cultura africana e de sua religiosidade. O conto possui 27 capítulos e conclusão. Todos os capítulos finalizam com uma mensagem aos leitores sobre o quanto a convivência com escravos domésticos, e no caso feiticeiro, poderia ser perigosa para a família senhorial. Na conclusão, em um tom narrativo ameaçador, é reforçada a ideia de que a esposa e filhos morreram por causa dos venenos e da feitiçaria de Pai Raiol restando vivo apenas Paulo Borges, o fazendeiro. Esse irá amargar para o resto de sua vida a compra do escravo feiticeiro e de sua companheira Esméria. O narrador termina reponsabilizando a instituição escravista pela fatalidade: A asa negra da escravidão roçara por sobre a casa e a família de Paulo Borges, e espalha nelas a desgraça, as ruínas e mortes violentas dos senhores. Pai Raiol e Esméria, algozes pela escravidão, esses dous escravos assassinos não podem mais assassinar... A escravidão, porém, continua a existir no Brasil. E a escravidão, a mãe das vítimas-algozes, é prolífica (MACEDO, 1991, p. 152). Pai Raiol desde o início da trama demonstra um grande sentimento de vingança e rancor contra os senhores. O narrador, nos três primeiros capítulos, [ 63 ]

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teceu longas considerações a respeito do perigo que representavam as casas onde se praticavam cultos a seu ver “bárbaros” e onde eram ingeridas bebidas estranhas ao som de tambores. Os capítulos são muito importantes, pois eles ratificam o pano de fundo da trama que é demonstrar a religiosidade africana como um grande perigo para sociedade senhorial cristã. Ao tratar a religiosidade africana como charlatanismo através da voz do narrador e dos personagens Macedo ignora o aspecto cultural africano manifestado através da prática religiosa inaugurando um longo período de perseguição aos praticantes dos ritos religiosos africanos que atravessaria o século XIX estendendo-se ao século XX e XXI. Ao final do primeiro capítulo o narrador chama atenção que a prática do charlatanismo não era privilégio só do Brasil, mas já se espalhara por toda a Europa. A questão é que no Brasil a feitiçaria foi introduzida pelo negro escravo. Segundo descrição: Na cidade do Rio de janeiro (e quanto mais nas outras do Império!) ainda há casas de tomar fortuna, e com certeza pretendidos feiticeiros e curadores de feitiço que espantam pela extravagância, e grosseria de seus embustes. A autoridade pública supõe perseguir; mas não perseguem séria e ativamente esses embusteiros selvagens em cujas mãos de falsos curandeiros têm morrido não poucos infelizes. (grifo do autor) E que os perseguissem zelosa e veemente, a autoridade pública não poderá acabar com os feiticeiros, nem porá termo ao feitiço, enquanto houverem no Brasil escravos, e ainda além da emancipação destes, os restos e os vestígios dos últimos africanos, a quem roubamos a liberdade, os restos e os vestígios da última geração escrava de quem hão de conservar muitos dos vícios aqueles que conviverem com ela em intimidade depravadora (MACEDO, 1991, p. 71-72, grifo nosso) É importante ressaltar que na pressa de ligar a prática de feitiçaria ao negro escravo o autor ratifica erroneamente uma noção que já circulava no meio social brasileiro, a de que a sífilis era oriunda da África, “o feitiço, como a sífilis, [ 64 ]

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veio d´África. Ainda nisto o escravo africano, sem o pensar, vinga-se da violência tremenda da escravidão”. No segundo capítulo o narrador afirma: “o escravo africano é o rei do feitiço”. (grifo do autor) A voz do narrador tece uma série de argumentos defendendo a ideia de que um povo bárbaro só poderia criar ritos religiosos bárbaros com objetivo de atingir, seus senhores, e assim vingar-se da condição escrava que lhe foi imposta. Sobre a forma de organização dos rituais encontra-se na descrição: O feitiço tem seu pagode, seus sacerdotes, seu culto, suas cerimônias, seus mistérios; tudo porém grotesco, repugnante e escandaloso. O pagode é de ordinário uma casa solitária: o sacerdote é um africano escravo, ou algum digno descendente e discípulo seu, embora livre ou já liberto, e nunca falta a sacerdotisa da sua igualha; o culto é de noute à luz das candeias ou braseiro; as cerimônias e os mistérios de incalculável variedade, conforme a imaginação mais ou menos assanhada dos embusteiros. Pessoas livres e escravas acodem à noute e à hora aprazada ao casebre sinistro; uns vão curar-se do feitiço, de que se supõem afetados, outros vão iniciar-se ou procurar encantados meios para fazer o mal que desejam ou conseguir o favor que aspiram (MACEDO, 1991, p. 74). A descrição ficcional do desenvolvimento do ritual não poupa a música, os instrumentos musicais e as bebidas sempre ressaltando a ligação com a origem africana dos cativos. Apesar de longa a descrição a seguir é ilustrativa da forma preconceituosa que a religiosidade africana é descrita: Soam os grosseiros instrumentos que lembram as festas selvagens do índio do Brasil e do negro d´África; vêem-se talismãs rústicos, símbolos ridículos; ornamentam-se o sacerdote e a sacerdotisa com penachos e adornos emblemáticos e de vivas cores; prepara-se ao fogo, ou na velha e imunda mesa, beberagem desconhecida, infusão de raízes enjoativas e quase sempre ou algumas vezes esquálida; o sacerdote rompe em dança frenética, terrível, [ 65 ]

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convulsiva, e muitas vezes, como a sibila, se estorcem no chão: a sacerdotisa anda como douda, entra e sai, e volta para tornar a sair, lança ao fogo folhas e raízes que enchem de fumo sufocante e de cheiro ativo e desagradável a infecta sala, e no fim de uma hora de contorções e de dança de demônio, de ansiedade e de corrida louca da sócia do embusteiro, ela volta enfim do quintal, onde nada viu, e anuncia a chegada do gênio, do espírito, do deus do feitiço, para o qual há vinte nomes cada qual mais burlesco e mais brutal. Referve a dança que se propaga: saracoteia a obscena negra e o sócio, interrompendo o seu bailar violento, leva a cuia ou o vaso que contém a beberagem a todos os circunstantes, dizendo-lhes: ‘toma pemba’! E cada um bebe um trago da pemba imunda e perigosa (MACEDO, 1991, p. 74) O termo “tomar pemba” que aparece entre aspas e grifado no conto refere-se a uma bebida ingerida no que hoje denominamos a liturgia religiosa. Ao pesquisarmos a palavra pemba encontramos no Dicionário de Cultos Afrobrasileiros como um “giz grosso com cola, em forma cônica, usado para riscar ‘pontos’ que identificam a linha vibratória a que a entidade pertence” (CACCIATORE, 1977, p. 209-210). Cacciatore também menciona que pemba era usada antigamente em trabalhos de magia na macumba carioca com as cores dos orixás nagô. Segundo a autora há uma ilha junto a Zanzibar com o nome de Pemba. A descrição física de Pai Raiol completa a construção imagética e preconceituosa do barbarismo da religiosidade africana na ficção de Macedo. Paulo Borges, o fazendeiro que comprou o escravo em um leilão era o seu quinto senhor: Era um escravo africano (Pai Raiol) de trinta a trinta e seis anos de idade, um dos últimos importados da África pelo tráfico nefando: homem de baixa estatura tinha o corpo exageradamente maior que as pernas; a cabeça grande, os olhos vesgos, mas brilhantes e impossíveis de se resistir à fixidade de seu olhar pela impressão incômoda do estrabismo duplo, e por não sabermos que fluição de [ 66 ]

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magnetismo infernal; quanto ao mais, mostrava os caracteres físicos de sua raça; trazia, porém nas faces cicatrizes, porém nas faces cicatrizes vultuosas de sarjaduras recebidas na infância: um golpe de azorrague lhe partir pelo meio o lábio superior, e a fenda resultante deixara a descoberto dous dentes brancos, alvejantes, potudos, dentes caninos que pareciam ostentar-se ameaçadores; sua boca era, pois como mal fechada por três lábios; dous superiores completamente separados, e um inferior perfeito: o rir, aliás, muito raro desse negro era hediondo por semelhante deformidade (MACEDO, 1991, p. 82). Como era comum na prática da feitiçaria, Pai Raiol tinha uma companheira ela se chamava Esméria. Com a ajuda de Esméria o feiticeiro conhecedor de ervas que ela preparava e administrava a seus senhores. O casal vinga-se da família envenenando-os e assim vingavam-se da condição escrava fazendo uso do feitiço. A feitiçaria praticada nas casas que o narrador denominou como candombes são um flagelo e somente com término do modo de produção escravista as práticas de feitiçarias seriam extintas: Desse culto grotesco, esquálido da feitiçaria sai o gérmen da desmoralização de muitas famílias, cujos chefes por superstição e fraqueza são cativos de um escravo, deixando-se dominar pelo grande feiticeiro. Saem dele envenenamentos que matam de súbito, que aos poucos dilaceram aflitivamente as vidas das vítimas. Saem dele o contágio da superstição, que é um flagelo, a aniquilação do brio, que é a ruína dos costumes e das noções de dever, a religião do mal, e o recurso ao poder de uma entidade falsa, mas perversa, que é a fonte aberta de confianças loucas, e de crimes encorajados por uma espécie de fanatismo selvagem, que por isso mesmo se torna mais tremendo e fatal. Essa prática de feitiçaria organizada, instituída com cerimônias e mistérios, embora repugnantes e ignóbeis, é uma peste, que nos veio com os escravos d´África, que [ 67 ]

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desmoraliza; e mata muito mais do que se pensa, e que há de resistir invencível a todas as repressões, enquanto houver escravos no Brasil, e ainda depois da emancipação dos escravos, enquanto a luz sagrada da liberdade não destruir todas as sombras, todos os vestígios negros da escravidão que trouxe da África as superstições, os erros, as misérias, e as torpitudes da selvatiqueza (MACEDO, 1991, p. 75). O narrador mencionou o termo candombe como sendo o nome dado as casas que praticavam a “feitiçaria”. Consultando o dicionário de cultos afrobrasileiro encontramos o verbete candombe com os seguintes significados: Antiga dança de escravos das fazendas, talvez sem sentido religioso, espécie de batuque.// Atabaques usados nessas danças. // Tipo de grupo (“guarda”) que faz parte das Congadas em Minas Gerais. // Desse termo, no sentido de dança com atabaques, é provável que se tenha originado o termo Candomblé (v.) F.p. – Kimb.: “Ka” – costume, uso; Kik.: “ndombe” – preto (costume dos pretos) (CACCIATORE, 1977, p. 78). Em estudo sobre a contribuição das línguas africanas no Brasil, Renato Mendonça definiu candombe como: “sm.: Dança sagrada, cangirê dos negros. Etim.: Termo africano. Há também o adjetivo candombeiro” (MENDONÇA, 1973, p. 126, grifo do autor). Pelos dois estudos de Cacciatore e Mendonça percebemos que o termo estaria mais ligado a uma manifestação artística cultural, a dança, que propriamente o significado corrente ao longo do século XIX, como denominação de um espaço arquitetônico de cunho religioso. O narrador reforça que a feitiçaria ao lado da instituição escravista era a responsável pela morte, doença e ruína de muitos fazendeiros: E sempre que puserdes a mão em um desses feiticeiros, encontreis nele um negro escravo... ou algum seu iniciado. E tomai sentido e precauções: o escravo, não nos cansaremos de o repetir, é, antes de tudo natural inimigo de [ 68 ]

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seu senhor; e o escravo que é feiticeiro, sabe matar. (MACEDO, 1991, p. 78). E mais adiante, no capítulo VIII, o narrador retoma a personalidade soturna de pai Raiol e seus hábitos para reforçar o perigo que a feitiçaria e, mais do que isso, ter um feiticeiro por perto representava. Segundo o narrador: Nos domingos e dias santificados fazia ligeira visita à venda para prover-se de aguardente e fumo: depois pedia em casa a sua ração e internava-se nas florestas, ou divagava pelos matos novos, e recolhia-se à noute. Que ia o Pai Raiol fazer às florestas, e aos matos novos? Alguns o reputavam caçador, porque algumas vezes ele trazia de volta animais e aves que conseguia apanhar em laços e mundéus. Só Esméria acertava, dizendo entre si: - O feiticeiro foi colher folhas, frutos e raízes que bem conhece, e brincar com as cobras venenosas, porque delas é o rei. Com efeito, o Pai-Raiol estudava com sua rudíssima prática e flora das matas vizinhas da fazenda; achava e colhia plantas venéficas suas conhecidas, e descobria novas, cujas propriedades suspeitas experimentava. Pai-Raiol se armava, preparava e enriquecia o seu arsenal: o feiticeiro não passa de envenenador; é o assassino charlatão (MACEDO, 1991, p. 90).

Pai -Raiol, o feiticeiro: conclusões A narrativa de Joaquim Manuel de Macedo intitulada Vítimas-Algozes. Quadros da escravidão demonstrou através da narrativa ficcional escrita pela elite letrada do século XIX a formação do estereótipo do escravo africano como feiticeiro, contribuindo assim com os estudos sócio-antropológicos que procuram, através de outras fontes, identificar e analisar a gênese do preconceito contra a religiosidade de matriz africana. A leitura do conto apontou dois caminhos para a história do preconceito na religiosidade afro-brasileira: o primeiro evidencia que o discurso sobre a escravidão veiculado no romance de Macedo critica moralmente a instituição escravista como a geradora de tantos [ 69 ]

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males à sociedade branca-cristã brasileira. A impossibilidade de questionar e responsabilizar os senhores escravocratas, pela sua importância política desde o período colonial, fez com que as vozes dos personagens e narrador responsabilizassem o escravo pelos dissabores e pela crescente tensão entre cativos e seus poderosos senhores. O segundo caminho enfatiza que resguardado o poder dos senhores de terras e escravos o ficcionista optou por ratificar uma ideia corrente na sociedade da época que construíram os estereótipos que abrangeram não só o ser humano afro-brasileiro – ladrão, bêbado, assassino e pervertido sexualmente – como também a sua contribuição cultural e no caso dessa narrativa, pai Raiol como feiticeiro e charlatão. Esses estereótipos ultrapassaram as fronteiras temporais do século XIX estendendo-se ao século XX e XXI tendo como resultado respostas sociais como: a Lei Afonso Arinos, a política de cotas e o Agravo de Instrumento elaborado pelo procurador Regional dos direitos do Cidadão à Procuradoria da República no Rio de Janeiro, base do artigo de Jean Wyllys. Ainda que, como referido no Agravo de Instrumento Jurídico, resgatando a decisão proferida pelo juiz da 17ª Vara Federal defendendo o texto escrito como base para determinar o que é religião: Com efeito, a retirada dos vídeos referentes a opiniões da igreja Universal sobre a crença afro-brasileira envolve a concorrência não a colidência entre alguns direitos fundamentais, dentre os quais destaco: Liberdade de opinião, liberdade de reunião, liberdade de religião. Começo por delimitar o campo semântico de liberdade, o qual se insere no espaço de atuação livre de intervenção estatal de terceiros. No caso, ambas as manifestações de religiosidade não contêm os traços necessários de uma religião, a saber, um texto base (corão, bíblia, etc) ausência de estrutura hierárquica e ausência de um Deus a ser venerado (Agravo de Instrumento. Procuradoria da República no Rio de Janeiro, 2014, p. 8). As vozes que se levantam no combate ao preconceito e racismo partem não só do âmbito jurídico, educacional e das instituições de pesquisa, mas [ 70 ]

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também, dos próprios religiosos. Saul de Medeiros – Saul d´Ogum – ao escrever sobre a umbanda chama atenção que: As religiões de matriz africana buscam oferecer um vínculo mais profundo entre o iniciado e o Orixá. Quem entra para o africanismo, em suas mais variadas roupagens religiosas, entra num processo de reconstrução de identidade, um reconhecer-se por meio de seu Orixá. Isso ocorre em razão da identificação com seu Orixá servir como espelho ou como norte em sua jornada na estrada da vida, por isso, a relação do sacerdote ou iniciado é profunda e vital (MEDEIROS, 2011, p. 34). Além da relação de construção identitária citada por Medeiros as práticas religiosas de matriz africanas brasileiras resgatam dois momentos importantes. O primeiro, no passado brasileiro que nos mostra que os ritos religiosos trazidos pelos cativos visavam manter vivo além das práticas sagradas, também, a língua e a identidade cultural desorganizados no processo da diáspora. No presente, as mesmas práticas são importantes como preservação dos ritos religiosos, que na sua essência guardam as características dos ritos africanos, constituindo-se parte da identidade brasileira. A estreita ligação entre as principais datas comemorativas – passagem de ano, carnaval, finados e páscoa – parecem confirmar uma relação e construção dos ritos religiosos tipicamente brasileiro que as ações preconceituosas não conseguiram destruir.

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Religiões afro-brasileiras em Pelotas: breves notas sobre a organização das entidades representativas1 Isabel Soares Campos2 Rosane Aparecida Rubert3 Este texto aborda dados etnográficos e documentais obtidos e sistematizados por meio de pesquisa desenvolvida para elaboração de uma dissertação de mestrado em Antropologia (CAMPOS, 2015), que teve como tema as polêmicas envolvendo a realização da Festa de Iemanjá, na cidade de Pelotas (RS). Esta festa ocorre há aproximadamente 58 anos no Balneário Nossa Senhora dos Prazeres,4 localizado no bairro Laranjal, e tem como ápice a passagem da noite de 1º para o dia 2 de fevereiro, ocasião em que terreiras acampam na orla da Lagoa dos Patos para realizarem seus rituais. No entardecer do dia 2 há o encontro fluvial, em pequenos e ornados barcos, da orixá Iemanjá com Nossa Este texto foi elaborado em memória de Dinorá Feijó Leal, notável mestre que doou sua vida pela construção de um espaço digno para o exercício das religiões afro-brasileiras na metade sul do RS, com todas as ambiguidades e contradições que esse processo possa ter acarretado. 2 Antropóloga; Mestra em Antropologia pelo PPGAnt – UFPel (Universidade Federal de Pelotas); [email protected]. 3 Prof.ª Dr.ª do Departamento de Antropologia e Arqueologia – UFPel (Universidade Federal de Pelotas); [email protected]. 4 Este balneário é conhecido localmente pela alcunha de “Barro Duro” e “Planeta dos Macacos”. Ambas as nominações remetem para a histórica presença afrodescendente no local, mas infelizmente este espaço é exíguo para abordarmos esta questão. 1

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Senhora dos Navegantes, que parte em cortejo da Colônia de Pescadores Z3, situada adiante do Balneário dos Prazeres, e segue seu percurso até o porto de Pelotas. A duração e o formato da festa sofreram alterações no decorrer da história, especialmente em relação aos acampamentos, outrora de maior duração, decorrentes da crescente intervenção do poder público no ordenamento do espaço da orla da laguna. Esta festividade tradicionalmente conta com a participação da comunidade religiosa afro-brasileira interna e externa ao município, dos moradores do Barro Duro, dos adeptos do sincretismo religioso entre catolicismo e religiões de matriz africana. Há também a participação de representantes políticos locais e estaduais (legislativo e executivo), em razão do grande aglomerado de pessoas. Atualmente, a festividade é organizada pela Federação Sul-Riograndense de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros, sediada em Pelotas, contando, geralmente, para a sua realização, com o apoio de secretarias municipais e com os representantes da umbanda no poder legislativo municipal. Cumpre destacar, no entanto, que adeptos das religiões afro-brasileiras cujos centros não fazem parte da Federação também participam da cerimônia, assim como, no passado, integrantes de outras organizações representativas da umbanda desempenhavam papel central na organização da festa. A orla do Balneário Nossa Senhora dos Prazeres, onde se localiza a Gruta de Iemanjá, comporta uma pequena área de mata nativa, razão pela qual foi transformada em Área de Preservação Permanente (APP) no ano de 1999. 5 Amparado em legislação ambiental e pressionado por militantes deste campo, o poder público local, juntamente com o Ministério Público Estadual, iniciou em 2012 um processo de regramento do uso daquele espaço, incluindo condicionamentos para a realização da Festa, culminando em 2014 com a proibição dos acampamentos religiosos na orla do balneário. Estes impedimentos coincidiram com um contexto em que o bairro, tradicionalmente ocupado por afrodescendentes e classes populares, vem mudando o perfil de seus moradores, devido as construções de condomínios de luxo como Alphaville e Veredas, 5

Lei nº 4.392, sancionada em 05 de julho de 1999 pelo Prefeito Otelmo Demari Alves.

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tornando-se um espaço de expansão do setor imobiliário direcionado para a classe média e alta. A realização da festa passou a ser marcada, então, por intensas negociações e embates, explicitando-se diferentes concepções e interesses relacionados à apropriação daquele espaço e aos significados da presença religiosa afro-brasileira no espaço público. Tais confrontos envolvem atores situados em distintas arenas: religiosa, ambientalista, política, jurídica, etc. Os impasses relacionados à realização da Festa explicitaram, também, marcantes disputas internas ao campo religioso afro-brasileiro, gerando à pesquisa a possibilidade de apreender sua dinâmica constitutiva, objeto do presente texto. A pesquisa foi estruturada a partir da concepção de etnografia multissituada, que preconiza que se acompanhe uma determinada problemática nas suas diferentes manifestações, em diversos níveis de pertencimento e/ou a partir da perspectiva de atores situados em múltiplas arenas (TEIXEIRA, 2014). Contemplou a observação participante das Festas de Iemanjá de 2014 e 2015, o acompanhamento e transcrição do áudio de Audiências Públicas e a participação em reuniões realizadas em espaços de representação das religiões afro-brasileiras e órgãos públicos. Foram realizadas, ainda, entrevistas qualitativas com 11 interlocutores que ocupam diferentes posições dentro do cenário articulado em torno dos impasses que cerceiam a Festa. Outros(as) interlocutores(as) fizeram contribuições valiosas à pesquisa, com informações orais e documentais, sem serem, contudo, entrevistados. A pesquisa abarcou ainda a análise de documentos contemporâneos (Inquérito Civil Público e outros documentos do Ministério Público) e históricos (Livro de Atas da Federação Sul-Riograndense de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros, reportagens e fotografias). Buscou-se mapear, na dissertação, uma diversidade de posicionamentos a partir do contraste entre estas diferentes fontes, de forma a situar o objeto de pesquisa – a Festa de Iemanjá – na dinâmica sociocultural mais abrangente que perpassa a presença negra na sociedade pelotense. Em várias situações etnográficas, a presença da pesquisadora foi estrategicamente usada e/ou barganhada, assim como os potenciais efeitos positivos da participação na pesquisa. As disputas em torno da apropriação da pesquisa, em determinadas situações, acentuaram a percepção sobre as facções e

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disputas internas ao campo religioso afro-brasileiro, especialmente no que diz respeito às suas instituições representativas. Joabe Bohns, atual presidente da Federação, está há 10 anos ocupando o cargo, tendo-o assumido em um contexto de sucessão litigiosa. A sua ascensão e sucessivas permanências no cargo desencadeou o afastamento da entidade de pessoas que se autodesignam herdeiros de gerações de umbandistas que empreenderam esforços consideráveis para a legitimação pública da umbanda em Pelotas. Por não se sentirem representados e não reconhecerem a legitimidade do então Presidente, vários levaram consigo documentos históricos da Federação e os mantêm sigilosamente. No transcorrer da pesquisa, é explicitado, por parte do Presidente, o interesse em encontrar estes documentos, especialmente Livros de Atas, projetando-se a expectativa de acessá-los e deles se apoderar. Sendo um outsider em relação ao grupo que historicamente comandava a Federação, a não detenção da memória de passagens históricas importantes impõe uma lacuna à sua plena legitimação no cargo que ocupa.6 Este cenário se complicou, em termos éticos, quando os rumos da pesquisa viabilizaram o acesso a um destes documentos, um Livro de Atas que abarca inícios da década de 1970, quando houve a fusão de duas organizações originárias, dando origem à atual Federação. O Livro foi disponibilizado para fotografias digitais e uso na pesquisa, sob o compromisso de sigilo da identidade da(o) concedente. Outros(as) interlocutores(as) indicaram que documentos similares estão em poder de outras pessoas, identificando-as, mas estas negaram a informação com respostas evasivas, embora haja indicativos de que estejam em sua posse. As acirradas disputas sucessórias no âmbito da Federação tornaram o silêncio uma estratégia de autopreservação, a qual certamente foi sobredeterminada pelo inevitável caráter invasivo que possui uma pesquisa etnográfica, levada a termo por uma pesquisadora que não possui vínculos orgânicos com este campo religioso. Silenciar e ocultar documentos assume uma dupla significação neste contexto: em primeiro lugar, é uma estratégia para gerir Não foi possível averiguar se alguns destes documentos ainda permanecem em poder da Federação, pois, não obstante o seu presidente ter concedido entrevista à pesquisadora, vedou o acesso aos arquivos. 6

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conflitos, pois prestar informações que comprometem os atuais representantes formais da Federação pode fechar caminhos para a necessária mediação destes, em situações determinadas e instâncias sociais diversas. Prestar informações que comprometem lideranças que se afastaram da atual direção pode significar, por outro lado, a traição a um legado de lutas pela legitimação destas religiões, levadas a termo em um contexto sociopolítico adverso. Em segundo lugar, o silenciamento de lideranças sobre informações e documentos que estão sob seu poder assegura o monopólio sobre uma fonte de legitimidade que pode ser acionada em eventuais disputas pela representação formal da entidade. Manteve-se, obviamente, o compromisso ético de preservar a identidade do(a) concedente do documento. Mas acredita-se que há outro compromisso, tão importante quanto este: o de revelar o seu conteúdo, de forma a gerar conhecimento sobre a trajetória da umbanda na cidade de Pelotas, além de servir de possível ferramenta para adeptos religiosos que protagonizam reações a um conjunto crescente de restrições à plena liberdade religiosa, ao largo das disputas que perpassam o cotidiano das entidades representativas. 7 O presente texto se erige em um espaço de divulgação do conteúdo deste documento. O Livro de Atas inicia com a Ata nº 65, de uma reunião de Diretoria da União de Umbanda da Princesa do Sul (UUPS) ocorrida em 26 de fevereiro de 1970. Isso pressupõe que havia outro livro de atas que registrava as atividades desta instituição, realizadas em data pregressa. Na Ata nº 66, encontrase referência que a UUPS já estava formada desde, pelo menos, o ano de 1963: “Quanto a um dos centros filiados na zona do Fragata, e que desde o ano de 1963 se encontra em débito para com a tesouraria da UUPS resolvam o Sr. Presidente cancelar a dívida, pois o cacique se encontra enfermo [...]”. A partir da Ata nº 74, de uma Assembleia Geral Extraordinária, ocorrida em 08 de outubro de 1970, o livro passa a registrar reuniões e assembleias da Federação Sul-Riograndense de Umbanda, indicando o marco de unificação da umbanda em Pelotas, a partir da fusão entre a União da Umbanda da Princesa do Sul e o Conselho da Umbanda. A continuidade dos registros de Atas no livro abarca os anos de 1971 e 1972, com Sobre os compromissos éticos inerentes à construção do conhecimento antropológico ver Oliveira (2010, p. 27-28). 7

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lacuna para o ano de 1973, reiniciando-se o uso do livro em Ata nº 19, de reunião ocorrida em 20 de janeiro de 1974. Os registros continuam até a Ata nº 28, relativa a uma reunião de Diretoria ocorrida em 28 de novembro do mesmo ano. Ao que tudo indica, esta lacuna nos registros deve-se a conflitos entre os membros que assumiram a direção da Federação ao final de 1972.8 Além de informações sobre a Festa de Iemanjá, esta fonte possibilitou a compreensão, ainda que parcial, dos processos associativos dos centros de umbanda em Pelotas, o grau de abrangência da representação das instituições fundadas para esse fim, a sua estrutura organizacional interna, os objetivos e funções aos quais se propunham, as relações com o campo político, dentre outros aspectos. São alguns destes aspectos que serão abordados na sequência deste texto, buscando-se valorizar ao máximo essa fonte inédita, com complementações de depoimentos.

Da magia à religião É de amplo conhecimento que a transição da escravidão para a pósabolição, assim como do Império à República, se fez sob a égide das teorias racialistas que legitimavam o reposicionamento de hierarquias diante da iminência da institucionalização do preceito liberal da igualdade formal. A preocupação com o caráter pretensamente irracional das manifestações expressivas de matriz africana, tanto quanto a necessidade de controle sobre um segmento considerável de “pretos” e “pardos”, resultou na criminalização da magia, curandeirismo, espiritismo, capoeira e vadiagem (categoria genérica passível de legitimar arbitrariedades e abusos da força policial) no Código Penal de 1890 (MAGGIE, 1992; GIUMBELLI, 2003; SCHRITZMEYER, 2004). O contexto político, marcado por concepções positivistas e por um ideário de racionalização de O reinício dos registros na Ata nº 19 indica que as atividades estavam sendo registradas em outro local – Ata nº 1 a nº 18 – e, por alguma razão, retomou-se o uso desse livro. Como será visto, este interregno de aproximadamente um ano foi caracterizado por conflitos no âmbito da diretoria da Federação, refletindo-se no processo de registro das suas atividades. O livro possui um Termo de Abertura, mas não de encerramento, sendo que depois da última ata registrada há folhas em branco, indicando que ou se mudou o suporte de registro ou, por alguma razão, as atividades deixaram de ser registradas por um período. 8

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práticas e comportamentos, favoreceu as iniciativas da classe médica de garantia do monopólio sobre as práticas de cura, resultando na patologização de segmentos e espaços sociais e a correlata intervenção higienista. É nesse contexto que um conjunto de práticas difusas, não sistematizadas em um corpus doutrinário, mas que compartilhavam princípios e procedimentos comuns, porque resultantes da recriação de formas socioculturais africanas entrecruzadas com repertórios indígenas e europeus (BASTIDE, 1989), passam para a égide da ilegalidade. A aproximação com o kardecismo, tanto em termos doutrinários como organizacional, foi uma das estratégias de adequação das práticas “mágicas” ao estatuto de religião, de forma que, em nome do princípio da liberdade de culto, angariassem a devida legitimidade social e cessassem com as perseguições policiais, da elite intelectual, da imprensa e outros setores sociais. A umbanda passa, então, a se consolidar enquanto uma nova religião que abarcava uma multiplicidade considerável de cultos e práticas. Em nome do combate ao arcaísmo e à ignorância, o Estado Novo recrudesce a repressão aos cultos afro-brasileiros, amparado em novo Código Penal que criminalizava práticas que perturbassem o sossego público, perdurando a criminalização do “charlatanismo” e “curandeirismo” (NEGRÃO, 1996; MORAIS, 2012). Além disso, são criados, em âmbito estadual, dispositivos legais e aparatos institucionais específicos para reprimir estas práticas, instituindo-se, inclusive, a necessidade de registro e licenciamento dos locais ou ocasiões de culto em delegacias de polícia (NEGRÃO, 1996; POSSEBON, 2007). A organização da umbanda em associações, que terão diversas denominações – Federação, União, etc. –, a partir da década de 1940, foi uma das principais estratégias para fazer frente às sanções legais e aos estereótipos socialmente difundidos a respeito do “baixo espiritismo” (GIUMBELLI, 2003). Promovê-la a uma alternativa religiosa socialmente aceita e zelar pela sua imagem pública foram objetivos seguidos à risca por tais associações, o que significou, por vezes, ou extirpar ou dissimular em sua doutrina e rituais aspectos considerados

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primitivos, isto é, de matriz africana, gerando um processo de branqueamento. 9 A unificação institucional, a codificação doutrinária e a padronização ritual são as principais bandeiras desse movimento federativo, que associadas a uma aproximação com o universo político partidário e com autoridades que ocupavam altos escalões na hierarquia militar, logram o alcance de uma notável legitimação nas décadas de 1960 e 1970 (NEGRÃO, 1996). O documento aqui analisado diz respeito justamente a este período e permite uma leitura, ainda que bastante parcial, dos impasses do processo de legitimação da já reconhecida religião no espaço público pelotense. As Atas demonstram um grau considerável de aceitação da umbanda por parte de certos segmentos e autoridades e, ao mesmo tempo, era vigiada de perto por eles, em uma tensa negociação entre controle e autodeterminação.

Segmentariedade x unificação: nos meandros do associativismo umbandista A articulação de organizações representativas das religiões afrobrasileiras em Pelotas encontra distintas ressonâncias nos interlocutores entrevistados, a depender das suas trajetórias. A dissonância de versões é efeito, obviamente, do caráter situado das enunciações de cada um, cuja perspectiva é moldada pelo lugar que ocupa em um campo de forças e os interesses que lhes são correlatos. Não se pode negligenciar, ainda, a própria dispersão dos documentos e registros da Federação que, ao inviabilizar consultas e compartilhamentos, dá ensejo a versões arbitrárias sobre fatos diversos, a depender de interesses de ocasião, justamente por se saber da ausência de fontes confirmadoras. Há, contudo, um nome que emerge como consensual quando se aborda a gênese das organizações representativas da umbanda em Pelotas: Dinorá Feijó “Para afirmar-se em sua especificidade, a Umbanda das federações paradoxalmente conformou-se à imagem e à semelhança de seus detratores. Para fugir à marginalização, internalizou os códigos que presidiram à lógica repressiva e excludente” (NEGRÃO, 1996, p. 86-87). 9

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Leal. Josué Martins10 assinalou, em entrevista, que a atual Federação surgiu da fusão entre a União de Umbanda da Princesa do Sul e mais outra federação, cujo nome não lembrava, sendo Dinorá Feijó o presidente da União de Umbanda. Outro interlocutor, Carlos Alberto, apresentou uma síntese de como foi o processo de fusão que originou a atual Federação: Existia em Pelotas. Olha só pra ver a fusão, porque antigamente era União da Umbanda da Princesa do Sul. Em 1970, a União juntou com o Conselho da Umbanda de Pelotas, que era do Getúlio Dias, unificou tudo e transformou. Terminou de existir a União e o Conselho, ele foi transformado em Federação Sul-Riograndense de Umbanda, aonde englobou os associados do Conselho e os associados da União, transformando em Federação de Umbanda, 1970 (Entrevista com Carlos Alberto Pereira, 14 de abril de 2015).11 A União da Umbanda da Princesa do Sul (UUPS) esteve sediada no Centro São Sebastião, situado na rua Dom Pedro II, nº 1074, 12 que era comandado justamente por Dinorá Feijó Leal e esposa. Quando a União é extinta para se constituir a Federação, a sede desta irá mudar constantemente de lugar, conforme será abordado adiante. O legado deste Centro na conformação dos Presidente da União Riograndense de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros (URUCAB) na ocasião da etnografia. Possui uma trajetória familiar vinculada às religiões afro-brasileiras. Seu pai, Santos Laureci Martins, trabalhava na Flora São Jorge, que pertencia a Dinorá Feijó Leal, vindo a participar da União da Umbanda da Princesa do Sul. Sua mãe, Sônia, pertenceu ao Centro de Umbanda São Sebastião. Josué e família atualmente estão vinculados ao Centro de Umbanda Nossa Casa, que tem sua mãe como cacique. 11 Carlos Alberto foi enteado de Irineu Viana, falecido em 2001, que presidiu a Federação SulRiograndense de Umbanda por aproximadamente 16 anos. Irineu comandava ainda o Centro de Umbanda Ogum da Mogiana, no qual Carlos Alberto foi iniciado. Carlos Alberto foi presidente do Conselho Deliberativo da Federação, sendo integrante, posteriormente, da URUCAB. É responsável pelo programa radiofônico “Filhos de Umbanda”, transmitido pela Rádio Princesa FM. 12 Na Ata nº 66, relativa a uma reunião de Diretoria, consta na abertura: “[...] propôs o Sr Adão Ramos, que o Centro São Sebastião ficasse isento do pagamento de mensalidade à UUPS, por esta ocupar uma sala do mesmo”. Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 66, folha 03 (face). 10

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processos associativos da umbanda em Pelotas é amplamente reconhecido, subsistindo até hoje, por meio das entidades assentadas dentro da sede da atual Federação: Então aqueles santos grandes que estão dentro da Federação lá, são todos os santos do São Sebastião. Eles foram doados, eu tive a missão de entregá-los, levar. Então grande parte daqueles bancos que estão ali também. Tem uma coisa muito viva que está lá dentro do São Sebastião porque na realidade o São Sebastião foi uma fundação do vô Dinorá e a vó Ernestina, era dona do São Sebastião, entendesse? (Entrevista com Josué Martins, 10 de outubro de 2014). No Livro de Atas registram-se os primeiros esforços para o processo de unificação da representação política da umbanda em Pelotas. Em Ata datada de 1º de julho de 1970 consta: Por último, expôs o Sr. presidente, haver tido um encontro com o presidente do Conselho da Umbanda de Pelotas, com o feito de unificar a Umbanda em nossa cidade, sendo talvez preciso terminar com as duas sociedades existentes e criar apenas uma federação. Todos os membros da diretoria concordaram com a ideia. Em vista disso, deverão prosseguir os entendimentos entre as duas partes. 13 Um mês depois, em reunião de diretoria, fez-se constar que “[...] quanto a esperada unificação das duas sociedades umbandistas de Pelotas, explicou o Sr. presidente que após duas reuniões com os dirigentes do Conselho de Umbanda, ainda nada de oficial existe”.14 Na reunião de diretoria seguinte, registra-se:

13 14

Id., Ata nº 68, folha 10 (verso) e 11 (face), 1º de julho de 1970. Ibid., Ata nº 69, folha 12 (verso) e 13 (face), 29 de julho de 1970.

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O Sr. Presidente comunicou a mesa haver sido convidado juntamente com o Sr. Pedro Baggio a comparecer a um encontro com os srs. Getúlio Ferreira Dias (Presidente do Conselho da Umbanda) e o Sr. Carvalho, membro da referida sociedade, em sua sede, na próxima quarta-feira, dia dois de setembro, para possivelmente tratar de assunto referente a fusão das sociedades umbandistas de Pelotas.15 Uma proposta mais concreta de unificação aparece na Ata nº 72, relativa a reunião de diretoria da União da Umbanda da Princesa do Sul, ocorrida em 26 de setembro de 1970: Quanto a unificação da umbanda em Pelotas, foi explicado o seguinte: Após a extinção do Conselho da Umbanda, seus Centros filiados, automaticamente passarão para o quadro da União da Umbanda da Princesa do Sul, a qual chamar-se-á, doravante, União Sul-Riograndense de Umbanda, com a possibilidade de filiar-se ao Conselho Internacional de Umbanda, devendo para tanto, entender detalhadamente os Estatutos dessa Instituição que também deverá eleger nova diretoria. Assim, frisou o Sr. presidente, ainda, que somente será posto em aprovação a modificação do nome da União da Umbanda da Princesa do Sul para União SulRiograndense de Umbanda, se realmente houver extinção do Conselho de Umbanda.16 Dois dias após a realização da reunião supracitada, houve uma Assembleia Geral Extraordinária na sede da UUPS para tratar do tema. Na Ata, se faz noticiar que a União estava aguardando os resultados de uma Assembleia Geral que o Conselho da Umbanda de Pelotas realizaria em 1º de outubro. Já se discutia na Assembleia da União a troca do nome, após a unificação, para União 15 16

Ibid., Ata nº 70, folha 13 (face) e 14 (verso), 26 de agosto de 1970. Ibid., Ata nº 72, folha 16 (verso) e 17 (face), 26 de setembro de 1970.

