Remédios do Oriente: textos médicos da Índia Portuguesa do século XVIII.

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Fabiano Bracht, Remédios do Oriente: textos médicos da Índia Portuguesa do século XVIII.

Remédios do Oriente: textos médicos da Índia Portuguesa do século XVIII. Fa b i a n o B r a c h t Doutorando em História pela Universidade do Porto/ Bolseiro do Programa de Doutorado Pleno no Exterior da CAPES

Resumo/ Abstract: O objetivo deste trabalho é o de submeter a discussão um projecto de investigação, desenvolvido no âmbito do Doutoramento em História da Universidade do Porto. A temática é a da produção de conhecimentos relacionados com a Filosofia Natural e a prática da Medicina em Goa, durante o século XVIII, centrado em três aspectos específicos. Na etapa em curso, estamos concentrados em compreender e caracterizar os agentes: quem eram, como estudaram, qual era sua relação com a estrutura do Estado da Índia e em que dinâmicas de circulação do conhecimento estavam inseridos. Depois, nosso foco se direcionará à natureza do conhecimento produzido. Aqui importará verificar a (in)existência de um conhecimento híbrido, que contenha elementos tanto das tradições ocidentais quanto orientais. Por fim, procuraremos saber se se assistiu, ou não, à circulação, para além de Goa, deste conhecimento. Será importante compreender em que bases esta circulação se deu. Cumpridas estas etapas, pretendemos desvendar um quadro, o mais completo possível, sobre a produção e circulação do conhecimento médico, bem como sobre a prática médica a partir da Índia Portuguesa e seus eventuais contributos para a renovação da produção de conhecimeto médico europeu no século XVIII.

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Introdução: a expansão do império e as questões relativas à saúde. O tema da Medicina em Goa no século XVIII está inserido no contexto mais amplo do Império Ultramarino português. Este, por sua vez, faz parte da conjuntura constituída por questões que envolvem a expansão marítima europeia e o processo de consolidação dos impérios coloniais na Idade Moderna. Obviamente, estas conexões não devem ser negligenciadas. Outras duas características são intrínsecas à própria expansão ultramarina e seu estudo é parte dessa tese. A primeira é a da complexidade biogeográfica dos impérios que se estenderam entre o Atlântico e o Índico em incontáveis domínios morfoclimáticos1,2. A segunda, uma necessidade que deveria permear a consciência de qualquer historiador que se aventure a percorrer os caminhos que levam ao estudo da história do Império Português. O processo precisa ser observado da forma mais ampla possível, ou seja, deve-se tentar compreendê-lo como um complexo de componentes articuladas entre si3, como um conjunto interligado. Desde o início de sua construção, ainda no século XV, o Império se constituiu, em grande medida como um complexo sistema de fronteiras, o qual se expandia à mesma razão do alcance das caravelas. O termo “fronteira” é utilizado com frequência, e de forma bastante específica, por aqueles que se dedicam à História Cultural. Por exemplo, na forma como definiu Peter Burke, uma linha de fronteira não é necessariamente um local, podendo ser marcada pelos limites de um encontro cultural em que ambos os lados são claramente definidos, mas ao mesmo tempo dotados de uma permeabilidade seletiva cuja natureza é condicionada por fatores específicos e de dimensão histórica4. O conceito é válido, mas para nosso propósitos, precisa ser ampliado. Na medida em que uma cultura humana não existe dissociada do ambiente circundante, a dinâmica das permeabilidades fronteiriças é fortemente influenciada pela variabilidade relativa ao meio físicos no qual ocorre5. No caso específico do Império português, essa 1

CROSBY, Alfred W. Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras. 2011. 2 DIAMOND, Jared. Armas germes e aço: os destinos das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record. 2008. 3 BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada.. Introdução. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. (Org). Expansão Marítima Portuguesa, 1400 – 1800. Lisboa: Edições 70. 2010. 4 BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2008. 5 SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; BRACHT, Fabiano; CONCEIÇÃO, Gisele Cristina da. Das virtudes da ardência: uso e disseminação dos frutos de Capsicum nos séculos XVI e XVII. Boletins do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências humanas. 2013, vol.8, n.1, pp. 59-76. IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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variabilidade era especialmente grande, em decorrência da grande amplitude geográfica, portanto, climática e biótica contida em seu conjunto. Nele estabeleceu-se um intenso regime de trocas, no qual elementos naturais e culturais ultrapassaram barreiras impostas por um distanciamento que se encurtava cada vez mais, à medida em que se solidificavam as rotas comerciais abertas durante os primeiros decênios da expansão. Na prática, o Império do Ultramar se configurou como um complexo de vias, com múltiplos sentidos. Estas eram percorridas em diversas direções por elementos que aproximaram quatro continentes. Apesar de ser consensual que a Europa tenha sido o centro nevrálgico do complexo imperial, a ideia de que as outras partes participaram de sua construção de maneira apenas secundária é, no mínimo, superficial. Mesmo sendo inquestionável que partiram da Europa muitos dos elementos que, juntos, ajudaram a consolidar esse complexo, tal sistema não existiria se não tivesse integrado, na Ásia, América e África, componentes naturais e culturais mais do que essenciais à sua construção. Não há como conceber o período das grandes navegações e a posterior consolidação da presença portuguesa nesses três continentes, sem incluirmos as variáveis históricas produzidas pelo encontro dos europeus com as biotas americanas, africanas e asiáticas. Em relação a estas, estaríamos a cometer grave equívoco ao deixarmos de reconhecer a importância dos usos, costumes e conhecimentos detidos pelos povos que as apresentaram aos recémchegados europeus. Tal relação reforça, como campo de pesquisa histórica, a via de mão dupla entre o Homem e os domínios morfoclimáticos com os quais ele se depara. A partir deste princípio, é possível afirmar a existência de uma relação direta entre o Homem, o mundo natural, os consequentes desenvolvimentos de técnicas de sobrevivência, as tecnologias e seus intrínsecos aspectos culturais. Tais questões nos permitem evidenciar uma rede de experimentações, saberes, usos práticos e significados simbólicos, por vezes, calcados em necessidades cotidianas6,7. Este foi um processo que se desenvolveu, em seus múltiplos aspectos, ao longo de três séculos. Para isso é fundamental que sejamos capazes de observar cuidadosamente as interações entre as várias componentes 6

