Religiosidade no Brasil contemporâneo

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LEONEL, João, FERREIRA, J. C. L. (Org.). Novas perspectivas sobre o protestantismo brasileiro: pentecostalismo e neopentecostalismo. 1. ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2012.

Introdução Religiosidade no Brasil contemporâneo

Pedro Paulo A. Funari

O mundo contemporâneo tem passado por transformações profundas. Os meios de comunicação de massa, a vida urbana, a ruptura das redes tradicionais de sociabilidade, tudo isso tem contribuído para mudanças bastante marcadas em todos os aspectos da vida social e, não menos, na religiosidade. Este volume procura discutir alguns dos principais aspectos dessa dinâmica e o faz a partir de diversos pontos de vista, mas sempre atentos às dimensões multifacetadas dessas questões.

Para que se possa entender essa situação convém retornar no tempo e observar a trajetória religiosa do Ocidente, em geral, e do Brasil, em particular. Os sentimentos religiosos estão no cerne da própria noção de comunidade humana: segundo alguns, os enterramentos e as imagens nas cavernas de festas religiosas demonstram que o despertar do espírito humano, há milhares de anos, coincidiu com a nossa espécie, o homo sapiens sapiens moderno. Não há dúvida que os seres humanos, desde seus primórdios, preocuparam-se com o que viria a ser chamado de sobrenatural ou religioso, embora tais termos sejam anacrônicos. Essas preocupações encontraram contestação por parte de alguns também muito cedo, se lembrarmos dos céticos gregos e romanos, mas foi apenas com o Iluminismo, no século XVIII, a industrialização e a modernidade capitalista que o racionalismo e a busca pela explicação lógica e humana do mundo e da sociedade acabaram por gerar uma forte contestação do sentimento religioso e, mais ainda, das estruturas hierárquicas religiosas.

No início do século XXI, alguns países, como a Grã-Bretanha, apresentam uma maioria de pessoas que não se consideram religiosas, ou crentes em nada sobrenatural ou afiliado a uma denominação religiosa. Portanto, em certo sentido, aquele processo iluminista de contestação da fé e da hierarquia religiosa triunfou em certas regiões, com o influxo da modernidade. Contudo, em outras áreas do globo, ao contrário, esse mesmo

movimento do mundo moderno, com suas cidades e mídia, houve um crescimento vertiginoso e ramificado tanto da fé, como das estruturas religiosas. Isso ocorreu tanto em países pobres e periféricos, como em áreas emergentes nos diversos continentes e mesmo em regiões das mais ricas, como nos Estados Unidos da América. Esse movimento não se restringiu às denominações cristãs, mas inclui segmentos tão variados como o islamismo, o hinduísmo e outros vários e localizados, como o lunggom. Portanto, não convém aceitar equações simples e enganosas, como modernidade e ceticismo ou sentimento religioso e pobreza.

No mundo, a urbanização e os meios de comunicação e toda a parafernália tecnológica moderna podem tanto contribuir para um decréscimo da religiosidade e das instituições religiosas, em alguns casos, como para sua proliferação, como na maioria das vezes. O caso do Brasil é singular. Quando o Professor Richard Horsley esteve na Unicamp e ministrou palestras, em 2008, o grande estudioso do Cristianismo inicial confessou-nos que se sentia como à época de Jesus de Nazaré e seus seguidores originais, pois percebia, aqui, pulsar aquela religiosidade íntima e profunda que nem sempre se manifesta alhures. De fato, desde o início da colonização, a religiosidade exerceu papel fundamental, não apenas na elite e na hierarquia social, como no íntimo das pessoas comuns. Oratórios e oferendas, igrejas e capelas, espíritos e possessões, tudo isso esteve presente entre senhores e escravos, mulheres e homens. Os dois líderes do quilombo dos Palmares, no século XVII, foram Ganga Zumba e Zumbi, cujos nomes significam “sacerdote” e “espírito”, respectivamente. Tantas e tão importantes referências apenas demonstram a omnipresença da espiritualidade no Brasil, dentro e fora das estruturas formais. Movimentos com o espiritismo também atestam essa vitalidade de uma espiritualidade que continua a impressionar estudiosos como Horsley.

Nestas circunstâncias, este volume busca explorar um aspecto específico dessa realidade no Brasil: o declínio da denominação estabelecida (catolicismo), a estagnação e recuo de outras confissões fundadas na tradição (protestantismo) e o crescimento exponencial das expressões intimistas e autônomas (pentecostalismo). Não se trata, apenas e tão somente, do solapamento da fé estabelecida e oficial. Nas últimas décadas, como o fim da Guerra Fria (1947-1989), antigas igrejas cristãs e denominações islâmicas de estado floresceram em países saídos da experiência do socialismo real. Portanto, são circunstâncias históricas concretas a explicar o crescimento ou declínio das fés ligadas ao poder. Uma religião estabelecida não precisa declinar, nem outras denominações fundadas na tradição, tudo depende das particularidades históricas concretas. Daí a originalidade deste volume: quais as características no Brasil?

As respostas são múltiplas, como poderá observar o leitor atento. A sociedade brasileira, desde o início do século XX, passou por transformações profundas. Após

quatro séculos de predomínio de uma denominação oficial e da convivência informal com a religiosidade indígena e africana mescladas com o catolicismo, a liberdade religiosa significou o avanço inicial das igrejas protestantes históricas. A imensa desigualdade social, o crescimento lento da escolarização e a permanência das relações de compadrio, patriarcais e patrimoniais favoreceram um florescimento muito particular da fé ligada aos meios de comunicação. Igrejas independentes e suas publicações, emissões de rádio e, mais recentemente, de televisão, cinema e internet, tudo isso levou a uma explosão de religiosidades fora dos âmbitos eclesiais tradicionais, ainda que, muitas vezes, as igrejas tradicionais tenham sabido se aproveitar, também, de tais recursos.

Algumas características da religiosidade contemporânea no Brasil chamam a atenção, ligadas como estão às agruras da vida urbana moderna, impessoal e pouco afeita às sociabilidades tradicionais. Assim, uma das funções mais importantes da religiosidade tem consistido em fornecer quadros referenciais para pessoas que se encontram em situações periclitantes e com pouco amparo das redes sociais antigas. Essas carências espirituais não se restringem aos grupos sociais menos favorecidos, mas atingem as classes médias e as elites, pois são situações sociais que esvaziam a vida quotidiana de uns e outros. Na mesma direção, a relação econômica com o espiritual, quando o crente dá uma quantia para garantir um retorno sobrenatural, liga-se à mais antiga percepção religiosa de troca, o do ut des (“toma lá, dá cá”) da antiga prática latina.

Este volume congrega um grupo de estudiosos, alguns experientes e outros jovens pesquisadores, todos voltados para uma busca original e inovadora de uma temática da maior relevância. Leitura agradável e envolvente, a obra contribui para uma reflexão mais profunda e refletida da religiosidade brasileira contemporânea.

Pedro Paulo A. Funari Professor titular do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Coordenador do Centro de Estudos Avançados Universidade Estadual de Campinas

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