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Sul-Riograndense de Umbanda, mantendo-se os mesmos requisitos de personalidade jurídica e utilidade pública. Argumentava-se que o termo Princesa do Sul passava a ideia errônea de que a organização limitava a sua abrangência aos centros religiosos situados em Pelotas, quando de fato tinha núcleos em várias cidades da parte sul do Rio Grande do Sul. Assim, o termo “sul-riograndense” contemplaria melhor a representatividade que a organização já tinha. 17 A Assembleia Geral Extraordinária inscrita na Ata nº 74 foi a primeira atividade da já constituída Federação Sul-Riograndense de Umbanda registrada no Livro. Foi presidida simultaneamente pelos senhores Dinorá Feijó Leal, presidente da antiga UUPS, e por Getúlio Ferreira Dias, até então presidente do Conselho Internacional da Umbanda, que saudou o processo de unificação da umbanda na cidade. Nesta Assembleia definiu-se a diretoria da nova Federação, que teve o senhor Dinorá Feijó Leal como presidente e o senhor Levi Medina Goulart como vice. Observa-se que, segundo a Ata, o senhor Getúlio foi designado como presidente do Conselho de Orientação Espiritual. 18 O Sr. Getúlio logo pediria afastamento para ocupar o cargo de deputado federal em Brasília, passando a partir daí a haver ruídos entre o Conselho de Orientação Espiritual (formado, sobretudo, com membros do Conselho da Umbanda) e a diretoria da nova Federação (dirigida pelos mesmos diretores da extinta UUPS). Sinaliza-se que os esforços para unificação do campo umbandista não tinham promovido um consenso completo entre as partes envolvidas.19 A constituição da nova Federação foi seguida, segundo a reunião de diretoria de 15 de outubro de 1970, pela reelaboração dos diplomas de filiação, regimento interno e estatutos. Registrou-se que o presidente “[...] propôs que o estudo do emblema da Federação seja feito pelo Conselho de Orientação Ibid., Ata nº 73, folha 17 (face), 18 (verso) e 19 (face), 28 de setembro de 1970. Ibid., Ata nº 74, folha 19 (face), 20 (verso) e 21 (face), 08 de outubro de 1970. 19 Há reclamações constantes nas atas lavradas após o afastamento do Sr. Getúlio Dias quanto a ausência de regularidade das atividades do Conselho de Orientação Espiritual, indicando diferentes entendimentos sobre a dinâmica de funcionamento da Federação, mas, ao mesmo tempo, o quanto este Conselho era considerado estratégico no processo de legitimação da umbanda perante a sociedade regional, pois dele advinham pareceres de cunho doutrinário que deviam ser seguidos pelos centros filiados. 17 18

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Espiritual, mediante inspiração dos guias e só então será encaminhado ao Executivo para aprovação final”.20 Em outubro de 1970, por meio da Ata nº 76, de uma reunião da diretoria da Federação, menciona-se convite a ser direcionado à União de Umbanda do Rio Grande do Sul para que viesse participar da unificação da umbanda na cidade de Pelotas. 21 Esta outra organização já havia sido citada na Ata nº 67, de reunião de diretoria realizada em 27 de maio de 1970. Nela se fez referência a um oficio recebido, pela então União da Umbanda da Princesa do Sul, comunicando a posse “[...] do novo delegado da União de Umbanda do Estado do Rio Grande do Sul, Sr. Raimundo Vieira da Cunha”. Não há maiores informações se esta organização era exclusiva de Pelotas ou tinha abrangência estadual. Estes dados indicam que, não obstante os esforços de unificação, as religiões afro-brasileiras apresentam uma notória segmentação no processo de organização e representação desde os primórdios, embora neste período a unificação fosse um objetivo a ser alcançado por importantes lideranças.22 No mês de julho de 1971 notificava-se a constituição de outra entidade representativa dos cultos afro-brasileiros em Pelotas, deliberando-se “[...] o não comparecimento da Federação para a posse da diretoria de uma nova Sociedade Umbandista, já que tal fato vai de encontro aos objetivos da unificação da umbanda em Pelotas”.23 Em 02 de abril de 1974, em reunião de diretoria da Federação esteve presente o Sr. João Madail, presidente da Associação Estadual da Umbanda, sediada em Pelotas, pelo visto a convite do Sr. Dinorá, para tratar da unificação da umbanda e/ou procedimentos comuns às duas entidades em relação às Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 75, folha 22 (verso), 15 de outubro de 1970. Esta delegação de poder ao Conselho de Orientação Espiritual, pode ser interpretada como uma forma de equilibrar as forças entre o Sr. Dinorá e o Sr. Getúlio, presidentes das organizações originárias, visto que este último não passou a fazer parte diretamente da diretoria da nova Federação, conforme sugeriram interlocutores por meio de entrevistas. 21 Ibid., Ata nº 76, folha 25 (face), 29 de outubro de 1970. 22 Na Ata nº 84, folha 39 (face), menciona-se uma “União de Umbanda do Estado” que estaria promovendo uma procissão de São Jorge, cuja forma de organização gerava discordância na diretoria da já Federação Sul-Riograndense de Umbanda. 23 Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 88, folha 47 (face), 29 de julho de 1971. 20

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exigências a serem feitas aos centros filiados. A passagem abaixo é extensa, mas significativa da tensão entre uma unificação idealizada da religião e uma lógica segmentária que, pelo visto, é inerente a esse campo religioso. Abriu a reunião o presidente da Federação SulRiograndense de Umbanda Sr. Dinorah Feijó Leal, falou o mesmo sobre os fatos que vem ocorrendo em nossa cidade em alguns centros, e que a Umbanda está sendo atacada, através da imprensa por culpa de mistificadores. Ainda com a palavra o Sr. presidente propôs que os dois presidentes renunciassem por razões de serem os dois comerciantes que vendem artigos de Umbanda, visando que futuramente outros comerciantes venham fundar outras organizações de congregações de umbanda, visando o seu interesse próprio. Usando da palavra o Sr. João Madail, presidente da Associação, não aceitou a unificação, e explicando que não concorda que um comerciante de artigos de Umbanda venha trazer prejuízos a algum centro. A minha função é ter qualidades e não quantidades, acho que não precisaria os dois presidentes renunciarem o cargo e sim trabalharem em comum acordo, e, para isto bastariam formar uma comissão entre as duas entidades para se coligarem. Pediu a palavra o consultor jurídico da associação Dr. Vieira Monteira, explicando que existe um meio mais fácil para as duas entidades trabalharem juntas, pois acha que entre ambas poderá surgir irmãos que se liguem um a outro para juntos trabalharem. O Sr. Dinorah Feijó Leal, presidente da Federação, apresentou uma segunda hipótese. Os centros que estão ligados a Associação não poderão sair da mesma, e os que estão na Federação também não poderão sair, e, se caso insistirem que se retirem e se registrem no cartório. Razões: quando um centro está funcionando mal e é chamado a atenção pela maneira dos trabalhos, no outro dia ele pede demissão e filia-se a outra

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Associação. Pediu a palavra a Sra. Magda Costa e disse que a Umbanda só poderia ser bem administrada desde uma vez que haja uma união; disse ainda que o espiritismo tem grande responsabilidade sobre a juventude. Sobre o setor político acredita que um membro da Diretoria poderá ter seu cargo numa entidade. Gostaria a mesma de entregar o albergue noturno aos umbandistas para os mesmos trabalharem. Com a palavra o Sr. Dinorah Feijó Leal deu um voto de louvor ao vice-presidente da Associação, vereador Sr. Roberto Dias. Após debates ficou resolvida que será escolhido 5 membros de cada entidade para formarem uma única comissão para fiscalizarem o andamento dos centros. Pediu a palavra o presidente da Federação, Dinorah Feijó Leal dando a proposição de que as casas comerciais de Umbanda, dessem todos os meses uma colaboração a Federação para que os centros não pagassem mensalidade. O Sr. Dinorah Feijó Leal se referiu que a política não deve entrar para a Umbanda mas os umbandistas devem participar na vida política. Com a palavra a Dona Magda Costa propôs para que não ficasse em esquecimento esse assunto; sugeriu que a comissão em título precário estudasse essa unificação, deliberando a data que se reuniriam para tratarem do assunto. O Sr. Análio Teixeira, presidente do Conselho Deliberativo marcou o dia para conversarem. O Conselho que se fará presente entre eles terá amplos poderes. Com a palavra Dona Magda Costa disse que destas pessoas seriam escolhidos os seus representantes. A data para a reunião das duas entidades ficou para 15-04-74 às 20 hs 30 min. com local na Federação. O Sr. Dinorah Feijó Leal sugeriu que a reunião de 15-04-74 fosse realizada na sede da Associação. O presidente da Associação Sr. João Madail, disse que as reuniões da Associação são realizadas em sua casa, então pediria que as reuniões se realizassem na sede da Federação. Essa proposta foi aceita pelos membros por unanimidade. Pediu a palavra o Sr. Osvaldo Linhares,

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pedindo para que fosse feita uma prece em agradecimento ao grande êxito da reunião24 (grifo nosso). Considera-se esta Ata uma das mais complexas que o livro contém, por tratar de várias questões que perpassavam a comunidade umbandista de Pelotas. Em primeiro lugar, emerge o controle interno sobre as práticas umbandistas, de forma a preservar uma imagem positiva da religião frente à sociedade: em razão da existência de mais de uma entidade representativa, os centros que eram repreendidos por uma, por práticas consideradas inadequadas, se desligavam para se filiarem em outra. O eixo da reunião recaiu, então, no afinamento de procedimentos comuns as duas entidades, de forma a salvaguardar a imagem da umbanda. Outra questão objeto de polêmica dentro da comunidade umbandista era a relação entre comércio e religião, pois os dois presidentes das entidades eram ao mesmo tempo proprietários de lojas de artigos religiosos. Alude-se, ainda, para a caridade como princípio maior, por meio da menção aos trabalhos dos umbandistas em um albergue assistencial. A relação da religião com a política e os parâmetros que deveriam norteá-la também é objeto de discussões, como o faz notar o pronunciamento do Sr. Dinorá de que “a política não deve entrar para a Umbanda mas os umbandistas devem participar na vida política”. A precariedade da infraestrutura das organizações rivais da Federação fica patente na afirmação do Sr. João Madail de que a sede da Associação era a sua própria casa. Finalmente, chama a atenção na Ata a presença de uma mulher se pronunciando abertamente na reunião. Nas Atas anteriores elas eram apenas mencionadas (quando o eram) como responsáveis por trabalhos práticos (como por exemplo, a organização da biblioteca), não ocupando um lugar de enunciação como ocorreu nesta reunião com a Sra. Magda Costa. O umbandista Carlos Alberto Pereira confirma esta segmentariedade dentro do campo umbandista de Pelotas que remonta à década de 70 e que tem 24

Ibid., Ata nº 22, folhas 102 (verso) e 103 (face), 02 de abril de 1974.

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o Sr. João Madail como uma das figuras centrais.25 Segundo Carlos Alberto, além do Conselho e da UUPS, havia a OGUM (Organização Gaúcha da Umbanda) e a Associação Estadual de Umbanda. A OGUM teria se fundido ao Conselho antes deste se fundir à UUPS e constituir a atual Federação. Já a Associação Estadual de Umbanda não fez parte deste processo de fusão, vindo a se chamar posteriormente Associação João Madail, repassando seu legado para a URUCAB, quando esta foi formada.26 Explanamos, na sequência, sobre a estrutura organizacional da União e, posteriormente, Federação, segundo as Atas analisadas. A diretoria da UUPS era composta por Presidente, Vice-Presidente, Tesoureiro, 2º Tesoureiro, Secretário e 2º Secretário. Além destes cargos haviam os Conselhos, os quais foram se multiplicando com o tempo. Logo que se formou a Federação Sul-Riograndense de Umbanda, consta a existência do Conselho de Orientação Espiritual, Conselho Administrativo e Conselho Fiscal. Criou-se, posteriormente, o Departamento de Divulgação e Relações Públicas, 27 o Departamento Presidencial, o Departamento Social, o Departamento da Mocidade Umbandista28 e o Departamento Jurídico.29 Na Ata nº 109, se faz menção a um Departamento de Assistência Social, que não se sabe se corresponde ao já referido Departamento Social. 30 A presença de um Departamento de Assistência Social tinha um cunho estratégico na legitimação João Madaill, por ser uma das figuras centrais no campo umbandista da cidade, ensejou a busca de outros elementos elucidários sobre a sua trajetória, os quais apontaram que o representante colaborava na organização da Festa de Iemanjá, mais especificamente a partir do final da década de 1960 e início de 1970, juntamente com a Federação. Isso indica que, embora João Madail não fosse associado à entidade, este era reconhecido pela mesma no seu papel de liderança. 26 Entrevista realizada com Carlos Alberto Pereira, em 14 de abril de 2015. 27 Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 85, folha 40 (verso). 29 de abril de 1971. 28 Ibid., Ata nº 89, folha 49 (face). 09 de agosto de 1971. 29 Ibid., Ata nº 90, folha 51 (face). 26 de agosto de 1971. 30 Ibid., Ata nº 109, folha 81 (face). 27 de julho de 1972. 25

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da umbanda a partir do princípio doutrinário da caridade e da categoria formal de “utilidade pública”.31 A partir de determinado período consta, inclusive, que estes diferentes Conselhos tinham uma relativa autonomia na realização dos seus trabalhos, elegendo-se datas específicas da semana para a ocupação da sede para reuniões. 32 Em reunião ocorrida em 03 de dezembro de 1972, menciona-se a necessidade de criação do Departamento de Obras, certamente relacionada ao pleito que a Federação começava a levar ao poder público municipal de um terreno para a construção da sede definitiva.33 Tão logo é criada a Federação, esta tem sua sede na rua Félix da Cunha, nº 820, transferindo-se para a Rua XV de Novembro, nº 712, por deliberação de reunião de diretoria ocorrida em 29 de julho de 1971. Em 07 de janeiro de 1972, retorna-se para a rua Félix da Cunha, nº 820, então sede do Instituto de Pesquisa e Práticas Espiritualistas. 34 Registra-se em outubro de 1972 a preocupação com a construção de uma sede em terreno próprio, sendo esta a finalidade de ofício ao prefeito de Pelotas, Francisco Louzada Alves da Fonseca, em que solicitava “[...] a doação de um terreno no local [onde] será construída a sede da Federação e outras benfeitorias nela contidas”. 35 A atual sede da Federação está situada na Rua Xavier Ferreira, nº 1000, no bairro Porto da cidade de Pelotas. Foi construída na segunda metade da década de 70, por meio da doação da área pela Prefeitura de Pelotas, processo que teria sido mediado pela Câmara de Vereadores, conforme relatam interlocutores(as) entrevistados(as). Além desta sede, a Federação administra os espaços da gruta de Iemanjá, com uma pequena casa adjacente, no Balneário Nossa Senhora dos Prazeres, e a Gruta de Oxum e Iansã na Cascatinha. 36

Ibid., Ata nº 113, folha 87 (face). 05 de outubro de 1972. Em um trecho da Ata nº 113, referente a uma reunião pública da Federação, se registra que esta havia sido notificada sobre o deferimento da sua solicitação de registro junto ao Conselho Nacional do Serviço Social. 32 Ibid., Ata nº 88, folha 48 (verso). 29 de julho de 1971. 33 Ibid., Ata nº 116, folha 93 (face). 03 de dezembro de 1972. 34 Ibid., Ata nº 100, folha 66 (verso). 13 de janeiro de 1972. 35 Ibid., Ata nº 113, folha 88 (verso). 05 de outubro de 1972. 36 Localizada no interior de Pelotas, no 5º distrito, a 22 quilômetros da cidade. 31

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O Livro de Atas tornou possível reconstituir, de forma parcial, os processos sucessórios dos cargos da presidência, tendo em vista os poucos anos de registro que abarca. Originalmente as eleições eram realizadas de dois em dois anos, alterando-se depois para um intervalo de quatro em quatro anos. Observase, porém, que alguns presidentes tiveram seus mandatos prorrogados várias vezes. Dinorá Feijó Leal ocupou o posto por 10 ou 12 anos, computando-se os anos em que presidiu a UUPS. O Livro de Atas inicia com ele exercendo o cargo de presidente da União, sendo reconduzido em Assembleia Geral Extraordinária realizada em 8 de outubro de 1970.37 Mas faz referência a licenças do cargo, quando era substituído por pessoas já integrantes da diretoria. Em uma passagem da Ata nº 93, relativa a composição do Conselho de Orientação Espiritual, se faz alusão ao tempo ideal de permanência no cargo por parte do presidente da Federação: “Sugeriu ainda que o presidente ao terminar seu mandato não deveria concorrer a outra eleição, proposta esta da qual discordaram os membros da mesa”.38 Na sucessão de diretoria que houve ao final de 1972, o Sr. Dinorá assumiu o lugar de vice-presidente na chapa oficial e o Sr. Edys Teixeira Padilha de presidente.39 Conforme já assinalado, houve sérios atritos entre os membros dessa diretoria, pois as atas recomeçam no nº 19, de uma reunião Extraordinária ocorrida em 20 de janeiro de 1974, anunciando a demissão do cargo de presidente por parte do Sr. Edys e a recondução a ele do Sr. Dinorá. 40 Em 2 de Junho de 1974, segundo a Ata nº 23, a direção é assumida pelo Sr. Aldirio Oliveira, sem qualquer menção a processos sucessórios, não constando a presença do Sr. Dinorá nas atividades até a Ata nº 28, última registrada no livro, o que leva a perguntar se não faleceu neste intervalo de tempo. Em 12 de julho de 1974, o novo presidente solicitava o encaminhamento de ofício comunicando a posse da nova diretoria ao Banco do Brasil, ao Banco do Estado do Rio Grande do Sul, ao Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 74, folha 19 (face) e 20 (verso). 08 de outubro de 1970. 38 Ibid., Ata nº 93, folha 57 (face). 16 de setembro de 1971. 39 Ibid., Ata nº 2, folhas 97 (face) e 98 (verso). 22 de dezembro de 1972. 40 Ibid., Ata nº 19, folha 98 (verso). 20 de janeiro de 1974. 37

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senhor Prefeito Municipal e ao senhor Delegado de Polícia, indicando com isso as relações estreitas da Federação com estas instituições. 41 A complexa organização da UUPS, depois replicada na Federação, pode ser visualizada por meio de sua abrangência representacional e pela maneira com que se fazia presente em cada zona ou município em que possuía centros filiados. Na Ata nº 66, há a informação que existia um núcleo da União na “zona do Fragata”, que abarcava vários centros filiados, além de delegados regionais de Jaguarão e de Pedro Osório, indicando-se que havia em cada município um núcleo da União e um delegado responsável por ele. 42 Na Ata nº 106 refere-se a um ofício “[...] passado ao Centro Nossa Senhora Aparecida, situado no lugar denominado 1º Subdistrito de Piratini, pelo qual solicita a nomeação de um fiscal geral junto aos centros existentes naquela região”. 43 Na Ata nº 109 registrou-se “[...] a manifestação de desejo do Centro 7 Flechas do Município de Cangussu, em registrar-se, em Cartório de Pessoas Jurídicas, a fim de registrar um terreno”. 44 Em algumas Atas fica explícito o vínculo com as organizações umbandistas de Porto Alegre, abarcando convite para participação em cerimônias públicas na capital, como a Festa de Oxum.45 A base de representação política da atual Federação abarca locais de cultos da umbanda e batuque situados em vários municípios do Estado do Rio Grande do Sul, além de alguns localizados no Uruguai e Argentina. Originalmente, a Federação representava apenas os centros de umbanda, sendo que em “[...] 1980 foi incorporado no estatuto social da Federação os cultos afros”,46 ocasionando alteração no seu nome. Embora no Livro de Atas prevaleça a referência à umbanda, em Ata datada de 1972 Ibid., Ata nº 24, folha 106 (verso). 12 de julho de 1974. Ibid., Ata nº 66, folha 03 (face). 30 de abril de 1970. 43 Ibid., Ata nº 106, folha 75 (face). 15 de junho de 1972. 44 Ibid., Ata nº 109, folha 81 (face). 27 de julho de 1972. Referia-se o município de Canguçu, cujos limites políticos confrontam com o município de Pelotas, sendo que o termo na época era escrito com “ss”. 45 Ibid., Ata nº 117, folhas 93 (face) e 94 (verso). 07 dezembro de 1972. 46 Entrevista com Joabe Bonhs, realizada em 18 de setembro de 2014. 41 42

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menciona-se casas de nação filiadas à Federação, em uma ocasião em que se discutia a sucessão do comando político desta: Também referiu-se aos centros de umbanda e casas de nação, que como filiados à Federação vem prestando caridade aos que a eles recorrem. [...] Registramos com prazer o comparecimento de 31 representantes de centros e casa de nação, que nos trouxeram, não só o afeto de irmandade, como também o apoio indispensável para que possamos continuar a nossa missão que confiaram 47 (grifo nosso). Lísias Negrão (1996), ao estudar a constituição do campo umbandista em São Paulo, constatou que para fugir das perseguições os centros de umbanda se ocultavam sob a designação de espíritas. É possível que um processo semelhante acontecesse na década de 1970 em Pelotas envolvendo a umbanda e o batuque, este se ocultando sob a bandeira daquela. É o que transparece de um depoimento de Carlos Alberto, quando faz referência ao encerramento dos trabalhos espirituais dos centros e terreiras no período de acampamentos relativos às homenagens à Iemanjá na orla da lagoa: Carlos Alberto: Sim, encerramento de centros de umbanda, pessoal ia lá encerrar seus trabalhos espirituais lá, a linha de caboclos, pretos-velhos. A linha de cruzamento era pouco divulgada na época, por que? Porque existia naquela época a perseguição, já existia a perseguição religiosa em cima de cultos de matriz africana naquela época. Com agravante que a Brigada Militar já chegava dando pau em todo mundo, isso aí é constatado e confirmado. (Entrevista realizada com Carlos Alberto Pereira, em 14 de abril de 2015; grifos nossos).

Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 107, folha 77 (face). 06 de julho de 1972. 47

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Carlos Alberto afirma que mesmo Dinorá Feijó Leal, primeiro presidente da Federação, não era exclusivamente umbandista, dissimulando a face batuqueira do seu centro: “[...] a maioria dos terreiros da época tinham enrustido o lado de matriz africana junto porque não tinha como tu escancarar a religião de matriz africana, por causa de quê? A perseguição religiosa da época...”. 48 O processo repressivo vivido pelos cultos afro-brasileiros deu ensejo à constituição de identidades ambíguas, segundo Negrão (1996), pois se de um lado era indispensável a afirmação das “raízes negras” para marcar sua especificidade, o que era mantido dessa raiz era objeto de um processo de moralização e racionalização de forma a se adequar aos parâmetros exigidos à sua adequação à condição de “religião”. A terminologia reconhecida pela atual diretoria da Federação para designar as entidades que representa é Centro Espírita de Umbanda e Casa de Nação. Exclui-se a quimbanda como um culto específico representado pela Federação. Na ocasião da etnografia, além da Federação Sul-Riograndense de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros, outras organizações disputavam a representação política destas religiões: a URUCAB, supracitada, que estava em processo de extinção; e, a FECAB (Federação Estadual de Cultos AfroBrasileiros), fundada há 20 anos na cidade de Santa Vitória do Palmar (RS) por Marcos Abreu e, atualmente, com sede em Pelotas. A LIGA teria sua sede justamente no Barro Duro, mas infelizmente não se logrou contato com seu representante durante a etnografia. A RENAFRO – Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde – também possui representação na cidade de Pelotas, mas angaria pouca representatividade junto à comunidade religiosa local.

Sob a égide do controle: as estratégias de legitimação no espaço público As estratégias de construção de uma imagem positiva da umbanda para angariar um estatuto de religião legítima e socialmente aceita, podem ser divididas em dois grupos: ações direcionadas para o universo de filiados de forma a orientar 48

Entrevista realizada com Carlos Alberto Pereira, em 14 de abril de 2015.

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o comportamento e regrar práticas rituais, de acordo com preceitos ditados pela Federação; ações direcionadas para o meio social mais amplo, especialmente a setores que tinham ingerência direta sobre o plano legal ou sobre a construção da opinião pública: políticos, autoridades policiais e judiciais, imprensa, etc. Neste segundo grupo de ações incluem-se as festividades públicas, pois, embora não haja espaço para desenvolver este aspecto aqui, é notório o uso dessas para a reafirmação de uma pretendida imagem positiva da umbanda. Salienta-se que estes dois grupos de ações são distinguidos para fins analíticos, pois sobressai das Atas que um tipo de ação está intimamente relacionado ao outro, de forma complementar. Inicia-se, aqui, pelo primeiro grupo de ações. As Atas apontam para a centralidade do Conselho de Orientação Espiritual na condução da unificação doutrinária da umbanda. Conforme explicitado na Ata nº 105, este Conselho era a instância encarregada de visitar os centros que solicitavam a filiação à Federação e deliberar se possuíam práticas adequadas ou não para fazerem parte da entidade.49 Na Ata nº 93, o senhor Análio Teixeira, presidente do Conselho Deliberativo, questionava a razão do Conselho de Orientação Espiritual não sofrer alterações no seu quadro de membros tal como os demais, obtendo o seguinte retorno: Explicou o Sr. João Manoel ser tal medida aconselhada para que seja possível manter uma linha de orientação contínua, evitando-se a infiltração de elementos nocivos no referido Conselho. O Sr. Dinorah propôs que deveria ser mudado, todos os anos o presidente do Conselho de Orientação Espiritual, estabelecendo-se rodízio entre os seus membros50 (grifo nosso). A filiação à União e à Federação era atestada por meio da expedição de um diploma, do qual o centro filiado poderia ser destituído caso não cumprisse Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 105, folha 73 (face). 25 de maio de 1972. 50 Ibid., Ata nº 93, folha 57 (face). 16 de setembro de 1971. 49

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com as orientações dadas. Emitia-se, ainda, uma carteira de filiação que, a considerar as atas, era individualizada para o(a) cacique(a) e também era retirada em casos de desligamento.51 A permanência da filiação requeria o seguimento de rígidas regras de conduta religiosa por parte dos centros, tanto que na Ata nº 67 registra-se a manifestação do Sr. Levi Goulart que “[...] alertou a conveniência de maior vigilância antes de conceder filiação aos Centros requerentes, sendo mesmo preferível dar licença de três meses antes e durante este tempo fiscalizar os trabalhos”.52 Observa-se um esforço pedagógico para que os membros dos centros filiados se sentissem pertencendo a uma religião unificada, não apenas a um local de culto específico. Havia um investimento intensivo na elaboração de símbolos unificadores – como bandeira e hino da Federação53 – e promoção de espaços para compartilhamento de experiências entre os integrantes dos distintos centros. A confecção de certidões de batismo padronizadas para todos os centros filiados e a referência à “diplomação individual de médiuns”54 em uma Ata ou outra remetem a um mesmo contexto de significação. A preocupação com a normatização das práticas umbandistas era disseminada, havendo uma disputa em torno da autoridade legítima para o exercício da vigilância regradora dos rituais. Na Ata nº 68 relativa a uma reunião de Diretoria da UUPS, tem-se a seguinte passagem: O Sr. José Tales apresentou à mesa, queixa contra a atitude do Sr. Darci Assumpção da Silva, que se apresentou no Centro São Luiz qualificando-se como fiscal da UUPS e discordando da maneira pela qual são os trabalhos ali efetuados. Em vista disso, doravante o Sr. Tales, somente Na Ata nº 71 (Folha 14 – verso), referente a reunião de diretoria ocorrida em 9 de setembro de 1970, delibera-se o desligamento de um membro por meio da imprensa, pois este se negou a entregar aos ficais da UUPS a carteira de identificação que o qualificava como membro desta. 52 Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 67, folha 07 (face). 27 de maio de 1970. 53 Ibid., Ata nº 65, folha 02 (verso), 26 de fevereiro de 1970; Ata nº 83, folha 37 (face), 04 de março de 1971. 54 Ibid., Ata nº 69, folha 12 (verso). 29 de agosto de 1970. 51

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permita a entrada de fiscais, se estes apresentarem a autorização assinada pelo Sr. Dinorah Leal. Esclareceu, neste ponto, o Sr. Irineu Viana, que somente a ele e ao Sr. Levi Medina Goulart compete o trabalho de fiscalização. Confirmando, o Sr. presidente informou não estar o Sr. Darci Silva, presentemente, exercendo nenhum cargo da União faltando-lhe, pois autoridade para fiscalizar ou dar opinião em nome desta sociedade. Quanto aos chefes dos Centros, devem sempre exigir documento a quem se apresentar como enviado da UUPS, a fim de evitar os incidentes como esse.55 Esta fiscalização do que ocorria no âmbito interno dos centros visava adequar o comportamento dos umbandistas aos códigos morais vigentes, assim como aos dispositivos legais que diziam respeito a manutenção da ordem pública, ocorrendo, inclusive, situações de colaboração entre a diretoria da Federação e as autoridades policiais. Os centros filiados eram obrigados a comunicar a direção da Federação os dias em que realizavam “trabalhos espirituais” para a comunidade externa.56 Chamou a atenção um caso discutido no âmbito da Federação envolvendo integrantes do Centro Reino Unido das Matas Virgens: O Sr. Isnardo, prosseguiu o presidente, é alvo de reclamações devido aos seus trabalhos prolongarem-se até altas horas da madrugada, molestando os vizinhos com o barulho proveniente dos cantos e tambores. E apontando também como fator de desunião de um lar, onde a esposa desobedece à ordem do marido, frequentando o seu Centro, obrigando o mesmo a tomar providencias. Pesa-lhe ainda a acusação de invadir a propriedade do casal, a fim de agredir com faca o queixoso, sendo este caso levado ao conhecimento da Polícia. 55 56

Ibid., Ata nº 68, folha 9 (face). 01 de julho de 1970. Ibid., Ata nº 108, folha 79 (face). 20 de julho de 1972.

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Tanto a Delegacia de Polícia como o Conselho Fiscal da Federação procederam a um levantamento do caso, sendo interrogadas diversas pessoas. Resultou dessa sindicância, que, o Sr. Isnardo, não tem nada que possa atentar contra a moral pública, mas se excede no horário das sessões. Tanto a Sra. Loiva Souza quanto a Sra. implicada negaram os fatos apresentados, acusando o marido da mesma de invadir o Centro e querer de lá retirar a força sua esposa, que alegou haver ido com pleno consentimento deste 57 (grifo nosso). Perante a ausência da parte acusatória na reunião, o Sr. Isnardo foi absolvido, mas mediante a assinatura de uma declaração na qual se comprometia, com exceção dos dias de festividades, a encerrar os seus trabalhos até as 23 horas. Mas mesmo assim, ao que parece, ele permaneceu sob estreita vigilância da Federação que estipulou ainda: O Sr. presidente lembrou ser esta a terceira oportunidade dada ao aludido Centro, caso não cumpra o prometido, terá o mesmo suas portas fechadas para sempre. As comemorações extras deverão ser comunicadas ao Posto Policial e à Federação, a fim de evitar posteriores reclamações. Quanto às denúncias somente serão levadas em consideração quando escritas. Esclareceu ainda a necessidade dos chefes de Centros, de virem às reuniões mensais, a fim de ficarem interados dos seus direitos e obrigações, ao par das leis vigentes. Aconselhou ainda à jovem esposa, a não mais frequentar o Centro Reino Unido das Matas Virgens no intuito de evitar maiores complicações futuras e a reconciliar-se com o seu esposo58 (grifo nosso).

57 58

Ibid., Ata nº 86, folha 42 (verso). 27 de maio de 1971. Ibid., Ata nº 86, folha 43 (face). 27 de maio de 1971.

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O fato de ocorrerem parcerias ocasionais entre os órgãos policiais e a Federação não significa que os primeiros não realizassem uma vigilância própria e constante sobre as casas de cultos. Na ata da reunião de diretoria, realizada em 24 de junho de 1971, registra-se que Quanto ao caso da intervenção policial nos centros sem registro, disse o Sr presidente ser fato comprovado, a polícia requerer alvará de licença para funcionamento dos centros, havendo maior liberalidade em Pelotas, bastando o registro fornecido pela Federação ou por Cartório. Quanto as pessoas que fazem comentários, tentando jogar a Federação contra as autoridades e viceversa, deverão ser intimadas a depor perante a polícia, para o restabelecimento da verdade, já que o delegado tem agido com compreensão e corretamente ajudando a Federação, a qual conta ainda com o apoio da imprensa falada e escrita59 (grifo nosso). Em outro caso exposto nas Atas, a tomada de uma “atitude definida” por parte da Federação aponta para o complexo jogo de negociações estabelecido com as autoridades, aludindo-se ao direito de praticar a caridade na defesa dos médiuns que exerciam curas consideradas suspeitas: Aberta a sessão, o Sr presidente dirigiu a palavra aos presentes, explicando a atitude assumida pela Federação no caso do médium Eloí Vaz, após a proibição recebida de efetuar operações astrais por parte das autoridades. Em sua dissertação, assim se expressou o Sr Dinorah Leal: “Alguns não entenderam meu pronunciamento, outros não gostaram, mas muitas coisas não podem ser ditas pela imprensa. Há os que acharam que não deveria ser tomada tal atitude a favor, visto que a entidade não cura a todos. Ora, ele, o médium não pode curar os casos em que o 59

Ibid., Ata nº 87, folha 46 (verso). 24 de junho de 1971.

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ser precisa saldar dívidas pretéritas; nenhuma entidade cura a todos. Durante meses averiguamos o trabalho do Sr Eloi e constatamos resultados positivos. Assim, nosso dever era defendê-lo no momento preciso, como defenderíamos qualquer outro nosso filiado, em caso análogo. Estávamos dispostos a suspender à Homenagem à Iemanjá, se as autoridades não dessem a liberação. Pois se nos proíbem a prática da caridade, então também podemos deixar de promover festividades. Em vista desta posição tomada, apressaram-se a resolver o caso as autoridades pelotenses, liberando o médium, oficialmente. Com a atitude tomada, estamos protegendo os interesses dos chefes de terreira e da umbanda, pois o que aconteceu com este médium, poderá acontecer com outros, futuramente, pelos gerais sente-se responsável a Federação, havendo, entretanto, responsabilidades recíprocas. E aqui, damos uma explicação que não poderíamos fazer pela imprensa. A culpa do acontecido coube ao médium que deixou de observar a orientação que lhe foi dada nesta casa, no sentido de não conceder entrevistas, de forma alguma, a imprensa, pois o fazendo, estaria incorrendo no erro de ser tachado de curandeiro, fazendo propaganda de si próprio. E no dia da entrevista, estando em Pelotas, o consultor jurídico da Federação pediu para suspender o que não foi mais possível, seguindo-se logo após a proibição para o Sr Eloi exercer sua mediunidade de cura. Tal acontecimento poderia ter sido evitado, se houvesse acatamento à orientação dada anos atrás. Este fato é muito significativo para a Umbanda, envolvendo seu nome, pois se não fora a boa vontade dos vereadores pelotenses, da imprensa, das autoridades para com a Federação, seria a umbanda que perderia no conceito público. Temos sempre que agir dentro da lei para merecermos o respeito e engrandecermos a umbanda cada vez mais”. A seguir o Sr presidente explicou que todos os

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centros, ao realizarem trabalhos fora da cidade, devem levar o registro dado pela Federação e o Alvará de Licença fornecido pela Delegacia de Polícia; do contrario poderão estar sujeitos a serem seus trabalhos suspensos60 (grifo nosso). O caso é elucidativo também do grande prestigio que a Festa de Iemanjá tinha perante as autoridades, a ponto de servir como moeda de troca para a liberação do exercício dos ofícios de alguns médiuns cujas atividades não eram bem vistas. Chama a atenção, ainda, o metódico controle sobre o que era enunciado para a sociedade em geral por meio da imprensa, ao se referir a presença de discursos que deveriam permanecer no interior da comunidade religiosa. Esta passagem aponta para as relações estratégicas com representantes da classe política, até hoje atualizadas no âmbito da comunidade umbandista pelotense. Observa-se a preocupação de que as práticas religiosas se mantivessem dentro do estipulado por lei, tendo a chancela da Polícia e da Federação. Em uma reunião posterior, o incomodo de parte da sociedade pelotense em relação às atividades de Eloi Vaz e a reverberação disso na Federação voltava à pauta. O presidente da Federação orientava que este mudasse o seu centro de endereço em razão do grande número de doentes que atendia. Solicitava também que o médium notificasse a Federação por ocasião de suas viagens e indicava “[...] a necessidade de um esterilizador no Centro, para satisfazer as condições de higiene exigidas por lei”.61 O posicionamento favorável por parte da Federação em relação ao médium Eloi Vaz sofre alterações no mês seguinte, sob a justificativa de que este não teria obedecido as orientações que lhe foram dadas: Sendo lida a ata anterior, o presidente abordou o assunto referente ao médium Eloí Vaz, o qual defendido pela Federação, voltou a exercer suas atividades, entretanto devido a sua não obediência a orientação 60 61

Ibid., Ata nº 97, folhas 60 (verso) e 61 (face). 02 de dezembro de 1971. Ibid., Ata nº 98, folha 63 (face). 07 de dezembro de 1971.

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que lhe foi dada nesta casa decidiram os quatro poderes da Federação desligá-lo de seu quadro de filiados, repudiando a exploração que vem sendo feita, presentemente. Alem disso, os compromissos assumidos pela diretoria do Centro Caboclo das Sete Estrelas, registrado e assinados em ata anterior não foram cumpridos. [...] A mesa aprovou em seguida, faça o presidente do Conselho de Orientação Espiritual uma tentativa junto ao Centro Caboclo das Sete Estrelas, para a devolução do diploma de sócio filiado que aquela casa se nega a entregar após o seu desligamento. Caso não logre êxito essa medida, deverá haver intervenção da autoridade policial62 (grifo nosso). Em um contexto em que o enquadramento por exercício ilegal da medicina, charlatanismo e exploração da credulidade pública era plausível, a disposição da Federação em defender e negociar em favor dos médiuns “suspeitos” terminava no grau de exposição pública negativa a que a própria umbanda, na sua globalidade, estava sujeita. Sacrificava-se a legitimidade de um “irmão”, se necessário fosse, em nome da legitimidade da religião. Outros casos considerados problemáticos são tratados nas atas, excedendo a abordagem dos mesmos os limites deste texto.63 O segundo grupo de ações comporta uma intrincada malha de articulações com segmentos diversos da sociedade, assim como atividades que tinham o objetivo explícito de “engrandecer” a umbanda na cidade e região, por meio da construção de uma imagem pública dignificante 64. Comunicar o conjunto Ibid., Ata nº 99, folhas 63 (face) e 65 (face). 06 de janeiro de 1972. Em 10 de outubro de 1974, Aldírio Oliveira, presidente da Federação, comunicava que na sua viagem ao município de Santa Vitoria do Palmar encontrou várias irregularidades no funcionamento dos Centros filiados, estipulando medidas para que tudo voltasse à normalidade (Ibid., Ata nº 27, folha 107 - face). 64 A preocupação com o reconhecimento social e formal da umbanda emerge na Ata nº 67, relativa a uma reunião de diretoria da UUPS, quando é sugerido a realização de uma “campanha em preparação ao próximo recenseamento, a fim de que nenhum umbandista se esquive de declarar a religião que pratica [...]” (Ibid., Ata nº 67, folha 07 - face). 62 63

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da sociedade local e regional pela imprensa, assim como oficiar as autoridades das atividades realizadas pela Federação e sobre a filiação e desfiliação dos centros era a praxe. Na Ata nº 67 da UUPS delibera-se o desligamento de alguns centros de Rio Grande e da Quinta, constando: “A comunicação será feita através da imprensa e do ofício ao delegado de polícia daquela cidade”.65 A legitimidade e autoridade da organização interna da UUPS e depois, Federação, ao que tudo indica, era francamente reconhecida por alguns segmentos da sociedade local, resultando em parcerias que geravam serviços assistenciais à comunidade umbandista. Na Ata nº 66, relativa a uma reunião da Diretoria da UUPS, registra-se a seguinte informação: O Sr. Dinorah Leal comunicou, que doravante haverá atendimento médico duas vezes na semana. As consultas serão dadas pelo Dr. Darcy Viana pela metade do preço aos que se apresentarem munidos das carteirinhas de identificação fornecidas pela União. Provisoriamente serão aceito qualquer comprovante de que o doente seja sócio de um Centro de Umbanda, quer como um médium ou assistente. Consulta à domicilio à razão de vinte cruzeiros. Esse atendimento médico será feito as segundas-feiras, das catorze as quinze horas, à rua Dom Pedro II, nº 1074 a partir do dia dezoito de maio do corrente ano, também no Fragata.66 Portar a carteira da Federação poderia ser sinônimo de desconto em compras feitas em alguns estabelecimentos comerciais, especialmente aqueles que pertenciam a pessoas que assumiam cargos na diretoria ou nos Conselhos da Federação: Foi lido após uma comunicação do Foto Recorde de propriedade do Sr Edys Padilha, oferecendo descontos 65 66

Ibid., Ata nº 67, folha 07 (face). 27 de maio de 1970. Ibid., Ata nº 66, folha 04 (verso). 30 de abril de 1970.

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especiais, em trabalhos fotográficos, a todos os portadores de carteirinhas fornecidas pela Federação. O Sr Dinorah Leal, proprietário da Flora São Jorge também dá vantagens nas compras efetivas em seu estabelecimento e lembrou a conveniência de avisar, através de imprensa, aos donos de casas comerciais de outros ramos, a participarem também, fazendo descontos aos possuidores das ditas carteirinhas. 67 Pelas informações constantes nas Atas, a Federação detinha uma biblioteca com mecanismos próprios de arrecadação de verbas, como chás beneficentes, tendo presença recorrente nas reuniões da entidade a bibliotecária Julieta Ribeiro.68 Era constantemente mencionada nas Atas como um “departamento” que engrandecia a entidade. Na Ata nº 111 refere-se o recebimento de exemplares do mensário “A Voz da Umbanda”, do município de Santa Maria. Na mesma Ata registra-se “[...] a doação de 87 libras e de diversas revistas, feita pelo nosso querido irmão, Sr. Dr. José Coelho”.69 As atividades de cunho social e cultural organizadas pela Federação incluíam um concurso de corais dos centros de umbanda, para o qual arrecadavase fundos por meio de programas radiofônicos para premiar os finalistas. O regulamento do concurso e a nomeação da Comissão Julgadora eram objeto de cuidadosa deliberação por parte da diretoria da Federação. Na Ata nº 101, referese que a atividade era apoiada pela Rádio Cultura de Pelotas que para tal cedia o seu auditório, mas este ser pequeno, o Festival foi transferido para a sede da Associação Atlética do Banco do Brasil. 70 Este concurso, promovido no ano de 1971, assim como o programa radiofônico “A Voz da Umbanda”, recebeu uma proposta de patrocínio da Firma Industrial de Bebidas Joaquim Thomas de Aquino S. A., que foi rejeitada por se tratar de um empreendimento que vendia produtos alcoólicos, contrariando a imagem que a Federação buscava construir Ibid., Ata nº 96, folhas 59 (face) e 60 (verso). 25 de novembro de 1971. Ibid., Ata nº 79, folhas 28 (verso) e 29 (face); 10 de dezembro de 1970. Ata nº 89, folha 49 (face); 09 de agosto de 1971. 69 Ibid., Ata nº 111, folha 85 (face). 17 de agosto de 1972. 70 Ibid., Ata nº 101, folha 67 (face). 27 de janeiro de 1972. 67 68

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junto a sociedade. O festival aconteceu em 30 de janeiro e recebeu ampla cobertura da Rádio Cultura. Os centros inscritos receberam premiações em vários quesitos, destacando-se a presença de centros da cidade de Rio Grande. Na Ata nº 90 consta que a referida atividade cultural era denominada “Concurso dos Corais Afro-brasileiros de Umbanda”71 e na Ata nº 91 inscrevese um contundente discurso do presidente da Federação, que é um indicativo do quanto ela se conformava ao rol das estratégias por meio das quais buscava-se angariar legitimidade à umbanda enquanto religião: Continuando expressou-se assim o Sr presidente: “Seria triste para nós, que os Centros de Umbanda, que têm condições de concorrer não se inscrevessem, não para disputar prêmios, mas sim pelo engrandecimento da umbanda em Pelotas.” Lamentou depois a omissão de alguns dos Centros grandes de nossa cidade no Concurso. Lembrou a necessidade de continuar o exemplo de fé, de unificação, de construção dados até o presente momento. Muitos erros foram cometidos no passado por todos nós, mas hoje unidos procuramos repará-los engrandecendo o nome da umbanda, fadada a formar-se a maior religião do mundo72 (grifos nossos). Observa-se, que a busca pela aceitação social por parte deste segmento umbandista implicava em aderir a atividades semelhantes às das religiões cristãs. O estimulo à organização de corais nos centros não era uma exceção. A criação de órgãos assistenciais específicos e de entidades educacionais umbandistas, tal como no catolicismo, foi uma proposta ensaiada pela diretoria da Federação à época: O presidente do Conselho Deliberativo, agradecendo, passou a palavra ao Sr Dinorah Leal, o qual afirmou ser 71 72

Ibid., Ata nº 91, folha 51 (face). 06 de setembro de 1971. Ibid., Ata nº 91, folha 52 (verso). 06 de setembro de 1971.

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uma das metas da Federação construir, tão logo isto seja possível, o Templo da Umbanda em nossa cidade, um abrigo para órfãos, donde resulta absoluta necessidade de um Departamento de Assistência Social para amparar os médiuns carentes de auxilio material; futuramente também haverá um colégio umbandista.73 Lísias Negrão (1996), ao abordar o processo de legitimação da umbanda no Sudeste, destaca que no início da década de 1970 a realização de cerimônias em espaços públicos, dedicadas às entidades do panteão umbandista, se impôs como uma importante estratégia de visibilidade. Além do impacto sobre a sociedade como um todo, devido à presença massiva de pessoas de todas as classes sociais, estas cerimônias fortaleceram a constituição de alianças clientelistas entre o campo umbandista e o campo político, incluindo órgãos públicos, como as Secretarias de Turismo e de Cultura. Esta dinâmica se fez perceber também no âmbito de Pelotas, sendo evidente a preocupação com o controle sobre as festividades públicas por parte dos órgãos representativos (UUPS e Federação). Em 1º de abril de 1971, a Federação recebia convite da União da Umbanda do Estado para participar de uma procissão pública em homenagem a São Jorge, a ser realizada do dia 23 daquele mês. O Conselho de Orientação Espiritual vetou a participação, por considerá-la “[...] contrária aos princípios da Umbanda, que não realiza cultos aos seus Orixás em lugares públicos e alheios aos elementos. Tais homenagens devem ser prestadas no interior de seus terreiros, ou então onde houver o assentamento do Orixá”. 74 A Festa de Iemanjá emerge nas Atas como a festividade de destaque, por meio da qual a UUPS, e depois Federação, procurou dar uma visibilidade dignificante à umbanda em Pelotas e região. Na reunião de diretoria da UUPS, de 26 de fevereiro de 1970, informa-se o montante de donativos recebidos pela festa e as congratulações pela “brilhante festividade”; menciona-se, sem detalhar, um incidente do qual “resultaram vários feridos e a perda de uma vida”, não obstante 73 74

Ibid., Ata nº 91, folhas 53 (face) e 54 (verso). 06 de setembro de 1971. Ibid., Ata nº 84, folha 39 (face). 01 de abril de 1971.

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o registro que a festa havia ocorrido “em clima de completa ordem e normalidade”.75 O jogo de forças entre a promoção da umbanda e o seu controle, por meio da festa, apresenta-se em toda a sua plenitude em uma reunião da Federação de 06 de janeiro de 1972, com pauta sobre a realização da Festa daquele ano. Convocavam-se os umbandistas para comparecerem “em massa à praia do Laranjal, numa demonstração pública de fé”, para logo na sequência informar que Para os trabalhos na praia todos deverão portar o alvará de licença fornecido pela Delegacia de Polícia. Quanto a matança de animais, fica terminalmente proibida, pois isto não é da lei do candomblé ou do batuque, que proíbe matar em dia de Orixá, além de ser ritual secreto.76 Ao que consta nas Atas, na época era muito comum o uso de Livro Ouro para arrecadação de recursos para a realização de festividades, assim como para cobrir gastos da Federação e centros filiados. A barganha com o poder público para que a Festa recebesse subsídios e constasse no roteiro turístico da cidade data, no mínimo, do ano de 1971.77 A realização do lobby, junto a setores públicos e privados, para viabilizar a Festa, contava com a articulação de intermediários estratégicos, adeptos ou simpatizantes da umbanda: políticos, radialistas, etc.,78 que logravam, comumente, a arrecadação de subsídios de um número significativo de empreendimentos empresariais, indicando o prestígio que a Festa e, por extensão, a umbanda, já havia angariado,79 não obstante um contexto de controle e perseguições. Segundo os(as) interlocutores(as) entrevistados(as), na segunda metade da década de 1970 há uma intervenção significativa do poder público na orla, visando criar infraestrutura para a Festa. A articulação com as autoridades militares, tal como ocorria no Sudeste (NEGRÃO, Ibid., Ata nº 65, folha 1 (face). 26 de fevereiro de 1970. Ibid., Ata nº 99, folhas 64 (verso) e 65 (face); 06 de janeiro de 1972. Esta Ata menciona ainda a necessidade de um rigoroso controle sobre o uso de bebidas alcoólicas. Atenta-se para a menção direta ao candomblé e batuque, tratando-se de uma Federação de umbanda. 77 Ibid., Ata nº 80, folhas 30 (verso) e 31 (face). 7 de janeiro em 1971. 78 Ibid., Ata nº 81, folhas 32 (verso). 14 de janeiro de 1971. 79 Ibid., Ata nº 82, folha 35 (face). 16 de janeiro de 1971. 75 76

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1996), era a norma para o período: “Tinha o palanque das autoridades, vinha o capitão da Marinha, vinha junto, sempre junto conosco, alto comando da Brigada Militar, alto comando do Exército, tudo dentro dos conformes, conforme manda a lei”.80 As alianças com personalidades políticas são onipresentes nas Atas, especialmente representantes dos legislativos (municipais, estaduais e federais), citando-se: Getúlio Ferreira Dias, eleito Deputado Federal em 1970, registrandose sempre as suas visitas à Federação81 ou em reuniões de umbandistas em municípios da região,82 acompanhadas, comumente pela intermediação de subvenções financeiras à Federação. O nome de João Carlos Gastal, que assumiu várias legislaturas estaduais, também consta nas Atas, geralmente associado à destinação de verbas à entidade.83 Era corrente o repasse de verbas da Prefeitura Municipal para manter o funcionamento da Federação, sendo comum o repasse de recursos para os centros, que recorriam àquela atrás de subsídios para pagamento de despesas correntes (como água e luz) ou melhorias básicas nas suas sedes.84 A Federação operava como uma instância de redistribuição de recursos que, por mais parcos que fossem, eram vitais para a comunidade umbandista, a considerar os frequentes pedidos dos centros, constantes nas atas, para serem isentos da mensalidade em razão da precariedade socioeconômica de seus chefes e adeptos.