Idem. SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; BRACHT, Fabiano; CONCEIÇÃO, Gisele Cristina da. “A carreira da malagueta: uso e disseminação das plantas do gênero Capsicum nos séculos XVI e XVII”. In: Revista IDeAS – Interfaces em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, Rio de Janeiro – RJ, v. 6, n. 2, p. 134-169, 2012. 7

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do Império. As questões que envolvem a história dos conhecimentos médicos e filosófico-naturais fazem parte deste universo amplo. Uma característica marcante da expansão europeia foi o seu caráter predominantemente marítimo. Através dela, portugueses e espanhóis, seguidos por franceses, ingleses e holandeses alcançaram locais distantes, nas costas da África, Novo Mundo e Índias Orientais8. Esse processo decorreu, ele próprio, através da permeabilidade de saberes e através da partilha de conhecimentos9,10, a despeito do que é defendido por teses clássicas acerca do sigilo que os Estados Modernos eram capazes de manter a respeito dos conhecimentos sobre as rotas marítimas11. O caso português é exemplar no que se refere à transmissão de saberes. A partir de meados do século XIV, e durante os dois séculos subsequentes, navegadores de praticamente todas as partes da Europa colocaram-se ao serviço da monarquia portuguesa. Ligados intimamente ao mar por questões históricas, culturais, políticas, comerciais e estratégicas, os portugueses estiveram entre os primeiros a explorar os oceanos. A energia de ativação deste fenômeno veio de múltiplos fatores, tais como os interesses do negócio, o fervor religioso de uma Europa em expansão e a curiosidade dos primórdios da era das Ciências. Esta última foi representada, sobretudo, pela Filosofia Natural que, por sua vez, teve seu desenvolvimento acelerado pelas descobertas marítimas desse período. No âmbito da Filosofia Natural, a saúde e a salubridade estão entre as questões mais prementes aos historiadores que se dedicam ao estudo da expansão portuguesa. A questão médica surgiu, desde o início da era da expansão, como um tema central no que

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BOXER, Charles Ralph.. O Império Marítimo Português 1415 – 1825. São Paulo. Companhia das Letras. 2002. 9 POLÓNIA, Amélia . "Jumping frontiers, crossing barriers. Transfers between oceans. The Portuguese overseas expansion case study" in Oceans Connect: reflections on water worlds across time and space, ed. Rila Mukherjee, Delhi, Primus Books, 2012 , pp. 121-142. 10 POLÓNIA, Amélia .” Understanding the role of foreigners in the portuguese overseas expansion through the lenses of the theories of cooperation and self-organisation". Storia Economica (2014). Numero temático seobre Redes financeiras, redes comerciais. Operadores económicos estrangeiros em Portugal (XVI-XVIII século), coord. Gaetano Sabatini e Benedetta Crivelli [No prelo] 11 CORTESÃO, Jaime. A Política de Sigilo nos Descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996. IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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tange às preocupações dos envolvidos nas empreitadas marítimas12. A insalubridade a bordo dos navios era gritante, e pouco melhorou entre os séculos XVI a XVIII13. As tripulações dos navios da carreira da Índia, ou qualquer outra embarcação que tentasse a travessia entre o Atlântico e o Índico, através da rota do Cabo da Boa Esperança, estavam sujeitas a inúmeras enfermidades, que conferiam às viagens à Ásia um índice de mortalidade de proporções significativas. Em situações excepcionais, o percentual de vítimas das péssimas condições sanitárias e nutricionais podia chegar à metade do total das tripulações, como ocorreu com a viagem da frota de 1576, na qual pereceram 1500 dos 3000 passageiros14. A lista dos males que podiam acometer os navegantes era grande. Entre elas estavam o mal das calmarias, o bibicho, as febres tropicais, malignas ou pleuríticas, o sarampo, as doenças venéreas, os males da pele e as diarreias. A principal era, sem dúvida, o escorbuto15, mal causado pela falta de ácido ascórbico ou, como este é popularmente conhecido, vitamina C. Seus sintomas são, mesmo quando somente descritos, de uma repulsão considerável: manifestações hemorrágicas, inchaço das gengivas, perda dos dentes, fadiga, lassidão, tonteira, anorexia e infecções, podendo levar à morte16. Do ponto de vista das autoridades portuguesas, não eram apenas as viagens que representavam risco para a saúde de marinheiros, clérigos, nobres, soldados, comerciantes e funcionários da coroa. Ao longo das rotas dos descobrimentos, o Império Português estendeu-se por variadas regiões de domínios climáticos diversos. Boa parte destes locais, em ambientes de clima tropical, apresentou a navegantes e colonizadores uma série de novos perigos, na forma de parasitas e doenças. Estes representaram um verdadeiro desafio às capacidades de médicos, cirurgiões e boticários17. As dificuldades em enfrentar as enfermidades endêmicas dos domínios tropicais para os quais se dirigiram os europeus estiveram, em certa medida, entre os fatores que determinaram as características dos processos de colonização e ocupação dos diversos pontos, ao longo das rotas comerciais, durante os séculos XVI, XVII e

