Rememorando Foucault: Um ensaio sobre o poder

August 24, 2017 | Autor: Maria Odete Madeira | Categoria: Michel Foucault, Foucault power/knowledge - discourse
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Rememorando Foucault: Um ensaio sobre o poder

Maria Odete Madeira 9.02.2015

Foucault traçou conceptualmente o poder como um feixe de relações suportado por uma sistémica estrutural de permanência complexa, abordando-o como uma figura, na qual estão dobradas, ou implicadas, múltiplas posições, ou pontos de aplicação dinâmicos e reticulares que transitam ou transumam por todo o corpo social, num exercício global de formação mecânica em rede, operando através da multiplicidade das relações de força organizacionalmente constitutivas e imanentes ao domínio da sua aplicação, ou seja, às lutas, aos confrontos, à cadeia sistémica social em que se concorda e discorda, se diz e contradiz, segundo estratégias de desenho geral corporizadas nos aparelhos de Estado, na formação das Leis e nas hegemonias sociais. Sistemicamente

determinado

por

uma

não-localidade

suportada

por

cruzamentos de acções e reacções múltiplas do local para o global que têm a sua própria história, o seu próprio trajecto e as suas técnicas e tácticas. O poder, para Foucault, não é uma coisa localizável à qual se possa atribuir uma classificação avaliativa partilhável de bem ou riqueza, o poder é um efeito mecânico que, apenas, funciona em cadeia, rejeitando a possibilidade de subsumir, num centro único, as múltiplas e heterogéneas linhas relacionais que constituem o feixe que o configura, o qual resulta da movimentação heterónima, permanente, instável e local, estrategicamente posicionada em rede, dos pontos comunicantes. Não se trata de um certo poder, ou de uma certa estrutura, ou, ainda, de uma certa instituição, o poder é um nome para uma determinada praxis social tensional, ligada às situações, aos processos, aos contextos, às estruturas, sustentado por um efeito mecânico heterónimo de conjunto, traçado a partir de pontos móveis comunicacionais estratégicos em rede: os indivíduos, os grupos, as famílias, as instituições, as sociedades. 1

A não-localidade mecânica, traçada por Foucault, e que emerge do jogo local/global, rejeita a possibilidade de subsumir, num centro único, as múltiplas e heterogéneas linhas relacionais que constituem o feixe que configura o poder. O global é um efeito do local relacional, logo multicausal, se a configuração causal local muda, também, a configuração global muda, sendo, sempre, configurado interactivamente, a partir de pontos locais, múltiplos pontos de resistência, espalhados pela rede, que desempenham, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de pretexto para uma intervenção. Múltiplos pontos locais da causalidade mecânica que funcionam como marcadores binários de irredutibilidade, o frente a frente que introduz clivagens, quebra unidades e suscita adesões paradigmáticas. E é a partir do tecido, formado pelos múltiplos pontos (ou marcadores mecânicos) e da compreensão das estratégias, implicadas nos mesmos, que podemos falar do poder, o qual não é concebido por Foucault como uma propriedade, mas, sim, como estratégia causal, cujos efeitos de dominação, apenas, podem ser atribuídos a manobras, a tácticas, a técnicas e a funcionamentos agenciados em redes de relações tensionais, ligadas, entre si, por meio de mecanismos de jogo do local para o global, em que violências podem ser geradas e exercidas através dos interrogatórios, das confissões, das interpretações e dos discursos que vigiam, controlam e sujeitam formando um sistema de comunicação, de registo, e de acumulação, constituindo-se em rede, como marcadores de poder que se ligam a outros marcadores de poder. Trata-se, pois, de pensar o poder como causalidade estratégica, cuja eficácia táctica é garantida pela rede de relações de força, estas configuradas como uma mecânica causal. Trata-se, igualmente, de pensar os diferentes marcadores de poder que intervêm na rede, como uma dinâmica vital de gestão e controlo dos pensamentos, dos corpos, das máquinas, das aptidões, das utilidades e dos usos, segundo eficácias de gestão para efeitos de hegemonia e acumulação, em que o biológico, o cultural, o económico, o político e o social são constituídos como recursos transaccionáveis na rede de relações de força. Se com Aristóteles, e após ele, os homens eram pensados, na sua condição de seres vivos, capazes de produzirem culturas, políticas e sociedades, no século XVIII e 2