Entrevista realizada com Carlos Alberto Pereira, em 14 de abril de 2015. Livro de Atas da UUPS/Federação Sul-Riograndense de Umbanda. Ata nº 103, folha 71 (face), 24 de fevereiro de 1972; Ata nº 114, folha 89 (face), 19 de outubro de 1972. 82 Na Ata nº 27, relativa a uma reunião de diretoria da Federação, o então presidente Sr. Aldírio Oliveira noticiava um jantar do qual participou em companhia do deputado em Santa Vitória do Palmar, o qual fora organizado por centros de umbanda locais em homenagem ao parlamentar: “Como não poderia deixar de ser, este jantar tornou-se um verdadeiro ambiente de confraternização umbandista e ensinamentos, com a palavra do irmão Getúlio” (Ibid., Folhas 107 - face - e 108 – verso; 10 de outubro de 1974). 83 Ibid., Ata nº 87, folha 44 (verso), 4 de julho de 1971; Ata nº 106, folha 74 (verso), 15 de junho de 1972. 84 Ibid., Ata nº 21, folha 101 (face). 20 de fevereiro de 1974. 80 81

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Conclusão A leitura do Livro de Atas sistematizado e exposto neste texto oferece informações valiosas sobre a conformação do campo religioso afro-brasileiro do município de Pelotas, especialmente sobre a constituição das instâncias de representação política. Não obstante abarcar um período histórico limitado, mas que foi estratégico no processo de legitimação da umbanda na cidade e região. Comparando com o contexto analisado por Negrão (1996), relativo ao sudeste, observam-se tendências similares: a constituição de associações e federações para fazer frente às perseguições policiais; a tensão entre unificação e segmentação; o dilema entre afirmar a matriz africana ou se submeter a padrões de moralidade impostos tanto por concepções hegemônicas de religiosidade quanto por difusas, mas persistentes, visões de mundo de cunho evolucionista e positivista; o uso regrado de cerimônias públicas para angariar visibilidade e aceitação social; e, o estabelecimento de alianças estratégicas com o poder político para legitimação no presente e forjamento de condições mais promissoras de exercício religioso no futuro, etc. O fragmento da trajetória da umbanda, aqui retratado, se constitui em um convite para o aprofundamento de pesquisas sobre o tema e em um singelo ato político a confrontar os estratagemas produtores de esquecimento, funcionais à perpetração de formas suspeitas de exercício da representação política.

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Identidades, mediação institucional e modalidades de ação política no contexto das religiões afro-gaúchas Rodrigo Marques Leistner1

1. Introdução Esse texto analisa algumas lógicas de ação política empreendidas pelos adeptos das comunidades religiosas de matriz africana no Rio Grande do Sul. De modo mais específico, busca-se observar a configuração dos novos atores sóciopolíticos ligados às religiões afro-brasileiras – em seus propósitos reivindicativos e em suas iniciativas de ocupação de espaços na arena pública – a partir de uma consideração sobre as dinâmicas hodiernas da democracia brasileira, cujos sentidos revelam a emergência de formas alternativas de articulação e participação política junto à esfera pública. Considera-se que algumas características da cultura política contemporânea do país sejam propícias para o estabelecimento de profundas alterações nos processos sociais que envolvem as religiosidades em estudo, tanto no que se refere aos novos formatos associativos e sistemas de representação acionados pelos adeptos dessas religiões, quanto em relação às construções identitárias que subjazem a esses empreendimentos. O trabalho Doutor em Ciências Sociais - UNISINOS/RS. Atualmente é bolsista do Programa Nacional de PósDoutorado da CAPES, realizando atividades de pesquisa e docência no PPG CS da UNISINOS. Dedica-se a estudos sobre o campo religioso e cultura afro-brasileira, abordando tópicos como religião e política, experiências religiosas contemporâneas, formação política das identidades e políticas culturais. 1

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pretende evidenciar essas dinâmicas, caracterizando tipologicamente os distintos atores afro-religiosos que se constituíram em diferentes períodos e em distintas realidades sociais, discutindo de forma mais estrita suas configurações tipológicas na atualidade. O desenvolvimento das religiões de matriz africana no Brasil sempre esteve acompanhado por uma série de conflitos fomentados por diferentes segmentos sociais. Tal realidade demandou, da parte dos adeptos dessas práticas, contínuas iniciativas de negociação na arena pública. Cabe destacar que esses conflitos descortinam preconceitos baseados no dualismo entre um “racionalismo branco ocidental” e a “barbárie negra primitiva” (ORTIZ, 1978) e, conforme a literatura especializada, essas representações municiaram atitudes repressivas que resultaram na interdição de templos e prisão dos adeptos, então categorizados como feiticeiros, falsos curandeiros e charlatões.2 Assim, as religiosidades negras foram ostensivamente reprimidas pelo Estado, em circunstâncias estimuladas ora pela Igreja Católica (MARIZ, 2000), ora pelo discurso dos médicos e intelectuais do período pós-escravagista, que associaram os cultos a perspectivas patológicas passíveis de serem controladas pelos serviços de higiene mental do início do século XIX (GUEDES, 1985). Tais realidades ainda receberam por parte da imprensa burguesa não apenas a validação do quadro repressivo, mas também a possibilidade de disseminação de um senso comum dotado de representações estigmatizadas. Ainda que fatores como o processo de laicização do Estado brasileiro e a emergência de uma cultura democrática mais pluralista tenham atenuado aquelas realidades repressivas, é correto observar que as lógicas de intolerância em relação aos templos afro-brasileiros não se restringem a um passado remoto, sendo constantemente atualizadas na sociedade contemporânea. Exemplo dessa perspectiva corresponde a atual repressão promovida pelos segmentos A repressão aos cultos de matriz africana na sociedade brasileira foi amplamente referida em trabalhos como os de Lísias Negrão (1996) e Renato Ortiz (1978). Norton Corrêa (1998) também apresenta um detalhado histórico dos conflitos estabelecidos entre o universo dos terreiros e a sociedade envolvente, seja na oposição estabelecida pela Igreja Católica e pelo Estado, ou ainda com base nas representações negativas articuladas pela elite intelectual que abordou o tema. 2

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pentecostais, em contendas discursivas que continuam a fomentar representações pejorativas e situações concretas de intolerância religiosa (ORO, 1997; PRANDI, 2003). Entretanto, se os conflitos do passado ainda encontram na atualidade sua manutenção, as contrapartidas políticas formuladas pelo segmento africanista parecem evidenciar profundas rupturas com o que outrora constituiu as lógicas de ação política e as construções identitárias empreendidas pelas comunidades de terreiro. Conforme demonstram as análises de Ortiz (1978) e Negrão (1996), é sobretudo nas décadas de 1940 e 1950 que emergem diversas instituições que passam a mediar as relações entre os templos afro e a sociedade envolvente, as quais surgem com intuito de unificar e representar politicamente o fragmentado universo dos terreiros.3 Naquele momento, observavam-se perspectivas de negociação social baseadas em lógicas burocráticas, operacionalizadas em empreendimentos que visaram centralizar a organização dos templos a partir de entidades federativas. O que as lógicas de ação do período revelam relaciona-se com iniciativas de centralização política alvitradas por certos líderes, os quais passaram a intermediar as relações dos terreiros com outros segmentos sociais mediante a incorporação de lógicas identitárias mais aceitas na sociedade hegemônica. Desse modo, além de formatos associativos burocráticos e centralizadores, e de um sistema de representação que se limitou à intermediação entre as unidades de culto e o aparato estatal (entenda-se as delegacias de polícia), observou-se a configuração de parâmetros identitários fundamentados naquilo que Ortiz (1978) denominou como branqueamento das religiões afro-brasileiras. Ou seja, um processo cuja operacionalização simbólica se deu a partir de um reordenamento ético-doutrinário que incorporou elementos ocidentalizados advindos das tradições cristãs. Contudo, algumas realidades empíricas observadas no campo africanista A fragmentação do campo afro-umbandista apresenta profundas complexidades no que se refere às possibilidades de arregimentação de forças por parte desse segmento. Como demonstram Prandi (1991) e Oro (2001), tal fator decorre da inexistência de um corpo sacerdotal estratificado, sobretudo em função de que essas religiões se desenvolveram a partir da emergência de unidades de culto autônomas e, portanto, concorrentes entre si, numa lógica própria do mercado de bens religiosos. 3

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do Rio Grande do Sul contemporâneo têm revelado lógicas de organização e ação política muito distantes das noções referidas acima. Nas atuais articulações do segmento afro-religioso gaúcho, observa-se a configuração de formatos associativos baseados em fóruns e grupos de discussão de filiação espontânea, cujas ações se orientam a partir de iniciativas de elaboração de projetos de captação de recursos governamentais, bem como na possibilidade de participação ativa em canais de discussão e execução de políticas públicas direcionadas aos segmentos minoritários. Ainda podem ser detectados parâmetros identitários orientados por um retorno simbólico ao continente africano, numa espécie de reconstrução de matrizes étnico-identitárias, processo que tem sido interpretado na análise especializada como “reafricanização” das religiosidades afro-brasileiras (PRANDI, 1998; FRIGÉRIO, 2005). O que os fatores acima arrolados sinalizam designa uma substancial dinâmica inerente às realidades políticas que incidem sobre as religiosidades africanistas, sobretudo no que se refere às articulações desse segmento na esfera pública. Por outra via, se as estratégias de negociação social e a configuração dos atores ligados a essas práticas têm sofrido alterações substanciais, deve-se destacar que grande parte dessas alternâncias pode ser compreendida a partir da observação das diversas instituições de representação política desses segmentos, as quais encontram no período contemporâneo uma efervescente proliferação (ÁVILA, 2008). No entanto, desde os estudos realizados entre os anos 1970 e 1980, promovidos exclusivamente no centro do país, os mecanismos institucionais e órgãos federativos do campo afro não têm recebido maior atenção acadêmica. Cabe ressaltar que é justamente nesses sistemas federativos que se encontram os principais artifícios de negociação social colocados em prática por parte dos adeptos dessas religiões, tanto em seus aspectos morfológicos, no que concerne aos canais de representação e participação política, quanto nas acepções simbólicas e discursivas, relativas às construções de uma identidade reivindicativa que organiza as experiências sócio-políticas. Desse modo, supõe-se que uma análise desses organismos institucionais não apenas atenda a uma lacuna nos estudos dessas religiões, como também propicie uma compreensão mais acurada das dinâmicas políticas hodiernas que concernem aos atores ligados ao universo dos

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terreiros afro-brasileiros. Nesses termos, esse trabalho busca captar e sistematizar analiticamente as dinâmicas sócio-políticas que se referem às religiosidades de matriz africana, conferindo destaque especial às religiões afro-gaúchas. Trata-se de compreender os processos de constituição dos novos atores ligados a essas práticas, a partir da observação dos diferentes modelos de associativismo e de organização políticoinstitucional empiricamente disponíveis no Rio Grande do Sul. O esforço analítico se desenvolve através de três enfoques principais: (i) avaliação dos modelos associativos e aspectos formais da institucionalização das atividades de representação; (ii) verificação das lógicas de ação política propostas nesses modelos; (iii) reflexão sobre as lógicas discursivas e construções identitárias presentes nos empreendimentos observados.4

2. Algumas categorias para o debate: atores coletivos, identidades e ação política na esfera pública contemporânea Os aportes que teorizam sobre a constituição dos atores sociais e a negociação das identidades, bem como sobre as modalidades de ação política no contexto da esfera pública contemporânea demonstram-se centrais para essa análise. Por tal razão, de forma anterior à exposição das realidades empíricas que sustentam a reflexão, torna-se necessário revisar aquelas categorias teóricas, ainda que de forma breve e resumida. A noção de ator torna-se de fundamental nos estudos de Alain Touraine. Em sua perspectiva teórica sobre os movimentos sociais, Touraine (1977) concebe o ator como agente dinâmico que produz demandas e reivindicações, cuja posição não se encontra fixada aprioristicamente num dado sistema de produção. Nesse sentido, a sociedade se produz com base na emergência e atuação Metodologicamente, a análise centra-se na observação de 11 entidades federativas e coletivos africanistas existentes na região metropolitana de Porto Alegre. Além da análise de documentos, como estatutos e atas de fundação desses coletivos, foram aplicadas entrevistas semi-diretivas junto aos participantes, ainda tendo sido realizadas observações etnográficas nas atividades daquelas organizações. O trabalho de campo foi realizado entre os anos 2009 e 2010, tendo sido retomado em 2013 e 2014. 4

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dos movimentos sociais, os quais configuram a ação de um ator coletivo que projeta suas lógicas reivindicativas em oposição a um determinado adversário. Nessa perspectiva, toda sociedade comporta questões culturais comuns que compõem o que Touraine (1977) classifica como sistema de ação histórica. É exatamente sobre o controle social desse sistema que se engendram os conflitos e as mobilizações que acabarão por engendrar o processo de constituição do mundo social, que dessa forma, se produz. Os atores são os principais agentes desses processos. Nesses termos, o movimento social é resultante de uma ação conflitiva travada na luta pela pretensão de controle do sistema de ação histórica (TOURAINE, 1977, p. 283). O que caracteriza de fato um movimento social (ator coletivo) designa a combinação de alguns elementos, com ponto de referência nas noções do ator, seu adversário e os motivos do conflito – aquilo que se descortina como objetivo da luta e da ação. Na interpretação de Touraine sobre as ações coletivas, três categorias emergem com centralidade teórica: a identidade, a oposição e a totalidade. A identidade designa a maneira como o ator ou grupo se identifica e, logicamente, remete a um princípio de oposição, numa perspectiva comparativa definida na projeção de um adversário. O princípio da identidade conduz à definição que o ator constrói sobre si mesmo, e a organização de uma ação coletiva só é possível segundo a consciência dessa definição, ainda que a mesma possa formar-se de modo anterior a qualquer tipo de consciência. Dessa maneira, é a situação conflitiva e o estabelecimento de um adversário que constituem o princípio de oposição, cuja atuação se dá no processo de constituição do ator e da lógica identitária: “a identidade do ator não pode ser definida independentemente do conflito real com o adversário e do reconhecimento do objetivo da luta” (TOURAINE, 1977, p. 292). Esses dois elementos relacionamse na forma de um movimento que envolve o princípio de totalidade, que assenta aquilo que está em jogo e que é dimensionado a partir da soma dos projetos individuais e coletivos. Mais especificamente, o princípio de totalidade relacionase ao sistema de ação histórica, campo social e cultural de desenvolvimento, cujos atores – situados na dupla dialética de classes – lutam por sua apropriação. Fica expressa na concepção de Touraine a preponderância da ação de

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um ator, o sujeito que opera na constituição do mundo social. Nessa lógica, Touraine (1977) propõe que a compreensão dos movimentos sociais demanda a observação da transformação do indivíduo em sujeito e do sujeito em ator. Para Touraine, o indivíduo é uma unidade portadora de direitos civis que se transforma em sujeito à medida que se reconhece como portador daqueles diretos. A partir de então, nos processos dialógicos com seus pares, se engendram processos de construção identitária, formação e articulação de grupos e, dessa maneira, transporta-se à dimensão do ator envolvido em ações políticas no campo da cultura, das concepções e visões de mundo. Deve-se avaliar que tanto as possibilidades de constituição da ação coletiva quanto as diferentes modalidades de ação política experienciadas pelos atores do campo afro-religioso inserem-se num horizonte de experiências sociais possíveis, cujas características significativas atrelam-se tanto aos formatos da esfera pública contemporânea quanto às modalidades de presença do religioso nesses espaços. No primeiro caso, tais referências apontam para uma efetiva complexificação da sociedade civil (MELUCCI, 2001), realidade derivada de uma nova configuração sócio-política na qual os conflitos e demandas sociais não se vinculam exclusivamente à possibilidade de acesso a recursos materiais, deslocando-se o eixo organizativo das experiências coletivas das perspectivas econômicas para uma pluralização de demandas (TOURAINE, 1999; GOHN, 1997). Trata-se de novas configurações dos atores coletivos, agora articulados em torno das mais variadas pertenças e de inusitadas experiências de conflito, as quais traduzem distintas modalidades e necessidades de inserção na arena pública. As referências sobre a desigualdade deixam de relacionar-se estritamente com a questão econômica, passando a referenciar demandas de cunho identitário, e a possibilidade de se fazer representar torna-se uma das principais características da democracia contemporânea (KYMLICKA, 1996; SEMPRINI, 1999). Como recorda Touraine (1999), uma infinidade de demandas emerge num contexto em que a cultura invade o político, instaurando-se no cerne das agendas públicas. No que se refere às modalidades de presença e articulação do religioso com essas realidades, torna-se necessário avaliar aquilo que Burity (2001, p. 29)

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definiu como um eminente retorno da religião à esfera pública, especialmente a partir de uma “reabertura dos espaços públicos (institucionalizados ou não) à ação organizada de grupos e organizações religiosas”. Segundo esse autor, a reaproximação de campos pretensamente apartados pela razão secular se promove nas mudanças históricas que vêm desconstruindo as fronteiras entre o público e o privado. Com o processo de pluralização cultural e religiosa, e a partir da luta por espaços de representação político-identitária entre diferentes grupos (culturais e religiosos), tanto o Estado tem sido convocado a regular as relações tensas que se engendram nesses processos quanto as coletividades religiosas passam a buscar espaços de representação política, seja através de disputas eleitorais, seja através da obtenção de recursos públicos na busca pela afirmação identitária. De um modo ou outro, as pertenças religiosas passaram a se conectar com questões referentes à etnicidade, gênero e classe, em reivindicações políticas que encontram novas formas de expressão “pela via do envolvimento nos formatos institucionalizados de participação popular (conselhos, câmaras, conferências, fóruns) e em distintas redes da sociedade civil” (BURITY, 2008, p. 86). Na emergência dos temas culturais como parte constitutiva do debate político, as políticas da identidade, o multiculturalismo, as ações afirmativas e as pertenças étnicas designam matéria na qual a religião é parte inseparável (BURITY, 2008, p. 88); e logicamente, as religiões de matriz africana se enquadram analiticamente em diversos ângulos aqui planificados. Nesse aspecto, perceber a pluralização de atores e demandas na sociedade contemporânea e suas vinculações com o universo das práticas religiosas configura um delineamento reflexivo central para projetar as religiosidades afro-brasileiras em suas aproximações com a esfera pública brasileira e em suas potenciais modalidades de institucionalização das ações reivindicativas e lógicas de ação política.

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3. Novos atores africanistas: modalidades alternativas de participação política e identidades afro-religiosas na esfera pública contemporânea 3.1 Breves considerações sobre campo religioso do Rio Grande do Sul No espectro que compõe as religiosidades de matriz africana do Rio Grande do Sul, o Batuque constituiu a vertente de traços mais africanizados, sendo uma religião desenvolvida especificamente nesse Estado, independente de outras linhas praticadas no restante do país, como o Candomblé baiano ou o Xangô pernambucano. Essa modalidade religiosa se caracteriza pelo culto aos orixás iorubanos e pela adoção das práticas sacrificiais e dos oráculos divinatórios. Chega ao território gaúcho através da introdução do elemento escravizado na metade sul do Estado, especialmente nas cidades de Pelotas e Rio Grande, que recebiam grandes contingentes de negros para a indústria do charque (ORO, 1999). Nessa região ainda é cultuada a Umbanda, amplamente abordada por Ortiz (1978) a partir dos conceitos de “empretecimento” e “embranquecimento”, cujos sentidos designam o surgimento da vertente em duas vias: o empretecimento do espiritismo kardecista e o embranquecimento da macumba carioca, que corresponderiam a sua gênese.5 Na visão de Ortiz (1978), a Umbanda satisfaz a uma espécie de síntese do pensamento religioso brasileiro, mesclando elementos europeus, indígenas e africanos, incorporando simbolicamente o mito da mestiçagem racial em voga nos anos 1930. A Umbanda corresponde à variante mais ocidentalizada do campo africanista, especialmente em função da racionalização dos códigos rituais e doutrinários, vide o abandono das práticas sacrificiais e de outras conotações tidas como primitivas na interpretação realizada pela sociedade hegemônica. Tendo surgido no sudeste brasileiro no início do século passado, chegou no território gaúcho em meados da década de 1920 (ORO, 2002). Sobre a contextualização de um “afro-umbandismo” praticado no Rio A Macumba corresponde a um culto de matriz afro com tendências sincréticas, desenvolvido no sudeste brasileiro no final do Século XIX, como demonstram os trabalhos de Ortiz (1978) e Droogers (1985). 5

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Grande do Sul, destaca-se que alguns terreiros podem cultuar simultaneamente três práticas religiosas na mesma unidade de culto, cada qual sendo desenvolvida em espaço e tempo rituais distintos: o Batuque (culto aos orixás), a Umbanda (culto aos caboclos e preto-velhos) e ainda a Quimbanda (culto aos exus e pombagiras, compreendida como subcategoria da Umbanda). Segundo Corrêa (1994), esses arranjos de vertentes numa mesma unidade de culto emergiram no Rio Grande do Sul por volta dos anos 1960, originando-se em virtude de processos de racionalização religiosa através da qual sacerdotes incorporaram as vantagens práticas e simbólicas de cada denominação. Compreendidos na perspectiva êmica como templos de “Linha Cruzada”, tais arranjos compõem a maior parte dos templos afro-gaúchos da atualidade, ainda sendo encontrados, em menor quantidade, templos exclusivos de Batuque ou de Umbanda. No que se refere à realidade social contemporânea incidente sobre esses cultos, é possível avaliar que o ambiente gaúcho se denota como uma espécie de epicentro no qual os principais conflitos que incidem sobre o campo afroreligioso têm sido observados. No ano de 2004, o embate que ficou conhecido como “polêmica do sacrifício de animais” engendrou uma calorosa discussão devido a um código estadual de proteção animal que proibiria as práticas de imolação nessas religiosidades – rituais que se projetam como centrais na experiência religiosa africanista. Nesse processo, alguns terreiros chegaram a ser interditados devido à implementação da nova Lei. Na sequência, um projeto de Lei alternativo que visou garantir a prática da imolação nos cultos foi votado e aprovado pela Assembléia Legislativa em junho de 2004, e na sequência, foi sancionado pelo então governador do Estado, Germano Rigotto. No ano de 2015 a polêmica foi recuperada através da proposição de um novo projeto de Lei que visava obstruir a liberação da sacralização especificamente nas religiosidades de matriz africana. Contudo, em mais uma oportunidade as ações do legislativo gaúcho foram favoráveis à manutenção dos aspectos litúrgicos africanistas. Tais processos não apenas ocasionaram calorosas polêmicas no Rio Grande do Sul, como têm demandado das comunidades afro-religiosas diferentes projetos e iniciativas de legitimação social. Relacionado a essas demandas, nos últimos anos tem sido possível observar o surgimento de novas federações afro-

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umbandistas, bem como a promoção de protestos, manifestações e articulações entre os atores pertencentes a uma instância religiosa historicamente destituída de vínculos associativos. Nesse sentido, o campo de matriz africana no Rio Grande do Sul comporta uma efetiva mobilização política, sendo permeado por uma diversidade de formas associativas e sistemas de representação política. Com base na recuperação do histórico dessas entidades e de suas metodologias de ação, é possível perceber a existência de três tipologias que revelam uma espécie de trânsito de perspectivas inerentes às formas de institucionalização das atividades reivindicativas desse segmento, bem como de suas lógicas de ação política e seus processos de construção identitária. 3.2 Os modelos tradicionais: as federações e o campo institucional burocrático No Rio Grande do Sul, as primeiras estratégias de legitimação do campo afro-religioso obedecem à mesma lógica verificada em outros estados, como no Rio de Janeiro, vide os trabalhos de Ortiz (1978) e Pechman (1982). Conforme esses autores, as instituições ligadas à vertente umbandista foram as primeiras a concentrar processos de legitimação mais contundentes, e segundo Ortiz (1978), estabeleceram polarização direta aos cultos mais africanizados, caso dos Candomblés, Batuques e Xangôs. Conforme observam Ortiz (1978) e Brown (1994), essas organizações foram constituídas por atores oriundos da classe média brasileira, como militares e médicos que anteriormente simpatizavam com as práticas kardecistas, em sua maioria brancos. São esses atores que atuaram como intelectuais orgânicos que visaram dotar as religiões afro-brasileiras de conteúdo teológico ocidentalizado. No território gaúcho, a primeira entidade federativa surge em 1953 (União de Umbanda) e seguiu esses mesmos propósitos. Segundo o babalorixá porto-alegrense Herculano de Oxalá6, nessas primeiras instituições, a oposição ao Batuque também era diretriz institucional presente, e somente com o surgimento da AFROBRÁS, já na década de 1970 é que os cultos mais africanizados do Estado observaram o surgimento de uma entidade a eles dedicada. 6

Presidente AFRORITO (Federação afro-religiosa), em entrevista realizada em abril de 2013.

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No entanto, se faz necessário constatar que a Umbanda, em sua condição de maior aceitação social, acabou abrindo caminho para os cultos africanizados através da possibilidade de trânsito e deslocamento de adeptos entre ambas as vertentes, e a partir da incorporação do umbandismo pelo africanismo, quando práticas como Batuque passaram a arregimentar no mesmo espaço de culto os rituais umbandistas, como forma de adaptação às novas realidades sociais nas quais se encontravam imersas. Assim se processou o surgimento da Linha Cruzada no Rio Grande do Sul, conforme descreveu Corrêa (1994). O que se denota pertinente, no contexto do campo institucional, é que os sistemas utilizados pelas entidades federativas umbandistas ainda serviram de modelo para a construção dos formatos associativos empregados pelas vertentes mais africanizadas, caso do Batuque. A AFROBRÁS, surgida em 1970, configura a primeira entidade do Estado orientada a esses cultos. Até o surgimento dessa federação, os cultos Batuqueiros seguiram modelos de legitimação baseados em formatos similares aos empregados pelos terreiros de Umbanda. Para garantir a liberdade de culto, deveriam registrar-se como associação beneficente, e nessa perspectiva, adotavam como nomenclatura dos templos denominações similares aos centros umbandistas, substituindo os nomes dos orixás iorubanos pelos dos santos católicos, segundo as lógicas do sincretismo afro-brasileiro. Para a prática do culto, era necessário obter licença junto à delegacia de costumes de Porto Alegre e assumir o compromisso com as autoridades competentes sobre o toque dos tambores, executado somente nos horários indicados pelas autoridades. Em 1975 a AFROBRÁS conseguiria uma autorização do Governo do Estado para licenciar o toque dos tambores nas atividades litúrgicas7. A partir de fatos como esse, observa-se que de acordo com certas concessões por parte do poder público, algumas entidades foram adquirindo alguma autonomia institucional na regulação das atividades religiosas. Assim emergem os principais sentidos das federações de caráter burocrático. Em geral, tais entidades nascem visando substituir o trabalho de Segundo o babalorixá Jorge Verardi de Xangô, presidente desta entidade, em entrevista realizada em março de 2010. 7

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fiscalização exercido anteriormente pela polícia, com base numa autoridade atribuída de acordo com o jogo político vigente, estabelecendo-se relações nas quais as federações configuravam o elemento de mediação entre terreiros e sociedade envolvente – respondendo pelos primeiros e ao mesmo tempo impondo a eles certas normatizações. O sistema de reciprocidade estabelecido entre unidades de culto e federação baseia-se, até hoje, na concessão de certificados expedidos como comprovação de filiação dos templos, concedidos a partir da inspeção e avaliação do culto praticado por parte de conselhos de babalorixás e yalorixás ligados ao órgão federativo (em tese habilitados para tal julgamento). Historicamente, os certificados, geralmente expostos nas paredes dos templos, atuavam como elemento de defesa em ocasiões de fiscalização policial. Dentre outras atribuições, as federações tradicionais nasceram objetivando promover unidade organizacional, teológica e de representação social. Entretanto, essas associações jamais conseguiram sucesso nos empreendimentos de unificação diretiva e teológica, conforme já observaram Brumana e Martinez (1991). Isso ocorre em função da característica do poder personificado e intransferível do sacerdote (pai-de-santo), exclusivo mandatário de seu templo e, dessa forma, pouco afeito às determinações federativas. Em outro sentido, a partir dos processos de democratização e das novas legislações constitucionais que garantiram a liberdade de culto no país, as entidades federativas perderam seu espaço e seu poder sobre o conjunto de templos – especialmente aqueles que antes observavam nas federações uma garantia de proteção indispensável. Ainda hoje, entidades centradas nessas premissas configuram um grande número das associações africanistas gaúchas. Dentre as instituições analisadas nesse trabalho, enquadram-se nessa categoria as seguintes federações: AFROBRÁS, AFRORITO, CEUCAB (Conselho Estadual de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros), AFROCONESUL, Fundação Moab Caldas, CONCAUGRA (Conselho dos Cultos Afro-Umbandistas de Gravataí), AFROES (Associação Afro de Esteio) e AFRO ORDEM. O desenvolvimento dessas coletividades é marcado por uma extrema

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personificação, e ainda que os estatutos e regimentos internos sustentem a necessidade de eleições periódicas, a ocupação dos cargos diretivos se apresenta como praticamente vitalícia. Em sua totalidade, as federações expedem certificados aos filiados e sobrevivem da arrecadação de taxas e anualidades que variam entre oitenta e duzentos reais. Dentre os principais serviços prestados aos associados encontra-se o apoio jurídico, a expedição de autorizações para celebrações religiosas com o uso de instrumentos de percussão, além da intermediação de registros de documentos em cartório. Em geral, os registros visam atestar, burocrática e documentalmente, a legalidade da condição do sacerdócio, na medida em que na falta de um corpo sacerdotal estratificado qualquer indivíduo poderia se auto-proclamar babalorixá. Assim, registram-se as genealogias religiosas8, compreendidas como fatores de comprovação tanto da condição do sacerdócio como da capacitação ao exercício da função. Outros documentos e serviços oferecidos aos filiados correspondem à expedição de certidões de casamento e batismo, enquanto atividades celebradas nos cultos afroumbandistas. Em síntese, observam-se tentativas de legitimação baseadas na burocratização das práticas religiosas, em processos que intentam aproximações com as lógicas de legitimidade socialmente hegemônicas na sociedade envolvente. Dito de outro modo, essas ações visam conceber certo grau de organização institucional e legitimidade a partir de métodos ortodoxos de registro burocrático das experiências religiosas cotidianas, aproximando os sistemas de representação tradicional das lógicas organizativas racionalizadas da sociedade moderna. As principais atividades colocadas em prática por essas associações consistem em dois modelos básicos. O primeiro refere-se às manifestações rituais efetuadas em espaços públicos. Nesse caso, são exemplos a Festa de Oxum, organizada pela AFROBRÁS, que ocorre nos meses de dezembro em Porto Alegre. Tais eventos se projetam no formato de procissões, de caráter eminentemente religioso, através da ocupação das ruas por religiosos Os cultos afro-brasileiros se estruturam com base numa concepção de parentesco mítico, sendo que um iniciado torna-se filho-de-santo de seu iniciador, além de irmão-de-santo daqueles que foram iniciados pelo mesmo sacerdote, tal como na concepção ocidental do parentesco (PRANDI, 1991). 8

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paramentados, entoando os cânticos da Umbanda ou as rezas do Batuque, promovendo a saudação das divindades que são celebradas. Nessas atividades, o convite aos agentes políticos do Estado é sempre recorrente, e conota sentidos de legitimação com base na aproximação com o poder público instituído. Importa ressaltar que essas manifestações geram processos de legitimação na medida em que conferem à prática ritual algum nível de projeção e visibilidade social – sobretudo a partir da ocupação dos espaços públicos urbanos. O outro formato de atividades diz respeito aos seminários de discussão dos aspectos teológicos e das problemáticas por que passam as religiões de matriz africana nos contextos atuais. Em geral, as discussões teológicas buscam conscientizar os adeptos sobre a necessidade de conciliação das práticas rituais com as demandas ecológicas contemporâneas. Assim, os sacrifícios executados em vias públicas são constantemente desestimulados, e a proposta de reconstrução de uma teologia unificada atua no sentido de eliminar o que a perspectiva êmica considera como excessos e exageros rituais. Nesse caso, a unificação teológica objetiva tanto unificar religiosos a partir de uma hierarquia projetada pelos líderes das federações, quanto uma maior compatibilidade entre os cultos e a sociedade envolvente. 3.3 Novas propostas associativas: um modelo de transição Alguns atores do campo afro-religioso gaúcho se apresentam em postura efetivamente contrária às federações de caráter burocrático. Em parte, as acusações partem da inconformidade com uma relativa inércia apresentada pelas federações mais antigas, especialmente nos acirrados conflitos com a sociedade envolvente, como no caso da polêmica da sacralização de animais. Elementos dessa contrariedade conduzem a avaliações de que as entidades de caráter burocrático baseiam sua existência a partir de objetivos arrecadatórios, visando exclusivamente o lucro de seus respectivos diretores, os quais não permitem espaço para alternâncias democráticas nos processos de gestão das instituições. Com base nessas circunstâncias, o ano de 2003 – período em que eclodiu a polêmica da sacralização – tornou-se um marco da ebulição no quadro federativo africanista gaúcho, e algumas das instituições enquadradas analiticamente nessa

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categoria surgem justamente nesse período, sendo elas as seguintes: CEDRAB (Congregação em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras, UNIAFRO e Associação Afro-Umbandista de São Leopoldo. Pode-se compreender o surgimento da CEDRAB como uma espécie de reformulação do campo institucional africanista gaúcho, através da qual se engendraram novas posturas e métodos de institucionalização. De acordo com a yalorixá Norinha de Oxalá, fundadora da entidade, os motivos para o surgimento da associação emergem da inconformidade com os ataques promovidos pelas Igrejas Neopentecostais, e tomam corpo substancial com a contenda do sacrifício de animais. A ideia de fundação da CEDRAB parte dos círculos de sociabilidade próprios do cotidiano religioso e possui influência decisiva por parte de indivíduos que integravam o Movimento Negro Gaúcho. É justamente nessa aproximação com o MNU que se projetam as bases de orientação para as ações coletivas empreendidas, tanto nos aspectos formais quanto nas propostas discursivas e identitárias. No primeiro sentido, é com a inspiração das metodologias do Movimento Negro que se consolidam ideias como as de organização de seminários, mobilizações urbanas e ações judiciais a serem impetradas em ocorrências conflituosas que envolvam o segmento africanista. No plano simbólico, a proposta identitária que passa a articular as demandas e as lógicas de unificação coletiva se conecta aos processos de recuperação de uma identidade afro-descendente, tanto numa acepção étnico-racializada quanto no plano das codificações teológicas, que passam a obedecer processos de desincretização ritual característicos da reafricanização dos cultos afro-brasileiros. Os novos conceitos são formulados a partir da ideia de descentralização do poder residente nas instituições mais antigas, partindo-se da formatação de grandes redes de templos, cujos pontos de conexão correspondem às pequenas federações espalhadas pelo Estado. Aliado a esse nexo de descentralização e formatação de rede, observam-se fatores relativos a uma atuação coletiva mais combativa, sobretudo a partir do acionamento de lógicas identitárias étnicas, que configuram a tônica dos discursos e recursos simbólicos acionados. As principais ações articuladas por essas instituições também se distanciam das atividades litúrgicas empreendidas pelo grupo anterior. Numa

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primeira acepção, observa-se a organização de passeatas e mobilizações coletivas em espaços públicos urbanos, realizadas em momentos esporádicos, especialmente em ocasiões de tensão relativa a alguma controvérsia com a sociedade envolvente ou episódio de intolerância religiosa. Casos exemplares designam as caminhadas coletivas promovidas durante os conflitos em torno da polêmica da sacralização de animais, bem como as manifestações em frente ao Palácio do Piratini, Assembléia Legislativa, Prefeitura de Porto Alegre e Tribunal de Justiça do Estado, na ocasião daquele conflito. Outro exemplo se refere à Marcha Contra a Intolerância Religiosa, organizada anualmente pela CEDRAB nos meses de janeiro, em Porto Alegre. Na manifestação, os religiosos vestem-se de branco e percorrem o trajeto que parte do Mercado Público da capital gaúcha até o Largo da Usina do Gasômetro, entoando rezas aos orixás, proferindo palavras de ordem e portando faixas com interpelações relacionadas aos processos de intolerância. Os seminários também são importantes atividades desenvolvidas por esses coletivos. Nas três federações aqui agrupadas, tais eventos são empreendidos ao menos uma vez por ano. As temáticas abordadas dizem respeito às relações entre as práticas religiosas e o meio ambiente, numa perspectiva na qual as necessidades de resgate teológico, orientado pela lógica da reafricanização, são entendidas como solução viável para as interferências da prática ritual nos ecossistemas, sendo assim ressaltadas e projetadas como estratégias a serem disseminadas entre a comunidade afro-umbandista. Os ideais de unificação teológica designam o traço que mais aproxima esses coletivos com as instituições burocráticas referidas acima. Entretanto, nesse caso a lógica da reafricanização (desconstrução do sincretismo) atua em três perspectivas: (i) visa unificar atores desarticulados com base numa identificação sólida com matrizes étnicas; (ii) busca compatibilizar as práticas com as demandas ecológicas, projetando recuperar uma teologia de matriz supostamente original como forma de readequar as práticas à sociedade contemporânea; (iii) por fim, se entrelaçam lógicas de pertença religiosa e de origem étnica, operacionalizadas tanto a partir dos códigos doutrinários quanto nos discursos que balizam a identidade reivindicativa, o que por sua vez rearranja as religiosidades afro-umbandistas no mesmo enquadramento

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estratégico a partir do qual são pleiteadas as ações afirmativas voltadas às populações negras na atualidade. 3.4 Metodologias sofisticadas: uma nova postura política no segmento afro-religioso Nessa tipologia encontram-se entidades de caráter eminentemente político, apresentando, nesse sentido, algumas proximidades com as entidades dispostas na categoria precedente e total ruptura com as entidades de caráter burocrático. Basicamente, além da atividade política intensa, como atividades reivindicativas e de defesa das religiosidades afro-umbandistas nos espaços públicos urbanos, esses grupos baseiam-se em estratégias concretas de ocupação de espaços no desenvolvimento e nos processos de execução de políticas públicas. Os líderes geralmente mantêm alguma filiação partidária, apresentando longas trajetórias políticas e a participação contínua em outras mobilizações coletivas urbanas. No que se refere aos modelos organizacionais, diferem-se por optar por uma estrutura regimental não convencional ao campo federativo afroreligioso. Assim, não adotam estatutos sociais nem mesmo cobram taxas de adesão e anuidades. Mesmo a expedição de certificados e documentações de filiação dirigidas às unidades de culto, tão comuns nesses segmentos, é categoricamente abolida. O processo de filiação é geralmente procedido de forma espontânea, a partir da procura e adesão por parte dos membros das comunidades de terreiro. As entidades categorizadas nesse grupo designam o FORMA-RS (Fórum Estadual de Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Segurança Alimentar), conhecido simplesmente como Fórum de Matriz Africana, e a UNIAXÉS (da cidade de Canoas). O Fórum parece condensar boa parte das experiências alvitradas dentro desse perfil associativo. Surge no ano de 2005 e se denota como um grupo de discussão e ação político-reivindicativa, composto por babalorixás e yalorixás gaúchos que, entre outras ações relacionadas às estratégias de legitimação das religiões afro-umbandistas, promove a gestão de recursos obtidos junto ao Governo Federal. Tais recursos têm origem no MDS (Ministério do Desenvolvimento Social), sendo distribuídos pela SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), e a partir de 2004, em decorrência do

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projeto de Lei que categorizou os terreiros de matriz africana como comunidades tradicionais no Brasil, os mesmos benefícios puderam ser gestados pelas unidades de culto afro-brasileiras9. A distribuição dos recursos na região sul foi confiada à yalorixá gaúcha Vera Soares de Yansã, que ocupa desde 2003 uma cadeira no CNPIR (Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial). A partir de então, como metodologia para a distribuição das 800 cestas básicas advindas do programa, Vera Soares criou o projeto do Fórum de religiosos, de caráter permanente, no qual os terreiros cadastrados apresentam como contrapartida para participar do programa o comparecimento nas reuniões do grupo. Cerca de dois mil terreiros gaúchos perfazem o cadastro de participantes do Fórum. Atuando em formato de rede, o fórum central repassa as cestas básicas a diversos terreiros, que funcionam como micro-fóruns. Essas unidades secundárias encontram-se localizadas em bairros da periferia de Porto Alegre e em cidades da região metropolitana, como Cachoeirinha, Alvorada, Canoas, Viamão, Guaíba e Eldorado do Sul. Os micro-fóruns promovem a distribuição das cestas básicas aos membros das comunidades adjacentes. Aliado a esse processo, o grupo realiza reuniões semanais com intenção de avaliar as tensões pelas quais passam as comunidades religiosas africanistas no Estado, sobretudo aquelas relacionadas ao sistemático ataque efetuado pelas Igrejas neopentecostais. As reuniões acontecem semanalmente em espaços públicos cedidos pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre e contam com uma média de vinte a trinta participantes. Os encontros ocorrem em formato de plenárias e geralmente se organizam em duas etapas. Na primeira, concebida pelo grupo como momento de informes, são compartilhadas as experiências de cada participante nos contextos religiosos e, fundamentalmente, nas acepções políticoidentitárias. Os membros, em sua quase exclusividade sacerdotes, são No referido ano, o Governo Federal criou a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais. O projeto teve por objetivo estabelecer a política nacional de desenvolvimento sustentável, fornecendo apoio às políticas públicas para o setor. A partir dessa resolução, possibilitou-se aos terreiros de matriz africana atuar na distribuição de recursos oriundos das políticas de segurança alimentar, uma vez que enquanto “comunidades tradicionais” não se enquadram na categoria “templos religiosos” - o que impossibilitaria tal atividade em razão dos princípios de laicização do Estado brasileiro. 9

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incentivados a reportar suas atividades comunitárias e os trabalhos sociais empreendidos em seus terreiros. Após essas considerações, inicia-se uma etapa de cunho discursivo, conduzida de forma quase exclusiva pelos líderes. O caráter formativo das reuniões é admitido de forma aberta, e os discursos dos membros diretores são sempre de cunho pedagógico, com intenção de fomentar a emergência de novos líderes religiosos com formação política. Outra estratégia do grupo remete às sucessivas candidaturas da principal líder, a yalorixá Vera Soares, à Câmara de Vereadores da cidade de Porto Alegre, nos pleitos de 2004 e 2008, e à Assembléia Legislativa do Estado em 2010, pelo Partido dos Trabalhadores, empreitadas nas quais não se obteve sucesso eleitoral. A identificação partidária é francamente assumida nessa entidade. Embora existam componentes filiados a outros partidos políticos, a identificação das lideranças com o Partido dos Trabalhadores é efetiva. Os membros do grupo ainda participam do núcleo de religiosos de matriz africana do PT, espaço que representa a religiosidade afro-umbandista no estabelecimento das diretrizes daquele partido. A ocupação de espaços em setores da sociedade civil se revela como uma das principais características desses coletivos. A busca por representatividade em outros fóruns e espaços de discussão de políticas públicas é constante, e a efetividade nesses processos é obtida a partir da ocupação de cadeiras em conselhos e na eleição de delegados em diversas conferências. O preenchimento de espaços em canais dessa natureza é percebido como condição necessária à obtenção de maior representatividade por parte das religiosidades afro-brasileiras. Como exemplo, é possível mencionar a participação de membros do Fórum nas etapas municipal, regional e nacional da CONAPIR (Conferência Nacional de Promoção de Igualdade Racial), na qual são construídas as principais políticas de ação afirmativa voltadas às populações negras. Nessas atividades, o Fórum consegue eleger delegados em condições de igualdade numérica com outras entidades negras, como o próprio Movimento Negro Unificado. Ainda cabe ser ressaltada a participação do grupo no Fórum de Entidades da Prefeitura de Porto Alegre, que estabelece discussões sobre as alterações propostas junto ao plano diretor da cidade. Nesse sentido, a participação de componentes do Fórum de

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religiosos visa debater temas relacionados à preservação dos terreiros instalados em zonas urbanas irregulares, a partir de projetos que visem sua caracterização como áreas de interesse cultural da cidade. Em síntese, o cerne das atividades priorizadas por essa entidade baseia-se na ocupação de espaços em setores de discussão de políticas públicas, constituindo uma das metodologias mais distintas observadas no campo afroreligioso. Verificam-se iniciativas que visam tomar a frente nos processos seminais de construção democrática, intentando a busca por inserção e representatividade na gênese das políticas sociais.. Aliam-se a essas premissas uma orientação reivindicativa e de combate frente às situações conflitivas com a sociedade envolvente, bem como a insistente proposta eleitoral para o Legislativo Municipal de Porto Alegre. Ao contrário do que ocorre nas entidades anteriores, as discussões teológicas são refutadas. Ao menos institucionalmente, não se discutem dogmas religiosos nessas coletividades. Dentre os assuntos debatidos nas reuniões observam-se temáticas inerentes às relações étnico raciais. A fundamentação estratégica de reivindicação e ocupação de espaços públicos centra-se em uma política de auto-atribuição racial, reaproximando terreiros de suas condições originais a partir de processos de reetnização simbólica das religiosidades em questão. No Fórum, as relações de proximidade com o Movimento Negro são intensas. Assim sendo, as lógicas de construção identitária seguem modelos efetivos de acionamento dos conteúdos étnicos, em seus sentidos mais extremados, baseados em considerações sobre a ancestralidade negra, constantemente reforçada na perspectiva dos atores que compõem o grupo.