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GUERREIRO, Inácio. Particularidades da Vida no Mar. Revista Oceanos, n. 38, p. 149-160. Abril/Junho 1999. 13 GUERREIRO, op. cit. 14 GUERREIRO, op. cit. 15 GUERREIRO, op. cit. 16 BRASILEIRO, G.B.. Patologia Geral. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 1998. p. 121. 17 CROSBY, op. cit. IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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XVIII18,19. Sob este aspecto, merece atenção especial para nossos propósitos, o caso da presença portuguesa nas Índias Orientais. A partir do ponto de vista da história do Império Ultramarino português e do comércio das especiarias, Índias Orientais era o nome dado a toda região que circundava o oceano Índico, e sobre o qual a circulação de grandes embarcações era influenciada pelo regime das monções. Da forma como compreendiam os europeus, faziam parte das Índias Orientais os diversos portos e pequenos Estados do subcontinente Indiano, além dos reinos e sultanatos das ilhas do arquipélago Malaio20. Devemos considerar ainda outros entrepostos. Estes, em boa parte, sob o controle de governantes ou mercadores árabes, estavam localizados entre o estreito de Ormuz e a costa Oriental da África21. Esta região era constituída por um grande número de comunidades mercantis. Seus portos, por vezes autônomos, por outras, governados por impérios distantes, fervilhavam com a atividade diária de comerciantes asiáticos, africanos e europeus. Alguns eram importantes centros produtores, não obstante grande parte fosse constituída de empórios puros22, às vezes simples entrepostos. Neste ponto, a definição de Luís Filipe Thomaz a respeito do que seria o Estado da Índia é de fato ilustrativa: “O Estado da Índia designava, no século XVI, não um espaço geograficamente bem definido, mas um conjunto de territórios, estabelecimentos, bens, pessoas e interesses administrados, geridos ou tutelados pela coroa portuguesa no Oceano Índico e mares adjacentes, e nos territórios ribeirinhos, do Cabo da Boa Esperança ao Japão”23. Estas regiões eram densamente povoadas e repletas de grandes mercados, com intensa circulação de pessoas oriundas de muitos lugares diferentes. Via de regra essas populações não sofreram grandes impactos pela introdução das doenças vindas da

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DIAMOND, Jared. Armas germes e aço: os destinos das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record. 2008. 19 CROSBY, op. cit. 20 BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. Introdução. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. (Org). Expansão Marítima Portuguesa, 1400 – 1800. Lisboa: Edições 70, p. 118. 2010. 21 PEARSON, Michael N. Mercados e Comunidades Mercantis no Oceano Indico: Situar os Portugueses. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. (Org). Expansão Marítima Portuguesa, 1400 – 1800. Lisboa. Edições 70, p. 93-114. 2010. 22 Deve-se compreender o termo “empório puro” como designando um entreposto comercial que, de maneira geral não beneficia nem produz a maior parte dos bens que comercializa (PEARSON, 2010, p. 93-100; SCHWARTZ, 2010). 23 THOMAZ, Luís .F. Reis. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994, p. 207 IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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Europa. O contraste é grande se compararmos com a situação análoga das populações do Novo Mundo24,25. As dificuldades para o estabelecimento de comunidades europeias no subcontinente indiano e suas adjacências encontram expressão exemplar na afirmação de Felipe Fernández-Armesto de que, durante o século XVI e a maior parte do XVII, os europeus apenas tangiam a pele do continente asiático26. É certo que o transplante de seu modo de vida para os trópicos, quaisquer que fossem, representou um constante desafio27. Esta foi uma problemática à qual os portugueses foram especialmente sensíveis.

O desenvolvimento de conhecimentos médicos específicos no contexto do Império Oriental. Com seu Império Ultramarino estabelecido em três continentes, estiveram em contato com as diversidades bióticas dos trópicos em ambos os lados do Atlântico e por, praticamente, toda a orla do oceano Índico. Aqueles que deixavam o extremo ocidental da Europa em busca de riquezas, aventuras ou de propagar a fé, com frequência, deparavam-se com a necessidade de combater uma doença ou parasitose contra as quais seus conhecimentos e, quando os havia por perto, os de seus físicos, cirurgiões ou boticários nem sempre eram os mais adequados28. Em seu envolvimento com os trópicos, os portugueses paulatinamente apreenderam novos elementos, tanto em matéria de doenças, como de mezinhas, boticas e outros tipos de medicamentos. Tais conhecimentos, indispensáveis ao processo expansionista, englobaram, desde descrições detalhadas das muitas enfermidades diferentes, próprias dos diversos domínios tropicais, até as grandes quantidades e qualidades de plantas, animais, minerais e outros elementos que pudessem compor um leque de opções considerável, quando houvesse a urgência de se combater alguma doença, conhecida ou estranha29. Esta capacidade investigativa foi parte fundamental do próprio processo 24

DIAMOND, op. cit. CROSBY, op. cit. 26 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. A Expansão Portuguesa num Contexto Global. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada. (Org). Expansão Marítima Portuguesa, 1400 – 1800. Lisboa. Edições 70, p. 491-524. 2010. 27 CROSBY, op. cit. 28 DEBUS, Allen, G. O. Homem e a Natureza do Renascimento. Porto: Porto Editora. 2002. p. 45-47. 29 FRADA, João José Cúcio. História, Medicina e Descobrimentos Portugueses. Revista ICALP, vol. 18, p. 63-73 Dezembro de 1989. 25