séculos subsequentes, aliena-se a condição de seres vivos, e de pessoas, colocando-a como acessibilidade em mercados de vida e de morte, em que o exercício do cálculo opera como marcador privilegiado das dinâmicas de poder, estas assimiláveis à figura de um biopoder, apoiado pelo mecanismo da norma, produzida pelo sistema jurídico da lei e armada por uma excelência de morte, destinada àqueles que a transgridem de forma radical, como uma ameaça absoluta. Tal poder é sempre mecanicamente avaliativo e normativamente hierarquizante nas linhas de fronteira. Na teoria jurídica clássica, o poder era configurado como um direito e um bem que se poderia transferir ou alienar, total ou parcialmente, por um acto jurídico. O poder era visto como o poder concreto que cada indivíduo detinha e que poderia ceder total ou parcialmente, através de uma operação jurídica que seria da ordem da troca contratual1. Com Marx, o poder é configurado como um modelo de relações de produção que reproduz uma classe dominante, determinada pela apropriação das forças produtivas. Em ambas as figuras, o poder é aplicado ao funcionamento da economia. No primeiro caso, pode ser configurado por procedimentos de troca e de circulação de bens, e, no segundo caso, por razões económicas de antagonismos de classes. Com Foucault, o poder é determinado pela atribuição de uma mecânica de causalidade local/global que faz funcionar e reproduzir as relações que o caracterizam e que são sempre múltiplas, variadas e aleatórias, segundo mecanismos de visibilidade dos efeitos causais que actuam sobre a natureza, os indivíduos, os grupos, as famílias, as instituições, as sociedades, cumprindo o exercício de controlo que lhes é próprio e que transita através dos desejos, das vontades, dos discursos, das liberdades. Neste registo, uma análise do poder tem de começar nos mecanismos de repressão reticulares infinitesimais, nas suas histórias, técnicas e tácticas, observando o modo como são colonizados, utilizados, inflectidos, transformados ou deslocados, por outros mecanismos e figuras de dominação, cada vez mais gerais.

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Foucault, Microfísica do Poder, p. 174.

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Foi, segundo Foucault2, a partir de mecanismos de controlo reticulares que a loucura e a sexualidade infantil foram reprimidas e cujos marcadores reais podem ser encontrados nas famílias, nos médicos, ou em escalões mais baixos da polícia, os quais, em dado momento, formaram uma rede conjuntural, economicamente lucrativa e politicamente útil, pela qual, instituições económicas, políticas e sociais, em desenvolvimento, e a burguesia que as acompanhava, como classe dominante, se interessaram. A importância não estava na própria loucura, ou delinquência, e nos respectivos modos de agir perturbados das suas vontades, das suas paixões e liberdades, introduzidos, estes e estas, no sistema, como o erro ou o aleatório monstrativo, mas, sim, nos mecanismos de controlo que, então, foram criados e que funcionavam eficazmente dentro do mesmo sistema. Com efeito, foi a partir do século XVII que as práticas de internamento se constituíram, como um mecanismo de exclusão daquilo que as sociedades não podiam aprisionar pelos seus mecanismos de verdade e que, por isso, não reconheciam: “O pobre, o miserável, o homem que não pode responder por sua própria existência, assumiu no decorrer do século XVI uma figura que a Idade Média não teria reconhecido.”3. Aquilo que não podia ser reconhecido era excluído, como uma ameaça a reprimir. O internamento constituiu, na Europa do século XVII, um marcador que respondia à necessidade de enclausurar todos aqueles que não podiam figurar ao lado da razão e dos seus mecanismos de verdade. Tudo o que não era figura de razão, não era figura de verdade e de ordem e, assim, figurava como a desordem, o erro e a culpa que era preciso reprimir. O Hospital Geral, fundado em Paris no século XVII, mais do que uma instituição médica, era uma instituição de ordem que figurava como uma técnica e tecnologia da razão, face à (des)razão: “A prática de internamento designa uma nova reacção à

2 3

op. cit., p. 38 Foucault, História da Loucura, p. 56.