4. Um pouco de interpretação e algum arremate Pode ser compreendido que as três tipologias aqui apresentadas sinalizam uma trajetória relativa às modalidades de ação e articulação política empreendidas pelos segmentos afro-religiosos em suas relações com a sociedade envolvente. Evidentemente, a análise dessas instituições não esgota as complexidades existentes no que se refere às relações de poder e as realidades políticas que envolvem essas práticas. Como se sabe, a fragmentação do campo africanista, em

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suas acepções endógenas (a micro-política do campo afro), a qual decorre das inúmeras rivalidades desse campo, fica preterida numa análise direcionada especificamente aos aspectos institucionais. Desse modo, uma agenda de pesquisa fecunda reside justamente na possibilidade de compreensão das lógicas de sociabilidades conflitivas que potencialmente se deslocam das relações religiosas cotidianas (micro-política), gestadas no interior dos templos, para a práxis política projetada em relação às mediações com a sociedade envolvente. Em outra perspectiva, os empreendimentos eleitorais dos atores oriundos dos segmentos afro-religiosos também merecem um olhar mais específico no que concerne às aproximações desses atores com os partidos políticos. Até mesmo as lógicas identitárias que se articulam tanto a partir das codificações doutrinárias quanto das identificações coletivas de caráter reivindicativo podem ser compreendidas numa reflexão mais focada nas inter-relações entre as experiências religiosas (ocorridas no cotidiano dos templos) e os constructos estratégicos empreendidos pelas instituições federativas. Entretanto, é a partir de constatações sobre os sistemas institucionais ligados a essas práticas que se torna possível conceber um panorama geral sobre a dinâmica das formas de relacionamento entre os adeptos dessas religiosidades e a sociedade envolvente, ressalvando-se os contextos políticos em que tais relações ocorrem: trata-se aqui de observar as alternâncias da relação entre as religiosidades afro-brasileiras e a sociedade hegemônica em perspectiva com as características da democracia e da cultura política brasileira. Em primeiro lugar, deve ser destacado que as tipologias referidas não conduzem a uma escala hierárquica de superação ou substituição de modalidades de ação política existentes no segmento analisado. O que se projeta como evidente é uma sobreposição de alternativas que passam a existir de modo concomitante, acrescentando novas possibilidades de negociação social e de participação política desses atores, independente da mensuração dos possíveis resultados alcançados. Nesse sentido, o que se infere sobre as entidades do tipo tradicional aponta para uma espécie de herança de formatos associativos que outrora intentaram a unificação dos atores afro-religiosos a partir da constituição de hierarquias organizacionais, bem como de lógicas de ação política voltadas para

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uma acomodação das relações tensas engendradas com os segmentos hegemônicos. As ações de burocratização das relações entre adeptos e templos africanistas, e entre estes e a sociedade envolvente, expressam as necessidades do período de surgimento dessas instituições, amplamente ancoradas em iniciativas de racionalização de práticas culturais oriundas de sistemas de representação tradicionais. Assim, o horizonte de projetos empreendidos visou aproximar práticas sócio-culturais específicas das lógicas racionalizadas e burocráticas da sociedade hegemônica. Nesse aspecto, as construções identitárias mais significativas daqueles processos estiveram em estreita afinidade com as ideias predominantes em seu período de gestação, no qual a ideologia da mestiçagem racial obteve seu paralelo na prática religiosa a partir da constituição dos sincretismos próprios da prática umbandista. No entanto, a partir do avanço de perspectivas mais pluralistas e da possibilidade de inserção de demandas de reconhecimento na agenda pública, novos formatos de ação e novas possibilidades de identificação ganharam espaço. É nessa perspectiva que emergem os modelos associativos aqui caracterizados como transitórios, cujas similaridades com as lógicas de organização e ação política típicas dos movimentos sociais urbanos brasileiros do período são inequívocas. Os conflitos que passam a estruturar as lógicas de ação política e as identificações coletivas operam numa perspectiva afinada com as noções de identidade, oposição e totalidade propostas na perspectiva teórica de Touraine (1977). Nessa lógica, as contendas engendradas com outros segmentos sociais colocam em jogo a viabilidade dos direitos de crença, e a oposição a esses variados contendores, agora estabelecida numa sociedade pluralista, remete a uma lógica de identificação que visa canalizar essas complexas relações a partir de um entrecruzamento das pertenças étnicas e religiosas. Desse modo, é com base numa identidade reafricanizada que se organizam as experiências coletivas de reivindicação. Do ponto de vista estratégico, essas perspectivas ainda enquadram as religiosidades afro-brasileiras junto às demandas por restituição social direcionadas às populações historicamente marginalizadas no país. O que se denota como pertinente trata de uma aproximação dos atores afro-religiosos de uma política de minoria vinculada às demandas por ações afirmativas, voltadas

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para as populações negras e, em consequência, para as comunidades de terreiro. Os princípios de consolidação desses formatos associativos também encontram nas ideias de indivíduo, sujeito e ator social, exploradas por Touraine (1977), uma assertiva planificação. Como se infere junto ao surgimento da CEDRAB, os indivíduos em interlocução permanentemente fomentada pelos conflitos contemporâneos, sobretudo no caso da perseguição neopentecostal, se concebem como sujeitos e articulam novas possibilidades de conexão, com base na formatação de redes de unidades de culto que visam estruturar ações reivindicativas muito mais amplas do que as ações limitadas a uma intermediação entre terreiros e aparato estatal. Entretanto, é a partir de experiências como aquelas colocadas em prática pelo Fórum de Matriz Africana que se consolidam alternativas mais sofisticadas de associativismo e ação política. Se as novas lógicas identitárias já formuladas por entidades como a CEDRAB são mantidas nesse modelo, o suporte formal para aquelas identificações recebe contornos bem mais complexos e extremamente próximos das formas de organização e mobilização política observadas em atores sociais contemporâneos, tais como as emergentes organizações não governamentais. Nesses termos, a busca por representatividade deixa de se orientar somente em bases reivindicativas, passando a postular uma participação ativa nos espaços de discussão e decisão política, bem como na possibilidade de ação e gestão dos recursos pleiteados. Logicamente, os novos modelos associativos e as lógicas de ação por eles potencializadas encontram uma realidade favorável na configuração contemporânea da democracia brasileira. Conforme demonstrado nos estudos de Krischke (2003), Silva, Jaccoub e Beghin (2005) e Pinto (2006), os novos canais de participação e os diversos mecanismos de parceria que se engendram como resultantes de variadas alterações no cenário político do país – desde as determinações constitucionais de 1988 até as reorganizações do Estado brasileiro na década de 1990 – aparecem como condições essenciais para essas novas realidades do campo afro. O que se projeta como evidência empírica é a utilização desses canais pelos segmentos religiosos afro-brasileiros, acrescentando aos empreendimentos de negociação social alvitrados pelos adeptos dessas práticas

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novas possibilidades de inserção na arena pública. Trata-se de novos formatos de articulação política que, noutros tempos, estiveram restritos a uma simples interlocução estabelecida entre as unidades de culto e os aparelhos de repressão do Estado brasileiro. Assim, é possível avaliar que os processos de negociação social que envolvem as práticas religiosas de matriz africana encontram-se numa nova fase, aproximada de maneira assertiva das perspectivas políticas contemporâneas que desvelam as demandas por representação, as relações étnico-raciais, bem como as lógicas de participação política em diversificados canais de aproximação entre Estado e sociedade civil. Se noutros tempos as estratégias de legitimação social empreendidas por esses segmentos estiveram centradas na adaptação e acomodação dos ritos na sociedade envolvente, na atualidade se observa uma postura substancialmente distinta, através da qual se exigem políticas de restituição social e possibilidades concretas de uma participação mais ativa na esfera pública brasileira.

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O Batuque gaúcho: Notas sobre a história das religiões afrobrasileiras no extremo sul do Brasil Marcelo Tadvald1 “O medo é um preconceito dos nervos. E um preconceito, desfaz-se Basta a simples reflexão”. Machado de Assis

Introdução

Dispõe-se de poucos dados históricos ou estatísticos a respeito das religiões de matriz africana que se constituíram em diferentes partes do país desde o período colonial. Muitas vezes a escassez de dados ou de fontes confiáveis repercute no baixo índice de trabalhos sobre determinados assuntos, prejudicando o seu entendimento mais confiável. Ademais, o desinteresse da “historiografia oficial” ao longo dos tempos no registro de temas e populações desconsideradas enquanto protagonistas dos cursos da sua própria história e da sociedade em geral, são aspectos que contribuem para a invisibilização dessa realidade. Este parece ser o caso aqui, quando voltamos a nossa atenção ao Batuque, um exemplo do vasto conjunto afrorreligioso brasileiro, culto Doutor em Antropologia Social, atua como Pós-Doutorando Capes PNPD, docente e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos da Religião (NER-UFRGS) e dos Grupos de Pesquisa do CNPq: Antropologia e Direitos Humanos e Transnacionalização evangélica brasileira para a Europa. Tem experiência na área das Ciências Humanas, com ênfase em Antropologia da religião, política e direitos humanos, identidade social e grupos terapêuticos e de ajuda-mútua. Contato: [email protected] 1

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considerado genuinamente gaúcho e que tem em Porto Alegre a sua maior referência, constituindo esta cidade na “capital difusora” desta modalidade religiosa para o mundo. A partir de fontes diversas, como relatos coletados em campo e dados disponíveis em sítios virtuais, ou o Primeiro censo das casas de religiões afrobrasileiras de Porto Alegre elaborado pelo Centro de Pesquisa Histórica (CPH) da Prefeitura da cidade entre 2006-2008, este texto busca analisar aspectos particulares, especialmente históricos, territoriais e etnográficos a respeito das dinâmicas de circulação e de distribuição dessas comunidades de terreiro no espaço porto-alegrense urbano e simbólico. Por razões metodológicas, limitei o universo a ser analisado pelas “nações” do Batuque (cabinda, oyó, ijexá, nagô, jeje e jeje-ijexá) e não trabalharei com a filiação dos sacerdotes da Umbanda e da Quimbanda, também cotejados em algumas fontes, como o referido Censo. Assim, o texto está dividido em quatro partes principais: primeiramente, ofereço um breve histórico a respeito das religiões de matriz africana no Brasil em geral e no Rio Grande do Sul em particular, para assim apresentar alguns dados também históricos sobre a presença das populações de origem africana na capital rio-grandense, ao contrário do mito deveras difundido que constantemente invisibiliza o componente afro-orientado constituinte da identidade gaúcha. A seguir, discorro sobre a formação e a consolidação do Batuque, apresentando por fim algumas considerações gerais a respeito de seus diferentes “lados” ou “nações”.

1. Breve histórico sobre as religiões de matriz africana no Brasil e no Rio Grande do Sul

As religiões afro-brasileiras são o resultado de um longo processo envolvendo a conservação e a transformação da memória coletiva africana no Brasil. Num contexto marcado pela realidade escravocrata, populações negras traficadas como mão de obra trouxeram consigo crenças, rituais, práticas e visões de mundo que foram adaptadas e rearticuladas de acordo com as demandas desta nova realidade social e geográfica imposta. Em termos linguísticos, registra-se atualmente em África cerca de duas mil línguas faladas, o que corresponde em torno de um terço das línguas vivas do mundo. Esta diversidade linguística pode ser dividida em dois grandes troncos: o bantu e o sudanês (kwa). Estes troncos possuem subdivisões importantes. O bantu, que consiste em aproximadamente dois terços das línguas faladas na África

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subsaariana (da África do Sul à República Centro Africana, passando por vinte países), se divide em várias línguas, tais como: quicongo (a língua nacional em Congo Brazzaville, República Democrática do Congo, Congo Kinshasa (exZaire) e Angola, também falado pelos bacongo e outros grupos regionais), o quimbundo (falado pelos ambundo, em Angola e Luanda), o umbundo (falado pelos ovimbundo, no sul de Angola), assim como outras línguas isoladas como o duala (língua/ povo presente na República dos Camarões e Guiné Equatorial), além angolas, caçanjes, benguelas, cabindas, entre outros. O sudanês (kwa), por sua vez, está situado mais propriamente na África Ocidental, em países como: Senegal, Nigéria, Benin (ex-Daomé), Togo, Serra Leoa, Gana, Gâmbia, entre outros. As principais línguas sudanesas são o ioruba ou nagô, subdivididas em vários falares, como oiós, keto (nagô é uma língua ioruba falada no reino de Keto), ijexa, egba, ifés. Estas línguas comumente cultuam certas divindades (orixás) no Brasil. Outras línguas importantes do tronco kwa são o jeje (ewe ou fon, mina, gun e mahi, estes que cultuam voduns) e o akam (fanti-ashanti). Também compartilham do tronco sudanês grupos islamizados, como os haussa, tapa, peul, fula e mandinga. No Brasil, estes grupos chegaram e se concentraram, sobretudo na Bahia e em Pernambuco entre séculos XVII e XIX. Assim, aproximadamente dois terços dos escravizados trazidos para o Brasil eram bantos, aqui conhecidos como congos, angolas ou cabindas, tendo se espalhado por quase todo o litoral e centro-oeste do país, nas regiões que hoje abrigam os Estados de Minas Gerais e Goiás. Tiveram influência notória na construção da cultura brasileira, sobretudo na culinária, música e língua, além de aspectos religiosos percebidos desde o período colonial a partir dos autopopulares, denominados de congas e congadas, ou também moçambiques, além do culto aos antepassados e à ancestralidade que marcam até hoje esta matriz cultural e religiosa nacional. Portanto, para o Brasil foram trazidos africanos de mais de uma centena de povos diferentes e sua herança cultural foi inevitavelmente sincretizada ou conjugou ecletismos com outras formas de religiosidade, especialmente com o catolicismo, com a espiritualidade indígena e, posteriormente, com o espiritismo kardecista, dando origem a manifestações religiosas brasileiras inteiramente novas e que, no curso das últimas décadas, tem se transnacionalizado para outros países (Bem, 2012). No que se refere ao campo afrorreligioso mais propriamente, de acordo com Ari Pedro Oro (2005), a expressão “religiões afro-brasileiras” cobre uma variedade de cultos organizados no Brasil e que podem ser condensados, segundo

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um modelo ideal-típico, em três diferentes expressões ritualísticas. A primeira delas cultua os orixás africanos (nagô) e privilegia os elementos mitológicos, simbólicos, linguísticos, doutrinários e ritualísticos das tradições banto e nagô. Neste grupo se encontram o Candomblé da Bahia, o Xangô de Recife, o Babaçuê no Pará, o Batuque do Rio Grande do Sul e a Casa de mina do Maranhão, modalidades regionais como são conhecidos alguns dos cultos de matriz africana pelo Brasil e que possuem variações litúrgicas e estruturais importantes entre si devido às suas diferentes origens linguísticas e culturais e ao seu encontro e reorganização promovidas em solo brasileiro. A segunda forma ritual, que parece ter surgido no Rio de Janeiro no final do século XIX, inicialmente chamada de Macumba, recebeu mais tarde nomes diferentes de acordo com as regiões brasileiras, os mais comuns sendo Quimbanda, Linha negra, Umbanda cruzada e Linha cruzada. Essa expressão religiosa afro-brasileira cultua os exus e as pombagiras, entidades de intermediação entre os homens e os orixás. Tais expressões realizam imolações de animais. A terceira forma ritual é a Umbanda, também chamada em alguns locais de Umbanda linha branca, surgida no Rio de Janeiro, no começo do século XX, estruturada de forma sincrética a partir de elementos provenientes das tradições católica, africana, indígena, kardecista, oriental, centrando-se no culto aos pretos-velhos (muitos deles tidos por entidades que foram pessoas escravizadas em outra vida) e caboclos (entidades indígenas comumente relacionadas às questões de saúde e de curandeirismo). Esta modalidade não realiza a prática do sacrifício de animais. Também é chamada de Linha cruzada a conjunção entre essas vertentes religiosas, dentro de um sistema interdependente. No caso de algumas religiões, como o Batuque gaúcho, por exemplo, muitas casas desta linha cruzada também cultuam pretos-velhos e caboclos, realizando assim rituais e práticas umbandistas de linha branca, havendo inclusive tal reconhecimento. Dito de outro modo, o Batuque representa a expressão mais africana do complexo afrorreligioso gaúcho, pois a linguagem litúrgica é iorubana, os símbolos utilizados são os da tradição africana, as entidades veneradas são os orixás e há uma identificação às “nações” africanas. A umbanda representa o lado mais “brasileiro” do complexo afrorreligioso, pois se trata de uma religião nascida neste país a partir do sincretismo de suas principais ontologias religiosas: a cristã e a africana. Seus rituais são celebrados em língua portuguesa e as entidades veneradas são, sobretudo, os “caboclos” (índios), “pretos-velhos” e “cosminhos” (crianças), além das “falanges africanas” (Corrêa, 1994).

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No mais, todas elas são religiões de possessão, ou seja, as entidades espirituais se apoderam dos médiuns/ filhos-de-santo mediante o estado de transe. São também: religiões de iniciação, isto é, o ingresso na religião ocorre a partir de uma série de rituais que visam aprofundar a integração do sujeito a ela; religiões mágicas, no sentido de atender às demandas específicas dos sujeitos, sobretudo nas áreas da saúde, econômica e sentimental; religiões emocionais, que envolvem o indivíduo como um todo, o corpo ocupando um lugar de destaque; religiões universais, pois estão abertas aos indivíduos das distintas camadas sociais e diferentes grupos étnicos; e religiões transnacionais, ou seja, interagem com indivíduos de outros países, sobretudo aqueles que fazem fronteira com o Rio Grande do Sul: argentinos e uruguaios (Frigerio, 1989; Pi Hugarte, 1997; Oro, 1999; De Bem, 2012; Tadvald, 2014). As diferentes formas de estruturação das religiões de matriz africana no Brasil acompanham, portanto uma lógica complexa, que muitas vezes reúne sincretismos e significações a partir de diferentes referenciais religiosos, linguísticos e culturais. Desta forma não é incomum a possibilidade de inclusão de outras práticas do campo mediúnico ou para além deste, até mesmo de forma autônoma conforme cada casa de santo e terreiro/a, ou de certos sincretismos ou ressignificações desses elementos com referentes religiosos orientalistas. Atualmente, as religiões de matriz africana são professadas livremente perante a lei, ainda que certos grupos busquem ressignificar de formas múltiplas as históricas perseguições a este campo no intuito de modificar a norma legal no sentido de promover um retrocesso jurídico e social, como é o caso de certos projetos de lei que visam a proibição das imolações de animais em diferentes cidades brasileiras (Tadvald, 2007). Assim, a formação das afrorreligiões no Brasil se dá num contexto, desde o período colonial, em que o catolicismo já se assumia enquanto religião oficial do país, e em que todo o brasileiro, obrigatoriamente, deveria ser batizado, assumindo assim a fé católica. Todavia, o Brasil é um país com relativa diversidade religiosa. A maior parte da população se declara católica, mas diversas religiões são praticadas no país, segundo os dados apresentados a seguir.

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Quadro 1 – Religiões no Brasil (Censos de 1980-2010) Religião

Censo 1980 89,2%

Censo 1991 83,3%

Censo 2000 73,7%

Censo 2010 64,6%

Protestantismo

6,6%

9%

15,4%

22,2%

Espiritismo Kardecista

0,7%

1,1%

1,4%

2%

Afrorreligiões

0,6%

0,4%

0,3%

0,3%

Outras religiões

1,3%

1,4%

1,9%

2,9%

Sem religião

1,6%

4,8%

7,3%

8%

Catolicismo Romano

Total

100% 100% 100% 100% Fontes: Pierucci (2004) e Censo 2010 (www.ibge.gov.br).

Atualmente, conforme os dados do censo demográfico de 2010 apresentados no quadro acima, é possível verificar que, ao somarmos as três principais religiões de matriz cristã, chegamos ao patamar de 88,8% da população nacional (pouco mais de 169 milhões de pessoas). Considerando os 8% que se declaram sem religião, restam apenas 3,2% da população brasileira que se declara pertencente a outras religiões não necessariamente de matriz cristã, isto desconsiderando, por exemplo, a Umbanda ou outras religiosidades sincretizadas com o cristianismo, que poderiam diminuir ainda mais este percentual. Assim, estes módicos 3,2% representam, conforme a catalogação do IBGE, 0,7% (1,4 milhão) de pessoas que se declaram testemunhas de Jeová; 0,5% (um milhão) declaram-se os santos dos Últimos Dias ou mórmons; 0,3% (588 mil) declaramse seguidores do animismo afro-brasileiro como o Candomblé, o Tambor-demina, além da Umbanda; 1,6% (3,1 milhões) declaram-se seguidores de outras religiões, tais como: islâmicos (300 mil), budistas (243 mil), judeus (196 mil), messiânicos (103 mil), esotéricos (74 mil), espiritualistas (62 mil) e os

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ayahuasqueiros (35 mil). Há ainda registros de pessoas que se declaram baha'ís e wiccanos, porém nunca foi revelado um número exato dos seguidores de tais religiões no Brasil (IBGE, 2014). A partir do que indica os números do Quadro 1, é possível entender não somente certas religiões de matriz africana assim como todas as demais que eventualmente não se utilizam do expediente cristão em sua fundamentação enquanto religiões de resistência e de afirmação cultural no Brasil. Não por acaso, segundo veremos adiante, esta se trata de uma representação comum aos povos de terreiro do Batuque gaúcho, sendo constituinte inclusive de um de seus mitos de origem. No Rio Grande do Sul também chama a atenção o fato deste Estado ser, desde o Censo de 2000, como o “mais afrorreligioso do país” no sentido da autoatribuição religiosa, seguido por Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, todos com percentuais acima do índice nacional. Por hora não haverá como avançarmos neste aspecto, mas há muitos anos registram-se, no Estado sulista, campanhas afirmativas em prol desta visibilidade e reconhecimento (como a mais recente delas promovida por diversos coletivos sociais: “Quem é de Axé diz que é”!), em parte fruto de um Estado que construiu a sua identidade no sentido de excluir o componente negro de sua representação (Oliven, 2006; De Bem, 2012). Fato é que entre as décadas de 1990 e 2000 houve, no país, uma diminuição de indivíduos que afirmaram sua identidade religiosa associada às religiões afro-brasileiras, ao passo em que se registrou no Rio Grande do Sul um aumento de mais de 33% no mesmo período. De fato, são 157.599 indivíduos deste Estado, o que corresponde a 1,47% da população total, que reivindicaram o seu pertencimento religioso afro-brasileiro. Esta porcentagem sobe para 2,52% se tomarmos como referência a região metropolitana de Porto Alegre e para 3,35% se nos restringirmos somente a Porto Alegre. Ainda segundo o Censo 2010, a porcentagem de pertencimentos afrorreligiosos no Rio de Janeiro baixou para 0,89 e na Bahia subiu para 0,34%, igualando a São Paulo, constituindo-se, Bahia e São Paulo como sendo, atualmente, o segundo e o terceiro Estados com maior representatividade afrorreligiosa. Os demais Estados em que se reconhece a existência dessas religiões apresentaram os seguintes índices: Pará 0,07%, Maranhão, 0,06% e Pernambuco 0,14%. Assim, estudiosos e líderes religiosos estimam em cerca de 30.000 terreiros espalhados em todo o Estado, com maior concentração na região metropolitana de Porto Alegre (Corrêa, 2006). Segundo o já referido Censo das Casas de Religião Afro de Porto Alegre (2006-2008), foram indexados cerca de

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1.290 terreiros em Porto Alegre, número muito semelhante ao registrado em Salvador da Bahia, posto que um recenseamento, realizado nesta cidade, em 2007, identificou 1.296 terreiros. Todavia, estima-se que tal registro de terreiros em Porto Alegre e região metropolitana estejam subestimados, pois que em realidade este número deve passar dos três mil. Portanto esses índices, tanto os relativos ao Rio Grande do Sul quanto ao Brasil, não podem ser tomados como verdades absolutas, estimando-se que, na melhor das hipóteses, representarem metade daquilo que realmente existe em termos do número de terreiros afrorreligiosos no Brasil. Reginaldo Prandi sustenta que tal subestimação se deve, especialmente, Às circunstâncias históricas nas quais essas religiões se constituíram no Brasil e ao seu caráter sincrético daí decorrente [...]. Por tudo isto, é muito comum, mesmo atualmente, quando a liberdade de escolha religiosa já faz parte da vida brasileira, muitos seguidores das religiões afro-brasileiras ainda se declararem católicos (PRANDI, 2003: 16). A fim de avançarmos sobre certas peculiaridades do Batuque no Rio Grande do Sul e em sua cidade “difusora”, Porto Alegre, faz-se importante destacar alguns aspectos da historicidade das populações africanas nessa região.

2. Notas sobre territorialidade e a presença africana

A presença africana no Rio Grande do Sul surge junto com os primeiros colonizadores portugueses que se estabeleceram na região especialmente a partir do século XVIII. Inicialmente, os negros acompanhavam os primeiros tropeiros que cruzavam os pampas gaúchos, para depois aportarem aos milhares para trabalhar escravizados nas fazendas e charqueadas e em ofícios diversos nas principais cidades da região, de sorte que na metade do século XIX africanos e seus descendentes já constituíam aproximadamente um terço da população total da província. A fundação de Porto Alegre, em março de 1772, estava inserida no plano de expansão dos portugueses ao sul do Brasil. A coroa visava participar do pujante comércio do Rio da Prata, estabelecido em função do escoamento de minerais preciosos dos domínios sulamericanos hispânicos para a Europa. Em poucas décadas o povoado cresceu, tornando-se em 1812 a capital da então fundada

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Capitania de São Pedro do Rio Grande, contando sempre com a presença significativa de comunidades negras (Franco, 1991). Mesmo em cativeiro, tais comunidades conseguiam praticar os seus rituais originais. Registra-se que em Porto Alegre, até a segunda metade do século XIX, nas procissões de Nossa Senhora do Rosário e período natalino, os negros costumavam expressar a sua cultura e religiosidade espontaneamente, dançando em frente à Igreja Matriz com guizos e ao som de tambores, marimbas e urucungos. Nos primeiros tempos, tais manifestações não eram decisivamente combatidas, até que o vigário da Igreja Matriz, José Inácio dos Santos Pereira, proibiu a execução de rituais africanos no local, com a alegação oficial de que a vizinhança reclamava do barulho. O fato precipitou a construção de uma igreja vinculada aos negros. De 1817 a 1827, escravos e negros alforriados se revezaram nas horas vagas para construir a igreja Nossa Senhora do Rosário, nas proximidades de onde se localiza o atual Colégio Rosário, para depois de um incêndio ser reconstruída na então Rua da Bandeira, mais tarde denominada Rua do Rosário e depois, por certa ironia e como se preserva até hoje, Rua Vigário José Inácio, em homenagem ao sobrinho do padre que expulsara os negros. O local onde se preserva até hoje é oriundo de um terreno que havia sido comprado para este fim pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, entidade fundada em 1786, na qual os negros eram a maioria dos participantes, instituição que ao cabo comandou as obras. Enquanto duraram os trabalhos, as festas se restringiram a marginalização já imposta: batuques nas tardes de domingo fora do centro urbano, em frente ao matadouro, mais ou menos onde é hoje a esquina das avenidas João Pessoa e Venâncio Aires (Terra, 2001). No início da década de 1950, a antiga igreja foi demolida para então ser substituída pela atual, mas essa histórica relação dos negros com o catolicismo persistiria ao longo dos tempos a partir de entidades como a Irmandade do Rosário, constituídas no Brasil desde o fim do período colonial por senhores e escravizados para aliviar o sofrimento causado aos negros pelos brancos. A primeira Irmandade do Rosário gaúcha data de 1754, fundada em Viamão (Azzi, 2008). Até hoje, mesmo que espremida entre edifícios comerciais e engolida pela paisagem caótica e superpopulosa do centro histórico da cidade, a Igreja do Rosário é reconhecida como a “igreja portoalegrense dos negros” e não é incomum avistarmos adentrando em seus domínios mães, pais, filhas e filhos-desanto, devidamente trajados com roupas tradicionais, inclusive no intercurso de rituais católicos. Mesmo diante de alguns grupos resistentes à ideia, também não

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são poucos os afrorreligiosos que utilizam desde sempre este espaço para diferentes liturgias, pois que ele é acima de tudo considerado um “local sagrado” para a cultura e a negritude da cidade. É preciso ressaltar que na contemporaneidade não existe mais uma relação direta entre ser negro e ser afrorreligioso e que também faz parte do cotidiano litúrgico de boa parte dessas religiões transitar por templos católicos em momentos específicos. Entretanto, o caráter histórico desta igreja a atrela mais diretamente às populações negras em geral e afrorreligiosas em particular da cidade de Porto Alegre. Em fins do século XVIII e início do século XIX, os “largos” eram por excelência espaços de reunião e de atualização das sociabilidades públicas, que ocorriam no período ligado as comemorações de festas religiosas católicas. Na época existiam os largos da Quitanda, dos Ferreiros, do Pelourinho e do Arsenal. Neles reunia-se toda a população, ricos e pobres, senhores e escravos. Tal reunião era característica da tradição católica portuguesa e açoriana, mas já aparecia mesclada com traços da cultura afrobrasileira dos escravizados que acompanhavam os seus senhores. No Largo da Quitanda, atual Praça da Alfândega, se praticava o comércio, principalmente de amendoim, lenha, hortifrutigranjeiros, carnes e ovos. Foi neste ponto da margem do Guaíba que surgiu, em 1804, o primeiro trapiche para embarque e desembarque de mercadorias e pessoas. Em torno deste cais se reuniram os comerciantes e as quitandeiras com seus tabuleiros, na maior parte composta de negros, como assinalaria o viajante francês Saint-Hilaire, em 1820 (Saint-Hilaire, 1974; Franco, 1991). Neste ano, com o início da construção da Alfândega, as quitandeiras começaram a ser removidas para o Largo do Paraíso (atual praça XV de Novembro). Entretanto, como as resistências foram muitas - talvez porque já havia sido ali “assentado” o Bará, como determina a tradição para locais de mercado que vem da África, principalmente da região dos iorubas - a Câmara permitiu que elas continuassem a ocupar o ângulo oeste do Largo da Quitanda, bem como os Largos do Paraíso e do Pelourinho, em frente à atual Igreja das Dores, este último local de ritualização da ordem na sociedade colonial, onde foi construído o sinistro cadafalso em que se açoitavam publicamente os escravos. O nome da Igreja, portanto tem relação direta com o tradicional local reservado ao açoite e a tortura, assim como o Largo ou Praça da Forca, contigua a Igreja das Dores, onde eram executados os condenados nas primeiras décadas da cidade (ambos os locais formam atualmente a Praça Brigadeiro Sampaio, no centro da capital).

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Registra-se que foram executados no Largo da Forca vinte e dois homens, sendo dezesseis negros, a maioria por crime de ofensa ou homicídio. O primeiro executado no local teria sido “um tal de preto Joaquim”, por ter assassinado a sua “ama”. Não havia ali uma forca permanente, mas por ocasião das execuções a estrutura capital era erguida no local provisoriamente até cumprir-se com a sentença. Nos primeiros tempos, esta se tratava da região militarizada da península, conhecida como Praia do Arsenal. A última execução que se tem registro ocorreu em 1821 (Franco, 1988). Somente em 1829 surgiria o primeiro Código de Posturas Policias para disciplinar a ocupação do espaço urbano, quando se designaram lugares específicos de coleta d’água, lavagem da roupa dos hospitais, despejos dos esgotos e lixo assim por diante. Em 1837, uma série de novas disposições procurava dar conta da situação de cerco da cidade em função da Revolução Farroupilha (18351845). Vários artigos do Código também tratavam da questão do controle da mão de obra escravizada que alcançava mais de um terço da população de Porto Alegre. Pouco depois, em 1842, o governo sentiu a necessidade de construir um mercado para organizar o comércio na capital, ainda afetado pelos efeitos da Revolução em curso e até então feito em barracas desordenadamente espalhadas entre o Largo da Alfândega e do Paraíso. Apesar das restrições impostas a Porto Alegre pela Revolução Farroupilha (1835-45) e posteriormente pela Guerra do Paraguai (1865-70) - pois vale ressaltar que a província gaúcha, que na época detinha uma população de 470 mil habitantes, enviou o significativo efetivo de 34 mil soldados ao conflito internacional - tanto a província quanto a sua capital não perderam no período os rumos de sua relativa prosperidade (Souza; Müller, 1997). Assim, o interesse na urbanização da capital e na necessidade de uma arquitetura mais majestosa que projetasse a importância da cidade repercutiu no projeto de construção de um grande mercado público. O lugar escolhido para o novo mercado foi o Largo do Paraíso, onde atualmente se encontra o Chalé da Praça XV de Novembro. Em 1865, o Conselho Municipal decidiu pela construção de um mercado ainda maior, no alinhamento do Caminho Novo, na saída para o lago Guaíba. Inaugurado em 1869, o atual Mercado Público tornou-se a maior obra arquitetônica da cidade (Franco, 1991). Em meados do século XIX, os “arraiais”, como eram conhecidos os pequenos núcleos populacionais localizados a partir dos limites da península (região originária e de onde a cidade se expandiu), futuramente seriam incorporados à malha urbana, formando muitos dos bairros que compõe

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atualmente o desenho geográfico de Porto Alegre. Essas regiões eram compostas principalmente por cinco arraiais, assim vistos a partir da península: Menino Deus, voltando-se para a zona sul, Navegantes, voltando-se para a zona norte, São Manoel, voltando-se para a zona leste e São Miguel, na região do atual bairro Santana e imediações (Souza; Müller, 1997). A partir de 1876, o movimento abolicionista se intensificara e, dentre outras realizações, fundou-se na cidade a “Sociedade Libertadora”, imbuída de empenhar-se na libertação das crianças nascidas de mães escravizadas. Da mesma forma, muitos jornais deixaram de anunciar a fuga de escravizados e passaram a defender a sua libertação. Enfim, em 7 de setembro de 1884, a Câmara Municipal declarou que em Porto Alegre não havia mais escravizados, inaugurando um novo capítulo na luta pela sobrevivência destas populações na cidade (Terra, 2001). Após a abolição na cidade, os negros se concentraram em diversos locais da capital. O principal foi o Campo do Bom Fim, extensão desenvolvida entre o arraial São Manoel e São Miguel, que mais tarde passou a se chamar Campo da Redenção, onde atualmente se localiza a região que abriga o famoso Parque Farroupilha, até hoje conhecido por “Redenção”. Sem comida, roupa e remédio, que antes eram atribuições de seus donos, constitui-se nesta época o primeiro processo mais relevante de marginalização social e geográfico das populações negras na cidade. Por esta época surge a Colônia Africana, grande concentração de populações negras, também ocupada por judeus, espanhóis, italianos e portugueses. A Colônia Africana constituía um amplo território que ia desde a Rua Ramiro Barcelos que atualmente abriga o Hospital de Clínicas, abarcando todas as travessas e ruas que hoje compõem a região do bairro Rio Branco, alcançando uma parte da Avenida Independência, “descendo” pela Rua Mostardeiros, chegando ao bairro Moinhos de Vento e alcançando o bairro Mont’ Serrat pela Rua Lucas de Oliveira. Pelo lado do bairro Bom Fim, desde a altura de onde hoje se situa o referido Hospital de Clínicas, a Colônia se estendia até o bairro Santana, tendo como limite aproximado as atuais ruas Santa Cecília e Leopoldo Bier (Santos, 2010). A parte da Colônia correspondente ao bairro Mont’Serrat também ficou conhecida como “Bacia”, devido ao número expressivo de casas de religião, onde se praticavam os cultos de origem africana (Oro, 2002). “Bacia”, não por acaso, diz respeito à genealogia de santo da pessoa. Não por acaso, até hoje é comum que afrorreligiosos se identifiquem como pertencentes à “bacia do Pai João”, ou à “bacia da Mãe Ieda” assim por diante.

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Outro ponto de presença negra importante na cidade era o chamado Areal da Baronesa e a Ilhota (atual Cidade Baixa), constituídos em grande parte por negros recém-libertos. No século XIX, a região era denominada por Arraial da Baronesa por alusão a uma grande extensão territorial de propriedade de dona Maria Emília da Silva Pereira, a Baronesa do Gravataí. Propriedades rurais que usavam mão de obra escravizada também faziam parte da área. Em fuga, era comum que os escravizados insurgentes se escondessem nos matos que faziam parte do arraial, sendo o mesmo conhecido à época por território das “Emboscadas” ou “Banda Oriental”. Após um incêndio que destruiu a propriedade, em 1879, a Baronesa loteou e vendeu essas terras famosas pela grande quantidade de areia que constituía o terreno, daí o seu nome. Com a ocupação negra, rapidamente o local se tornou ainda mais estigmatizado no imaginário da cidade. O matagal que antes servia de refúgio aos escravizados insurgentes e foragidos, agora tinha má fama pelo restante da população e imprensa local por, supostamente, tratar-se de reduto de jogos de azar, prostituição e alta periculosidade (Kersting, 1998), aliás, algo corriqueiro e atual no imaginário das grandes cidades sobre bairros e comunidades negras. Entretanto, a cultura negra se fez valer na região, de maneira que o Areal da Baronesa ficou célebre como berço de grandes carnavalescos da cidade. Também na região localizava-se a “Ilhota”, área onde ocorriam frequentes inundações e que formava uma espécie de cinturão negro e pobre da cidade. Entretanto, do Areal e da Ilhota saíram diversos artistas, músicos, compositores, solistas e jogadores de futebol que ficaram nacionalmente conhecidos, como o compositor Lupicínio Rodrigues, a intérprete Horacina Corrêa e o jogador Tesourinha, celebrizado pelo Sport Club Internacional, clube de futebol nascido na região em 1909 e com forte associação com as comunidades negras da cidade. A região também foi berço da cena carnavalesca citadina e de grandes salões de baile voltados para a sociabilidade das comunidades negras espalhados por toda a região do Areal Baronesa e da Colônia Africana, como o Salão do Rui (talvez o mais célebre do período, situado na esquina da Rua Miguel Tostes com a Rua Casemiro de Abreu), o Salão dos Prediletos (estrada Caminho do Meio, atual Protásio Alves), o Salão do Tareco (na Rua da Margem com a Rua Venezianos, atuais ruas João Alfredo e Joaquim Nabuco), o Salão do Chiquinho (Rua São Francisco, no bairro Santana), o Bar da Doca, no Areal da Baronesa (Rua Barão do Gravataí), entre outros, que contavam com grandes atrações musicais e com a presença eventual de personalidades políticas e culturais da cidade e do país, além de serem locais onde, até os anos 1940, praticamente não se registrava a

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frequência de não-negros que também habitavam essas regiões, como os imigrantes ou descendentes alemães, italianos, judeus etc. (Santos, 2010). Não diferente da Colônia Africana, a região da baronesa foi vencida pela especulação imobiliária iniciada na década de 1960 e, com o passar dos anos, conforme ocorreu com a maioria das populações de baixa renda, os negros foram empurrados para a periferia da cidade em função da valorização dos terrenos que eram mais próximos da área central. Em grande parte, as populações de baixa renda que residiam nestas vilas próximas ao centro foram transferidas para regiões como a Restinga, bairro localizado em um dos extremos da Zona Sul, hoje um dos maiores da cidade de Porto Alegre. Outras populações, como as da Colônia Africana, também migraram para bairros da Zona Norte e da Zona Leste principalmente entre as décadas de 1970-90, além de outras comunidades que se estabeleceram na região que abriga o atual bairro Partenon (Kersting, 1998). Se até a primeira metade do século XX a geografia original dos terreiros de Porto Alegre já sofria mudanças com o estabelecimento da Colônia Africana e da Bacia, a partir da segunda metade deste século um novo êxodo dessas comunidades se faria sentir com o processo de gentrificação que se iniciava no período. Por gentrificação, entende-se as dinâmicas de enobrecimento urbano que se verificam em um conjunto de processos de transformação do espaço urbano que, com ou sem intervenção governamental, aspiram a sua melhoria e consequente valorização imobiliária, quase sempre a partir da retirada de moradores tradicionais, que geralmente pertencem as classes sociais menos favorecidas economicamente (Bidou-Zachariasen, 2006). Normalmente, os processos de enobrecimento urbano identificam casos de recuperação do valor imobiliário de regiões centrais de grandes cidades que passaram por períodos de empobrecimento. Através de estratégias do mercado imobiliário comumente aliadas a políticas públicas específicas, procura-se criar ou recuperar o valor da região em questão deslocando a população original a fim de atrair residentes de mais alta renda, também criando ou recuperando a atividade econômica no local. Assim, tanto o que a breve história da ocupação negra indica, quanto aquilo que os dados disponíveis revelam sobre a territorialidade atual das casas de santo, são aspectos que atestam que a geografia ancestral dos terreiros acompanha em linhas gerais os processos de gentrificação da cidade de Porto Alegre. No caso da primeira fase de gentrificação da Colônia Africana, ocorrida desde meados do século XX, todos aqueles que possuíam terrenos na região começaram a vendê-los, assim subindo o morro do IPA (atual Centro Universitário Metodista) em direção a Zona Sul (Glória, Teresópolis) e as então

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adjacências da região central (Petrópolis e outras áreas do Mont’Serrat), de forma que a população da Colônia acabou se dispersando por toda a cidade e mesmo para a região metropolitana (Santos, 2010). Desde o começo da urbanização, até princípios do século XX, a periferia da cidade, ou em outros termos, muitas das imediações da península, como é conhecida a região central e berço da capital, eram formados por becos, como o Beco do Leite, Beco da Fonte, Beco do Coelho, Beco do Carneiro, entre outros, muitos desses atualmente ruas e travessas que compõe o desenho viário da região (Souza; Müller, 1997). Apenas para situar-nos na discussão por vir, na geografia ancestral das “nações” do Batuque em Porto Alegre, considera-se a região central (marcada pelos limites do Beco do Poço, atual Jerônimo Coelho) como berço da cabinda; a Cidade Baixa e a Ilhota (coração do Areal da Baronesa) como berço da nação jeje; os bairros do Menino Deus e Praia de Belas (extensão da Areal da Baronesa para o sul) da nação nagô e a antiga Colônia Africana, de maior influência do lado oyó e com alguma presença dos lados ijexá e jeje-ijexá, pode-se considerar o atual bairro do Mont’Serrat e boa parte da Azenha (Acosta, 1996).