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expansionista, longe de ser um privilégio reservado aos homens de letras, foi também demonstrada por indivíduos autodidatas, de variadas posições sociais e funções. Há notícia de um relato escrito em 1507, para o qual nos chamou a atenção João José Cúcio Frada30, no qual um piloto da esquadra de Cabral fez perspicazes observações a respeito do efeito de alimentos frescos na mitigação dos sintomas do escorbuto. Além de Frada, outros autores salientaram a contribuição de diversos indivíduos, versados ou não nas artes da Medicina ou Filosofia Natural que, inseridos no processo da expansão portuguesa ao longo dos séculos XVI e XVII, contribuíram, de maneira fundamental, para o desenvolvimento da “matéria médica” europeia nestes dois séculos31,32,33,34. A questão médica teve importância estratégica fundamental no processo da expansão portuguesa. Pelo menos desde o início do século XVI, a despeito das dificuldades em termos de logística e material humano, havia uma rede de armazéns dispostos ao longo das rotas comerciais do Atlântico e do Índico que foi estabelecida com a intenção, nem sempre fácil de se realizar, de prover o abastecimento dos navios com víveres e mezinhas35. De fato, ao longo do período entre o final do século XV e os últimos decênios do século XVIII, não houve fortaleza erguida que não contasse com uma enfermaria, mesmo que na maioria das vezes esta não fosse mais do que uma instalação precária, anexa à estrutura principal, e que recebia o generoso nome de hospital36. Por toda esta rede, devido a diversos fatores, havia carência de físicos, cirurgiões e boticários, assim como das mezinhas providas a partir do reino37,38. É plausível, dado este quadro, que a construção de uma medicina aplicada aos trópicos tenha, em diversos momentos ao longo do período das descobertas, expansão e colonização portuguesas, se

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FRADA, op. cit. GOUVEIA, A. J. Andrade de. Garcia d’Orta e Amato Lusitano na Ciência de seu Tempo. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. 1985. 32 FRADA, op. cit. 33 DEBUS, op. cit. 34 DIAS, José Pedro Sousa. A Farmácia e a História. In: MENEZES, Ricardo Fernandes de (org.). Da História da Farmácia e os Medicamentos. Lisboa: Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. p. 5-39. 2005 35 VASCONCELLOS E MENEZES, José de. Armadas Portuguesas: apoio sanitário na época dos descobrimentos. Lisboa: Academia de Marinha. 1987. p. 9-23. 36 IDEM. Armadas Portuguesas: hospitais no além mar na época dos descobrimentos. Lisboa: Academia de Marinha. 1993. p. 5. 37 Idem, op. cit. 1987. 38 Idem, op. cit. 1993. 31

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dado a partir da ação de indivíduos que, por vezes, não possuíam formação erudita, mas eram movidos por grande curiosidade e aguçado senso empírico investigativo39,40. No início da era Moderna, um dos principais objetivos da Filosofia Natural, no que se refere às inúmeras descrições de animais e plantas, na África, Ásia ou Novo Mundo, foi o reconhecimento de elementos do mundo natural enquanto possíveis panaceias41,42. Ora, se no caso da fauna e flora do Novo Mundo, a totalidade das plantas e animais, bem como seu uso na Medicina eram inicialmente estranhos aos europeus, o mesmo não ocorreu em relação às plantas e animais originários da Ásia43,44,45,46. O uso das especiarias asiáticas no combate a doenças e outras aplicações médicas era, há muito, difundido entre os europeus. O paradigma galênico, de influência inegável sobre a Medicina até pelo menos o final da primeira metade do século XVIII, compreendia os predicados curativos presentes nos medicamentos a partir de seus caracteres organolépticos, notoriamente o sabor e o odor47,48. Assim, os quatro gostos primários tinham relação com os quatro pares de qualidades fundamentais da teoria humoral, quais sejam, quente e seco, seco e frio, frio e húmido e húmido e quente49. A partir desta concepção, as fortes percepções olfativas e gustativas das especiarias não apenas contribuíam para sua classificação como medicamentos, mas também corroboravam sua presumida eficácia50. No entanto, a curiosidade dos europeus nas Índias Orientais, em termos de Filosofia Natural, nem de longe esteve restrita às especiarias. A partir das primeiras décadas do século XVI, diversos autores portugueses ocuparamse em mais do que compreender a aplicabilidade médica de plantas, animais e minerais asiáticos dentro da estrutura do galenismo. Houve também, por parte destes indivíduos, 39

COSTA, Palmira Fontes da; LEITÃO, Henrique. Portuguese Imperial Science, 1450–1800: a historiographical Review. In: BLEICHMAR, Daniela et al. (Ed.). Science in the Spanish and Portuguese Empires, 1500–1800. Stanford: Stanford University Press. p. 35-56. 2009. 40 ALMEIDA, Onésimo T. Science During the Portuguese Maritime Discoveries: A Telling Case of Interaction Between Experimenters and Theoreticians. In: BLEICHMAR, Daniela et al. (Ed.). Science in the Spanish and Portuguese Empires, 1500–1800. Stanford: Stanford University Press. p. 78-92. 2009. 41 CARNEIRO, Henrique. Filtros Mezinhas e Triagas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã editora. 1994. p. 47-65. 42 DEBUS, op. cit. p. 45-54. 43 GOUVEIA, op. cit. 44 FRADA, op. cit. 45 DIAS, José Pedro Sousa. O Odor e o Sabor da Farmacologia Galênica. In: A epopeia das especiarias. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical. p. 90-103. 1999. 46 DEBUS, op. cit. p. 49-50. 47 DIAS, op. cit. 1999. p. 93. 48 DIAS, op. cit. 2005. p. 13. 49 Idem, op. cit. 1999. p. 93. 50 Idem, Ibdem. p. 93. IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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a preocupação de apreender, a despeito de possíveis barreiras linguísticas e culturais, uma parcela do conhecimento médico que há séculos era produzido no Oriente. Na Ásia, houve o encontro entre os limites da teoria hipocrático-galênica, e as diversas práticas e teorias médicas Orientais51. A caracterização dos agentes: físicos e vaydias na Goa portuguesa. Desde muitos séculos antes da conquista de Goa por Afonso de Albuquerque, na Índia se desenvolviam diversos sistemas de conhecimento a respeito das doenças e suas respectivas curas. Havia uma grande e complexa variedade de personagens que praticavam algum tipo de arte curativa de caráter popular. Dentre estes podiam se encontrar desde curandeiros de aldeia, detentores de conhecimento empírico acumulado por gerações, até herboristas profissionais altamente qualificados. Guardadas as devidas proporções, ao que se pode considerar como equivalente ao conhecimento acadêmico das universidades cristãs e muçulmanas está o conjunto epistemológico que era ensinado nas escolas de educação superior chamadas Agraharas. Nelas eram ensinados os princípios contidos nos textos sagrados, os Vedas. Entre eles, estavam os relativos à medicina Ayurveda, cuja origem era atribuída pelos Indus ao deus Brahma, a fonte de todo o conhecimento52. Na verdade, o Ayurveda é um capítulo do Atharva-Veda, um dos quatro livros védicos. No Atharva -Veda, a medicina possui um caráter mágico53,54. Nele pressupõe-se que as doenças sejam causadas por entidades malignas e que possam, por isso, ser curadas por fórmulas e procedimentos sagrados. Diversos outros livros eram utilizados na Índia quando da chegada dos portugueses, dentre eles, o Bhava Prakasa, escrito no século XVI por um brâmane chamado Bhava Mistra55. Apesar de ser, em grande medida, uma atividade reservada à casta privilegiada dos brâmanes, a medicina ayurvédica, em termos práticos, não era constituída de um corpo canônico ensinado em instituições específicas segundo regras restritas. Era muito mais um conjunto de tradições interpretativas e preceitos religiosos, que na prática contava com uma grande capacidade e liberdade para a acumulação e conhecimento empírico. 51

DEBUS, op. cit. p. 48-49. FIGUEIREDO, João Manuel Pacheco de. The Practice of Indian Medicina in Goa During the Portuguese Rule, 1510-1699. Luso-Brazilian Review, v. IV, n. 1, Junho de 1967, p. 51-60. 53 Idem. 54 BASHAM, A. L. The Practice of Medicine in Ancient and Medieval India. In: LESLIE, Charles (ed.). Asian Medical Systems: a comparative study. Berkeley, Los Angeles, Londres. University of California Press. p. 18-43. 55 FIGUEIREDO, op. cit. 52

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Seu ensino era, mais do que nas Agraharas, feito em casa, onde eram transmitidos os conhecimentos de geração em geração56. Grande parte do aprendizado era feito por tentativa - erro57. Geralmente, os filhos acompanhavam o pai na profissão, e quando este morria, legava ao herdeiro sua coleção particular de livros, textos e receitas médicas. Em parte devido ao fato de poder incorporar com facilidade o saber empírico, os médicos dessa tradição, chamados vaydias, detinham um vasto conhecimento sobre as propriedades curativas de plantas, animais e minerais locais. Os portugueses, logo após sua chegada à Índia, passaram a chamar esses médicos, cuja maioria pertencia à casta brâmane, de panditos. O termo é sânscrito, embora faça parte do léxico da maior parte das línguas do subcontinente indiano, e significaria originalmente “sábio”, ou ainda “filósofo”58. Geralmente era uma das designações dadas àqueles que possuíam educação superior, sendo estes quase sempre brâmanes, os quais também estavam ligados de forma íntima à prática da medicina ayurvédica e aos conhecimentos sobre drogas medicinais. Nos escritos portugueses, desde o século XVI, o termo panditos se refere quase que exclusivamente aos médicos vaydias, que praticavam uma medicina de distinguível caráter popular, uma vez que incorporava massivamente o progresso empírico de milhares de anos de prática, mas também indubitavelmente influenciada pelos ancestrais princípios do ayurveda59. Havia também o equivalente muçulmano aos vaydias e à medicina ayurvédica. Esta era a medicina Unani, e os que a praticavam eram conhecidos como hakim60. Apesar de possuir muitas características em comum com a medicina ayurvédica, ao contrário destes, existem poucas referências a médicos Unani a serviço dos hospitais, autoridades ou ordens religiosas. Sabe-se que, na Índia, os muçulmanos foram largamente preteridos em favorecimento aos Hindus pelas autoridades da coroa, e mesmo esses ficavam em segundo plano em relação às populações cristãs locais61. A primeiras autoridades portuguesas ao chegarem à Índia logo perceberam, como seria natural, que os panditos eram mais bem informados do que seus congêneres europeus 56

Idem. GRACIAS, Fátima da Silva. Health and Hygiene in Colonial Goa, 1510-1961. Ashok Kumar Mittal. Nova Dehli. 1994. p. 153. 58 DALGADO, Sebastião Rodolfo. Glossário Luso-Asiático, Volume I. Coimbra. Imprensa da Universidade de Coimbra, 1919, p. 155 – 157. 59 Idem. 60 GRACIAS, op. cit. 61 LOPES, Maria de Jesus dos Mártires; MATOS, Paulo Lopes. Naturais, Reinóis e Luso-descendentes: a socialização conseguida. In: LOPES, Maria de Jesus dos Mártires (Coord.). O Império Oriental. Lisboa. Editora Estampa, 2006, p. 15-70. (Nova História da Expansão Portuguesa, vol. V, tomo 2). 57