3. Surgimento e consolidação do Batuque

Quanto ao mito fundador do Batuque, há duas versões correntes: uma que afirma ter sido ele trazido para o Rio Grande do Sul por uma escrava vinda de Pernambuco; e outra que não o associa a uma personagem, mas às etnias africanas que o estruturaram enquanto espaço de resistência cultural e simbólica à escravidão. Assim, a teoria mais provável explica que o Batuque consiste em uma religião originada no Rio Grande do Sul entre 1833 e 1860 (Lírio de Mello, 1995; Corrêa, 2006) a partir das religiões praticadas por escravizados de origem banto e sudanesa provenientes de Pernambuco e que se estabeleceram primeiramente nas cidades portuárias de Rio Grande e de Pelotas (Oro, 2002). A maioria dos escravizados que aportaram na região, desde os períodos anteriores, era de origem banto, constituindo-se como o grupo predominante nesta onda de colonização forçada no Estado. Sua predominância pode ser verificada, por exemplo, a partir da quantidade de expressões de sua língua, o quimbundo (ou kibundo), incorporadas ao português corrente (por exemplo, “quitanda”, “tanga”, “farofa”, “fubá”, “jiló”, “minhoca”, “canjica”, “bunda”, “cochilo”, “gingar”, “samba”, “batuque”, “umbanda”, “quimbanda” entre muitas outras). Contudo, mesmo que em menor escala do que a de bantos e apesar da predominância cultural exercida por este

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grupo neste período, credita-se à migração de comunidades sudanesas a formação e a cosmologia dos primeiros terreiros de Batuque (Acosta, 1996; Corrêa, 2006). Também a origem do Batuque pode ter tido um ancestral comum ao culto originado no nordeste brasileiro conhecido como Xangô do Recife, ancestral, portanto já estabelecido no Brasil e não em África. Embora os orixás da cosmologia do Batuque sejam praticamente os mesmos venerados no Candomblé baiano de origem ketu, também da etnia ioruba, a maneira de “cultuálos” e de “assentá-los” (praticar o “fundamento religioso”) é considerada muito semelhante ao modo litúrgico do Xangô do Recife (como, por exemplo, no caso do estilo jeje de tocar os tambores [Carvalho, 1987]), e consideravelmente diferente em aspectos fundamentais daquilo que é realizado pelo culto baiano. De qualquer forma, o Batuque se constituiria a partir de diferentes grupos étnicos africanos que coabitavam nas concentrações urbanas mais importantes do período (Corrêa, 2006). A partir de 1860, Porto Alegre começou a registrar maiores índices de crescimento do que cidades como Pelotas e Rio Grande, aumentando assim a sua demanda por trabalhadores. Ainda que se encontrem referências a respeito da lendária Casa de Mãe Rita, supostamente a primeira casa de religião africana na cidade, e de casas de “moças negras cantadeiras, aonde aos domingos iam moços passear para se reunir em cantos e danças”, conforme descrevia o cotidiano da cidade à época o historiador e professor Coruja (Franco, 1991), 1860 é considerado o ano de fundação dos primeiros terreiros de Batuque em Porto Alegre, cidade que ao longo dos tempos se tornaria o maior centro de circulação desta religião. A diversidade étnica africana presente na região e as trocas culturais aqui praticadas entre esses grupos estabeleceram o predomínio étnico e linguístico banto e a supremacia religiosa sudanesa, que marcou como jeje-nagô (ewé-yorubá) a organização inicial do modelo religioso do Batuque, caracterizado pela sólida estrutura e articulação litúrgica e pela disciplinada formação de seus sacerdotes. Contudo, para além do predomínio cultural banto e da presença sudanesa, a diversidade de populações de origem africana aglutinadas sob o Batuque proporcionou a sua divisão em diferentes “modalidades de culto”, ou “lados”, ou “nações”, conforme a atribuição do batuqueiro a uma mesma tradição religiosa identificada como aquela praticada por dada ancestralidade étnica. As “nações” ou “lados” foram assim caracterizados de maneira a se distinguir da ideia de “religião”, noção por sua vez englobante do Batuque e de outros cultos afrobrasileiros como a Umbanda ou a Quimbanda.

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De acordo com os registros etnográficos disponíveis e coletados, não há concordância absoluta a respeito dos “lados” do Batuque. Todavia, as seis nações do Batuque comumente mais consideradas são: cabinda, oyó, ijexá, nagô, jeje e jeje-ijexá. Estas se diferenciam a partir de aspectos cosmológicos e técnicos, litúrgicos e musicais particulares, como o toque (ritmo) do tambor, uso ou não de alguns axés cantados (“pontos” ou rezas em língua ioruba ou banto), números ou ordens distintas na sucessão dos orixás, entre outros (Acosta, 1996). Contudo, como não é incomum que os terreiros atribuam pertencimento a duas ou mais nações, sendo que alguns aspectos que seriam originalmente diferenciadores entre os “lados” acabam se combinando na configuração e no “fundamento” de muitos terreiros.

4. Os “lados” ou as “nações” do Batuque

O Batuque se divide em “nações” ou “lados”, tendo sido, historicamente, os mais importantes: oyó, tida como a mais antiga do Estado, mas tendo hoje aqui poucos representantes e divulgadores; jeje, cujo maior divulgador “político e social” no Rio Grande do Sul foi o Príncipe Custódio, um príncipe africano que viveu neste Estado de 1889 a 1935, ano de sua morte, ainda que Dona Chininha e Joãozinho do Bará sejam os maiores responsáveis pela consolidação desta “Bacia” (Silva, 1999); ijexá, cabinda e nagô são outras nações de destaque, com predomínio, na atualidade, dos “lados” jeje-ijexá (Braga, 1998). Note-se que o ketu esteve historicamente ausente neste Estado, vindo somente nos últimos anos a ser integrado graças ao Candomblé. Independentemente das “nações”, o Batuque do Rio Grande do Sul cultua fundamentalmente doze orixás, a saber: Bará, Ogum, Iansã (ou Oiá), Xangô, Oba, Odé/ Otim, Ossanha, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá, ordem esta mais diretamente relacionada à nação cabinda. A cada um deles são atribuídas características específicas, símbolos, animais imolados e correspondências com santos católicos, resultantes dos mitos relatados nas duas tradições religiosas (vide Quadro 2 mais adiante). De forma sucinta, apresento a seguir um breve histórico e algumas singularidades a respeito das seis “nações” ou “lados” que compõe a diversidade intrínseca ao Batuque gaúcho a partir de seu desenvolvimento na cidade de Porto Alegre. Conforme mencionado, a distinção entre as nações perpassa parâmetros étnicos e linguísticos que repercutem na teologia e na liturgia que singularizam cada um destes “lados”. Por se basear fundamentalmente em relatos êmicos e fontes difusas, as características que compõe as nações do Batuque podem divergir segundo algumas de suas versões. Contudo, em todas as versões possíveis

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reside certa verdade e autoridade conforme o grupo que a professa. Desta forma, procuro apresentar a seguir, enquanto características e mitos originários mais gerais de cada “lado”, aqueles aspectos mais recorrentemente encontrados tanto nesses relatos êmicos quanto nas literaturas disponíveis, em especial os trabalhos de Oro (2002) e Corrêa (2006). Fica, entretanto a necessidade e o convite ao maior aprofundamento dos aspectos em trabalho por vir. A ordem que segue é meramente alfabética, portanto não dizendo respeito a sua historicidade, número atual de casas ou outro critério possível.

a) Cabinda

Também conhecida por cambíni ou cambína, esta nação teria sido trazida para Porto Alegre pelo Pai Gululú, um africano que mal falava o português e que morava no antigo Beco do Poço, uma continuação em curva de chão batido da antiga Rua do Poço (Corrêa, 2006), que atualmente compreende a Rua Jerônimo Coelho. Durante a segunda metade do século XIX, quando sequer existia a Av. Borges de Medeiros, esta se tratava de uma região marginal ao centro da cidade de Porto Alegre (Terra, 2001). Iniciado por Gululú, Valdemar de Xangô Kamucá é tido como o principal promotor deste “lado”. Acredita-se que Valdemar traduzia de Pai Gululú os fundamentos da cabinda, de maneira a reinterpretá-los, assim constituindo as bases atuais desta nação. Pai Valdemar iniciou algumas pessoas responsáveis por sublinhagens importantes desta nação em Porto Alegre, como as mães-de-santo Palmira de Oxum e Maria Madalena de Oxum. Segundo relatos de praticantes, por características tipicamente cabindeiras, pode-se citar diferenças importantes na sua forma de consultar o oráculo do jogo de búzios, além de possuírem menos obrigações, em quantidade e em tamanho, se comparado às demais nações. Entretanto, a maioria dos elementos do ritual, como os orixás e as comidas, são muito semelhantes aos do culto ijexá. Também se presume poucas diferenças entre este lado e o de jejeijexá. Com relação ao toque dos tambores, o ritmo cabindeiro se assemelha mais a cultura da capoeira baiana. Ademais, o culto ao orixá Léba (ou Legba da Cabinda), responsável por cuidar dos “fundos do terreiro”, trata-se de uma característica distintiva importante desta nação, assim como a sua relação e trabalho com os espíritos dos mortos (eguns) (Corrêa, 2006).

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b) Ijexá

Ou simplesmente jexá, teria surgido a partir do babalorixá Cudjobá (nome de seu Xangô e pelo qual o pai-de-santo era conhecido). Cudjobá, até a sua morte, em 1902, em sua casa na “Bacia” (Mont’Serrat) teria iniciado diversos sacerdotes e sacerdotisas nesta nação. Cudjobá também teria vivido na Rua Taquari, próximo à igreja São Francisco, Zona Sul da cidade. Registra-se que o seu cortejo fúnebre, da “Bacia” até o cemitério São Miguel Arcanjo, aos sons de numerosos atabaques e com a presença de centenas de pessoas, teria movimentado a cidade e a cena batuqueira portoalegrense de então (Acosta, 1996). Não obstante, renomados pais-de-santo como Manoelzinho do Xapanã e Tati do Bará, ambos iniciados na Cabinda e já falecidos, passaram mais tarde para o jeje e seus descendentes-de-santo ingressaram todos no ijexá, dizendo-se então jeje-ijexá (Braga, 1998; Oro, 2002). O ritmo dos tambores constitui uma diferença importante do culto ijexá. Caracteriza-se por um toque solene, mais envolvente e lento do que o efetuado por outras nações segundo o registro de alguns estudos de etnomusicologia (Carvalho, 1987). Além do toque dos tambores, a ordem de invocação dos orixás também é distinta das demais nações (Acosta, 1996).

c) Jeje

Também conhecido por jêjo, foi uma nação considerada praticamente extinta em Porto Alegre. A figura mais lendária do jeje portoalegrense tratava-se de um príncipe de origem daomeniana (atual Benin) que teria nascido em 1831 e sido forçado pela dominação inglesa em sua região a imigrar para o Brasil por volta de 1896, chegando ao Estado em 1889 e em Porto Alegre em 1901. Por aqui adotou o nome de Manoel Custódio de Almeida, ficando eternizado pela alcunha de Príncipe Custódio. Segundo a tradição, o príncipe receberia uma pensão do governo inglês que lhe permitia viver de forma confortável e até ostentadora, o que facilitaria o seu trânsito entre as elites brancas da cidade, tanto que o seu funeral, em 1935, quando contava com 104 anos, teria sido acompanhado pela alta sociedade da época. Residente em um casarão na Cidade Baixa, onde vivia com suas diversas esposas e filhos, montou uma casa de religião em Porto Alegre de considerável sucesso, tanto que se especula que Príncipe Custódio chegou a ser conselheiro (alguns dizem pai-de-santo, mas até onde se sabe, o príncipe não exercia sacerdócio) de Borges de Medeiros, então presidente da província, além de ter travado relações com Julio de Castilhos, que lhe procurara em Rio Grande, antes de sua chegada à capital, por motivos de saúde. Embora se diga que, por ser

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nobre, ele mesmo não teria iniciado ninguém, conta-se que trouxe em seu exílio vários chefes religiosos que teriam iniciado algumas das primeiras linhagens de sacerdotes jejes no Rio Grande do Sul (Silva, 1999; Oro, 2002). Os mais importantes sacerdotes e sacerdotisas de que se tem registro são, fundamentalmente, Dona Chininha e Joãozinho do Bará. Etnomusicalmente falando, é bastante restrito o número de tamboreiros que ainda sabem executar o ritmo original jeje, sendo este muitas vezes confundido a outros toques. Isto ocorre especialmente em função do toque jeje ter se constituído como o modelo mais geral do toque de tambores que determinam o ritmo dos rituais do Batuque gaúcho: o tamboreiro sustenta os tambores entre as pernas e comumente tocam-se gãs e não agogôs (o instrumento de ferro jeje tem uma campânula enquanto o agogô duas) e/ ou xequerês junto aos tambores. O toque é “raspado” e não percutindo. Também é importante dizer que o toque jeje é com adegavis (baqueta), e por isso o toque e a dança é mais rápido e “picado”, sendo bem diferente da de outros “lados”. Em certo momento dos rituais, os orixás se apresentam dançando em casais. Ademais, credita-se a nação jeje a introdução no culto do Batuque de três importantes divindades: Bará Legba, Xapanã Sapatáe e Naná Burucum, como uma Iemanjá idosa (Corrêa, 2006).

d) Jeje-ijexá

À primeira vista pode parecer estranho que esse cruzamento entre dois lados ganhe o status, em igualdade de condições, com outras nações originárias, mas tal procedimento se sustenta quando vemos que numericamente essa é a linha ritualística com mais adeptos recenseados, equivalentes a quase 25% dos terreiros da capital, e tendo diversos casos de sacerdotes que expressam realizar apenas o culto referido, sendo que o mesmo também parece ser bem antigo, tendo pais-de-santo jeje-ijexa responsáveis na atualidade por terreiros fundados desde a década de 1920-30. Ressalta-se ainda que o termo jeje-ijexá é sinônimo religioso de jeje-nagô e, de certa forma, etnicamente, de ewé-yorubá. A rigor, o jeje-ijexá é muito semelhante ao ijexá com pequenas lembranças de jeje, como ordenar os orixás por dia de semana na balança e não na ordem do Orumalé.

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e) Nagô

A origem desta nação no Batuque é de difícil precisão, talvez pelo fato do termo designar, principalmente entre os grupos territorializados no atual Benin (fon, jeje, ewé), os membros da frente de expansão ioruba vinda de seu território na atual Nigéria. Por característica, observam-se variantes no toque do tambor, este de ritmo mais sincopado, lento, majestoso e grave, de timbre marcado por tons baixos, forma rítmica ancestral praticamente inexistente nos dias atuais. Para além de sua distinção na ordem dos cantos e de invocação dos orixás, o lado nagô se notabiliza pela forma de assentar o Balé (ou Igbàle, em ioruba), espaço do terreiro consagrado aos mortos, que nas demais nações se encontra no fundo dos terreiros, ao contrário deste lado que os mantém na parte frontal dos mesmos (Corrêa, 2006). Vale ressaltar que, conforme mencionado, o lado cabinda também dedica culto especial aos eguns.

f) Oyó

Esta nação, também grafada oió, teria surgido na região da Azenha e do Areal da Baronesa, para enfim chegar aos bairros Rio Branco e ao Mont’ Serrat, antes da gentrificação destes locais conforme atesta a atual geografia social da cidade. Credita-se à sacerdotisa africana Emília de Oyá Dirá Egùn-nitá, então radicada na cidade, a ancestralidade comum à maioria das casas de oyó portoalegrenses (Acosta, 1996), assim como à Mãe Andrezza Ferreira da Silva, que teria vivido entre 1882 e 1951 (Oro, 2002). De acordo com levantamentos anteriores (Acosta, 1996; Corrêa, 2006), oyó foi considerada como uma das maiores nações em número de templos do Batuque, sendo atualmente superada neste quesito pelo lado jeje-ijexá. Uma característica típica deste “lado” consiste na distinta ordem sucedânea dos cânticos e da invocação dos orixás nos rituais quando comparada a outros “lados”, como o da cabinda. Assim, em oyó o toque é lento, o mais lento de todos e a invocação se dá por gênero, pois primeiro se toca para os Orixás masculinos e depois para os femininos, encerrando com Oya, Xango e Oxalá. O quadro a seguir procura reproduzir outros aspectos que singularizam os orixás cultuados no Batuque gaúcho de forma mais geral, independente da nação de seu culto.

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Quadro 2 - Orixás do Batuque Orixá

Atribuição

Símbolo

Animais Sacrificiais

Bará

Dono das encruzilhadas, abridor de caminhos. Representa força vital que movimento o universo. Mensagem dos orixás, orixá da sensualidade. Ogum Dono do trabalho em metal e da agricultuda, guerreiro (demanda).

Chave, foice, moedas, corrente, tridente.

bode, galo vermelho.

Ferramentas em geral, espada, faca, bigorna, martelo, malho, lança, lima. Espada, taça, pulseira, alianças.

Bode escuro, galo vermelho.

São Jorge no Sul, Santo Antônio na Bahia.

Cabra cor de laranja e galinha vermelha. Carneiro, galo e pombos brancos.

S. Bárbara.

Ogun

Iansã

Xangô

Dona dos ralos, ventos, tempestades e das águas. Orixá do trovão, da justiça e do fogo.

Balança, machado (duplo) e livro.

Obá

Sangue, ouvido, dona do lar.

Navalha, roda de madeira, timão, orelha.

Odé/Otim

Orixás da caça, fala, sono.

Arco e flecha, cântaro e bodoque.

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Galinha cinza, cabra marron, mocha e não coberta. Porco, galo carijó.

Corresp. santos católicos S. Antônio, S. Pedro e S. Benedito.

Jovem: São Miguel Arcanjo Velho: São Jerônimo Santa Catarina.

Odé: São Sebastião Otim: Santa Efigênia

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Ossanha

Dono das folhas, protetor de doenças internas, pernas, ossos. Protetor de doenças epidêmicas (varíola, lepra, cólera).

Muleta, tesoura, agulha, linha de coser. Vassoura, corrente de aço.

Oxum

Dono da água doce, ouro, riqueza, amor, vida.

Iemanjá

Dona dos mares, maternidade e da fertilidade.

Oxalá

Pai de todos os Orixás, vida, paz, visão.

Leque, espelho, dinheiro, corrente dourada, pente. Âncora, barco, remo, anel, brincos, perfumes. Bastão, poemba, olho de vidro.

Xapanã

Bode, galo arrepiado.

São José, Santo Onofre.

Bode com aspas de qualquer cor menos preto, galo prateado. Cabra, galinha amarela.

Jovem: São Lázaro Velho: Cristo das Chagas

Ovelha, cabra e galinha branca.

N. S. dos Navegantes.

Cabra, galinha branca.

Cristo, Espírito Santo.

N. S. da Conceição N. S. Aparecida

Fontes: Corrêa, 2006; Oro, 2008. Assim apresentei de forma sucinta algumas particularidades das nações do Batuque e, no quadro 2, de seus orixás. Ainda que faltem precisão e uniformidade nos dados apurados (como, segundo o quadro 2, em relação às “atribuições” dos orixás, pois em alguns se apresenta o significado do orixá enquanto elemento da natureza, em outros, os vínculos e correspondências do corpo humano ou das características humanas, ou ainda, na breve descrição das nações, quando em algumas, mas não em todas, esteja cotejado características a respeito do toque do tambor ou o reconhecimento de pais e mães-de-santo “fundadores” e/ ou continuadores), acredito que o valor desta síntese resida mais em reconhecer e mapear a complexidade e diversidade intrínsecas a esta religião do que em oferecer um relato mais bem definido, restando assim, conforme antecipei, muito trabalho por ser feito com relação a este vasto universo religioso.

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Considerações finais

O campo afrorreligioso se desenvolveu e se espraiou no Rio Grande do Sul, Porto Alegre e outras regiões nacionais e transnacionais de maneira particular e complexa, estando atualmente o Batuque e a Linha Cruzada basicamente restritos ao contexto da capital e de sua região metropolitana. Assim, certas contingências históricas e sociais pelas quais passaram esses locais no extremo sul do Brasil foram fundamentais para sua consolidação e circulação. Segundo Ari Pedro Oro, o Batuque floresceu na segunda metade do século XIX e adaptou-se às condições de um Rio Grande do Sul ‘tradicional’, eminentemente agrário, pois naquela forma religiosa a tradição regia a estrutura ritual com os orixás formando uma grande família patriarcal. Os sacrifícios de animais não ofereciam problemas num Estado pastoril e em uma Porto Alegre onde havia ainda bairros ‘rurais’. As iniciações podiam ser longas, pois as relações de trabalho eram ainda relativamente frouxas. Já a Umbanda se instalou no RS na década de 1930 num quadro social em que a implantação do capitalismo encontrava-se numa fase mais adiantada: a economia se monetarizava, iniciava-se o processo de industrialização, já ocorria o êxodo rural. O tempo tomava nova dimensão. As pessoas centravam suas vidas em torno do trabalho. A Umbanda se adequou aos novos tempos: seus rituais não se prolongavam noite adentro, não faziam uso de tambores e não realizavam sacrifícios de animais. Dessa forma, os fiéis podiam cumprir suas obrigações religiosas sem alterar o ritmo do cotidiano; não se prejudicava o sono dos vizinhos e se levava em conta a diminuição dos espaços para criar os animais que, além disso, se tornavam uma mercadoria cara. A Linha cruzada surgiu a partir da década de 1960, numa fase de consolidação do capitalismo com o consequente incremento de graves problemas, tais como desemprego, insegurança, doenças, frustrações. Neste contexto, a Linha cruzada torna-se uma religião prática, pragmática, de

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serviço, que se especializa nas soluções sobrenaturais daqueles problemas (Oro, 2002: 358-9). No esteio desse universo múltiplo e complexo, a historicidade do Batuque no Rio Grande do Sul, Porto Alegre e região metropolitana, acompanha a experiência da vida social, a segregação racial e espacial e a sua convivência com uma realidade “embranquecida” e que tende a invisibilizar o componente afroorientado de sua cultura e identidade. De certa forma, pode-se afirmar que, no histórico contexto de luta por reconhecimento e afirmação, ou ao menos pela mera existência, a ancestralidade africana é reinterpretada continuadamente tanto pelos praticantes das religiões afro-brasileiras quanto por aqueles que se apropriam delas na construção de identidades religiosas, étnicas e políticas (Morais, 2012). Assim, se a história do Batuque e de outras religiões de matriz africana atravessam a questão da negritude, atualmente este quadro se ampliou, dentro dos auspícios da modernidade que clamam por uma sociedade que reconheça a sua pluralidade e trate a ela de forma mais inclusiva e simétrica. Portanto, o reconhecimento e o registro da história dessas populações consistem em um mínimo alento dentro do abismo da indiferença.

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Religiosidades em Comunidades Quilombolas: algumas especulações Rosane Aparecida Rubert1 As comunidades negras rurais passaram a ser intensamente pesquisadas no Brasil desde que assumiram o estatuto jurídico de remanescentes das comunidades dos quilombos. Até então haviam sido objeto de raras pesquisas conduzidas sob a égide dos estudos de campesinato, os quais, vistos atualmente em retrospectiva, mais omitiram ou invisibilizaram do que revelaram sobre as lógicas de pensamento e ação destes coletivos, incluindo a especificidade da sua condição étnico-racial e suas implicações para a plena reprodução (ou não) como “camponeses”. Esta invisibilidade da historicidade e das dinâmicas socioculturais dos coletivos negros rurais marcou, ainda, a Antropologia das Religiões, que também produziu narrativas homogeneizadoras sobre o conjunto de práticas rituais e configurações cosmológicas que lhes são subjacentes, amalgamadas sob a categoria “catolicismo popular” ou “catolicismo rústico”2. Não é intenção realizar aqui uma discussão exaustiva da produção acadêmica sobre o tema, pois fugiria aos objetivos deste texto. Apenas assinalar que, não obstante os estudiosos apresentarem o catolicismo popular como produto da confluência de repertórios culturais ibéricos, ameríndios e africanos, o que se ressalta na sua caracterização é o caráter ibérico dos seus elementos constitutivos. Adere-se, desta forma, Mestre em Antropologia Social e Doutora em Desenvolvimento Rural. Prof.ª Adjunta do Departamento de Antropologia (ICH/UFPEL). E-mail: [email protected] 2 Ver, dentre outros, Queiroz (1976), Zaluar (1983), Brandão (1986), Steil (2001). 1

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conscientemente ou não, ao pressuposto da inevitabilidade do branqueamento cultural, sem sequer se estabelecer um estudo comparativo simétrico entre as formas religiosas deste catolicismo popular e possíveis equivalentes africanas e ameríndias – tal como comumente se procede em relação à matriz ibérica. Embora os precursores dos estudos afro-brasileiros, desde Nina Rodrigues, chamem a atenção para a forma peculiar que poderia assumir o catolicismo quando este é adotado por coletividades negras, só recentemente pesquisas aprofundadas vêm sendo desenvolvidas sobre o tema. Mesmo assim, estas estão, em sua grande maioria, direcionadas para as irmandades negras, seus/suas respectivos(as) santos(as) – São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, etc. – e alguns rituais específicos que lhes são correlatos, como as congadas, maçambiques e entronização de reinados. Uma possível razão para a negligência deste catolicismo negro rural pode estar relacionada à clivagem hierarquizante que se operou nos estudos afro-brasileiros, entre um legado classificado como nagôyorubá e um legado atinente à matriz linguístico-cultural banto. O primeiro é sinalizado como uma configuração mítico-ritual independente, complexa e tangida por uma presumida pureza no que se refere à africanidade de seus elementos constitutivos. Já os cultos originados da matriz linguístico-cultural banto, além de representados como estética e intelectualmente inferiores, trariam a marca da impureza, evidenciada pelo marcante sincretismo com matrizes ameríndias e europeias. A inviabilidade da reprodução de padrões culturais africanos no meio rural será tomada como um pressuposto por parte de estudiosos de relevo, como, por exemplo, Roger Bastide (1974; 1989). Aprisionado a um modelo explicativo que preconizava a submissão das possibilidades de continuidade das “representações religiosas” às bases institucionais correlatas, Bastide pôs ênfase na força corrosiva da escravidão sobre estas últimas. Argumentava, nesse sentido, em relação à matriz sociocultural banto, que “[...] a escravidão quebrava e dispersava as linhagens [...]” (BASTIDE, 1974, p. 101), inviabilizando o culto aos antepassados, um dos pilares das configurações cosmológicas e rituais dos povos nela congregados. Destacando a prevalência de escravarias constituídas por indivíduos oriundos de povos não apenas diversos, mas também rivais, mesmo

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que pertencentes a uma mesma matriz linguístico-cultural, Bastide aderia à tese consensual – para a sua época – de que reinava a promiscuidade no interior destas, impedindo a formação de vínculos sociais duradouros entre os escravizados no mundo rural.3 Esse fator, assim como a dispersão geográfica e suposta incomunicabilidade entre as escravarias, inviabilizaria, ainda, a perpetuação das “nações” no meio rural (BASTIDE, 1974, p. 86), tal como ocorreu no meio urbano. Afora esses fatores, ainda segundo Bastide, [...] é preciso acrescentar que [entre os povos bantos] os espíritos da natureza eram espíritos de alguns rios, de algumas florestas ou de algumas montanhas da África, e que eram localizados, ligados a um fragmento bem delimitado de terra, sendo impossível, por conseguinte, seu transporte ao exílio (BASTIDE, 1974, p. 101). Agregando-se aos fatores assinalados, a presunção de que os povos bantos seriam “mais permeáveis às influências exteriores”, ou seja, ao branqueamento e ocidentalização para assegurar alguma mobilidade social (BASTIDE, 1974, p. 101-102; 1989, p. 99-100), institui-se que teriam formado “comunidades negras” no Novo Mundo, ao contrário dos nagôs-yorubás que teriam logrado – especialmente, os que permaneceram no meio urbano – a formação de “comunidades africanas”.4 Estas “comunidades negras” teriam constituído padrões socioculturais próprios e inéditos, não obstante a Como é de largo conhecimento, esta tese foi devidamente desarticulada pela nova historiografia da escravidão direcionada para o estudo das relações de parentesco no interior das escravarias. Não obstante os historiadores discordarem sobre o caráter dessas relações, seus significados e funções, é consenso não apenas sua existência, como a centralidade que assumiam no âmbito das relações escravistas ou na constituição de projetos de autonomia por parte dos escravizados. Ver, dentre outros: Florentino e Góes (1997), Motta (1999), Slenes (1999), Rios e Mattos (2005). 4 Bastide (1974, p. 44-45) denomina de africanas aquelas comunidades em que, no Novo Mundo, os princípios socioculturais africanos teriam se sobressaído sobre os condicionantes impostos pelo novo meio, de negras, inversamente, aquelas em que as pressões do meio se sobressaíram sobre as possibilidades de reprodução de padrões ancestrais. Chama a atenção, no entanto, que se trata da constituição de tipos ideais, encontrando-se na realidade empírica um continuum entre um e outro. 3

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reinterpretação de um ou outro aspecto de padrões culturais africanos em virtude da segregação racial imposta pela sociedade envolvente.5 É nesta direção que Bastide (1989) irá identificar, ao lado de um catolicismo de origem ibérica, mas adaptado ao contexto brasileiro, 6 a existência de um “catolicismo negro”. No âmbito rural, o escravo estaria integrado à estrutura familiar patriarcal e seus respectivos cultos, mas esta integração comportava, contudo, uma separação, dada na segregação espacial na igreja, cortejos, procissões e festas. Bastide mantém, entretanto, uma posição ambígua em relação à especificidade (ou não) deste catolicismo negro, ora afirmando que este “[...] impedia à consciência de raça exprimir-se através da experiência mística, já que o catolicismo do negro era controlado por um líder branco” (BASTIDE, 1989, p. 159), ora reconhecendo que os negros tentaram transformar o catolicismo de meio de controle e integração “[...] num instrumento, pelo contrário, de solidariedade étnica e de reivindicação social” (BASTIDE, 1989, p. 164). Mas, novamente, Bastide, ao que parece, concebe esta segunda possibilidade apenas perante a migração da família patriarcal para as cidades, quando o catolicismo hegemônico altera suas funções e significados, proporcionando, assim, a possibilidade dos escravizados e negros livres conviverem em um mesmo espaço e constituírem suas confrarias. Ainda assim, Bastide se detém em aspectos mais superficiais e folclorizantes das confrarias, irmandades e suas manifestações expressivas (congadas, maçambiques, etc.). Embora admita que este catolicismo negro se erigiu em um espaço onde teria sido possível a conservação, por parte dos negros, de “certos valores mais altos de suas religiões nativas” no estatuto de “realidades vivas” (BASTIDE, 1989, p. 179), não há como passar despercebido Sobressaem, nesse sentido, as referências à macumba e umbanda, originadas da reinterpretação do culto aos antepassados em razão do cruzamento com o espiritismo kardecista e sua teoria da reencarnação. Se institucionalizaria, neste caso, o culto aos “antepassados da raça negra escravizada”, não mais o culto aos antepassados da família (BASTIDE, 1974, p. 103). Sobre o caráter estruturante do culto aos mortos entre os bantos, e sua readaptação no novo mundo, ver, também, Bastide (1989, p. 87-88). 6 Este catolicismo que Bastide denomina como “brasileiro” possui similaridades marcantes com o catolicismo designado como “popular”, especialmente no que se refere ao seu aspecto devocional, manifesto no culto aos santos, e seu caráter eminentemente doméstico e familiar. 5

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que em outra obra (BASTIDE, 1974) relega as expressões mais reconhecidas deste catolicismo à condição de “folclore”. Na obra As Américas Negras, Bastide dedica um capítulo inteiro ao estudo do folclore,7 reiterando a divisão entre folclore africano e folclore negro, tal como havia procedido com o conceito de religião e comunidade. Argumenta o antropólogo que neste âmbito, o do folclore, as chamadas “sobrevivências” africanas [...] surgem primeiramente em maior número do que as manifestações religiosas e, em segundo lugar, são de origem principalmente banto. Aí se dá um fato à primeira vista paradoxal: o banto domina no folclore ainda que, como já vimos, não apareça, a não ser de maneira episódica, na religião (BASTIDE, 1974, p. 158; realce da autora). Ao se avançar na leitura deste capítulo, não deixa de ser revelador que Roger Bastide abarca, na classificação de “folclore”, justamente um vasto conjunto de manifestações expressivas que não apenas podem, como o são, consideradas de caráter religioso por estudiosos mais contemporâneos, especialmente da área da historiografia.8 Mais revelador ainda, é o fato de várias destas manifestações estarem diretamente relacionadas às “vigílias fúnebres” (BASTIDE, 1974, p. 160), as quais não podem ser dissociadas do culto aos mortos, considerado, alhures, estruturante da cosmovisão banto. 9 Roger Bastide reproduz, nesse sentido, as interpretações eminentemente depreciativas do próprio Nina Rodrigues (2006; 2008) e de Arthur Ramos (2001) sobre a matriz linguístico-cultural banto, considerada pobre em sua origem e suficientemente deturpada no Novo Mundo para merecer o estatuto de religião. Ver Capítulo VIII, denominado “Os três folclores”. Ver, dentre outros, Martins (1997), Souza (2002) e Kiddy (2008). 9 Afirma, também, Arthur Ramos (2001, p. 96), que “O culto dos mortos e dos antepassados, dos deuses lares, entidades benfazejas e malfazejas, a crença na transmigração das almas, o totemismo, originaram práticas fetichistas especiais, muito aproximadas das do atual espiritismo e, como tais, passaram ao Brasil. A liturgia religiosa, entre os bantos, está intimamente ligada aos ritos funerários, às cerimônias totêmicas, à medicina mágica”. 7 8

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Esta perambulação, talvez demasiadamente breve, por algumas referências sobre a matriz banto, se deve ao fato da região central africana ter sido uma das principais fontes de abastecimento de escravos para o Brasil, fato que atingiu diretamente a região das antigas charqueadas no RS (PINTO, 2012; RUBERT; WOLF, 2011; COLLISCHON et. al., 2013). Mas não apenas. Este texto é motivado também pela inquietação diante da similaridade entre alguns princípios indicados como imanentes às configurações cosmológico-rituais da matriz banto e narrativas sobre formas expressivas enunciadas por integrantes de algumas comunidades quilombolas estudadas. Segundo Munanga (1995), não obstante a diversidade de culturas abarcadas pela matriz banto, Todos acreditam num criador único ou divindade suprema: Zambi, Kalunga, Lessa, Mvidie, etc. É uma divindade longínqua, que criou o mundo e distanciou-se dele, deixando a administração a seus filhos divinizados que são ancestrais fundadores de linhagens (MUNANGA, 1995, p. 61-62; realce da autora). Munanga (1995) e Lopes (2011) apontam alguns princípios gerais subjacentes à cosmologia dos povos da matriz linguístico-cultural banto. Segundo eles, nesta, a noção de “força” sobrepuja a noção de “ser”, sendo que esta força vital perpassa a tudo e a todos, instituindo-se um ordenamento hierárquico que interliga todas as formas de vida e que abarca, inclusive, os seres inanimados do mundo mineral. É enquanto forças ou energias vitais específicas que cada ser ou objeto é entendido, não enquanto uma entidade estática, ocupando o espírito dos ancestrais um lugar privilegiado nesta hierarquia, uma vez que são os mediadores entre os humanos e o Deus único, fonte desta força/energia vital nas suas múltiplas manifestações. A força de um ser pode crescer ou diminuir a partir das interações que estabelece com outras forças, interações estas que podem ser direcionadas ou manipuladas a partir da interferência de especialistas (sábios, feiticeiros, etc.).

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Seria a partir de princípios gerais, subjacentes aos múltiplos ordenamentos simbólico-cognitivos específicos a cada um dos diversos povos abarcados por esta matriz linguístico-cultural, que se operou um complexo processo de tradução cultural, na ocasião da introdução do cristianismo na África Central – antigo reino do Congo –, idos do século XVI. Segundo John Thornton (2008), entre as posições extremas assumidas por um Deus supremo, em uma ponta, e os antepassados,10 em outra, a cosmologia banto contemplava a existência de outras classes de espíritos: divindades vinculadas a territórios e regiões, às quais se erigiam altares comunitários, que “[...] viviam em lugares altos, riachos e terrenos não cultivados e garantiam o bem-estar de áreas específicas [...]”, zelando, assim, pelo bem-estar coletivo (THORNTON, 2008, p. 87). Outras duas classes de entes, considerados inferiores, tinham lugar neste universo cosmológico: seres sobrenaturais que ativavam amuletos (nkisi ou kiteke) lhes conferindo forças, os quais eram usados com finalidade protetora em bolsas ou pendurados ao pescoço e nas casas; e espíritos que possuíam má índole por terem sofrido morte violenta ou foram banidos dos seus espaços de convívio em vida ou, ainda, não foram adequadamente sepultados (THORNTON, 2008). 11 Thornton sustenta que o impacto do cristianismo na África Central, nos idos de 1490, anterior à escravização em massa, foi profundo. Entretanto, não obstante alguns confrontos teológicos entre as cosmologias nativas e cristã, a participação intensa em cerimônias religiosas católicas, incluindo os sacramentos, não inviabilizava a continuidade dos elos com as divindades tradicionais, que persistiam sendo objetos de cultos. Teria ocorrido um intenso amálgama entre os nkisi ou kiteke e os rosários de contas carregados ao pescoço, os altares erguidos aos protetores territoriais e as cruzes de madeira que passaram a se multiplicar pelo território, as divindades tradicionais (territoriais ou antepassados) e os santos e divindades católicas que assumiam faces personalizadas e assim por diante. O Os ancestrais tinham uma esfera de atuação restrita aos seus descendentes, sendo os seus túmulos os principais centros de culto, nos quais eram disponibilizadas oferendas, em troca do bem-estar da parentela (THORNTON, 2008). 11 Segundo Thornton, “Embora não houvesse um culto exclusivo para eles, precauções religiosas eram tomadas para impedi-los de causarem danos (2008, p. 91). 10

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que se depreende das leituras de Thornton (2008) e Kiddy (2008) é que muito do que se considerou ou considera como um sincretismo produzido pela “adaptação” de escravizados ao Novo Mundo foi forjado em solo africano, não desconstituindo, obviamente, o impacto que esta profunda ruptura, representada pelo processo de escravização, ocasionou nas trajetórias coletivas e individuais de milhares de pessoas que por ele foram vitimadas. Muito do que comumente se toma, portanto, como catolicismo popular (ou “rústico” ou “popular tradicional”), para além de um processo de integração subalterna de escravizados a um catolicismo ibérico hegemônico, pode ter comportado estratégias subreptícias de ligação com a África e de recomposição de universos a partir de experiências e materiais múltiplos e entrecruzados. Este ensaio não tem a intenção de retraçar e propor novas origens inequívocas para conhecidas práticas religiosas, apenas sugerir outras conexões possíveis entre estas e repertórios rituais e cosmológicos africanos da matriz linguístico-cultural banto, não se ignorando que estas podem ser, simultaneamente, também produto do assédio catequizador católico, bem como do cruzamento com outros repertórios cosmológicos. Obviamente que as associações aqui propostas só poderão ser plenamente avalizadas como plausíveis após pesquisas comparativas mais aprofundadas e atualizadas, assim como uma discussão teórica mais robusta. Considera-se, entretanto, mesmo com todos estes limites, que o texto poderá trazer contribuições, que sejam na forma de provocação, para a discussão sobre os efeitos do relativo ocultamento da matriz africana na constituição do que se convencionou denominar de “catolicismo popular”. O texto se propõe a uma apresentação reflexiva de dados etnográficos referentes à três comunidades quilombolas situadas em municípios da metade sul do estado do RS: Fazenda Cachoeira (Piratini), Maçambique (Canguçu) e Monjolo (São Lourenço do Sul).12 Três aspectos são destacados: o culto aos santos, as A pesquisa foi realizada simultaneamente nestas três comunidades, durante os anos de 2011 a 2013, e a sistematização dos dados, além de ocupar este interregno, transbordou para os anos de 2014 e 2015. Durante este período, foram elaborados os respectivos Relatórios Antropológicos de Caracterização Histórica, Geográfica, Econômica e Sociocultural destas três comunidades. As três comunidades configuram 12

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práticas de batismo em casa e benzimento e o culto aos mortos. Antecede a abordagem destes aspectos uma breve contextualização do universo religioso das três comunidades. Parte do repertório de cosmologias, práticas rituais e concepções abordadas aqui são fatos da memória coletiva que não eram mais atualizados por meio de práticas concretas no presente etnográfico em que foram apreendidos, ou atualizados apenas parcialmente em uma ou outra destas três comunidades. A pergunta plausível sobre o porquê abordar práticas e esquemas valorativos e cognitivos que foram em grande parte suplantados por outros objetos de crenças está relacionada ao porque são eles reiterados como fatos significativos da memória destes grupos. É notório que sua evocação narrativa está relacionada à interpelação sobre o passado por um ato de interesse da antropóloga, consoante um protocolo de pesquisa estabelecido. Pressupõe-se, entretanto, que os protagonistas das vozes aqui textualmente transplantadas recriam suas experiências, ou de seus ascendentes, em formas narrativas, porque por elas foram subjetivamente e cognitivamente constituídas. Considera-se, nesse sentido, que estas formas expressivas fazem ou faziam parte de um complexo repertório sobre como pensam a si mesmos, coletivamente falando, e as forças que atravessam seus espaços mais imediatos de convivência. Daí a importância de inscrevê-los e sobre eles elaborar alguns exercícios interpretativos (embora mais valham o adjetivo de especulativos).

realidades sócio-antropológicas diversas: a primeira congrega uma parentela extensa, dividida em 5 núcleos familiares; a segunda, aproximadamente, 70 famílias e a terceira, 17 famílias. Foram formadas a partir de estratégias múltiplas de territorialização, na transição do regime escravocrata para o pósabolição: negociações de doações de parcelas de terras, fugas, apossamento espontâneo de áreas improdutivas, compras de pequenas áreas, etc.