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sobre as artes de combate às doenças tropicais. Existem diversas evidências da influência da medicina ayurvédica na forma como os físicos europeus absorveram e apreenderam conhecimento sobre remédios e doenças do subcontinente indiano62. Essa capacidade de absorção foi fundamental para o surgimento de diversas obras, que mais tarde viriam a ser publicadas na Europa e fazer parte do sistema médico ocidental. Em parte devido às dificuldades em se atender as necessidades, no que tange não apenas à presença de médicos, mas também à disponibilidade de remédios que fossem eficientes no tratamento das doenças próprias das Indias Orientais, um grande número de médicos, boticários, cirurgiões, herbaristas e filósofos naturais acrescentaram, a partir da medicina indiana, importantes contribuições ao desenvolvimento dos conhecimentos sobre plantas, animais e doenças. Isso se deu basicamente de duas formas. A primeira, e mais frequente, foi através dos muitos vaydias, herboristas e “boticários” indianos que prestaram serviços aos hospitais e autoridades portuguesas63. A informação foi largamente absorvida através da observação da prática diária destes curadores. A segunda, menos frequente mas igualmente importante, era o estabelecimento de diálogo e permuta de informações, entre os agentes europeus e os médicos indianos. Muitos dos médicos ou boticários portugueses foram capazes de estabelecer extensas redes de contatos, das quais recebiam, muitas vezes mediante pagamento, informações sobre as propriedades curativas das diversas drogas locais64. Tais redes, sem dúvida alguma, não se constituíram sem exigir uma considerável dose de energia, diálogo e esforço de ambas as partes. Os que conseguiram estabelecê-las puderam adentrar a um universo extremamente restrito, para o qual a permissão deve ter custado algo considerável em termos de permuta de favores ou mesmo pagamentos em dinheiro. Em um caderno de anotações, contendo 108 páginas com diversas receitas médicas utilizadas no Hospital Real de Goa por volta de 1696, há a informação de que em Goa, por aquela época, haviam cerca de oitenta panditos, e que eles não eram, segundo o autor, propensos a compartilhar suas receitas e conhecimentos65. Talvez o proprietário do caderno, um tal de João dos Reis, sobre quem pouco se sabe, fosse 62

WALKER, Timothy. Evidence of the use of Ayurvedic medicine in the medical institutions os Portuguese India, 1680-1830. In: SALEMA, A. (ed.). Ayurveda: at the crossroads of care and cure. Lisboa. Centro de História de Além Mar. 2002, p. 74-104. 63 Idem. 64 PEARSON, Michael, N. First Contacts between India and European Medical Systems: Goa in the sixteenth century. In: ARNOLD, David (ed.). Warm Climates and Western Medicine: The Emergence of Tropical Medicine, 1500 – 1900. Amsterdam. Editions Rodopi B. V. 1996, p. 20 – 41. 65 Biblioteca Nacional de Portugal, sessão de reservados. CÓD. 2102, CADERNO DE VÁRIAS RECEITAS MEDICINAIS ORIENTAIS. 1696. 54 fls. IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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alguém com dificuldades em estabelecer sua própria rede de acesso aos medicamentos e receitas indianas. Mas ao contrário deste, sabe-se que muitos foram habilidosamente capazes. Alguns destes indivíduos podem ser destacados pela importância, excelência ou alcance de suas obras. Dentre os primeiros sobre os quais importa que apresentemos um breve sumário, sobressaem-se as figuras de Tomé Pires e Simão Álvares, ambos boticários, que partiram para a Índia em 1511 e 1509 respectivamente 66,67,68,69. A propósito de enviar a El Rey D. Manuel informações detalhadas sobre os locais de origem das especiarias, Tomé Pires forneceu dados a respeito das particularidades medicinais de boa parte das drogas que descreveu

70·,71

. Anos mais tarde, em 1547, Simão Álvares escreveu sua

“Informação de Todas as Drogas que vão para o Reino”, mais extensa e completa do que a obra de Pires72. A maneira e o propósito com que foram compostas as obras de Pires e Álvares constituem, por si só, elementos suficientemente sólidos para que possamos nos certificar da característica ordenada e metódica que, segundo historiadores dedicados ao tema, permeou o processo da expansão portuguesa nos trópicos

73,74

. Dentro deste

panorama, algumas obras de natureza semelhante marcaram, de maneira indelével, as concepções a respeito do uso medicinal das drogas orientais, não apenas em Portugal, mas por toda Europa e, posteriormente, nas colônias americanas. Originou-se também na Ásia portuguesa, uma das mais importantes contribuições à “Matéria Médica” dos séculos XVI e XVII. A obra “Coloquios dos Simples, e Drogas e Cousas Mediçinais da India” de Garcia da Orta, publicada pela primeira vez em Goa no ano de 1563

75,76,77

. Este tratado influenciou médicos, boticários, cirurgiões e filósofos

66

FRADA, op. cit. p. 69. FERRÃO, José Eduardo Mendes. A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical. 1993. 68 FERRÃO, José Eduardo Mendes; LIBERATO, Maria Cândida. As plantas de Manuel Godinho de Erédia. In: EVERAERT, J. G.; FERRÃO, J. E. M.; LIBERATO, M. C. (Ed.). Suma de Árvores e Plantas da Índia Intra Ganges de Manuel Godinho de Erédia. Lisboa: Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 2001. p. 91-192. 69 DIAS, op. cit. 2005. p. 29. 70 GOUVEIA, op. cit. p. 7. 71 DIAS, op. cit. 2005. p. 29. 72 Idem. 73 FERRÃO, op. cit. 1993. 74 DEAN, Warren. A botânica e a política imperial: a introdução e a domesticação de plantas no Brasil. Estudos Históricos, v. 4, n. 8, p. 216-228. 1991 75 GOUVEIA, op. cit. p. 20. 67