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Pluralismo religioso e a presença da matriz afro-brasileira As três comunidades apresentam, atualmente, do ponto de vista religioso, uma realidade permeada pelo pluralismo, com a coexistência entre catolicismo (nas suas múltiplas variantes), pentecostalismo (idem) e religiões mediúnicas, estas assumidas de forma mais velada. A existência pretérita de religiões afro-brasileiras no interior destes coletivos é revelada apenas após o estabelecimento de uma relação etnográfica mais duradoura e, ainda assim, de forma parcial e fragmentada, quando não por enunciados que procuram desconstituí-las enquanto fundamentação plausível da realidade. Um dos núcleos de moradores que constituem a comunidade de Maçambique, por exemplo, é largamente (re)conhecido pelos integrantes da própria comunidade e vizinhos não quilombolas pela prevalência, até um passado não muito remoto, de práticas e comportamentos considerados patológicos do ponto de vista moral e social: uso desregrado de álcool e outras substâncias psicoativas, assassinatos entre parentes próximos, infanticídio, intercursos sexuais entre parentes consanguíneos, etc. Uma das vias de acesso à existência pretérita de religiões de matriz africana no âmbito da comunidade se revelou, justamente, por meio do discurso acusatório de uma confrontante com áreas quilombolas, mãe adotiva de uma criança (hoje adulta) daquele núcleo e integrante de uma igreja neopentecostal. Atribuía ela a razão do comportamento desregrado dos integrantes daquele núcleo ao fato da pequena área onde vivem há gerações ter sido consagrado, outrora, às entidades do panteão afro-brasileiro, identificadas pela interlocutora como a religião dos antigos africanos e quilombolas, a partir de uma perspectiva claramente folclorizante e estereotipada. Outra senhora quilombola que nasceu naquele núcleo, mas também foi dada para adoção em tenra idade,13 identifica resquícios de alcoolismo no interior do núcleo em razão de um de seus integrantes ter quebrado, por acidente, uma imagem de preto-velho No caso desta interlocutora, ela foi adotada por uma família branca, que possui terras adjacentes às áreas ocupadas por famílias quilombolas e passou a residir em outro núcleo de moradores após a adoção. Mantém, contudo, na atualidade, um forte vínculo com os parentes consanguíneos, aos quais procura auxiliar tendo como prerrogativa seu vínculo religioso com uma denominação também neopentecostal. 13

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que era mantida no interior de uma das casas. Por meio de uma breve extensão da pesquisa para a periferia de Pelotas, acompanhando as dinâmicas de deslocamentos das parentelas extensas da comunidade de Maçambique que migraram, averiguou-se que vários integrantes destas alimentaram um forte vínculo com a umbanda desde a sua migração para o meio urbano. Mas parte deles passou, nos últimos anos, por um processo de conversão a igrejas neopentecostais. Estas informações fragmentadas, assim como as breves incursões etnográficas pela periferia pelotense, suscitaram o questionamento sobre o processo de adesão destas parentelas negras rurais à umbanda ou práticas correlatas: estas eram constitutivas das opções religiosas dos integrantes destas parentelas antes da migração para a cidade, de forma a se reconhecerem e se integrarem aos centros de umbanda urbanos após o deslocamento? Ou, ao contrário, passaram a conhecer esta alternativa religiosa apenas depois de consumado o êxodo, apresentando-a, então, aos parentes que permaneceram no meio rural nas visitas periódicas mútuas? Talvez a resposta a estas questões sejam inalcançáveis, dado o caráter tardio das pesquisas etnográficas realizadas nestas comunidades. E é plausível pressupor que não exista uma resposta unívoca, prevalecendo uma ou outra situação, a considerar circunstâncias e contextos múltiplos nos quais trajetórias individuais e coletivas foram forjadas. Não é incomum que, nestas comunidades, os mediadores com a espiritualidade fossem denominados como “benzedeiras que incorporam” (RUBERT, 2007, p. 326). Na localidade de Boa Vista, distante apenas alguns quilômetros da comunidade do Maçambique, Dona Lurdes exercia este papel. Mulher branca, que teria recebido o seu “dom” de cura desde criança, atendia a população rural das redondezas, mantendo relações orgânicas com as parentelas negras, inclusive de compadrio.14 As práticas de cura de Dona Lurdes abarcavam receituário de chás ou medicamentos convencionais, receitados em estado de transe; passes, designados como benzimentos; água fluidificada; e, uma série de Segundo os relatos, na medida em que se consolidou como médium/“benzedeira” de renome, Dona Lurdes passou a receber caravanas de ônibus e caminhões de pessoas oriundas de diversos lugares que peregrinavam até ela em busca de cura. Com a ajuda dos consulentes, construiu um prédio identificado como sendo sua “igreja”, no qual realizava seus atendimentos individuais ou coletivos. 14

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outros procedimentos de proteção individual, para a casa, lavouras e criação. Chama a atenção que as curas relatadas, operadas por Dona Lurdes, geralmente estão associadas à expulsão de “encostos” que acompanhavam o consulente e incorporavam na médium.15 Ela, no entanto, não enviava “o mal” de volta para a pessoa que o tinha acionado, mas sim para o “fundo do mar” (RUBERT, 2014, p. 478-479). Além desta referência indireta à elementos do universo afrobrasileiro, cita-se que uma das “simpatias” recomendadas por ela era “aguar” a casa com água misturada no mel, este benzido pela médium,16 prática comumente receitada em qualquer centro de umbanda. Dona Lurdes seria dotada, ainda, do dom da clarividência, pois previa e antecipava acontecimentos da vida de seus consulentes. Além de “caravanas” de mulheres que coletivamente se deslocavam até ela,17 a médium visitava as famílias negras, proporcionando ocasiões de reuniões coletivas no interior da própria comunidade, em uma ou outra das residências. Na comunidade de Monjolo, foi indicado que um casal que benzia (Conceição Rodrigues de Quevedo e Turíbio Prestes, já falecidos) mantinha conexões periódicas com um centro de umbanda localizado no bairro Laranjal, cidade de Pelotas, contendo na sua residência um pequeno altar com imagens. Benziam incorporados e em nome de Pai Xangô, Mãe Iemanjá e pretos(as) velhos(as), estabelecendo um interessante sistema de reciprocidade com os Este termo é utilizado, por parte dos(as) interlocutores(as), para caracterizar Dona Lurdes, assim como o termo “benzedeira”, embora haja uma prevalência deste último. 16 No período em que estas práticas são referidas, as casas eram de pau-a-pique e de chão batido, realidade que perdurou para muitas famílias desta comunidade até o ano de 2005, quando uma política de saúde relacionada ao combate à doença de chagas implantou um sistema de moradias de alvenaria. 17 Homens também procuravam Dona Lurdes, não apenas para se benzerem, mas também para benzerem suas plantações e alimentos que davam aos animais, para afastamento de pragas e doenças. Mas a prevalência de narrativas sobre mulheres realizando estas “caravanas” está relacionada ao fato de que: 1) foram principalmente mulheres que se dispuseram a narrar sobre Dona Lurdes; 2) era uma prerrogativa das mulheres cuidarem da saúde das crianças e, ao que parece, a médium direcionava uma atenção especial a elas. Segundo um(a) interlocutor(a), Dona Lurdes benzia-as perante “[...] Jesus Cristo, pregado na cruz. E ai ela pegava, fazia uns brevezinho, assim, só ela sabia o que tinha naqueles brevezinho. Ela pegava, fazia os brevezinho, costurava na volta, bordava e dava pra gente botar embaixo do travesseiro da criança” (Entrevista realizada com Interlocutor(a) 43, em 10 de março de 2012; comunidade de Maçambique). 15

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colonos:18 como eram barrados da igreja católica por parte das famílias de brasileiros,19 acionavam o “padre evangélico” (pastor) para ministrar alguns sacramentos nas casas, especialmente a “encomendação” das almas dos falecidos. Por outro lado, eram intensamente procurados pelos colonos para a realização de benzimentos diversos, dentre eles, das próprias lavouras para delas afastar as pragas. São apontados ainda como detentores de uma exímia habilidade na fabricação de remédios caseiros com plantas nativas (RUBERT; PINHEIRO, 2015). Chama a atenção, ainda, nesta comunidade, a presença em praticamente todas as residências das famílias negras de um quadro de São Jorge matando o dragão, geralmente localizado no ápice da passagem de um cômodo a outro (sala para a cozinha ou sala para aposentos). Quando indagados sobre o porquê de São Jorge, geralmente respondem que este era “o grande vencedor”. O ancião da comunidade Fazenda Cachoeira, Sr. Valdemar da Silva, que faleceu durante a etnografia, era o único representante de um conjunto de 12 irmãos que permaneceu na campanha. Algumas de suas irmãs que foram residir em Pelotas e Porto Alegre são oficiantes de religiões afro-brasileiras, segundo informações dos parentes que permaneceram na comunidade. Também o era o irmão de Valdemar, de nome Antonio (já falecido), que residia no Cerro do Sandim, acidente geográfico também situado no 5º Distrito de Piratini. Antonio, no entanto, em certa passagem da sua trajetória, se converteu ao pentecostalismo, passando a inserir esta opção religiosa no interior da comunidade. As irmãs de Valdemar que são “de terreira”, uma delas junto com seu companheiro, visitavam com frequência a comunidade no passado, fazendo uso do território tradicionalmente ocupado da comunidade, assim como de cemitérios das redondezas onde estavam sepultados parentes para a realização de trabalhos rituais. Os integrantes da geração de adultos das comunidades de Maçambique e Fazenda Cachoeira são taxativos na afirmação de que nunca tiveram Colonos, em seu significado êmico, é um termo que designa os agricultores de ascendência germânica e pomerana que fazem vizinhança com a comunidade negra. 19 Termo que designa pessoas brancas, mas sem ascendência germânica ou pomerana: portuguesa, espanhola, turca, etc. 18

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familiaridade com a igreja católica enquanto instituição, até porque não existia nas proximidades. Sempre foram igualmente taxativos, no entanto, ao afirmarem que receberam dos pais, tios e avós os ensinamentos elementares a respeito da presença divina e de um ordenamento sagrado do mundo. 20 Já na comunidade do Monjolo, conforme destacado, as famílias negras eram alijadas do espaço da igreja até poucas décadas atrás, passando a ocupá-lo após confrontos abertos com famílias brancas que sustentavam as práticas segregacionistas. Certamente esta situação favoreceu a constituição de catolicismos independentes, impregnados com referências da matriz africana. Cumpre destacar que nas duas últimas décadas houve uma forte inserção de denominações pentecostais nas comunidades de Maçambique e Fazenda Cachoeira, imprimindo reordenamentos diferenciados em uma e outra destas comunidades, extrapolando os objetivos deste texto a sua abordagem.

Tempos do sagrado: o culto aos santos

Segundo Thornton, na expansão do cristianismo em solo centroafricano, equivalências profundas foram sendo estabelecidas entre divindades católicas e entes nativos e deidades ancestrais, associando-se o culto destes aos feriados cristãos dedicados aos santos, ou reverenciando-os separadamente (THORNTON, 2008). Em sua abordagem dos cultos aos santos realizados em comunidades quilombolas do Pará, Souza identifica associações entre imagens e objetos pretensamente cristãos aos minkisi (nkisi ou kiteke) de que trata Thornton, uma vez que “Santos e minkisi eram objetos de ligação com o mundo do além, de onde vinha a solução para os problemas deste mundo” (SOUZA, 2002, p. 145). 21 Na comunidade Fazenda Cachoeira, os atuais membros do grupo que se identificam como católicos, possivelmente, passaram a assumir de forma mais declarada esta identidade religiosa após as assessorias prestadas às famílias pelas Pastorais da Criança e, depois, Pastoral Afro do município de Piratini. 21 Segundo ela, “[...] foram os ajustes e opções empreendidos pelos africanos recém-chegados e pelos seus descendentes que definiram as feições das novas culturas que se criaram nas Américas. Nesse processo os santos, imagens do culto católico, absorveram sentidos e papéis das imagens e objetos usados nas religiões bantos tradicionais, o que já havia ocorrido na própria África [...]” (SOUZA, 2002, p. 143). 20

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Nos contextos etnográficos aqui em discussão, pode-se afirmar que o sagrado era (e ainda o é, embora por meio de outras experiências) constitutivo da existência cotidiana dos integrantes destas comunidades, mas alguns eventos específicos tornavam-no mais intensamente e densamente vivenciados, ritmando a passagem do tempo a partir de referências coletivamente instituídas. A semana santa é consensualmente apresentada, nas interlocuções realizadas nas três comunidades, como um tempo liminar, em que princípios cognitivos, éticomorais e estéticos eram atualizados em uma potência que deslocava o senso cotidiano da realidade. As interdições relacionadas ao resguardo comportamental e alimentar não são distintas das encontradas em outros coletivos étnico-culturais. Menciona-se, no entanto, na comunidade de Maçambique, a interrupção da semana de jejuns e resguardo com o abatimento sacrificial de animais: Interlocutor(a) 09:22 Não, só deixava matar no sábado de aleluia que matava. Ai tinha a aleluia, antes de sair o sol tinha que matar pra sair o sangue! Pesquisador(a) 1: Ah antes de sair o sol no sábado de aleluia? Interlocutor(a) 09: É, no sábado de aleluia. Pesquisador(a) 1: Antes disso não dava pra matar o bicho então? Interlocutor(a) 09: Não, não dava. Já na semana que entrava pra semana santa já nem carne se comia, tem muitos que nem comiam carne. Na semana santa era só uma carne de peixe, alguma coisa assim que podia comer. [...] A etnografia nestas comunidades foi realizada perante situações de exacerbação de conflitos, relacionados à constituição dos Relatórios com vistas à regularização fundiária. Em razão disso, foi negociado com os seus integrantes (especialmente em Maçambique e Monjolo) a omissão da identidade dos(as) entrevistados(as), procedimento resguardado neste texto. Segundo o Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia, dentre os direitos do antropólogo enquanto pesquisador consta o de “preservar informações confidenciais”. Por seu turno, constituem direitos dos grupos objeto das pesquisas o de “preservação de sua intimidade, de acordo com seus padrões culturais” e a “garantia de que a colaboração prestada à investigação não seja utilizada com o intuito de prejudicar o grupo investigado (CÓDIGO DE ÉTICA DO ANTROPÓLOGO, disponível em: http://www.abant.org.br/?code=3.1). 22

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Pesquisador(a) 1: No sábado tinha que ser de madrugada pra matar? Interlocutor(a) 09: Ah é, tinha que ser de madrugada antes de sair o sol, tinha que matar pra tirar a aleluia (Entrevista realizada em 26 de agosto de 2011; comunidade de Maçambique; realce da autora). Na comunidade Fazenda Cachoeira, a “água benta” para realização de batizados e benzeduras era sacralizada pelas pessoas mais velhas durante a semana santa: “Antes do sol sair, a gente vai lá e tira. Antes do sol sair, vai lá na cacimba e tira um vidro com água e guarda pra depois batizar” – batismo em que se faz uso, também, de “um galhinho de arruda”. 23 Esta sacralização da água, na comunidade de Maçambique, era realizada também durante o que poderíamos denominar de ciclo das fogueiras, período relacionado à devoção a Santo Antônio, São João e São Pedro. Cada um destes santos personificava qualidades ou forças (curativas, protetoras, de constituição de alianças matrimoniais, etc.) que eram intensamente vivenciadas nos seus respectivos dias, por meio de fogueiras montadas nas casas das famílias, simultaneamente. É um ciclo em que o lúdico invade a esfera do sagrado, havendo um deslocamento do enfrentamento da dor e da morte, característico da semana santa, para a festa, o extravasamento, a alegria e o prazer. Se o sangue – interditado na proibição de se comer carne vermelha ou ritualmente derramado – é o elemento líquido que interliga distintos entes e forças durante a semana santa, a água ocupará este lugar durante o ciclo das fogueiras, agenciando, obviamente, outras conexões possíveis, outras potencialidades inscritas na cadeia da vida: Interlocutor(a) 03: Tem simpatia da fogueira de São Pedro, São João tira água benta. Aí bota um litro na rua e quando é de madrugada, só não pode enxergar o sol, aí agarra e tira, de madrugada tem que ir lá e tirar porque água não pode enxergar o sol, porque é Entrevista realizada com Interlocutor(a) 1, em 08 de agosto de 2011; comunidade Fazenda Cachoeira. 23

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remédio. A finada minha mãe tirava sempre, é remédio pra tomar. Pesquisador(a) 1: Olha isto no São...? Interlocutor(a) 03: São João. Porque é uma fruta que dá comida pros passarinhos e dá comida pra gente comer. Essa fruta é produtiva no mato e a gente come. Pesquisador(a) 1: A fruta de São João? Interlocutor(a) 03: É, ela dá bem pretinha e bem docinha. Qualquer pessoa pode comer, na época dela dar fruta. Pesquisador(a) 1: A fogueira de São João ela é da época da fruta também? Interlocutor(a) 03: É na época da fruta. Quando dá a fogueira de São João tem a fruta de São João no mato. (Entrevista realizada em 06 de janeiro de 2012; comunidade de Maçambique; realces da autora). O que se observa nesta narrativa é o estabelecimento não apenas de uma conectividade, mas de uma permeabilidade entre a fogueira, a entidade São João, a fruta de São João, a água, a escuridão da noite e os estados corporais (referência da água como um “remédio”). As propriedades destes elementos migram através das matérias uns dos outros, indicando-se a transitoriedade como princípio imanente. Esta permeabilidade abarcava o humano, conforme apontam diversas narrativas, similares a que segue: Interlocutor(a) 32: Em São João. Fazia a fogueira, queimava a lenha e na madrugada caía pra sanga, se molhar e se lavar na água. Tinha que se enxergar na água. E depois pegava a água pra fazer um mate... Tudo água benta. Botava nos litros, quando nascia uma criança, batizava com aquela água. Pesquisador(a) 1: E essa água, ela ficava ao redor da fogueira de noite? Interlocutor(a) 32: Não, a gente tirava da sanga, corrente, na madrugada. Interlocutor(a) 17: Antes do dia clarear. Mandava a pessoa se olhar, se enxergar, tudo, e depois tirava a

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água e vinha-se embora, esconder a água dentro de casa, num lugar escuro. [...] Interlocutor(a) 17: Tinha que se enxergar tudo, levantar os braços, assim, se enxergar todo o corpo. (Entrevista realizada em 13 de agosto de 2011; comunidade de Maçambique; realce da autora). A imersão do corpo na água, a busca no seu espelho do próprio reflexo, pode possuir um caráter purificador, mas ao mesmo tempo se estabelece, ao que parece, uma apreensão sensorial das propriedades que esta congrega, sendo que a atenção é direcionada, ainda, para o reconhecimento de si próprio como integrante de um conjunto mais amplo de forças. O caráter irreversível do tempo, ao se enxergar ano a ano no espelho da água corrente, não seria apreensível pela própria sensorialidade do líquido que escorre pelo corpo? Ao mesmo tempo, esta água é guardada, suas propriedades são retidas, desde que devidamente cuidada: no fluxo do tempo, nem tudo se esvai. Há um movimento espiralar indicando que a conservação seletiva do passado e o aprendizado de como reter algumas propriedades do mundo é uma condição para a renovação da vida, ao mesmo tempo, as mudanças de formas e conteúdos são inevitáveis. Institui-se uma complementaridade cósmica nesta mistura de corpos – da água e dos humanos que nela adentram: ela protege a casa das tempestades,24 as crianças por meio do batismo e os adultos no ato do benzimento, desde que seja protegida, resguardada em um lugar e condições adequadas. Observa-se, aqui, tal como sugerido por Martins (2000, p. 67) na sua abordagem dos reinados negros performados no âmbito das congadas, uma relação de contiguidade, em que a devoção a santos católicos é vivenciada “[...] por meio de uma gnosis ritual acentuadamente africana em sua concepção, estrutura, valores [...]”. Certamente se está diante de uma formação vernacular “Na época da minha avó, ela usava pra batizar. E nos dias que trovoava bastante forte, ela botava, fazia uma cruz, soltava nos cantos das casas” (Entrevista realizada, com Interlocutor(a) 32, em 13 de agosto de 2011; comunidade de Maçambique). Outras entrevistas também fazem referência a “cruzar” a casa, com a água benta no ciclo das fogueiras, aguando os seus quatro cantos. 24

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alterna, constituída por meio do cruzamento e confronto entre registros epistêmicos díspares que não necessariamente resultam em processos de fusão. Leda Martins propõe, ainda, o conceito de encruzilhada como transversal às formas expressivas religiosas da diáspora negra, uma vez que alude a um espaço de “intermediações entre sistemas e instâncias de conhecimento diversos”, gerando processos ambíguos e contraditórios de interseções e desvios, convergências e multiplicidade (MARTINS, 2000, p. 65). O ciclo das fogueiras comportava intensos aprendizados de diferentes ordens, dentre eles, a considerar a narrativa anterior (e outras tantas similares!), o de enxergar a si mesmo, paradoxalmente, na ausência de luminosidade ou de condições “normais” de visualidade. Observa-se que este “se olhar” não só é feito coletivamente, mas obedece a um regime próprio de autoridade – as pessoas eram “mandadas”, ou seja, orientadas a fazerem isso – no âmbito de uma parentela extensa.25 Inúmeros eventos, registros e temporalidades se entrelaçavam nestes rituais domésticos: faziam-se fogueiras porque assim o ensinaram avós, pais e tios, marcando-se um movimento de repetição. Ao mesmo tempo, era a ocasião de se projetar o futuro: em cada uma das fogueiras se realizavam procedimentos específicos (“simpatias”) de adivinhação, direcionados para diferentes dimensões da vida, especialmente, a possibilidade ou não de casamento no ano vindouro, acionando-se, para tal, outros tantos objetos e gestos dos quais este espaço não comporta uma descrição detalhada.

Há de se perguntar a relação desta experiência eminentemente sensorial, vivenciada em situações excepcionais (um ritual cíclico), com a condição rotineira de negros descendentes de escravos, na devida historicidade em que estes rituais eram realizados, que estavam subsumidos, estruturalmente, a um sistema classificatório racializado e verticalizado, por meio do qual outros se outorgavam o direito não apenas de dizer quem eles eram, mas que lugar deveriam ocupar numa dada estrutura social, fundamentados em uma escala de definição de diferentes gradações de humanos, presumivelmente inscrita na ordem da natureza. 25

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Benzimentos e batismos em casa: o princípio da circulação da energia vital

Prática declaradamente assumida, ou astutamente dissimulada em razão de novos pertencimentos religiosos, os benzimentos são onipresentes nas comunidades negras rurais, embora em várias delas seja apontada como em desuso. O batismo em casa, por sua vez, ainda prevalece como uma prática comum, constituindo-se: 1) no principal ato de acolhimento, inserção e reconhecimento da criança no meio social imediato logo após o nascimento; 2) em um ritual em que ocorre o estabelecimento de conexões entre a criança e uma cadeia de forças no interior da qual a energia vital circula, incluindo-se nesta cadeia os demais humanos por ela responsáveis, tornando a continuidade da vida possível; e, 3) em um rito de proteção da criança em relação a forças que possuem a potencialidade de interromper a continuidade da vida. Em alguns contextos específicos, como é o caso da comunidade de Monjolo, o batismo em casa é explicitamente acionado como um sinal diacrítico para delimitar as fronteiras étnicas entre nós, os negros, e eles, os colonos e brasileiros. Embora, nos últimos anos, em razão dos casamentos interétnicos, integrantes destes dois últimos grupos também sejam acionados nas relações de compadrio por ocasião deste rito doméstico. 26 Sociologicamente, ainda, é amplamente consensual que o compadrio possui a função de criar ou reforçar vínculos sociais, que podem ser tanto horizontais como verticais, entre os adultos envolvidos no ritual, transcorra este no âmbito doméstico ou em um templo religioso. A equivalência entre batizar e benzer uma criança é fartamente referida nos contextos etnográficos aqui em questão, relacionando-se com o terceiro aspecto acima elencado, até porque os procedimentos e elementos acionados nos Não apenas o batismo em casa, mas a reconstituição do equilíbrio biopsíquico por meio de ervas, na forma de chás, compostos e xaropes, também é acionado pela comunidade negra do Monjolo como um demarcador de fronteiras étnicas com os colonos, na qualidade que assume de prática sociocultural diferencial (RUBERT; PINHEIRO, 2015). Além disso, não apenas nesta, como também nas outras duas comunidades, o uso de ervas curativas, para além de uma prática de resguardo da saúde, se constitui em um importante recurso mnemônico, pois atualiza a memória de quem os transmitiu. 26

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dois rituais são similares. Assim como no benzimento, a cerimônia do batismo em casa comporta o uso da água benta, aspergida pelos padrinhos com ramos verdes: “molhava na água benta, faziam com um galho de arruda, um galho de alecrim, desse alecrim que tem ali”.27 O ritual conecta, portanto, em uma mesma cadeia, padrinhos, criança, forças da natureza presentificadas pela água e pelas ervas protetoras e forças espirituais, acionadas por meio de palavras específicas. O trecho abaixo, de uma entrevista realizada na comunidade de Maçambique, é ilustrativo da correspondência entre benzer e batizar, pois o desenrolar discursivo se desloca espontaneamente de uma prática à outra: Pesquisador(a) 1: Batizado em casa ou no padre [...]? Interlocutor(a) 02: Em casa e no padre. Pesquisador(a) 1: Em casa também, e como é que faz pra batizar em casa? Interlocutor(a) 02: Ué, benze com umas ramas. Agarra três, quatro raminho, de rama, e benze. Pesquisador(a) 1: E é o pai e a mãe que benze ou são os padrinhos? Interlocutor(a) 02: Os padrinhos. Pesquisador(a) 1: E rama de que, que se pega pra benzer? Interlocutor(a) 02: Ué, de alecrim, carqueja, o que der. Deus o livre que a pessoa das vez tem um ar nos olhos, ou na cabeça, ou numa mão, uma coisa ou outra, é só benzer, benzeu e tirou, né. Eu mesmo, aqui na minha horta, tem um remédio aqui, tendo uma pessoa com pontada, ou uma coisa ou outra, eu faço um chá e na mesma hora já não tem mais pontada. (Entrevista realizada em 30 de julho de 2011; comunidade de Maçambique; realce da autora). O ritual do batismo conecta a criança, portanto, não apenas em uma malha social pré-instituída, mas a um conjunto de potencialidades, intensidades e forças disponibilizado no território de reconhecimento, emprenhado de 27

Entrevista realizada com interlocutor(a) 09, em 26 de agosto de 2011; comunidade de Maçambique.

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referências da historicidade do grupo. Na comunidade do Monjolo, além da água e ramos verdes (geralmente de arruda), usa-se sal dentro da água e ainda “acende uma vela, tem que ter luz”, sendo que “enquanto a criança não é batizada, a gente não apaga a luz de noite”28 (RUBERT; PINHEIRO, 2015, p. 172). Tanto ali, como em Fazenda Cachoeira, ressalta-se ser fundamental que os padrinhos, além de manipularem estes elementos, acionem outros por meio da pronúncia correta de palavras determinadas na ocasião certa. Estabelecer, por meio do batismo, conexões entre a criança e as forças cosmológicas que a transcendem e estabelecer elos orgânicos entre ela e o meio social circundante são atos coetâneos: a responsabilidade dos padrinhos em acionar forças que transcendem o plano humano para bem proteger espiritualmente seus afilhados se estende ao compromisso pessoal em acompanhá-los em sua trajetória, especialmente em momentos de fragilidade, e vice-versa, sendo a retribuição geralmente manifesta quando aqueles alcançam idade avançada. O depoimento abaixo, de um(a) interlocutor(a) da comunidade do Monjolo, é ilustrativo deste princípio: Pesquisador(a) 1: E ela era sua tia, por acaso? Interlocutor(a) 1: Não, não. Pra vir nesse ponto dela ser minha madrinha, ela até vinha a ser, por parte do batismo, minha mãe. Por parte do batismo então ela ficou minha mãe, porque ela era minha madrinha. Toda a criança que um batiza, ele fica pai ou mãe daquela criança, na lei dos antigos. Se por acaso não existir o pai legítimo ou a mãe legítima daquela criança, os primeiros que são os pais daquela criança são os que batizaram. [...] (Entrevista realizada em 29 de julho de 2011; comunidade de Monjolo; realce da autora). Steil (2001), ao caracterizar o catolicismo popular, assinala o seu caráter laico, em que as práticas cerimoniais não são administradas por agentes religiosos especializados, institucionalmente legitimados. Por certo que este atributo pode ser produto de fatores históricos e sociais, como a prevalência de uma 28

Entrevista realizada com interlocutor(a) 03, em 01 de maio de 2012; comunidade de Monjolo.

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organização social patriarcal e o distanciamento de agentes eclesiásticos do universo rural. Há que se retomar aqui, contudo, o princípio imanente à cosmologia banto (MUNANGA, 1995; LOPES, 2011; KIDDY, 2008; THORNTON, 2008) de que a energia vital ou forças, nas suas múltiplas qualidades e intensidades, podem ser direcionadas ou manipuladas por meio da interferência de especialistas, mediadores entre distintos níveis em que estas circulam. No que diz respeito especificamente aos coletivos constituídos pela diáspora africana em que prevaleceram povos desta matriz, os fatores sóciohistóricos não teriam apenas facilitado a atualização deste princípio? Capelães, benzedores, rezadores e parteiras ocupariam este lugar de mediadores, potencializando a presença desta energia vital por meio de procedimentos específicos ou, ao contrário, cortando-a e anulando-a, garantindo, assim, o bemestar individual, familiar e comunitário. Tradicionalmente, nestas comunidades, estes(as) especialistas assumiam funções múltiplas: dificilmente uma parteira não exercia também o papel de benzedeira, assim como as pessoas indicadas como capelães ou rezadores geralmente exerciam, ao mesmo tempo, o papel de benzedores ou curandeiros(as). Geralmente estes ofícios eram realizados por mulheres, mas os homens também neles se imiscuíam para situações específicas, comumente vinculadas às pragas nas lavouras, parasitas e doenças no gado e temporais. Há uma clara compreensão de que a sexualidade do(a) mediador(a) interfere na eficácia dos procedimentos, de acordo com a finalidade a que estes se destinam, mas observou-se a exclusividade de homens e mulheres sobre domínios específicos apenas nos cuidados com as parturientes e crianças recém nascidas (mulheres) e nas lidas com o gado (homens). Não obstante serem indicados mais os homens com a habilidade de afastar tempestades, mulheres também podiam exercê-la, embora mais raramente, a relação inversa é válida para o tratamento de malestares como mal olhado, quebrante, ar e outros desequilíbrios energéticos que repercutiam de diferentes formas no funcionamento orgânico dos consulentes.29 Sobre a causalidade sistêmica das desordens, pressuposta pelo sistema cosmológico do benzimento, ver, também, Quintana (1999). 29

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Os benzimentos rotineiros, além de alguns elementos presentes na situação de batismo (água benta e ramos verdes), requeria o uso do fogo, por meio da brasa,30 e de utensílios cortantes (facas, adagas, facões, tesouras, machados, etc.). A manipulação destes possibilitava o diagnóstico ou a intervenção sobre a causalidade do mal-estar, visando redirecioná-la ou eliminála. O machado, em especial, é normalmente usado para “cortar cruzado” o temporal,31 com gestos e procedimentos sobre o chão em frente à casa, cuja eficácia depende de uma leitura adequada da direção do temporal e sua intensidade. A faca, ou mesmo o machado, era utilizada para “cortar” o sapinho, doença comum em crianças pequenas, procedimento realizado em cima do vômito induzido da própria criança. Enfim, o que se pretende ressaltar, para além de procedimentos rituais específicos cujos exemplos empíricos poderiam ser multiplicados, é a presença do princípio de que estes desencadeiam reações inter-relacionadas que envolvem múltiplos planos, o que pressupõe o intercâmbio de propriedades, intensidades e forças, enfim, permeabilidade entre um plano e outro. Opera-se o direcionamento, manipulação ou anulação de forças a partir da atuação de agentes coletivamente investidos de poder para tal.

Cultos aos antepassados

A comunidade de Maçambique recebe este etnônimo de um de seus presumidos personagens fundadores, Maçambique, cujo nome se estende a um dos cemitérios locais que teria sido fundado após acolher seus despojos, Interlocutor(a) 05: Benzia com arruda pra olho gordo, sabe? Pegava um copo cheio de água e pegava umas brasas do fogo ali, benzia no copo e botava as brasas. Se as brasas ficavam tudo em cima nadando, sabe, é por que a pessoa tava carregada. Se descia... Não, se a brasa ficava tudo em cima nadando é porque a pessoa não tava muito, assim, carregada. Se descia pro fundo do copo é porque tava bem carregada mesmo, sabe? (Entrevista realizada em 25 de maio de 2012; comunidade Fazenda Cachoeira). 31 Entrevista realizada com Interlocutor(a) 4, em 25 de maio de 2012; comunidade Fazenda Cachoeira. O ato de “cortar” o temporal, no entanto, poderia ser realizado também com água benta, aquela produzida no âmbito da própria comunidade em períodos consagrados (semana santa ou ciclo das fogueiras): “quando tava trovejando muito, a gente bota um pouquinho, derrama um pouquinho de água benta no canto da casa, parece que pra cortar o temporal, uma coisa assim” (Entrevista realizada com Interlocutor(a) 1, em 08 de agosto de 2011; comunidade Fazenda Cachoeira). 30

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inscrevendo-se ainda o seu legado na denominação da própria comunidade e associação quilombola. O cemitério, assim como a maioria das residências das famílias negras, está localizado no topo de uma área de serranias conhecida como Serra dos Tapes, apontada em documentos de época e pela historiografia como local de esconderijo de escravos foragidos (MAESTRI, 2002; MOREIRA et. al, 2013). Em algumas narrativas ouvidas na comunidade, Maçambique emerge como protagonista desta forma extrema de resistência à escravidão caracterizada pelo confronto aberto, fuga e suicídio. Interlocutor(a) 19: Maçambique vem... Que começa a história por um escravo. Que tinha um escravo de nome Maçambique, que é a primeira pessoa que foi sepultada ali aonde é aquele cemitério. Quando ele foi sepultado, que enterraram ele ali, era mato, diz que era mato. Porque a história que contam é que esse Maçambique vinha fugindo da onde, da fazenda que ele morava, e mandaram pegar ele pra levar de volta. Porque ali, acima da casa da Terezinha, ali por aquela subida que tem, tem assim um cerrinho de pedra ali que chamam o cerro do quilombo.32 Que antigamente, talvez tivesse um quilombo ali, né? E o que conta essa história é que o Maçambique vinha fugindo pra aquele quilombo ali. Mas quando ele vinha por ali, por perto daquele cemitério, ele viu que os outros iam alcançar ele. E contam que ele, ele achou decerto que iam matar ele, ou ele não queria voltar, sei lá. E ele mesmo se enforcou num cipó, mas o cipó rebentou com ele e quando ele caiu no chão diz que tava... Tava, sei lá, ele não tava morto ainda, tava meio vivo, né. E ai fizeram abrir uma cova, que diz que botaram ele de em pé dentro dessa cova, ainda meio vivo, e O Cerro do Quilombo é um acidente geográfico localizado no início da cadeia de serranias (ou, da subida da serra), tomando-se o acesso ao topo da serra pela estrada que inicia na várzea do Rio Santo Antonio. É circundado por áreas pertencentes às famílias quilombolas e outras que não o são. Segundo os moradores mais velhos, esta denominação “sempre existiu” como um topônimo de referência para se orientarem geograficamente em âmbito local, havendo nas suas proximidades várias taperas de ocupação antiga de famílias negras. 32

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juntaram umas pedras e botaram por cima dele. E deixaram ele ali. E depois, foram sepultando gente por ali, formaram um cemitério. Que ali tem família branca, tem negro, têm todos ali. (Entrevista realizada em 29 de julho de 2010; realce da autora). Floricia Soares Oliveira, uma ascendente da comunidade que já não vive mais e com quem foi entabulado um diálogo em 2004 (RUBERT, 2005) quando estava com 96 anos, narrou, na ocasião, a história de Maçambique como escravo em fuga, tal como reproduzida acima. Apresentava, no entanto, uma variação: Maçambique não se matou, teria sido morto por seus companheiros de fuga a pedido dele próprio para não ser reconduzido ao cativeiro. Esta variante insere um processo de resistência sendo agenciado em um plano coletivo. É na manifestação de uma vontade – de não ser capturado e reescravizado –, perante um contexto de limitação extrema das alternativas de ação, que a morte é transformada em potência de vida. Segundo a narrativa, Maçambique não só é enterrado “meio vivo”, mas também “de pé”, investindo aquele espaço da sua própria substância e erigindo-o em território para os seus, em um lócus de perpetuação da vida e de projetos de autonomia. Maçambique assume outras formas ontológicas na pluralidade de vozes que compõe a rede enunciativa que circunscreve a memória coletiva das parentelas negras, algumas das quais não necessariamente são contraditórias em relação à narrativa precedente. Em outra versão, por exemplo, Maçambique assume o estatuto de assombro, o qual, nestas comunidades, é estruturante de possibilidades alternas de conexões com os (ante)passados: 33 Pesquisador(a) 01: Por que leva esse nome esse cemitério? Interlocutor(a) 08: Esse Maçambique diz que era um velho que saía pro mato a juntar graveto e vinha e Em outros textos (RUBERT, 2007; RUBERT et. al., 2011) foram explorados os causos de tesouros enterrados, cuja estrutura narrativa se repete de uma comunidade à outra, como uma forma singular de estabelecer relação com experiências pretéritas eminentemente traumáticas, permeada por perspectivas cognitivas que pressupõe a permeabilidade entre distintos domínios e temporalidades. 33

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trazia os gravetos e dizia: “Eu vi o Maçambique.” Todo mundo perguntava, mas quem é esse homem? “Não sei.” Era só o que ele respondia. Saía a juntar graveto e voltava: “Eu vi o Maçambique.” E perguntavam: “Mas que jeito é esse homem?”. “Não sei.” Ficou esse nome de Maçambique. Mas não tinha nome, ficou por esse homem louco que apareceu na finada... Como é o nome da velha? Até uma velha que benzia... Eu me esqueci o nome da velhinha, a Felica, não! Costureira também era. Eu seu que essa criatura parava lá por essa velha. Saía a juntar graveto e voltava. “Eu vi o Maçambique”. Pesquisador(a) 01: Mas ele não dizia como era esse tal de Maçambique? Interlocutor(a) 08: Não. Só levava uns gravetos, saía pra juntar lenha pra Dona... Ah, tô com o nome da velha na boca! Meu deu um branco na cabeça. (Entrevista realizada em 27 de janeiro de 2012; realce da autora). Não me estenderei aqui sobre a plausibilidade de correspondências entre o personagem das narrativas e eventos históricos, 34 uma vez que não é o foco deste texto. Nas diversas versões que a etnografia levantou, há um núcleo convergente formado pela morte induzida de Maçambique e seu sepultamento naquele lugar. A morte de Maçambique não é uma morte corriqueira, se o fosse não teria assumido a envergadura que assumiu na memória das parentelas negras que habitam o lugar desde, no mínimo, o final do século XIX. O que interessa à proposta de reflexão aqui rascunhada, é que Maçambique não é um ascendente qualquer. É um ascendente transformado em ancestral protetor da comunidade, a considerar que a ele se acendiam velas e se faziam pedidos e promessas: A pesquisa documental no Ofício de Registros Civis do município de Canguçu revelou que outros ascendentes importantes das parentelas negras que compõe a comunidade – ex-escravos ou filhos de escravas que faleceram na década de 1920 – foram sepultados no local, grafando-se nos registros de óbito que o mesmo já era conhecido como “Cemitério do Maçambique” desde, no mínimo, este período. O mais intrigante é que, não obstante Maçambique ser apresentado como um escravo em fuga, alguns interlocutores(as) apresentam uma relação de descendentes dele, embora com imprecisões na indicação do grau de parentesco deste ou aquele indivíduo. As taperas destes descendentes localizam-se, coincidentemente, nas proximidades do Cemitério. 34

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Interlocutor(a) 19: Só que depois, as pessoas todos os anos fazem limpeza no cemitério, e cruz de madeira com todos esses anos né, ela foi... Apodrecia embaixo, eles tiravam e botavam, ela foi ficando baixinha. E depois com o tempo, com as limpezas do cemitério, botaram essa cruz fora. Por causa que tinha aquela cruz grande, as pessoas vinham botar flor pros outros, sempre botavam flor para ele, acendiam vela. Tinha gente que fazia promessas pra ele, e vinham ali sempre. (Entrevista realizada em 29 de julho de 2010; comunidade de Maçambique; realce da autora). Interlocutor(a) 13: Pois eu não sei o certo, mas a mãe dizia que era aqui no Maçambique. Ela nos levava ali e dizia: “olha, aqui tá o teu avô e tua avó”. E eu até sei o lugar lá, ela nos levava no tempo em que a gente acendia vela, então nos levava lá no dia de finados pra nós acender vela. Eu e a outra minha irmã gêmea. [...] Pesquisador(a) 1: E faziam algum pedido pro Maçambique? Interlocutor(a) 13: Olha eu não lembro, mas talvez alguém fizesse, porque tinha uma cruz alta ali, iam lá, faziam promessa e acendiam vela. (Entrevista realizada em 22 de outubro de 2011; comunidade de Maçambique, realce da autora). A cruz de madeira, indicativa do sepultamento de Maçambique, persiste até hoje, talvez reposta com o decorrer dos anos. Vários integrantes da comunidade que afirmaram terem crescido solicitando a interseção de Maçambique perante intimações diversas (problemas de saúde, excesso ou ausência de chuvas, etc.), não o fazem mais por terem se tornado evangélicos, mas afirmam que ainda assim, atualmente, o homenageiam com flores, não mais velas. Mas outros tantos, inclusive muitos que migraram para as cidades das redondezas, não abrem mão da mediação deste ascendente coletivo remoto, o

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prova o precário, mas persistente, abrigo para velas construído com tijolos soltos justapostos, junto à cruz e à pedra que indicam o sepultamento. Na condição de antepassado, Maçambique é alçado ao estatuto de mediador entre distintos níveis de experiências: o mundo humano/social e as forças do mundo natural e sobrenatural que o atravessam e determinam seus desígnios. Ao se rogar a ele em situações diversas de infortúnios e, ao mesmo tempo, lhe serem dedicadas oferendas (velas e flores), lhe é restituída uma sobrevida, tornando-o parte constitutiva permanente do corpo social comunitário.35 Segundo Nei Lopes, Para o africano em geral e para o Banto em particular o ancestral é importante porque deixa uma herança espiritual sobre a Terra, tendo contribuído para a evolução da comunidade ao longo da sua existência, e por isto é venerado. [...] Por força de sua herança espiritual, o ancestral assegura tanto a estabilidade e a solidariedade do grupo no tempo quanto sua coesão no espaço (LOPES, 2011, p. 152). Para além de um símbolo de resistência, o Cemitério de Maçambique é um local do qual emana poder, sendo este acessado a partir da disposição de conectar-se a uma cadeia da vida que interliga entes situados em domínios ontológicos descontínuos. Narrar sobre Maçambique, visitar o cemitério e ofertar velas e flores a ele (assim como aos demais ascendentes), constitui um processo de educação da atenção (INGOLD, 2010) para os elos que conectam cada indivíduo a estes domínios e forças. A partir de um conjunto de práticas, este Segundo Lopes (2011), em vários povos bantos o infortúnio (climático, corporal, etc.) tem sua causalidade no abandono dos mortos por parte dos vivos, que são chamados a atenção pelo desleixo por meio do envio de aborrecimentos diversos, pois os espíritos dos mortos assumem lugar privilegiado na mediação do fluxo da energia vital na cadeia da vida. Os vivos precisam dos mortos, mas é a lembrança destes por parte dos vivos que possibilita que continuem parte desta cadeia. A relação entre vivos e mortos pode ser tanto benéfica como maléfica, a depender do caráter da relação entre eles. Sobre essa questão, ver, também, Munanga (1995, p. 63). 35

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passa a estar engajado e situado em uma teia de relações que se desdobra para além do social. Ao cemitério de Maçambique soma-se uma rede de outros cemitérios onde os integrantes da comunidade negra, que se apropriaram deste etnônimo, sepultavam ou ainda sepultam seus mortos. Pequenos ou grandes, comunitários ou familiares, localizados no âmbito do território tradicionalmente ocupado ou em localidades próximas ao local de onde ascendentes são originários, tais cemitérios sedimentam uma lógica de conexão entre sepultamento e parentesco em que sobressai o princípio da consanguinidade: enterra-se alguém onde estão seus avós, pais, tios, irmãos, mesmo que isso possa significar uma separação dos cônjuges no que tange ao local de enterramento. Há, nesse sentido, uma relação preferencial de determinadas parentelas com este ou aquele cemitério, que não necessariamente é o mais próximo da residência dos familiares diretos do(a) falecido(a). Comumente não é a proximidade geográfica que define o local de sepultamento, mas sim o caráter dos vínculos com outros falecidos sepultados neste ou naquele local, sobressaindo a lógica de pertencimento à parentela extensa. Maçambique não é uma excepcionalidade na evidenciação da figura do antepassado enquanto agenciador de nexos entre distintos domínios da realidade. O impedimento de frequentar os cultos católicos na igreja próxima, várias décadas após a abolição, levou as parentelas negras que compunham a comunidade de Monjolo a uma apropriação do espaço do cemitério que acolhia os despojos dos ascendentes – Cemitério dos Anjos36 – para a realização de suas rezas e rituais. Estes eram realizados embaixo de uma árvore que passou a ser denominada “igreja verde”, lugar de acolhimento, especialmente, do culto às almas: De acordo com pesquisas documentais realizadas nos livros de óbitos do Cartório de Registros Civis da localidade de Boa Vista, de São Lourenço do Sul, este cemitério vem sendo usado por ascendentes das comunidades negras desde, no mínimo, o final do século XIX. Os principais ascendentes que passaram pela escravidão e que foram passíveis de identificação foram sepultados neste local. Ressalta-se, porém, que ao contrário do Cemitério de Maçambique, que possivelmente era um local de sepultamento exclusivo de negros que passou a acolher pessoas brancas, aqui estamos diante de um cemitério inaugurado, ao que tudo indica, pela família branca Rodrigues de Quevedo, proprietária dos ascendentes escravizados das comunidades quilombolas das redondezas, que passou a acolher pessoas negras. 36

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Interlocutor(a) 1: É, aqui é o Cemitério dos Anjos. Aqui foi um dos primeiros cemitérios do tempo do antigos, dos Anjos. E aqui então aquelas pessoas antigas, mais antigas, naquela época não tinha igreja. A igreja, então, eles se reuniam, o vovô e a vovó, aquelas pessoas idosas se reuniam, reuniam um grupo de moços e moças, meninos e meninas, e tiravam [rezavam] o terço todas as seis horas. E dia de domingo, então quando eles queriam rezar aqui, eles rezavam aqui debaixo dessa árvore, então o nome dessa árvore aqui se chamou Igreja Verde. Então aqui eles se agasalhavam da chuva, do sol, quando era muito calor, dentro desse cemitério, e rezavam os terços e tiravam... Rezavam o terço até pras almas daqui do cemitério, também eles rezavam e agradeciam às almas do cemitério que já estavam mortas há anos.37 E no terço é que eles faziam assim. Pesquisador(a) 1: E este terço como é que era, era terço cantado ou era terço rezado da forma como se reza hoje? Interlocutor(a) 1: Não, era terço cantado naquela época e também terço rezado. Por causa que naquela época, aquele grupo de meninos e meninas, aqueles capelão começavam a ensinar, que dali daquele grupo, quando iam se formando eles já iam tirando professor ou professora de terço que era pra continuar, não deixar cair aquela tradição. Como temos hoje em dia que não caiu, desde aquela época não caiu aquela tradição, por causa que uns iam ensinado os outros. (Entrevista realizada em 16 de março de 2012; realce da autora; comunidade de Monjolo). Como pode-se depreender da narrativa acima, os cultos possuíam um caráter eminentemente sincrético: clara referência ao rosário (terço) e à instituição Na comunidade de Maçambique, menciona-se capelãs (mulheres) específicas, egressas da escravidão, como especialistas na reza de terços para as almas, mas eram rezados, periodicamente, nas residências dos familiares do(a) falecido(a) (RUBERT, 2014). 37

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igreja. Ao mesmo tempo, fortes elementos de culto aos mortos e adoração às almas possuem similaridades surpreendentes, seja com o culto aos ancestrais de algumas religiões africanas de matriz banto (SOUZA, 2002; LOPES, 2011; FARIA, 2006; THORNTON, 208; KIDDY, 2008), seja com a própria umbanda (SANTOS, 2010). Outro aspecto que chama a atenção é a afirmação de formas próprias de rezas que eram conscientemente zeladas pelos mais velhos enquanto um repertório a ser transmitido e o quanto elas serviam de expediente para afirmação de princípios de autoridade internos à comunidade negra. O prosseguimento da narrativa é um tanto elucidativo quanto à especificidade deste catolicismo negro, em que a mediação com o sagrado requeria uma intensa experiência ritual entre gerações alternas, viabilizando a mediação entre as esferas humana e espiritual que tinha como principais agentes os próprios antepassados: Interlocutor(a) 1: Quando não chovia muito, que era muito seco, custava vim chuva pras plantas, então aquelas pessoas idosas iam nas casas dos vizinhos, falavam com os vizinhos: ‘você me empresta o seu filho, a sua filha? Amanhã é sábado, ou é sexta amanhã, nós vamos lá no cemitério, vamos reunir os seus filhos, os pequenininhos, e nós vamos eu e a minha vizinha, nós somos os capelão, nós vamos lá rezar o terço com eles juntos, lá naquela comunidade e vamos levar um litro d’água branca tirada da fonte, da cacimba, da fonte, da fonte da água’. E traziam, vinham rezando de um trecho de lá de onde nós viemos, debaixo ali. Eles colocavam as crianças na frente e os capelães de atrás. As crianças vinham na frente conversando uns com os outros e aqueles dois capelães levavam o pensamento em Jesus Cristo e nos santos e começavam a rezar, tirar o terço. Tiravam o terço, rezavam, e faziam os seus pedidos e se reuniam aqui embaixo dessa árvore, com o nome de igreja verde. Essa árvore aí chama-se igreja verde por causa que não existia igreja, capela, nem no cemitério, nem igreja no cemitério, então eles se agasalhavam debaixo

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dessa árvore aí, da sombra, até das pancadas de chuva. Quando chovia, às vezes, que não era muito, eles se agasalhavam aqui e se reuniam aqui dentro do cemitério. Então aí eles rezavam o terço. Quando terminava de rezar o terço os capelães mandavam os meninos e as meninas aguar todas as sepulturas, iam aguando. E eles saiam na frente e elas vinham de trás. Quando saiam de dentro desse cemitério, elas saíam rezando, pedindo perdão pra Jesus e Maria e papai do céu também, que perdoassem eles que eles eram pecadores, os grandes. E as crianças não, não tinham perdão se iam embora. Quando chegava num certo trecho da estrada, que eles iam entregar os filhos na casa dos vizinhos, a chuva já vinha vindo de atrás. A minha avó sempre contava que às vezes ela vinha aqui, ela tomava banho. (Entrevista realizada em 16 de março de 2012; realce da autora; comunidade de Monjolo). Ressalta-se uma concepção de sagrado como imanente ao que comumente se denomina natureza e uma lógica do sensível a partir da qual a eficácia dos ritos é tributária de um forte senso de reciprocidade e circularidade: os antepassados acionam as forças da natureza relacionadas à chuva se receberem água nas suas sepulturas. Apropria-se de um corpus litúrgico católico, mas para rasurá-lo, deslocar seus elementos, interferir nos seus enunciados e introduzir outros entes, outras referências, inscrições e sentidos, outros nexos nesta cadeia vital da qual os mortos não só não estão ausentes, como assumem um papel central na sua atualização. Diante de um contexto marcado por rupturas arbitrárias em laços afetivos – objetivado, seja na escravidão, seja em um tempo de liberdade desafortunado –, cultuar os mortos emerge como uma negação do esquecimento, como um intenso investimento no processo de recriação de referências resguardadas no âmbito interno das fronteiras étnicas.