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naturais em toda a Europa, tornando-se um dos mais célebres trabalhos do Renascimento, pela maneira rigorosa e detalhada com que um material vasto e rico de drogas orientais foi descrito, investigado e analisado78. O texto de Orta, originalmente publicado em português, foi traduzido, resumido e adaptado diversas vezes até o final do século XVII. A importância da obra de Garcia da Orta não se resume ao fato de ela ter sido uma das mais completas a respeito dos potenciais curativos das drogas orientais. Podemos considerá-la, guardadas as devidas proporções, precursora de uma medicina adaptada aos trópicos, ou seja, um conhecimento produzido a partir do contato entre os saberes médicos vigentes na Europa, associado a uma averiguação rigorosa das evidências e dos saberes autóctones. Sabe-se que Orta manteve, por longos anos, estreito contato com médicos e herboristas indianos, dos quais recebeu em primeira mão, muitas das informações contidas nos seus Colóquios79. Profundamente influenciada por Garcia da Orta, a obra de Cristóvam da Costa também constituiu um marco importante no estabelecimento de um saber acerca dos predicados curativos das drogas e mezinhas indianas frente à medicina europeia

80,81

. Costa, que

tivera contato pessoal com Orta enquanto ambos se encontravam na Índia, escreveu, ao retornar à Europa, seu “Tractado de las Drogas y Medicinas de las Índias Orientales”, que foi publicado em Burgos em 1578. Neste tratado, Costa reafirmou muitas das posições de Orta, incorporou alguns trechos de seus textos e acrescentou diversas gravuras82. Em matéria de conhecimento sobre a medicina e as drogas orientais ou qualquer outro aspecto filosófico natural, a Índia portuguesa se constituiu enquanto uma área fronteiriça, de grande permeabilidade, onde se encontravam dois universos distintos, a Ásia e a Europa. Não foram poucos os casos de naturais da Índia, principalmente de Goa, que enveredaram pelos caminhos da Filosofia Natural ocidental, somando elementos de bases epistemológicas tanto europeias quanto orientais83. Muitos desses

76

FERRÃO; LIBERATO, op. cit. p. 92-93. DIAS, op. cit. 2005. p. 30. 78 GOUVEIA, op. cit. p. 20-21. 79 GOUVEIA, op. cit. p. 21-24. 80 FRADA, op. cit. p. 70. 81 FERRÃO; LIBERATO, op. cit. p. 92-93. 82 DIAS, op. cit. 2005. p. 30. 83 THOMAZ, Luís Felipe. Prefácio. In: EVERAERT, J. G.; FERRÃO, J. E. M.; LIBERATO, M. C. (Ed.). Suma de Árvores e Plantas da Índia Intra Ganges de Manuel Godinho de Erédia. Lisboa: Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 2001. p. 9-22. 77

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indivíduos eram topazes84, como Manuel Godinho de Erédia que, no início do século XVII, produziu um herbário no qual constavam as ilustrações de diversas plantas asiáticas, além de algumas descrições precisas de suas aplicabilidades medicinais85. Entre os topazes, muitos eram bilíngues, ou seja, além do português conheciam também a língua mãe oriental. No herbário de Erédia, muitas plantas aparecem designadas com seus nomes em concanim, a língua nativa de Goa86. Estes encontros, entre o oriente e o ocidente, não envolveram apenas a Índia e Europa. De certa forma, todas as regiões contatadas pelos portugueses, em seu processo expansionista, participaram da construção de um sistema de trocas intensas, não apenas de experiências culturais e saberes, mas também de elementos físicos. Tal processo era representado, principalmente, pelo transplante sistemático, organizado e metódico de plantas entre os diversos domínios tropicais do império que se expandia87. Um bom exemplo pode ser encontrado nas muitas plantas originárias da América portuguesa que ilustram o herbário “oriental” de Erédia88. De certa forma, uma história da Medicina e Filosofia Natural, resultantes desses encontros, é também a história de um processo de antropização do mundo natural, na medida em que o interesse pelo valor medicinal de determinadas plantas em muito motivou seu transplante e aclimatação, entre Ásia, América, Europa e África89. No que se refere às dificuldades impostas ao estabelecimento e desenvolvimento das colônias, as condições relativas ao clima tropical e às enfermidades correlatas pouco se alteraram na passagem do século XVII para o XVIII. Ao contrário, durante todo o período entre os anos de 1700 e 1800, na Ásia, tanto quanto na América e África, os participantes dos processos colonizatórios e as autoridades imperiais, tiveram que lidar com números expressivos de baixas, entre colonos, soldados, marinheiros, funcionários e escravos. O historiador Timothy D. Walker, aponta em um artigo recente que os