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Conclusão

Este ensaio não objetivou a reconstituição de sistemas religiosos na sua integralidade, de modo que vários aspectos, embora secundários, condizentes com o que comumente se denomina “catolicismo popular”, presentes nestas comunidades, não foram abordados. Seu caráter foi eminentemente especulativo, no sentido de gerar a indagação sobre a pertinência de se falar em um catolicismo negro para além das irmandades religiosas e suas formas expressivas e de algumas modalidades organizacionais contemporâneas, como os Agentes Pastorais do Negro e a Pastoral Afro-brasileira. A tentativa de mapear alguns “princípios gramaticais” subjacentes a determinadas práticas (MINTZ; PRICE, 2003), referindo-os a um possível legado africano, comporta o risco de reproduzir um projeto acadêmico desatualizado e já devidamente questionado no âmbito da Antropologia (SCOTT, 1991), embora plenamente acolhido, atualmente, na historiografia (SLENES, 1999; FARIA, 2007; SOUZA, 2002; KIDDY, 2008), o que aponta para a necessidade de estreitamento do diálogo entre as duas áreas. O que se objetivou foi o deslocamento da centralidade do catolicismo nas formulações sobre a religiosidade “tradicional” destas comunidades sem, contudo, negá-lo. As tessituras rituais e narrativas, presentes no âmbito destas comunidades, secretam outras possibilidades de contar a história, seja da escravidão, seja da pós-abolição. Enfim, o retraçar de outras genealogias, um pouco menos complacentes com as narrativas pedagógicas, traçadas não só, mas também no âmbito da Antropologia, que obliteraram por um período demasiado estas configurações cosmológicas. Aponta-se, nesse sentido, para a expressão de outros enunciados, fundamentados não no princípio de conciliação dos contrários, mas antes na plausibilidade de deslocamento por universos alternos, mas coexistentes.

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“Yomoja dele olódo, bàbá oròmi o!”: sensibilidades religiosas afro-brasileiras e representações patrimoniais das festas de Iemanjá em Pelotas e Rio Grande, RS Mauro Dillmann1 Carmem G. Burgert Schiavon2

Notas introdutórias

Este texto tem por objetivo analisar, na perspectiva patrimonial, as festas contemporâneas de Iemanjá das cidades de Pelotas, na praia do Laranjal, e do Rio Grande, na praia do Cassino (ambas cidades localizadas no sul do Rio Grande do Sul) buscando identificar e analisar elementos visuais, auditivos e piedosos, vinculados a expressões de religiosidade de matriz africana, evidenciando como tais sensibilidades religiosas configuram representações patrimoniais significativas para determinados grupos afro-religiosos destas cidades gaúchas. No município de Rio Grande – tal como de São José do Norte – a festa de Iemanjá possui reconhecimento oficial enquanto patrimônio cultural do Doutor em História, UNISINOS-RS. Professor Adjunto do Instituto de Ciências Humanas e da Informação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande – FURG-RS. 2 Doutora em História, PUC-RS. Professora Adjunta do Instituto de Ciências Humanas e da Informação e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande – FURG-RS. 1

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Estado do Rio Grande do Sul, pela Lei estadual 12.988, do dia 13 de junho de 2008.3 Este decreto tornou-se o principal mote para nossa análise das festas de Iemanjá a partir da perspectiva do patrimônio cultural desta expressão de religiosidade afro-brasileira. Cumpre, de imediato dizer que tais festividades religiosas foram por nós percebidas nas suas características culturais que assumem feições patrimoniais para determinados grupos. Optamos por destacar a participação dos sujeitos de modo plural, motivo pelo qual quando nos referimos a grupos afro-religiosos, estamos nos aludindo especialmente aos umbandistas e aos batuqueiros, não que estes sejam os únicos, mas são os mais representativos no culto ao orixá Iemanjá no Estado do Rio Grande do Sul. A Umbanda, religião brasileira baseada em manifestações espirituais (conforme pregação do ‘Hino da Umbanda’, uma religião que tem como propósito despertar os sentimentos de paz, amor e caridade), apoia-se em elementos católicos, indígenas, espíritas e também africanos. É a partir desta última referência que, na Umbanda, sobrevém o culto aos orixás, cultuados tanto como forças da natureza (mares, rios, ventos, fogo, terra) que determinam as vibrações dos espíritos enviados, como também representam os próprios nomes como as entidades se apresentam (cabocla Iemanjá, caboclo Oxóssi das Matas, caboclo Ogum Beira Mar, etc). Já o Batuque, apresenta-se como a religião ancestral africana de culto aos orixás por excelência, tipicamente gaúcha, pois em outras partes do país, é chamada de Candomblé ou ainda outras designações, caracterizado pelas rezas/cantos na língua iorubá ao som de tambores e de danças rituais em círculo (a “roda” de Batuque) no sentido anti-horário. No entanto, entre Batuque e Candomblé não se trata apenas de uma mudança na nomenclatura, mas também nas características peculiares do culto; no Batuque existem apenas doze orixás e formas particulares de “fundamentos” religiosos, Lei promulgada no seguinte teor: “Art. 1º - Fica declarada integrante do patrimônio cultural do Estado do Rio Grande do Sul, nos termos e para os fins do prevista nos arts. 221, 222 e 223 da Constituição do Estado, a Festa de Nossa Senhora dos Navegantes e de Iemanjá, celebrada, anualmente, nos Municípios de Rio Grande e de São José do Norte”. Disponível em http://www.al.rs.gov.br/filerepository/repLegis/arquivos/12.988.pdf. Acessado em 23 de fev. 2015. Dada a incipiência desta pesquisa, excluímos desta análise as referências às festividades de São José do Norte. 3

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baseados na oralidade, e distintos, em função das cinco diferentes “nações” existentes: Ijexá, Jeje, Nagô, Cabinda e Oyó (CORRÊA, 2006). Duas religiões distintas (Umbanda e Batuque), mas geralmente próximas, considerando que diversas casas de religião/terreiros e muitos religiosos realizam ambos os rituais em dias e momentos distintos, apresentando dois locais sagrados: o “peji” ou “quarto de santo” dos orixás no Batuque; e o congá, altar sagrado da Umbanda. Logo, tanto para a Umbanda, quanto para o Batuque, o culto ao orixá Iemanjá é muito popular e difundido. No panteão da mitologia africana, esse orixá representa a maternidade plena, sendo conhecida como “mãe” de todos, cuidadora e exigente para com os filhos. Identificada e cultuada no mar, Iemanjá seria o próprio mar salgado, os oceanos, daí a sua identificação como protetora de todos os trabalhadores vinculados ao mar, como pescadores, marinheiros, estivadores e portuários. O vínculo de Iemanjá com o mar é expresso na mitologia, nas representações imagéticas e também nas rezas em iorubá, tal como demonstra a citação apresentada no título deste texto, uma passagem inicial da primeira reza à Iemanjá cantada no Batuque gaúcho, nação Cabinda, e que pode ser traduzida como “Iemanjá, chega à casa, dona das águas” (VERARDI, 2010, p. 157). A popularidade da Rainha do Mar é justificada, em parte, em função da mídia, da música e da poesia nacionais que a retratam em sua maternidade e “proteção amorosa a todos aqueles que procuram construir com esta divindade uma relação de proximidade e devoção” (AGUIAR, 2014, p. 1163). No Brasil, o dia de Iemanjá é dois de fevereiro, quando os católicos celebram a devoção a Nossa Senhora dos Navegantes. 4 Na mitologia, Iemanjá é apresentada como a Grande Mãe dos demais orixás, simbolizada com elementos que unem o humano ao mar (barcos, peixes, remos, âncoras); mãe também de todos os humanos, Iemanjá, segundo a ordem de culto dos batuqueiros 5 da Uma análise do sincretismo entre Maria e Iemanjá foi realizada por Ari Pedro Oro e José Carlos dos Anjos (2009) para a festa realizada em Porto Alegre. 5 “Batuqueiro” é termo utilizado pelos próprios religiosos, seguidores do Batuque, na sua autorrepresentação. “Nação”, muitas vezes tomadas como sinônimo de Batuque (“Sou de Nação” / “Sou do Batuque”), diz respeito às variáveis do culto aos orixás no Rio Grande do Sul. Cada “nação”, que inicialmente designa uma procedência africana específica, indica, na prática, um modo sutilmente 4

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“nação cabinda”, é o décimo primeiro orixá a ser cultuado, e juntamente com os orixás Oxum e Oxalá, representam os orixás mais “velhos”, os mais experientes, comumente denominados pelos praticantes da religião como os “cabeças grandes”, a indicar a sabedoria, a calma, a paciência e a doçura. A partir destas aproximações entre duas formas de cultuar/venerar o orixá, nos propomos, neste texto, em primeiro lugar, a apresentar as festas de Iemanjá desenvolvidas por religiões de matriz africana em Pelotas e Rio Grande, justificando a escolha destas cidades para nossa análise e destacando alguns significados do culto afro-brasileiro à Iemanjá realizados na praia a partir de estudos de caráter histórico-antropológico. Na sequência, destacamos algumas reflexões teóricas a respeito do conceito de patrimônio cultural, buscando, especialmente, apontar para os elementos que constituem a dimensão patrimonial das festas. Em seguida, analisamos aspectos da sensibilidade religiosa e festiva, com destaque para os elementos visuais, auditivos e piedosos – ou seja, suas cores, sons e falas (da festa e sobre a festa) e elementos de devoção – configuradores de representações patrimoniais que se fazem presentes nestas festas de Iemanjá. Tal análise parte das seguintes opções metodológicas: o exame crítico de imagens fotográficas realizadas nas festas, entre os dias 01 e 02 de fevereiro do ano de 2015, a observação participante dos autores nos mencionados eventos festivos e a análise de duas entrevistas gravadas, uma na festa e outra sobre ela, com sujeitos que nos foram testemunhas desta vivência religiosa e festiva. Um dos primeiros percursos metodológicos de análise das festas de Iemanjá no seu sentido cultural e patrimonial diz respeito ao registro fotográfico das mesmas. A visualidade nos serve não apenas como fonte do nosso discurso, mas também como testemunho passível de interpretações, “construídas” a partir do nosso olhar num contexto de problematização de pesquisa acadêmica.6 diferente de cultuar os orixás e manter seus “fundamentos” religiosos (todos baseados na oralidade). O Batuque se subdivide, então, nas seguintes nações: Ijexá, Jeje, Nagô, Cabinda, Oyó. Sobre o assunto, ver mais em: CORRÊA, 2006. 6 Um interessante livro da fotógrafa Mirian Fichtner, intitulado Cavalo de Santo “traz imagens da ritualística, de oferendas, de danças, de objetos sagrados, de apresentações públicas, de festas populares, de espaços considerados sagrados ou sacralizados, de devotos e iniciados, de religiosos incorporados”, entre outros (ver resenha em DILLMANN, RIPE, 2012, p. 412).

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Captar as sensibilidades festivas e devotas implica considerar as expressões manifestadas na materialidade, mas também no silêncio, no não-dito, no intangível dos sentimentos, dos pedidos de graças e das relações íntimas com o sagrado, o que implica uma aproximação do pesquisador no melhor sentido da metodologia antropológica, visando a compreender como os devotos e participantes da festa representam suas práticas, sua importância cultural neste contexto específico. Cabe ressaltar que a aproximação do pesquisador, no entanto, não autoriza privilégio de um “lugar de enunciação” e nem garante autorização religiosa (ORO; ANJOS, 2009, p. 08), o que, de fato, não foi nossa intenção. Nossa aproximação com os devotos/protagonistas pretendeu tão somente captar as percepções e representações das festas enquanto bens patrimoniais, neste caso, as celebrações religiosas relativas ao culto e aos modos de devotar Iemanjá. No sentido antropológico, a observação participante apresentase como metodologia apoiada no ver, no ouvir, no “estar junto” e no registrar para compreender singulares aspectos da vida humana, produzindo significações, hipóteses, proposições, explicações sobre determinadas práticas culturais (OLIVEIRA, 2006). Através dessa metodologia foi possível presenciar e compreender, no tempo presente, as históricas manifestações de sensibilidade cultural religiosa afro-brasileira nas festas de Iemanjá. Complementando os registros do ver e do ouvir das manifestações de fé, utilizamos de dois relatos a partir de entrevistas 7 realizadas em 2015. Uma delas realizada em Pelotas, na tarde do dia 02 de fevereiro de 2015 com o religioso Babalorixá8 Aurélio de Oxalá (Aurélio Ricardo de Aquino Primeiro), de 36 anos, natural de Pelotas (RS); a outra, na praia do Cassino, na noite do dia primeiro de fevereiro, com o umbandista e devoto de Iemanjá, Jorge Luiz Benites, de 48 anos, natural da cidade de São Sepé (RS); as perguntas realizadas foram direcionadas ao As gravações e as transcrições destas entrevistas encontram-se disponíveis para consultas no Arquivo do Centro de Documentação Histórica (CDH), da FURG-RS. 8 No Batuque, Babalorixá (pai-de-santo) e Ialorixá (mãe-de-santo) é a designação dada não apenas aos responsáveis por uma casa de religião, mas a toda pessoa que cumpriu uma série de preceitos religiosos para com o seu orixá e que, assim, é considerada “pronta” e apta a conduzir religiosamente outros sujeitos. 7

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sentido e significado do culto e da festa de Iemanjá, o que nos revelou não apenas experiências individuais, mas compreensões e percepções representativas de um grupo religioso.9 Por fim, cabe mencionar que esta pesquisa está pautada na análise das alegorias patrimoniais a partir de uma perspectiva histórico-antropológica que se situa no tempo presente. O historiador Roger Chartier (2006, p. 215) alertou que “o historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e, portanto, partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais”. Assim, enquanto pesquisadores e participantes da festa, contemporâneos do objeto de estudo, é nitidamente menor “a distância entre a compreensão” que temos de nós mesmos e a “dos atores históricos”. Essa pesquisa é, desse modo, portanto, marcada, como expressou Chartier, pelo “encontro com seres de carne e osso” que nos são contemporâneos e nossas fontes são abundantes na medida em que estamos interessados nas manifestações do sonoro, do visual, das performances, das vozes, das maneiras e gestos por nós apreendidos em trabalho de campo, de observação participante. Realizamos, então, do ponto de vista histórico, uma análise de práticas e representações, cuja preocupação e problemática de investigação estão por nós ajustadas na construção de “observatórios” plenamente “ajustados”. Ao considerarmos as festas de Iemanjá enquanto bens culturais que evidenciam alegorias do patrimônio imaterial, estamos entendendo que refletir a partir dos seus significados, das representações simbólicas, em suas dimensões religiosa, cultural, política, social e patrimonial, auxilia a expressar um conhecimento sobre a festa e sobre as diferentes formas de festar que, dada a dinamicidade cultural, é constantemente (re)criada e (re)promovida, mas continuamente mantida, pois assume importância cultural patrimonial para grupos afro-religiosos e devotos leigos. Do mesmo modo que, ao nos Embora tenhamos realizado tais entrevistas como meio de configuração de aportes documentais para nossa pesquisa, não estamos nos valendo da metodologia da História Oral, por dois motivos: essa metodologia requisitaria a explicitação dos distintos procedimentos de trabalho que estão além da entrevista em si e por não termos uma preocupação em refletir sobre a memória através da oralidade. 9

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aproximarmos do nosso objeto – a festa de Iemanjá – estamos apreendendo a “presença incorporada do passado no presente” e na configuração dos grupos que constituem a sociedade local (CHARTIER, p. 216). Nossa narrativa, constituída na transversalidade dos discursos histórico, antropológico e patrimonial, pretende-se um, dentre tantos outros possíveis, discurso verdadeiro – mas condicionado pela própria historicidade das condições de produção dos discursos – a respeito dos significados simbólicos dos bens culturais e patrimoniais afro-religiosos do sul do Brasil. Após esta descrição dos objetivos, e dos referenciais teóricos e metodológicos empregados, finalizamos estas notas introdutórias destacando que a análise comparativa das festas nestas duas cidades não tem a intenção exclusiva de apontar peculiaridades, similitudes e diferenciações, mas de compreender a dinâmica festiva em uma perspectiva de maior abrangência na realidade social e cultural destas cidades, por onde circulam diferentes grupos de religiões de matriz africana, muitas vezes pertencentes a uma mesma ancestralidade10 (família religiosa / família de santo) ou ainda que partilham de modo muito próximo de relações sociais e religiosas, como a devoção e culto à Iemanjá, ainda que por sujeitos advindos de outras religiões.

Festas em Pelotas e Rio Grande e o culto afro-brasileiro à Iemanjá Entre os religiosos de matriz africana, no Rio Grande do Sul, é comum a consideração de que o “berço” do Batuque estaria nas cidades de Rio Grande e Pelotas, dado ser o porto riograndino nos séculos XVIII e XIX, rota marítima do comércio de escravos e, portanto, ponto de entrada de inúmeros negros que foram escravizados em ambas as cidades e que traziam consigo suas crenças ancestrais. Sem a pretensão de enfatizar uma busca das origens históricas dos cultos de religiões de matriz africana, queremos apenas justificar os vários fatores

Segundo Maria Lúcia Montes (2012, p. 46), a organização interna dos terreiros funda-se na reconstituição de “uma ordem de parentesco mítica à qual os indivíduos se integram por meio da iniciação passando a pertencer a partir de então a uma família de santo”. 10

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que nos conduzem a analisar as festividades religiosas de Iemanjá nestas duas cidades. Cidades banhadas por águas, do Oceano Atlântico e da Laguna dos Patos, Rio Grande e Pelotas, em função destas paisagens naturais, foram lócus privilegiados do culto a Iemanjá, cuja festa só ganhou evidência, em ambas cidades, na segunda metade do século XX, dada as perseguições – inclusive políticas – sofridas pelas religiões de matriz africana até este período no Brasil. Em Pelotas, a festa de Iemanjá acontece consecutivamente há quase sessenta anos (59ª festa em 2016) e constitui uma referência cultural importante aos grupos religiosos de matriz africana, pelas peculiaridades das formas do festejar, como destacaremos mais adiante.11 Em Rio Grande, a festa ocorre há 41 anos e possui grande repercussão e popularidade, por reunir devotos de várias cidades gaúchas, diferentes estados e países vizinhos, como o Uruguai e a Argentina. Evidentemente, as festas de Iemanjá não são celebradas apenas nestas duas cidades, mas em várias outras do Rio Grande do Sul, sejam elas com praias banhadas pelo Oceano, pela Laguna dos Patos ou por outros rios. Além das praias do Cassino (Rio Grande) e do Laranjal (Pelotas), as festas se estendem por todo o litoral gaúcho, dentre as quais destacamos aquelas realizadas no litoral norte, praias de Tramandaí, Cidreira e Capão da Canoa e as no litoral sul, Mar Grosso (São José do Norte), Hermenegildo (Santa Vitória do Palmar). Para os religiosos de matriz africana, embora Iemanjá seja um orixá fundamentalmente cultuado no mar salgado, na ausência deste, é possível cultuar e ofertar a divindade em praias de água doce, como é o caso da praia do Laranjal, em Pelotas, ou do Rio Guaíba, em Porto Alegre. Todavia, o reconhecimento político da festa em Rio Grande, como um patrimônio cultural do Estado, é um demonstrativo da vitalidade da mesma e da mobilização popular, considerando as hipóteses de que, pelo menos, nos últimos Cumpre destacar que apenas no momento de finalização deste artigo, tomamos conhecimento do seguinte trabalho acadêmico recentemente defendido na Universidade Federal de Pelotas: CAMPOS, Isabel Soares. Os prazeres do Balneário, sob as bençãos de Yemanjá: religiões afro-brasileiras e espaço público em Pelotas (RS). Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Federal de Pelotas, 2015. 11

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cinquenta anos, milhares de pessoas comparecem à praia do Cassino com diferentes e diversos objetivos: manifestações de devoção e fé, admiração, passeios turísticos, curiosidade, comércio. Há, enfim, nas duas cidades, uma rede de relações diversas para além dos elementos da esfera religiosa que movimentam recursos de toda ordem, mas fundamentalmente, há um núcleo social para quem a festa adquire sentido peculiar de fé, de mobilização dos sentimentos religiosos e de afetos culturalmente constituídos. Portanto são essencialmente os sujeitos representantes dos cultos afrobrasileiros à Iemanjá que estruturam as festas nestas cidades. A chegada não apenas do dia 02 de fevereiro, mas de um período específico do ano (a segunda quinzena de janeiro) vem acompanhado de preparação prévia, combinações, arranjos, planejamentos, parcerias, na estruturação do sentido coletivo da religiosidade festiva. Nestas festas religiosas afro-brasileiras à Iemanjá, ficam expressas relações de intimidade com o sagrado, que são sempre atualizadas, como tão bem destacou a historiografia que aponta para as relações íntimas que os brasileiros mantinham e mantêm com a religiosidade.12 O antropólogo Daniel Francisco de Bem (2012, p. 38), em sua tese de doutoramento, sintetizou bem o funcionamento e a organização dos rituais de culto à Iemanjá no Rio Grande do Sul e especialmente em Porto Alegre: é de praxe entre batuqueiros e umbandistas levar oferendas de flores, frutas, bebidas, doces, perfumes, outros cosméticos e objetos como pentes e espelhos para serem entregues no mar, ou na impossibilidade de se ir até ele, em outro curso d’água mais próximo e considerado legítimo dentro do grupo religioso da cidade ou região; no caso porto-alegrense, é geralmente em alguma praia do centro (a ponta do Gasômetro) ou do sul (Ipanema) do lago (rio) Guaíba que se realizam esses ritos. Essas oferendas podem ser prestadas individualmente, ou em conjunto, organizadas pelo pai-de-santo de um terreiro específico, que geralmente monta uma ‘excursão à praia’, à qual se 12

Veja-se nesse sentido, por exemplo, OLIVEIRA; KATRIB, 2010, p. 171.

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juntam em peso os membros do terreiro. Essas oferendas coletivas comumente também possibilitam a realização de giras rituais (cerimônias de música, canto e dança de transe). A esta síntese do ritual de culto à Iemanjá, é interessante reforçar que nas religiões africanistas, sobretudo no Batuque, as transmissões do conhecimento do culto e das formas de devotar ocorrem através da oralidade e da observação, apresentando-se como um importante e fundamental preceito para a manutenção das tradições e para os significados dos saberes e fazeres que atribuam sentido às heranças transmitidas pela família religiosa. Mesmo assim, e como a festa é de todos e para todos, pode-se dizer que se recria a cada ano, que se reinventa mantendo “acesa a tradição das comemorações, mesmo que cada comunidade estabeleça o seu modo peculiar de viver o tempo da festa e da fé” (OLIVEIRA; KATRIB, 2010, p. 171). Nesse sentido, como destacaram Ari Oro e José Carlos dos Anjos (2009, p. 100), a devoção aos orixás na tradição afro-brasileira é caracterizada por um “regime rarefeito de palavras”, sendo intensas as oferendas e “coisas oferecidas”. No Batuque “não há proselitismo”, e o “aprendizado se faz (...) observando preparos rituais”, sendo a transmissão dos saberes através da oralidade “essencialmente constituída de preceitos que interditam maus encadeamentos e solicitam posturas adequadas”. A festa a Iemanjá, então, é uma das ocasiões propícias para o aprendizado das “coisas de religião” e para a manutenção dos “fundamentos” baseados nos “preceitos”. Os preceitos são carregados de tradição e funcionam “como elos entre ícones, garantindo a cadeia de identificação virtualmente interminável das ‘coisas de religião’ (ORO, ANJOS, 2009, p. 101) repassadas de “pai”/“mãe” para filho(a) de santo. Embora estes “preceitos” e “fundamentos” sejam sabres restritos aos “herdeiros” e pelas famílias de santo, as religiões afro-brasileiras ganham, na atualidade, cada vez mais difusão e visibilidade. Para o antropólogo Daniel de Bem (2012, p. 53), na festa de Iemanjá a multidão que é atraída fica absorta “no espetáculo da publicização” aproximando “aquilo que em outros momentos é tão distante, por vezes, parecendo inacessível”. Segundo Maria Lúcia Montes (2012, p. 45), existe crescente legitimação das suas práticas e aceitação cada vez mais

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ampla. Vale acrescentar que tal legitimidade se dá em termos acadêmicos, especialmente de pesquisa antropológicas, sociológicas e históricas, pois, na sociedade gaúcha, ainda estão evidenciados os fortes fatores de diversas ordens de intolerância que rondam as religiões de matriz africana. 13 Um elemento que corrobora para a permanência das práticas intolerantes na contemporaneidade foi a depredação total do santuário e da imagem de Iemanjá da cidade de Pelotas, no dia 07 de abril de 2015, quando foi ateado fogo à gruta que mantém a imagem santa, no Balneário dos Prazeres. O ato abalou os religiosos que se uniram, notadamente através da Federação de Umbanda e Cultos Afro-brasileiros de Pelotas, reivindicando atenção e apoio junto à Câmara de Vereadores da cidade, para onde a imagem, completamente danificada, foi levada no dia 10 de abril. Enquanto era restaurada, a Federação Afro-Umbandista Espiritualista, do município de Canoas, realizou doação de outra imagem de Iemanjá para, provisoriamente, ocupar o espaço da gruta. No dia 05 de dezembro de 2015, oito meses depois, concluído o trabalho de restauro, realizado por Álvaro Seara, muitos religiosos se reuniram no centro da cidade de Pelotas (Calçadão da Andrade Neves esquina Rua Sete de Setembro), apresentando a nova imagem à população. Com flores, bandeirinhas azuis e uma grande faixa com uma pomba branca, seguiram em carreata/procissão até o Balneário dos Prazeres. O esforço realizado pelos afro-religiosos no sentido de restaurar a imagem e manter o santuário na praia, demonstra ainda a importância e o significado patrimonial que esta referência religiosa assume para determinados grupos. Vistos, portanto, esta breve contextualização das festas de Pelotas e de Rio Grande, as especificidades de culto de religiões afro-brasileiras à Iemanjá e seus simbolismos no Rio Grande do Sul, passamos a destacar as referências teóricas que configuram festividades religiosas enquanto patrimônio cultural.

13

Sobre intolerância religiosa em Pelotas/RS, ver CAMPOS; RUBERT, 2014.

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Pensando patrimonialmente a festa

Atentos para as festas enquanto manifestações culturais vivas e dinâmicas, buscamos compreensões críticas e interdisciplinares que pensam a festa no seu significado patrimonial. A noção básica de patrimônio cultural parte do entendimento de bens culturais “reconhecidos por uma sociedade como representativos da sua história e da sua produção” (SANTANA, 2009, p. 35). Tais bens culturais seriam todas aquelas manifestações de expressões humanas “às quais são atribuídos significados, funções e valores que identificam e personalizam uma comunidade”, de tal modo que seu valor simbólico só tem sentido em determinado contexto (SANTANA, 2009, p. 43). De outro modo, a categoria “patrimônio” pode ser utilizada e percebida como uma dimensão presente em qualquer forma de vida sociocultural, cuja existência pode ser justificada, não pelo caráter identitário, mas pelas mediações entre o social e o cosmológico (GONÇALVES, 2014, p. 11). O antropólogo José Reginaldo Gonçalves (2015, p. 216) pensa patrimônio como sistema “de relações sociais e simbólicas capazes de operar uma mediação sensível entre o passado, o presente e o futuro”. Este pesquisador está preocupado com as formas como os grupos se situam nas suas relações com a ordem cosmológica, em interagir com “as diversas entidades do universo” (deuses, mortos, antepassados, parentes, plantas, animais, etc.) que, “do ponto de vista de suas cosmologias”, existem “na medida em que fazer parte dessa extensa rede de relações de troca” (GONÇALVES, 2015, p. 214). Práticas religiosas como festas e celebrações, embora reconhecidamente possuidoras da dimensão imaterial, são ações sociais também concebíveis em sua dimensão física. Do mesmo modo, a materialidade agrega sentimentos, práticas, representações, imaginários. Segundo Laurent Lévi-Strauss (2003, p. 77), “a discussão em torno do tema da salvaguarda ao redor do mundo introduziu e legitimou a ideia de que patrimônio material e patrimônio imaterial não estão separados”. Portanto, são as manifestações culturais de um grupo social, múltiplas, complexas, interdependentes e compartilhadas. O entendimento de cultura a partir da concepção antropológica permite entendê-la, com Clifford Geertz (2008), como dimensão simbólica da ação social, ou, como demarcou a

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antropóloga Eunice Durham (2004), como fenômeno, como processo dinâmico e permanente de reorganização das representações na prática social. Enquanto expressão cultural tida como patrimonial, as festas de Iemanjá podem ser percebidas como expressões culturais que “se fundamentam nas tradições transmitidas oralmente ou a partir de expressões gestuais que podem sofrer modificações no decorrer do tempo por meio de processos de recriação coletiva” (FUNARI; PELEGRINI, 2008, p. 62), dado o processo histórico e dinâmico dos fenômenos culturais. Como vimos, as práticas religiosas de matriz africana são baseadas na oralidade e as festas, embora tradicionais, sofrem modificações ao longo do tempo. Estas expressões dinâmicas das festas de Iemanjá tornam-se claras quando pensamos que a sociedade não é portadora de uma cultura homogênea e isolada, mas sim, de uma cultura dinâmica, constantemente transformada – com ou sem embates e disputas – na prática social. Segundo Joël Candau (2011, p. 48), “a tradição pode se dar a ver na religião, festas, comemorações, monumentos” e, mais especificamente, o “discurso patrimonial se funda com frequência sobre o apelo à sobrevivência de uma tradição, de uma identidade local, regional ou nacional”. Todavia, retomando a ideia da dinâmica da cultura e da própria história, tem-se clareza de que as identidades não são estanques e que “os valores patrimoniais e os juízos de preservação se alteram com o passar do tempo, pois ambos são construídos social e historicamente” (FUNARI; PELEGRINI, 2008, p. 63). Portanto, são múltiplos pontos de vista, interesses e os valores que definem a relação dos sujeitos com os patrimônios. Poder-se-ia até mesmo questionar, conforme apontou José Reginaldo Gonçalves (2015, p. 214), se – para o caso das festas de Iemanjá – as experiências individuais e coletivas de festejar e cultuar a santa por parte dos grupos religiosos afro-brasileiros são acionadas como elementos de “identidade” que justifiquem patrimonialização. Crítico em relação ao debate sobre patrimônios que busca apenas “descobrir, defender e preservar ‘identidades’”, Gonçalves (2015, p. 213-214) destaca que “os patrimônios são menos expressão de identidade do que meios de produção de determinadas formas de autoconsciência individual e coletiva”.

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Antes de defender sua “identidade”, estes grupos religiosos estariam mais preocupados em situar suas relações com a ordem cosmológica e em interagir com a natureza e com a divindade. O discurso da “identidade” como um problema “é, na verdade, uma preocupação presente nos discursos e políticas de patrimônio que lhes são impostos quando (...) se busca preservar seu ‘patrimônio’”. Mas, evidentemente, essa consciência de “identidade” também pode “ser partilhada por eles” quando eles “se apropriam dos modernos discursos e políticas de patrimônio e se organizam (...) para defender o que chamam de sua ‘cultura’”. A categoria patrimônio carrega consigo valor de testemunho, ao qual a simples contemplação não basta, pois é preciso compreender seu valor, é preciso interpreta-lo, compreender o discurso da patrimonialização. Françoise Choay, embora referindo-se a patrimônios materiais, destacou que “o culto que se rende hoje ao patrimônio histórico deve merecer de nós mais do que simples aprovação. Ele requer questionamentos”. A autora destacava ainda que o patrimônio se constitui em um elemento revelador de uma sociedade e de questões nela presentes (CHOAY, 2001, p. 12). Desse modo, as festas a Iemanjá nas cidades de Rio Grande e Pelotas, são tomadas sob o prisma do discurso ocidental a respeito do patrimônio, ou seja, como representações patrimoniais que revelam aspectos da cultura religiosa afro-brasileira, significativas para determinados grupos, mas experenciados não sem algumas tensões sociais. No entanto, não pretendemos fazer apologia da patrimonialização, por considerarmos que, para os religiosos das duas cidades, festejar Iemanjá não se configura, necessariamente como um contorno identitário legitimador de processos de patrimonialização – embora em Rio Grande a festa já seja um patrimônio estadual consagrado –, mas como uma prática obrigatória, ritual, religiosa, sagrada, entendida como uma relação com a divindade marcada por ofertar presentes e receber axés. As homenagens a Iemanjá seguem como obrigações feitas por pessoas “do santo” e as relações com os expectadores, na praia, seguem categorias religiosas, pois a praia, nesse dia, é o universo das religiões afro-brasileiras. Portanto, a noção de identidade não constitui o elemento central, mas sim a percepção individual e coletiva de trocas com o orixá. Entretanto, essa concepção não impede que seja assumida

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positivamente a condição de patrimônio imaterial e que se use politicamente a noção de “identidade” para garantir a reprodução da festa e sua legitimidade como um direito de expressão pública da fé.14 Especialmente em Rio Grande, por se configurar enquanto patrimônio, a festa não adquire importância apenas para religiosos, mas para a sociedade como um todo. A festa de Iemanjá torna-se uma identidade da cidade, uma referência cultural da cidade, na qual, no dia 02 de fevereiro, com a heterogeneidade social, percebe-se a evidente correspondência de diferentes atribuições de valores à festa. No entanto, mais importante é perceber que, tanto em Pelotas quanto em Rio Grande, a festa de Iemanjá é constituidora e mediadora do universo religioso afrobrasileiro e não existe separadamente dos sujeitos que a promovem e a cultuam. Portanto, a noção da festa enquanto “patrimônio” pode ser entendida não apenas em termos jurídicos, mas na formulação do culto das religiões de matriz africana à Iemanjá.15 Para além da identidade e da importância social atribuída à festa, há de se considerar também o crescimento do turismo como elemento de valorização cultural dessa comemoração, que tal como a festa do Senhor do Bonfim, na Bahia, acaba sofrendo um “processo de espetacularização” passando a ser vistas como exóticas,16 capazes de se transformarem em “atrativos turísticos a serem comercializados” (SANTANA, 2009, p. 33). Os elementos festivos de Iemanjá são estruturantes de alegorias do patrimônio imaterial, tendo como ponto importante a consideração de análise das “coisas” e da “alma das coisas”.17 Ou seja, as festas podem ser compreendidas patrimonialmente nos seus enunciados práticos, a partir das sensibilidades expressas pela visualidade, pelas expressões auditivas e pelas manifestações de Reflexão amplamente inspirada em GONÇALVES, 2015, p. 215. Nesse sentido, veja-se a apresentação do artigo de Nina Bitar sobre o acarajé da Bahia feita por José Reginaldo Gonçalves (2014, p. 12). 16 Tal exotismo pode ser compreendido, historicamente, pelo “complexo processo de reelaboração pelo qual passaram as religiões afro-brasileiras sob as condições da escravidão que, pela repressão (...) as ajudaram a manter-se encerradas na ordem do privado, fechadas sobre si mesmas, acentuando as características do segredo dessas religiões iniciáticas” (MONTES, 2012, p. 46). 17 Expressão tomada de empréstimo do livro de José Reginaldo Gonçalves (2014). 14 15

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piedade religiosa dos e nos representantes dos cultos afro-brasileiros nos dias da festa. São esses elementos que configuram as representações patrimoniais que analisaremos na sequência, pois expressam o sentimento do patrimônio, o significado do seu simbolismo, as relações estabelecidas entre os sujeitos religiosos e a materialidade da festa, a sua imaterialidade, enfim, que possuem significados alegóricos que provocam, com suas representações, apelos aos sentidos e à imaginação.

Cores, sons e devoção: as representações patrimoniais

Centramos agora nossa atenção nos objetos visíveis (as imagens santas, as oferendas, as vestimentas), nas práticas (procissões, danças, cânticos, comércio) e nas manifestações religiosas (rezas, invocações, pedidos, incorporações), contextualizando-as ao lugar/território onde se realizam, as praias do Laranjal e do Cassino, num tempo específico, o 02 de fevereiro. A justificativa para a festa ocorrer na praia está na consideração deste ambiente natural como a “casa” e o “reino de Iemanjá”, como se pode perceber nas palavras do Babalorixá Aurélio de Oxalá: lá seria o reino de Iemanjá. Porque o orixá é a natureza. Então, cada orixá representa a natureza e a Iemanjá, sem dúvida nenhuma, representa a praia. A praia de água doce, a praia de água salgada, representa o mar, representa a liberdade. Então, é como se nós fôssemos na casa da Iemanjá para darmos os parabéns para ela. Então, a gente foi no reino dela, onde ela nos abraça e acolhe todos os nossos pedidos. Além de ser o “reino” da santa, é na praia, na areia e nas águas, segundo análise do pesquisador Júnior (2014, p. 124), que “os corpos expressam, através das danças sagradas, seus sentimentos, seus desejos, seus murmúrios e seus enunciados”. É o local do contato entre os devotos e as divindades, daqueles que foram comungar a fé e a festa, cultuando a ancestralidade com liberdade.