84

Topaz é o termo que designava, nos séculos XVI e XVII, o mestiço resultante do cruzamento entre portugueses e naturais de Goa (THOMAZ, 2001, p. 13) 85 FERRÃO; LIBERATO, op. cit. p. 96-156. 86 THOMAZ, op. cit. 87 FERRÃO, op. cit. 1993 88 EVERAERT, J. G.; FERRÃO, J. E. M.; LIBERATO, M. C. (Ed.). Suma de Árvores e Plantas da Índia Intra Ganges de Manuel Godinho de Erédia. Lisboa: Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 2001. 89 FERRÃO, op. cit. 1993 IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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percentuais de baixas, devido a fatores que envolvem também as doenças tropicais eram, nas décadas anteriores a 1800, consideravelmente altos90. Ao início do século XVIII, as dificuldades no combate às enfermidades, tanto a bordo das naus da carreira quanto em Goa podem ser bem exemplificadas se forem analisadas as correspondências trocadas entre o Rei, e seu primeiro representante na Índia. Em março de 1700, o Rei D. Pedro II despachou duas vezes para o Vice-rei, António Luis Gonçalves da Câmara Coutinho. A primeira, para estabelecer a norma de que os navios da carreira deveriam sempre levar dois religiosos de S. João de Deus, acompanhados de quatro enfermeiros, para que fossem cuidados os doentes durante a travessia91. A segunda correspondência, em tom de urgência, pedia esclarecimentos do Vice-rei acerca da situação do Hospital Real de Goa, os problemas de sua administração e a falta de enfermeiros92. Toda a operação logística em torno das questões da saúde, durante as viagens e nas colônias, consumia decerto uma considerável quantidade de recursos, humanos e financeiros que, no entanto, eram menores do que os riscos em não atentar adequadamente a essas questões. No âmbito geral do Império, este problema invariavelmente esteve na ordem do dia. Do ponto de vista econômico, a questão era sem dúvida crucial, principalmente se levarmos em conta que a mortalidade entre os escravos esteve, por essas e outras causas ao longo do século XVIII, sempre em níveis bastante elevados93. Dentro deste panorama, cresceu, no cômpito geral das necessidades do Império, a urgência por utilizar, de forma mais adequada, os recursos disponíveis em suas diversas partes componentes. Medidas foram tomadas pela coroa, justamente neste sentido. Um dado pode vir a corroborar esta ideia. A partir de 1777, o Conselho Ultramarino passou a comissionar médicos e filósofos naturais, que foram enviados a diversas partes do Império, para catalogar e investigar a respeito das potencialidades medicinais de plantas e outros itens94,95. Ao mesmo tempo, sob incentivo oficial, os contingentes de médicos, 90

WALKER, Timothy D. The Medicines Trade in the Portuguese Atlantic World: Acquisition and Dissemination of Healing Knowledge from Brazil (c. 1580–1800). Social History of Medicine. n, 26; v, 3; maio de 2013; p. 1 – 29. 91 Biblioteca Nacional da Ajuda. Manuscritos relativos à Ásia. Códice 51-VII-24. 92 Biblioteca Nacional da Ajuda. Manuscritos relativos à Ásia. Códice 51-VII-24. 93 WALKER, op. cit. 2013. 94 Idem. 95 WALKER, Timothy D. Acquisition and Circulation of Medical Knowledge within the Early Modern Portuguese Colonial Empire. In: BLEICHMAR, Daniela; DE VOS, Paula; HUFFINE, Kristin; and SHEEHAN, Kevin (Ed.). (2008). Science in the Spanish and Portuguese Empires (1500-1800). p. 247270. IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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enfermeiros e boticários naturais das colônias, especialmente no caso de Goa, aumentaram rapidamente. Seguindo a mesma tendência que pode ser observada em relação a administração pública, postos militares e até mesmo às ordens religiosas, ao longo do século XVIII filhos de famílias goesas católicas ocuparam diversas posições nas instituições de atendimento aos doentes e produção de medicamentos96. De fato, ao final do século XVIII, até mesmo o cargo de físico-mor do Estado da Índia, que foi um privilégio reinol desde o século XVI, era ocupado por Ignácio Caetano Afonso, um brâmane, vaydia, que jamais havia contemplado o promontório de Coimbra a partir da margem Sul do Mondego, muito menos frequentado aquela antiga universidade97. Neste contexto, foram produzidos diversos trabalhos, muitos dos quais nunca chegaram a ser publicados, mas que constituem recursos importantes para a compreensão, tanto no âmbito específico da História da Medicina nas colônias do ultramar, quanto no universo mais geral, da Europa, em tempos de Iluminismo. O presente texto é, desta forma, o ponto de partida para um percurso investigativo que deverá apoiar-se na volumosa bibliografia circundante ao tema, bem como à análise cuidadosa de um amplo conjunto de fontes documentais que serão alvo de investigação da nossa tese de doutoramento.. Ao final desta breve apresentação, esperamos ter sido capazes de traçar uma súmula do panorama, tanto da produção e dos produtores de conhecimento médico na Índia portuguesa do século XVIII, como da importância relativa deste conhecimento no contexto imperial – o qual se apresenta como contexto referencial ao tema da dissertação de doutoramento em curso.

96

LOPES, Maria de Jesus dos Mártires; MATOS, Paulo Lopes. Naturais, Reinóis e Luso-descendentes: a socialização conseguida. In: LOPES, Maria de Jesus dos Mártires (Coord.). O Império Oriental. Lisboa. Editora Estampa, 2006, p. 41-43. (Nova História da Expansão Portuguesa, vol. V, tomo 2). 97 WALKER, Timothy. Evidence of the use of Ayurvedic medicine in the medical institutions os Portuguese India, 1680-1830. In: SALEMA, A. (ed.). Ayurveda: at the crossroads of care and cure. Lisboa. Centro de História de Além Mar. 2002, p. 74-104. IV EJIHM 2015 Porto| IV Encontro Internacional de Jovens Investigadores em História Moderna IV International Meeting of Young Researchers in Early Modern History

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