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É no universo das águas doces da Laguna dos Patos que ocorre a Festa de Iemanjá na cidade de Pelotas, quando, no ponto alto da festa, meio da tarde do dia 02 de fevereiro, devotos e religiosos carregam e acampanham a imagem da santa, devidamente paramentada, pelas águas do Balneário dos Prazeres, popularmente conhecido como praia do Barro Duro.18 A imagem de Iemanjá, decorada com uma longa peruca de cabelos pretos naturais, com uma coroa sobre a cabeça, com colares de pérolas e com um manto azul configuram o aspecto visual da santa, elementos dos simbolismos das religiões afro-brasileiras. Há de se destacar que a representação imagética de Iemanjá veste comumente as cores azul claro e branco e, por estar associada à Virgem Maria, justifica-se a cristalização da imagem em forma de uma santa branca, e não negra, como poder-se-ia pensar ao se relacionar o culto aos orixás com a ancestralidade africana. Quando se observa a imagem 1, da festa de 2015, é possível perceber que os fieis jogam água sobre a imagem da santa que segue carregada em uma embarcação azul amplamente decorrada com flores brancas e azuis.19 O jogo das águas configura-se enquanto um ritual, uma reverência, uma saudação, uma comemoração. Os religiosos carregam a imagem por vários metros adentro da lagoa ao mesmo tempo em que segue ao seu encontro a embarcação católica contendo a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, vinda da colônia de pescadores chamada Z3. É este o momento do encontro das santas, seguido de alegria, euforia e estrondo de muitos foguetes. O visual, o auditivo e o piedoso ganham contornos máximos nesta sensível e peculiar procissão que não tem muito tempo de duração, nem um grande espaço a percorrer. É o momento, nas palavras de Farinha e Carle (2014), considerado o mais esperado do dia festivo, comemorado com fogos e aplausos. Em Pelotas não há ampla oferta de oferendas na pequena gruta da santa, pela evidente falta de espaço físico e local adequado de culto, como se percebe no relato do pai-de-santo Aurélio de Oxalá, que reclama falta de apoio do poder Algumas menções à festa de Iemanjá em Pelotas, ainda que mais a partir da festa de Nossa Senhora dos Navegantes, pode ser conferida em FARINHA; CARLE, 2014 e KOSBY, 2008. 19 Em outro momento, realizamos um ensaio visual analisando imagens das festas de Iemanjá de Pelotas e Rio Grande do ano de 2015 (DILLMANN; SCHIAVON, 2015). 18

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público municipal para a garantia de infraestrutura e da própria realização da festa na praia do Laranjal: As dificuldades que a gente encontra hoje são os descasos do poder público de não nos dar uma infraestrutura, de não nos dar um apoio, de diminuir cada vez mais o espaço, de criarem problemas para nós podermos cultuar. (...). Então, falta uma lei, uma específica para a gente poder cultuar a Iemanjá no dia dela, na praia. Falta um local adequado. Hoje, temos um local onde nós umbandistas e africanistas, a gente prepara. Fica no Balneário dos Prazeres, mais conhecido como Barro Duro, na cidade de Pelotas. Que há 58 anos é feita a festa lá. E há 58 anos é o povo africanista e o povo umbandista que prepara o lugar, tira dinheiro do seu próprio bolso para pintar e organizar o espaço. E o poder público só vai lá nos dar um auxílio, quando vão! Então é muito importante cultuar Iemanjá no ambiente dela, na natureza e, também, é muito importante a gente ter um local específico e garantido por lei, para ali praticar as nossas oferendas, praticar a caridade, praticar uma roda de umbanda, praticar uma roda de nação. Percebe-se que, com restrição financeira, a manutenção do espaço sagrado fica a cargo dos próprios religiosos, e sem a garantia de um local adequado para a realização de seus cultos (suas rodas de Umbanda e de Batuque) e para a deposição de suas oferendas. Assim, os afro-religiosos – representado neste texto pelo relato de Aurélio de Oxalá – reconhecem criticamente as dificuldades do culto e a ausência de lei “específica” para a garantia da continuidade do culto àIemanjá. O Babalorixá Aurélio assim justifica o deslocamento de muitos religiosos de Pelotas para Rio Grande durante as comemorações de Iemanjá que estavam sendo organizadas em 2015: Filiadas à federação, existem hoje, aproximadamente, 150 casas de religião e só 15 participaram, porque acharam justo privilegiar a festa no Cassino, em Rio Grande, ou em outras

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partes do litoral, por saberem que no Barro Duro, onde é cultuada a festa de Iemanjá em Pelotas, ia ser novamente um descaso, não ia ter local suficiente, não ia ter banheiro para o pessoal, não ia ter segurança, não ia ter infraestrutura... O qual teve, mas não à altura do que os africanistas merecem. Esse relato vem ao encontro das notícias veiculadas pelo jornal Diário Popular no dia 31 de janeiro de 2015, que também anunciava as incertezas quanto à efetiva realização da festa, em função do retardamento da aprovação da administração pública municipal, que teria vindo carregada de restrições: Repetindo o que aconteceu no ano passado, em Pelotas, a organização da festa realizada no Balneário dos Prazeres, nos dias 1º e 2, começou cercada de incertezas. Uma autorização de serviços emitida pela Secretaria de Qualidade Ambiental (SQA) na última quarta-feira (28), poucos dias antes do evento, determinou uma série de condições e restrições. E a Federação Sul Riograndense de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros precisou se apressar para cumprir.20 A intenção dos organizadores da festa estava em receber a liberação da orla da lagoa no Balneário dos Prazeres, por parte da prefeitura de Pelotas, entre os dias 25 de janeiro e 03 de fevereiro, uma vez que havia necessidade de “montagem e desmontagem de acampamento, já que a expectativa era de receber mais de 40 mil adeptos de Iemanjá de toda a Região e de outros estados”.21 No entanto, o pedido “foi respondido apenas no dia 28, com uma série de exigências” e a festa teve que ter sido organizada em meio às incertezas e às pressas. Diário Popular, 31 de janeiro de 2015, Disponível em http://www.diariopopular.com.br/tudo/index.php?n_sistema=3056&id_noticia=OTUyNTI=&id_ area=Mg==. Acessado em 10 de dezembro de 2015. 21 Idem. 20

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Para o Secretário de Qualidade Ambiental de Pelotas, Luiz Fernando Van Der Lann, não havia “necessidade de muitos dias de antecedência para organizar os adeptos que vêm de fora” e, entre as exigências apresentadas, estava a necessidade limpeza dos resíduos e entrega do local tal como estava “antes das atividades”.22 Nota-se, portanto, o descrédito do poder público quanto à realização da festa, quando considerava a organização com poucos dias de antecedência e não disponibilizava apoio físico, como a mão de obra necessária para a destinação correta dos resíduos após o evento festivo religioso. Diferente do município de Rio Grande, onde há um amplo reconhecimento – social e político – da festa de Iemanjá, em Pelotas, a festa não se faz sem uma série de tensões, por vários motivos: insuficiência de ampla aprovação por parte do poder público municipal, nem mesmo questionamentos sobre os aspectos culturais que revelam a respeito da sociedade; ausência de clareza política da administração pública quanto aos valores atribuídos à festa; desconsideração da festa enquanto representativa dos aspectos históricos, tradicionais e religiosos de uma parcela da população da cidade; pouco apreço, consideração e valorização que a comemoração religiosa pode gerar para o turismo e o comércio; e, por fim, ausência de qualquer menção à festa enquanto bem cultural de caráter comemorativo-celebrativo-religioso patrimonial ou patrimonializável. Portanto, se de um ponto de vista político institucional, a festa de Iemanjá de Pelotas não apresenta dimensões e representações patrimoniais, ou seja, não se configura como um patrimônio consagrado que tem sua preservação garantida, na prática, para aqueles que vivenciam a festa, que compartilham experiências festivas e religiosas, que estabelecem relações afetivas e sentimentais na e por meio da festa, as comemorações à Iemanjá são constituídas patrimonialmente. Trata-se, não de um patrimônio oficial, mas de uma prática cultural cujo significado simbólico de fé, pertencimento e tradição, reforçam a necessidade de sua manutenção e de sua preservação. O caráter patrimonial não é dito, não é enunciado, mas é vivido, experenciado nas 22

Idem.

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construções de dadas representações que fazem da festa, aos olhos dos pesquisadores, uma evidente referência patrimonial. Nessa vivência e experiência da festa, no dia 02 de fevereiro, os devotos carregam flores e balões brancos e azuis, fazem pedidos e pagam promessas, cantam pontos e hinos, tocam tambores e atabaques, rezam e, frequentemente, se emociam. Ao comentar o significado do culto a Iemanjá, Aurélio de Oxalá destacou a importância: por abençoar todos os que vão ali pedir um auxílio, um conforto, uma ajuda, uma bênção. Então, é uma santa que se destacou perante as demais. Então, a crença a Iemanjá e a nossa Senhora dos Navegantes, aqui em Pelotas, é um ato de fé, um ato de carinho e que ela é uma referência para nós. Porque nós temos uma colônia Z3 de pescadores, no qual quase toda a comunidade reverencia (...) nossa Senhora dos Navegantes que no nosso culto afro seria a nossa Iemanjá. O relato acima demonstra a presença e permanência da fé que mobiliza a festa, mas que também está para além dela, presente no cotidiano da população, sendo a festa apenas o instante da homenagem e da reverência pública, o “ato de fé” e “ato de carinho” da “destacada” santa. É a gruta que abriga a imagem, o aspecto visível que reforça a fé durante o ano, a referência simbólica para, segundo Aurélio de Oxalá, pedir alguma graça quando se precisa; o importante é a certeza de saber que a imagem “existe” e que “está lá”, onde fica todo ano “à disposição de toda a comunidade”. Com parcos recursos, com pouco investimento e apoio do poder público municipal, com infraestruturas mínimas, a festa ocorre, vive e se recria na sua simplicidade material, por conta da organização daqueles para quem a festa adquire um importante sentido religioso e cultural. Mesmo tendo sido alvo de vandalismo em abril de 2015, os religiosos conseguirem, em tempo, restaurar a imagem para a festa de 2016.

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Imagem 1: “Jogo comemorativo das águas” na Festa de Iemanjá de Pelotas/RS

Fonte: Fotografia dos autores, 2015

Já a festa de Iemanjá da praia do Cassino, em Rio Grande, possui uma dimensão muito maior, por aglomerar uma quantidade ampla de religiosos e fiéis. Um grande monumento de Iemanja, com espaço reservado para acender velas, depositar oferendas e fazer pedidos, na principal entrada para a beira-mar, demonstram a receptividade que a santa tem no balneário. O acesso ao mar, lócus privilegiado da santa, configura-se como elemento agregador e muitos religiosos de cidades vizinhas, para lá se dirigem nos dias 01 e 02 de fevereiro. O babalorixá Aurélio de Oxalá diz que muitos preferem a praia do Cassino por apresentar um espaço maior e um grande público. Na comparação entre a festa de Iemanjá de Pelotas e de Rio Grande, Aurélio de Oxalá consegue perceber a diferença pautada na consagração da festa enquanto patrimônio cultural: em “Rio Grande (...) tem uma lei específica que dá plenos direitos de no dia 2 de fevereiro fazer uma homenagem a santa, que está previsto na lei. Uma lei pública no qual não se tem em Pelotas”. Diz ainda que, em Pelotas, “a gente não tem uma lei que nos privilegie na festa de Iemanjá” e que “a festa de Iemanjá, hoje, sempre é um ponto de interrogação” a depender da reivindicação e protestos da Federação e dos centros de cultos afros.

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Na praia do Cassino, a festa reúne anualmente entre 200 e 300 mil pessoas que, tal como em Salvador, na Bahia, estão interessados em “contemplar as oferendas, os batuques e as manifestações de fé direcionadas a Yemanjá, seja por devoção, turismo ou pura curiosidade” (JÚNIOR, 2014, p. 120). A organização fica a cargo da União Riograndina de Cultos Umbandistas e Afrobrasileiros Mãe Iemanjá (Urumi), juntamente com a Prefeitura Municipal. No dia 25 de janeiro de 2015, o jornal Agora divulgava que, até então, já existiam mais de 40 terreiros inscritos para participação e instalação nos locais disponíveis para acampamento e formação das tendas religiosas. 23 A imagem da santa, com a frente voltada à Avenida Rio Grande, passa a receber, desde às vésperas do dia 01 de fevereiro, grande quantidade de oferendas, que incluem frutas, especialmente melancia, muitas velas, flores, bebidas (espumantes) e objetos (pentes, espelhos, perfumes). Na noite do dia 01 de fevereiro percebe-se que a quantidade de oferendas é expressiva, conforme imagem 02; é a partir destes presentes a Iemanjá que os devotos buscam receber as bênçãos ou o chamado “axé”, a troca e fluxo de energia. Se à noite, durante a procissão o número de devotos é significativo, é durante o dia que os religiosos que lá estão acampados, trajando roupas brancas, realizam seus rituais de Umbanda e direcionam ao mar embarcações carregadas de oferendas. 24 Além disso, tal como em Salvador (JÚNIOR, 2014, p. 123), há um “fluxo de pessoas” que percorrem a praia, entre um agrupamento e outro, assistindo as particularidades de cores, sons e devoção, uma vez que “cada roda tem a sua singularidade, produz os seus póprios sons, ritmos, estéticas e mistura de cores, existindo sempre em círculo, onde os corpos rodam, ajoelham, gritam, cantam e deitam na areia”. Tal como destacou a pesquisadora Janaína de Aguiar (2014, p. 1177) para as festas de Iemanjá e Oxum de Salvador e Aracajú, “todos os anos centenas de pessoas retornam para reafirmar os laços com Iemanjá e Oxum, gradecer as Disponível em http://www.jornalagora.com.br/site/content/noticias/detalhe.php?e=3&n=68556. Acessado em 15 dez. 2015. 24 Ver análise semelhante para Salvador, em JÚNIOR, 2014, p. 121. 23

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dádivas recebidas e novamente reafirmar seus pedidos”. O senhor Jorge Luiz Benites, de 48 anos, estava presente na festa de Iemanjá do Cassino, em 2015, acompanhado de seu pai e relatou sua participação há 08 anos consecutivos. Ao ser questionado sobre o que costuma fazer na festa e como cultua Iemanjá, Benites respondeu: “nós viemos em Rio Grande/Cassino para reverenciar a mãe [Iemanjá] e para prestar nossas homenagens. Inclusive, no dia de ontem, nós fomos até a praia, fizemos nossos trabalhos e entregamos nossas oferendas. Reverenciamos nossa mãe, nosso barquinho com pedidos...”. O relato confirma tanto o reforço desse laço com o universo do sagrado e a reafirmação da fé, com as oferendas e os pedidos, quanto o fato de a praia movimentar com a presença de fiéis no dia 01 de fevereiro. À noite, geralmente a partir das 20h30min, a procissão se inicia percorrendo parte da Avenida Rio Grande até a imagem da santa na praia, local de concentração dos religiosos. Em frente e no entorno da escultura de Iemanjá, as pessoas se aglomeram e entregam suas oferendas. Alguns se ajoelham, outros batem a cabeça (no Batuque, bater cabeça é uma reverência ao orixá), rezam, erguem as mãos, conversam com Iemanjá, fazendo seus pedidos. Para o devoto Jorge Luiz Benites: “Sempre a gente tem um pedido a mãe, né? A gente sempre procura a mãe para fazer um pedido! E ela sempre nos dá a resposta!”. É a evidência do piedoso expresso em manifestações, em gestos e em palavras. Ainda segundo as palavras de Benites: “para nós, umbandistas, a mãe Iemanjá é a maior orixá! A mãe de todos! A nossa mãe que nos acolhe nas nossas súplicas, quando nós precisamos. Quando bate a nossa tristeza, quando a gente está precisando daquele colo da mãe ou do pai, recorremos a ela. E ela sempre nos dá o conforto!”. Diferente do que ocorre em Pelotas, em que a imagem de Iemanjá é retirada da gruta para a procissão fluvial e depois reconduzida ao local, no Cassino, a escultura à beira-mar é fixa. A procissão segue com determinada imagem de Iemanjá conduzida em um veículo decorado e que contém também imagens de outros orixás. No palco, montado no limite da Avenida com a beiramar, diversos religiosos se revezam para falar ou discursar no microfone, saudando a santa e cantando determinados pontos (cânticos religiosos).

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Concluída a procissão, há uma grande dispersão do público, mas nos barracões montados na área, inúmeros centros de religião realizam seus rituais ao longo da noite, sendo possível ver e ouvir diversas sessões de Umbanda, rodas de Batuque e também de Candomblé. Cada família religiosa realiza seus rituais ao seu modo, com autonomia para tocar, reverenciar e ofertar e, principalmente, para permitir participação direta ou não daqueles que assistem. De qualquer forma, o visual, o auditivo e o piedoso na festa de Iemanjá estão amplamente presentes na praia e de modo bastante disperso, sendo possível observar toques de tambores, tinidos cadenciados nos sons das sinetas, as reverberadas nas rezas em iorubá, sujeitos “ocupados” (o transe e “encantamento” com o orixá), indivíduos representando na dança, vestimenta e indumentários, os orixás, grupos cantando seus pontos e suas rezas, outros aplaudindo e muitos fazendo oferendas diversas, levando seus “presentes” ou diante da escultura, ou diretamente no mar. Muito comum perceber batuqueiros “entregando” à Iemanjá a sua “comida de santo” específica, geralmente formada por canjica branca cozida, tempero verde e merengues. Enquanto alguns carregam flores e fazem seus agradecimentos e seus pedidos, outros lá estão pela satisfação de assistir e participar, ou apenas observando sentados em cadeiras que trazem consigo ou percorrendo o entorno – a avenida, a praia e os barrocões – registrando a festa em filmagens e fotografias, todos na sua condição de participantes, do que alguns podem considerar como um evento social. Antes e depois da procissão, nos barracões montados no local, os centros religiosos (os terreiros) realizam suas rodas de Batuque ou suas sessões de Umbanda. Nestas últimas, o público tem a possibilidade não apenas de assistir, mas de “tomar um passe”, consultar com as entidades incorporadas nos médiuns, conjugando a relação entre o material e o espiritual, a qual o momento da festa propicia. Seriam estas algumas possibilidades de manifestações de sensibilidade despertadas e favorecidas pela festa aos visitantes, ou seja, uma atenção particular ao espiritual. Tanto religiosos e devotos, como observadores e curiosos, enquanto participantes das festas, têm a oportunidade de compartilhar das mesmas

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experiências dos sentidos, cujos significados são variáveis, idênticos, próximos ou distintos. Seja na noite do dia 01 de fevereiro (Rio Grande) ou na tarde do dia 02 de fevereiro (Pelotas), elementos para ver, ouvir e sentir vinculados às experiências das religiões de matriz africana estão presentes e, de modo figurado, expressam seus sentidos culturais e patrimoniais. Imagem 2: Oferendas à Iemanjá na Festa do Cassino, Rio Grande/RS

Fonte: Fotografia dos autores, 2015

Considerações Finais As festas de Iemanjá nas praias de Pelotas e Rio Grande, em espaço próprio da devoção, configuram-se enquanto representação patrimonial de celebrações na medida em que são consideradas não apenas como elementos culturais representativos da história, da memória, da identidade e da tradição desses sujeitos que vivenciam a festa em suas variadas dimensões, mas também assumem para os grupos afro-religiosos a importância da percepção religiosa de

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trocas simbólicas com a santa. Ou seja, perceber estas festas a partir da perspectiva patrimonial significa atentar para as diferentes representações que revelam aspectos da cultura religiosa afro-brasileira de específicos grupos e que são partilhados por um grande corpo social. O culto ao orixá Iemanjá e o festejar dessa devoção são elementos responsáveis pela visibilidade dessa expressão cultural de fé afro-brasileira e estão expressas em sensibilidades religiosas que ratificam a devoção, o respeito aos saberes das ancestralidades e à hierarquia da família religiosa que organiza as práticas rituais. Considerar tais sensibilidades nas festas de Iemanjá do ponto de vista patrimonial significa conferir às festas seu sentido de celebração, de referência cultural, de fenômenos de trabalho, de entretenimento (SANT’ANNA, 2013, p. 24), mas fundamentalmente, de expressão religiosa de um grupo – heterogêneo, múltiplo, distinto, plural – cujo principal elo está na cosmologia que faz com que estabeleçam alguma relação com a santa. Como se trata de uma festa religiosa e o foco deste texto foram sensibilidades (ver, ouvir e sentir) com esse caráter religioso, vale apontar para o elemento piedoso que se destacou no relato do Babalorixá Aurélio de Oxalá. Segundo o religioso, o dia 02 de fevereiro deve ser encarado como “um dia em que os adeptos da religião de umbanda e os adeptos da religião afro se dedicam a homenagear aquela santa, assim como se dedicam a homenagear” os outros orixás. Nesse sentido, percebe que “nem todos [os orixás cultuados] tem seu feriado previsto em lei como o da Iemanjá”, e que o dia da festa “é um dia de carinho, um dia de amor, um dia de fraternidade em que as pessoas vão lá e cultuam a Iemanjá”. Tal culto a Iemanjá – a Rainha do Mar ou Noiva do Mar, como é popularmente conhecida na cidade do Rio Grande – configura-se como referência cultural para distintos grupos de religiões afro-brasileiras, se conformando como uma obrigação religiosa feita por saudação, homenagens e recebimento de axé. É o momento em que, religiosos e devotos leigos, muitas vezes apenas no dia 02 de fevereiro, expressam sua fé e buscam no orixá a energia cósmica. As representações patrimoniais das festas de Iemanjá nas duas cidades do sul do Rio Grande do Sul estão na própria exposição do culto realizado pelas

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religiões de matriz africana e suas manifestações promovidas pelos sujeitos que a vivenciam. Se em Rio Grande, a festa de Iemanjá é patrimônio cultural consagrado do Estado do Rio Grande do Sul e tem garantidas as ações de salvaguarda e de permanência do evento, com investimentos públicos e privados, em Pelotas, mais do que a promulgação legislativa de um feriado santo, o reconhecimento patrimonial da festa se apresenta como um desafio. Tal reconhecimento se impõe como importante meio de exercer pressões nos organismos municipais a fim de garantir e dar condições para realização da festividade anual, de reduzir os processos de intolerâncias religiosas e de compartilhar as experiências de um grupo religioso específico com um amplo corpo social, não apenas esperando que se tolere, mas que se compreenda enquanto manifestação cultural. A dimensão patrimonial das festas existe pela mediação entre o social e o cosmológico, na relação que os grupos estabelecem com o cosmos, na interação com o orixá, na “obrigação” religiosa de ofertar, na prática ritual que vincula o humano à natureza sagrada do mar. O vínculo e as atribuições de significados simbólicos à festa são fenômenos culturais que podem ou não ser acionados como elementos de “identidade” ou como formas de autoconsciência coletiva, mas que se expressam com clareza aos pesquisadores como representações culturais patrimoniais através do visível, das práticas e das manifestações da religiosidade.

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Borel do Xangô e o etnomusicólogo aprendiz de tamboreiro de nação1 Reginaldo Gil Braga2

Experiência religiosa e musical do pesquisador em campo Dadas as características do “fato etnográfico” (PEIRANO, 1995)3 investigado por mim para um projeto de doutoramento em etnomusicologia, o estudo da modernidade religiosa entre tamboreiros de nação de Porto Alegre (BRAGA, 2003, 2013b), realizei uma etnografia musical onde os aspectos pessoais, relacionais, e institucionais desses músicos rituais, foram concomitantemente capturados com as questões musicais presentes nas suas práticas. Ou seja, busquei o estudo de um problema relacionado aos tamboreiros de nação e não o estudo substancial deles,4 a partir de interações interpessoais entre pesquisador/pesquisados e através de um exercício hermenêutico constante. Este texto trata-se de uma versão revisada e ampliada da comunicação: “Tornar-se tamboreiro de nação: ‘participação ativa’ como tentativa de exercitar e relativizar o ‘olhar de dentro’ numa tradição religiosa e percussiva do extremo sul brasileiro”, apresentada no VII Colóquio Internacional de Musicologia (2012), Casa de las Americas, Havana, Cuba. Resumo disponível em: http://www.casa.co.cu/premios/musicologia/conferenciascolVII.php?pagina=coloquiovii 2 Mestre e Doutor em Etnomusicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), respectivamente. Atualmente é professor de Etnomusicologia do Departamento de Música e do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRGS. 3 Segundo as palavras de Peirano (1995, p. 17): “(...) não existe fato social, mas ‘fatos etnográficos’, salientando que houve seleção do que foi observado e interpretado no relato”. 4 Como disse Clifford Geertz (1989, p. 32): “O locus do estudo não é o objeto do estudo. Os antropólogos não estudam aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias”. 1

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Como forma de quebrar com o etnocentrismo nas interpretações, busquei aliar à observação-participante em rituais, entrevistas e conversas informais com tamboreiros de nação, minha adaptação como aprendiz de tambor. Para tanto, inspirei-me, inicialmente, na experiência pessoal de John Miller Chernoff (1979) como aprendiz dos tambores Dagomba e Ewe de Gana. Ele qualificou a experiência, dentro de uma cultura diferente da sua, como uma “participação efetiva” e outros, como Luis Ferreira (1999), em meio às comparsas de tambores do Candombe uruguaio, chamou de “participação radical”. Eu, preferi chamá-la de “participação ativa” (BRAGA, 2003), uma vez que, pelo menos em tese, pretendia fazer a minha inserção como aprendiz e sob a tutela de um tamboreiro reconhecido. Assim, imaginava ser o procedimento mais adequado para captar as impressões e vivências de um(a) candidato(a) a tornar-se profissional. Segundo Ruth Cardoso (1986, p. 101): “(...) o velho modelo de observação participante (que supunha neutralidade do pesquisador) (...) [e que, grifo meu] ... atualmente se transformou em participação observante. Isto é, (...) de adjetiva, a participação passou a substantiva”. Ainda sobre o método: A etnografia musical pressupõe a descrição da convivência e da aproximação das intersubjetividades do pesquisador e pesquisado, possibilitando a apreensão do fluxo cotidiano das ações e valores contidos no ordinário e extraordinário da experiência musical (...). Além disso, ela (...) envolve a tentativa de aliar à contextualização culturalmente densa das produções musicais (com o objetivo de captar o processo de construção e representação sonora da cultura) (...) às perspectivas analíticas tanto do pesquisador quanto a dos pesquisados (LUCAS, 1995, p. 13). Além da compreensão da performance musical “vista de dentro”, captando melhor as categorias nativas e sua representação nos rituais, imaginava que iria elucidar aspectos relacionados às concepções e práticas religiosas e musicais dos tamboreiros, à luz da modernidade, não baseadas em classificações e abstrações a partir das minhas próprias observações, mas sim, através do suporte

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que a prática efetiva e o “olhar de fora” me dariam. Para concretizar essa abordagem metodológica, decidi tomar lições de tambor. Aproximando-me da religião e criando vínculos com um tamboreiro experiente, estava interessado em fazer uma imersão profunda no campo, porém, sem descartar a possibilidade de ser conduzido à iniciação e conversão religiosa. O aspecto da conversão religiosa, como lembra Peirano (1995, p. 54) é pouco explorado nas ciências sociais e configura-se como um “assunto tabu entre os especialistas”. Segundo ela, a experiência religiosa “(...) favorece em determinados contextos, uma reestruturação da visão de mundo desses pesquisadores. Até que ponto tal fato resulta do impacto da pesquisa de campo e suas consequências é uma questão em aberto, já que não existem depoimentos sobre essas conversões”. Anos depois, os antropólogos Júlio Braga (2000) e Vagner Gonçalves da Silva (2000) discutiram esta questão em meio à temática da autoridade e representação etnográfica de antropólogos que trabalham com as religiões afro-brasileiras e, mais tarde, entre etnomusicólogos, talvez tenha sido o primeiro a fazê-lo (BRAGA, 2013a). Propus, na época, seguir o curso dos acontecimentos e trazer à discussão os aspectos vivenciados no contexto do batuque através da etnografia. Dentro desse sistema de iniciação musical (e religiosa), recebi lições do tamboreiro e babalorixá Borel do Xangô. Por dez meses (de novembro de 1999 a março de 2001) nos reunimos semanalmente, com algumas interrupções, porém, sem nunca perdermos o contato. Vejamos como foi a minha inserção nesse cenário, segundo o primeiro registro em diário de campo: Após várias tratativas, que sempre protelavam o início das aulas de tambor, hoje iniciamos. Eu havia estado na sua casa na terça-feira passada para combinarmos os dias e os horários mais adequados e ele havia sido enfático e firme na marcação dos nossos encontros: todas às quintas-feiras, 9 horas estaria lá. Desde que me ofereceu aulas de tambor (no dia do lançamento do meu livro, Batuque Jêje-Ijexá em Porto Alegre: a música no culto aos orixás, em 9/11/1998), por várias vezes havia estado na sua casa e cobrava-lhe a marcação do dia das nossas aulas. Naquela ocasião, disse-me que coisas que eu havia escrito não eram bem assim como as

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descrevi (principalmente as pancadas). Passado quase um ano de lá pra cá, acredito que como um teste do meu real interesse pelo tambor, marcou o dia do nosso início. Apesar da minha insistência para que fizesse um preço pelas suas aulas, não admitiu falar em dinheiro. Cheguei 09:15 e senti que já me aguardava. Havia um casal em sua casa e quando cheguei conversavam no quarto dele. Um pouco apreensivo se com a presença dessas pessoas começaríamos, disse-lhe para que tinha vindo. Borel perguntou-me se tinha trazido lápis e caderno e então disse: “vamos começar do princípio” e foi ao quarto de santo buscar o seu livro: Agoiê, vamos falar de orishás, 1997. As pessoas que antes estavam sentadas no seu quarto simplesmente mudaram para a sala e parece que estavam ali para, de fato, assistirem a nossa aula. Bem, aceitei a situação e disse que meu interesse sincero era passar pelo mesmo processo que outra pessoa que viesse procurá-lo para aprender tambor. O que ele retrucou, rapidamente, dizendo que o meu caso era diferente. Apesar da minha insistência pelo por que da diferença não se explicou melhor. Com seu livro na mão, no início das rezas do Bará, disse que iríamos vêlas primeiro. Buscou o tambor e iniciamos, então, pelo primeiro axé do Bará: - ele chamando: “Uá machíre onibá Exú abanadá” e respondendo junto comigo: “Uá machíre onibá Exú abanadá”. Assim fizemos até o fim das rezas do Ogum. (Quinta-feira, 11 de novembro de 1999)5 O que significava o nosso caso é diferente? Àquela altura não tinha condições de saber o porquê, pois imaginava que de fato estava sendo treinado pelos mesmos caminhos de outro aprendiz qualquer. Não sabia dos seus planos. Desde as nossas primeiras tratativas para as aulas, ele nunca deixou claro que tipo de vínculo nós desenvolveríamos: se ele iria me sugerir de fazer santo ou me trataria como um pesquisador, um ‘outsider’ tão somente. Independentemente dos rumos e dos encargos religiosos que as nossas aulas poderiam desencadear, segui em frente. No final da nossa primeira aula, Borel sugeriu de fazermos dois encontros semanais, em vez de somente um. Assim continuamos dali pra frente. 5

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Durante o período em que o segui como aprendiz, suas diretrizes pedagógicas sempre se basearam na ideia de que eu deveria saber as rezas (cantigas rituais) e só conseguiria isso cantando e tocando repetidamente, para que pudesse corrigir a pronúncia e as pancadas (padrões rítmicos executados pelo tamboreiro): assim, somente após saber as respostas do repertório de um orixá poderia pegar o tambor e aprender as pancadas correspondentes. Usamos o seu livro, com os textos dos axés como guia e gravações das aulas em fita cassete, que preparou para que eu ouvisse e treinasse em casa o repertório aprendido. A repetição isolada ou em blocos do repertório foi norma, sempre. Após um mês de aulas, fui recomendado a mandar fazer um tambor para mim a fim de treinar também as pancadas em casa. A minha interferência na condução dos encontros, começou através das gravações das aulas e depois de certo tempo (aproximadamente um mês) com as transcrições musicais das pancadas e a conferência/teste do registro que fazia com ele. De fato, descobri erros de transcrição de padrões rítmicos no tambor, cometidos antes, que quase imperceptíveis auditivamente, fizeram-se gritantes quando observava a execução deles pelo Borel ou mesmo, quando experimentava tocá-las. Do mesmo modo, descobri divisões cosmológicas e musicais dentro dos repertórios específicos de cada orixá, nomes de pancadas e traduções de textos de axés que desconhecia. Solicitei ao meu mestre, gravações dos axés sem acompanhamento de tambor e das pancadas isoladamente (o que lhe causou notável desinteresse) e muitas vezes, trouxe uma lista de dúvidas para inquiri-lo. A nada se negou, apenas duvidou que eu pudesse grafar todas as pancadas e suas variações como dizia poder fazer. Essas situações de aprendizagem foram, também, situações de socialização musical, de aprender e treinar junto com outras pessoas. Já nos primeiros encontros, Borel convocou sua filha para participar das nossas aulas, assim como outros dois filhos. Com a moça “respondendo” os axés junto comigo e os rapazes tocando (e “respondendo”), simulávamos uma situação mais próxima possível dos toques de nação: tamboreiro fazendo as chamadas e o coro respondendo os axés. Conforme me disse, o seu intuito ao convocá-los, foi de aproveitar a oportunidade para também treiná-los. Alguns amigos da família,

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também de religião, participaram muitas vezes das nossas aulas, reforçando o coro e sofrendo correções junto comigo, quando necessário, em pé de igualdade. Nos primeiros meses, toda vez que queria ir além dos aspectos musicais, dizia-me que estávamos em fase de “sentamento” e que, portanto, era cedo ainda para essas explicações de caráter religioso. Depois de uns seis meses de instrução é que me disse que tínhamos que parar de vez em quando com o tambor, para pegarmos mais da “doutrina”. Sinal de que, de fato, a experiência com o tambor não pode estar apartada da experiência religiosa. A minha competência foi pouco a pouco sendo reconhecida. No segundo mês de prática, por exemplo, sua filha me disse, numa ocasião, em tom de brincadeira, que da próxima vez que seu pai fosse tocar, ela estaria no agê e eu no tambor. Brincadeiras à parte, meses depois, Borel convidou-me para acompanhá-lo ao tambor em uma abertura religiosa que fariam para um evento da Prefeitura de Porto Alegre, sinal que, a essa altura, eu já estava preparado para enfrentar uma exposição pública. O mesmo senti por parte dos seus dois filhos que, certa vez, insistiram para que eu tocasse numa obrigação. Acredito que poderia acompanhá-los no toque, porém, não toquei. Talvez os rumos tivessem sido diferentes, caso tivesse me incorporado aos toques desde o início. Ao final dos nossos encontros é que percebi que, tudo o que havíamos visto, foi “brincadeira, festa”, como disse Borel. Ou seja, o repertório dos orixás. Durante esse tempo, ele não havia insistido nos axés de maior fundamento, como aqueles que conduzem aspectos cruciais dos rituais: os de matança, do ecó e da balança e mesmo os axés de egum (para as cerimônias fúnebres). Tocamos e cantamos esses axés específicos, ‘en passant’, ficando mais na conversa do que na prática efetiva. No entanto, algumas perguntas ficaram sem respostas: esses repertórios ficariam para uma fase posterior ou não deveriam ser ensinados? Será que a minha opção por não participar dos toques fez com que o Borel tenha desistido da minha iniciação como tamboreiro e me deixado saber e experimentar somente o que caberia a um pesquisador? Segundo abordei em outra publicação (BRAGA, 2013a), parece-me que as diferentes situações de relacionamento entre pesquisador e colaboradores, que perpassam a chegada no “campo” e as experiências musicais e religiosas mútuas, configuram a qualidade do encontro

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etnográfico, bem como, espelham a passagem do “campo” ao texto etnográfico. Assim ocorreu comigo.

Os processos sociais de aquisição da tradição religiosa e musical Paralelamente às aulas de tambor com mestre Borel, realizei entrevistas com tamboreiros de três gerações distintas (inclusive com ele) sobre seus encontros com a religião e o tambor: indivíduos então na faixa de 70/80 anos; 50/60 anos e 30/40 anos, respectivamente. Todos, atuantes e reconhecidos como bons profissionais no cenário batuqueiro, perfazendo um total de 13 indivíduos. Através delas, soube das suas experiências como aprendizes da tradição e como se tornaram profissionais (BRAGA, 2003, 2005, 2013b). Na verdade, esses indivíduos, construíram as suas experiências musicais imersos diretamente nas situações de performance, acompanhando tamboreiros experientes em toques. Muitas vezes, iniciaram por instrumentos musicais que não necessitavam um treinamento longo, como o agê ou o agogô, antes de serem autorizados ao aprendizado do tambor. Uma vez aceitos como acompanhantes de indivíduos experientes, foram, através da imitação e pela exposição direta aos contextos rituais, adquirindo o domínio, primeiro em responder os axés, depois, dos padrões rítmicos e posteriormente em fazer as chamadas. Porém, nunca sistematicamente e, principalmente, fora dos contextos rituais. No caso específico desses “performers musicais especialistas”, utilizando uma expressão de Merriam (1964, p. 150), via de regra, iniciaram na religião por problemas de saúde na infância e foram trilhando, paralelamente ao sentamento religioso, suas experiências com o tambor. Entre os “professores”, encontramos agentes de educação nas próprias famílias biológicas, entre tamboreiros já reconhecidos, entre colegas de aprendizagem e de profissão e mesmo entre sacerdotes que preparavam os seus próprios músicos rituais. O acesso à profissão foi relatado por eles como espontâneo e visto como um exercício de aprendizagem por toda a vida. É voz corrente, ainda, que não adiantaria ensinar alguém (ele ou ela) que não tenha dom para o tambor, pois este é um axé (um fundamento sagrado) com o qual se nasce ou não. Um processo que, acredito

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semelhante ao encontrado por Rice (1994, p. 62), na base social da aprendizagem de canções entre garotas búlgaras alicerçado no tripé: relacionamentos sociais, habilidades pessoais e esforço contínuo (prática). Segundo os depoimentos, muitos mecanismos foram acionados para o crescimento no tambor: motivações, punições e testes públicos, assim como orientações informais conduzidas por parte dos mestres. De uns trinta anos para cá, porém, passou a existir o sistema de ensino e aprendizagem que é chamado de escola de tambor, aonde muitos indivíduos da novíssima geração de músicos rituais (com menos de 30 anos hoje), vêm aprendendo a profissão sob a instrução sistemática e remunerada de profissionais. Nessas escolas, o ensino puramente imitativo é acrescido da possibilidade de usar gravações comerciais em CD ou pen drive e apostilas contendo os axés transcritos para acelerar o aprendizado dos cantos. Nenhum dos entrevistados por mim foi formado nesse sistema, porém alguns deles têm se dedicado à atividade e formado novos tamboreiros dentro dessas escolas. Sinal dos tempos, ou seja, “as estruturas discursivas, os contextos socioculturais e os significados que a música e os tamboreiros assumiram ante a modernidade religiosa nos últimos setenta, oitenta anos, aproximadamente” (BRAGA, 2013b, capa).

“Participação ativa” como tentativa de exercitar e relativizar o “olhar de dentro” Nas religiões afro-brasileiras há complementaridade entre as experiências musicais e religiosas, ou seja, as experiências musicais vivenciadas são indissociáveis das experiências religiosas e vice-versa, pois todos aprendem a produzir ao menos algum tipo de música. Assim “(...) a socialização musical acompanha a socialização religiosa” (AMARAL e SILVA, 1992, p. 168). No batuque, não poderia ser diferente, pois dentro do processo de iniciação religiosa, o indivíduo vai progressivamente recebendo o treinamento musical necessário para o bom desenvolvimento das suas tarefas nos rituais, segundo a sua vocação e o seu grau de especialização (seja um futuro babalorixá, ialorixá, filho de santo ou tamboreiro). Assim, a todos é ministrado o ensino dos axés (as cantigas rituais) e aos tamboreiros é dispensado um treinamento musical mais

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especializado, seja dentro das casas de nação ou aulas de tambor. Situados, hierarquicamente, somente abaixo do babalorixá ou da ialorixá, aos tamboreiros cabem o maior número de responsabilidades na condução e administração dos toques. Os babalorixás e as ialorixás, apesar de menos visíveis, quanto ao aspecto da performance musical, também exercem atributos musicais ao serem os verdadeiros encarregados de, além dos ensinamentos religiosos, transmitirem aos iniciados os cantos, as coreografias do seu orixá pessoal e dos demais e mesmo de contribuírem na formação musical específica de um tamboreiro de nação, se for o caso. Os filhos de santo, por sua vez, respondem os axés, dançam e muitas vezes tomam parte como instrumentistas tocando o agê ou o agogô. A assistência, a princípio desconsiderada do ponto de vista de uma prática musical definida, pode surpreender nos rituais, pois, pode passar da tímida resposta dos axés a uma participação mais ativa, quando, por exemplo, visitantes dão “uma canja” e pegam o tambor ou são ocupados e o seu orixá tira axés em meio a todos. Enfim, há espaço para todos, mesmo para esses “performers casuais” (MERRIAM, 1964, p. 150). A minha tentativa de exercitar a experiência de “ser um deles”, portanto, esbarrou no problema básico de que não me encaixei em nenhuma dessas categorias de indivíduos presentes na estrutura social do batuque. Não fiz parte da assistência comum aos rituais, não fui um filho de santo e sequer um tamboreiro “casual”. Como aprendiz, jamais me destituí do ‘status quo’ de pesquisador, mesmo nas situações de maior interação, mediadas pelas confraternizações, trocas de conhecimentos, quando, por exemplo, Borel me pediu para ensinar-lhe a ler música e confidências pessoais. Jamais poderia ser um deles: um não batuqueiro, universitário, branco e de classe média – e nesse sentido, a não cobrança pelas lições, motivo inicial de orgulho para que pensasse que a aceitação como igual tivesse sido instalada, nada acrescentou ao quadro. A experiência da bi-musicalidade, instaurada por Mantle Hood, que segundo Nettl (1983, p. 44) é: “(...) um conceito baseado na premissa que o mundo consiste de uma série de músicas, e cada qual, como uma linguagem deve ser aprendida e entendida”, ainda hoje faz parte da prática etnomusicológica. Mantle Hood em sua atuação na Universidade da Califórnia-Los Angeles (UCLA) enfatizou os aspectos da bi-musicalidade na formação de gerações de

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etnomusicólogos que tiveram contato com instrumentos e culturas musicais as mais diversas às de suas origens. Com o tempo as classes de performance musical tomaram conta de outros departamentos de música dos EUA e do mundo. Porém, a evolução da experiência ao longo do tempo foi do otimismo de autores como Chernoff (1979, p. 20-21), que enumerou tão somente as vantagens de uma abordagem investigativa baseada na participação efetiva como aprendiz, 6 a posturas mais reflexivas e atuais como as de Timothy Rice (1994) e Steven Feld (1982), por exemplo. Rice (1994, p. 10-11), acertadamente, disse que: A tática de localizar a interpretação na interação entre o pesquisador e seu ‘texto’ [no caso musical, grifo meu] autoriza explicações de significado que não estão limitadas àquelas dadas pelos chamados informantes e ainda tem uma provisória, e não exclusiva, pretensão à verdade. Steven Feld (1982, p. 13), enfatizou, ainda, a importância entre o movimento de descrição da experiência nativa e do pesquisador, bem como as verbalizações, interpretações e deduções próprias de cada um. Concluo, portanto, dizendo que essa “provisória verdade”, na acepção de Rice (1994), será sempre permeada por diferenças e interações sociais e individuais e que cabe a todos nós tirarmos o melhor proveito delas em termos de relativizar justamente a autoridade etnográfica do pesquisador no campo e sua respectiva representação em teses, artigos e livros. A busca pelas diferenças, suas negociações e agendamentos podem ser mais interessantes do que a busca de aproximações desconexas. Walter Calixto Ferreira, mais conhecido como Mestre Borel no meio afroreligioso e da negritude de Porto Alegre, meu mestre no tambor faleceu em julho de 2011. Lembrando quando me dizia que “o nosso caso era diferente”, reafirmo São elas: organização estruturada do conhecimento musical pelos mestres, aprendizagem segundo erros e acertos (não pela abstração da observação-participante), possibilidade de fazer erros deliberados para testar os limites e possibilidades de improvisação e variação, crítica da performance, aprender música como linguagem (falando pela música) e a importância do aprender a fazer antes de pensar ou falar sobre música. 6

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que, o nosso caso, em relação aos colaboradores, interlocutores, ou, seja lá como venhamos a chamá-los, será sempre diferente. Eu sempre fui e serei o “musicólogo”, o “artista” ou o “jornalista”, enfim o pesquisador que chega ao campo de carro. Enquanto isso, meu mestre foi o menos favorecido economicamente e estigmatizado socialmente por ser negro e batuqueiro. Segundo me disse, certa vez, não me ensinou a tocar porque eu era “bonitinho”, mas sim, porque eu tinha jeito para a coisa e era importante para ele estar em contato comigo: não tinha tantas leituras, por isso estava aprendendo comigo também. Acredito ainda que, como amigo, colaborou com a minha “finalidade de estudo”. Não me ensinou aspectos religiosos e musicais mais profundos, e talvez por isso não possa me esquecer da advertência que me fez: de que “jamais eu fosse louco de ‘fazer cabeça’, que isto não era pra mim”. Fui até onde poderia ter ido como aprendiz de tamboreiro, conforme escrevi no meu diário de campo, na última anotação que fiz em 13 de março de 2001: Creio que essa foi concretamente a nossa aula final de tambor. Foi anunciada, ainda uma semana atrás e programada como uma oportunidade de esclarecimento de dúvidas. Hoje, senti que não voltaria a sua casa tão cedo ou talvez, jamais como aluno de tambor. Senti-me frágil como pesquisador ao não saber conduzir um desfecho mais agradável e esperado para um final. Mas, então, percebi que era assim mesmo, eu não havia concluído nada. O conhecimento é interminável em qualquer área, inclusive no ofício do tambor. Deveria, era continuar compondo a minha trajetória de pesquisador, esta sim foi confirmada pelos búzios do Borel. Dedico este texto a Walter Calixto Ferreira, in memoriam, (Rio Grande, 7/6/1924 – Porto Alegre, 4/7/2011). Ao Pingo Borel e a Auristela, filhos biológicos, continuadores do axé familiar, agradecido pela amizade.

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GTHRR/RS – Coletânea Religiões e Religiosidades (Volume 4) – Matriz Afrobrasileira

Produzida por: Mauro Dillmann (FURG) Gizele Zanotto (UPF)

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