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miséria, um novo patético – de modo mais amplo, um outro relacionamento do homem com aquilo que pode haver de inumano na sua existência.”4. O Hospital Geral foi investido de amplos poderes de autoridade sobre todos os pobres de Paris, quer estivessem, ou não, sob regime de internamento. O mesmo hospital tinha a seu cargo funções de direcção, administração, policiamento, jurisdição e punição: “Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer – o Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei (…)”5. Por toda a Europa do século XVII, o internamento constituiu a resposta reactiva de controlo social à crise económica que, então, se vivia e que tinha como efeitos, a diminuição de salários, o desemprego e a escassez de moeda. Mas se o internamento no século XVII pode ser visto, sobretudo, como um mecanismo reactivo, no século seguinte, o mesmo é investido, sobretudo, de uma função de acção. O internamento passa a ser configurado por uma nova utilidade. Já não se trata, apenas, de enclausurar, mas de pôr a trabalhar os enclausurados, colocando-os ao serviço do crescimento económico como mão-de-obra barata disponível: “Os internos devem trabalhar, todos. Determina-se o valor exacto da sua produção e dá-se-lhes a quarta parte. Pois o trabalho não é apenas ocupação: deve ser produtivo.”6. A partir do século XVIII, os corpos começaram a ser considerados como um valor de uso, uma força produtiva que era configurada por uma nova economia do poder que se constituiu como um marcador activo da implantação do capitalismo industrial. Deste modo, corpos, tempo e trabalho passaram a ser alvos de contínuas vigilâncias, serradas e fortemente repressivas, de adestramento, repartição e organização, com vista ao aumento da sua força útil, as quais (vigilâncias) eram feitas, através de punições, inspecções, escriturações e relatórios, com um mínimo de custos.

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op. cit., p. 56. op. cit., p. 50. 6 op. cit., p. 67. 5

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O suplício passou a ser configurado como um agente político7 que exigia a punição dos corpos, através da lei e por meio das confissões, dos discursos e das inscrições que tornavam pública a culpa revelada e reproduzida, através das cerimónias ritualizadas do sofrimento e da humilhação que investiam o poder de mais poder, este alienado e apropriado, através dos actos de punição: “O rito da execução previa que o próprio condenado proclamasse a sua culpa reconhecendo-a publicamente de viva voz, pelo cartaz que levava e também pelas declarações que sem dúvida era obrigado a fazer. No momento da execução parece que lhe deixavam além disso tomar a palavra, não para clamar a sua inocência, mas para atestar o seu crime e a justiça da sua condenação.”8. A partir da segunda metade do século XVIII, outros procedimentos vieram juntar-se àqueles já existentes. Já não era, apenas, o homem-corpo a ser visado, mas era, sobretudo, o homem-espécie o alvo do poder. Foi a multiplicidade dos homens, como massa global, afectada pelo nascimento, reprodução, morte e doença que passou a interessar ao poder, dando-se um deslocamento estratégico da intensidade dos mecanismos de repressão sobre o indivíduo, para a repressão sobre a espécie estatisticamente reificada e na qual o indivíduo era subsumido por alienação de identidade: os números estatísticos passaram a ser os substitutos dos nomes próprios. O objectivo era o da uniformização massificada por apagamento das diferenças de pessoa, tornando mais fácil as aplicações normativas para uma biopolítica que se iria configurar, cada vez mais, como figura dominante do poder, no que se referia aos seus pontos de aplicação. O controlo passou a exercer-se sobre as taxas de nascimento, morte, reprodução e fecundidade, medidas estatisticamente. A população constituiu-se como um novo marcador do poder. Os fenómenos individuais passaram a ser subsumidos nos fenómenos colectivos, cuja causalidade era medida pelos seus efeitos económicos, sociais e políticos e cuja pertinência era calculada ao nível da massa. Aquilo que era aleatório e imprevisível, quando considerado individualmente, poderia ser calculado estatisticamente, quando considerado colectivamente. 7 8

Foucault, Vigiar e Punir, p. 46. op. cit., p. 54.

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O indivíduo deixou de ser analisado no detalhe e passou a ser analisado, segundo mecanismos globais de regulação e regulamentação da massa. Deixou de se pensar, em termos de nascimento e morte, passando a pensar-se em termos de natalidade e mortalidade. A natalidade e a mortalidade constituíram, assim, dois novos marcadores de poder, cuja causalidade era medida ao nível do equilíbrio global. O poder, configurado por uma mecânica de soberania do rei, tornou-se, deste modo, inoperante, face aos novos marcadores. As figuras emergentes da Nação e do Estado investiram-se de uma forte dinâmica biopolítica, activa e repressiva. Em nome da Nação e do Estado, os afectos, as vontades, as identidades, os comportamentos foram normalizados e regulamentados. Os mecanismos de punição mapeiam uma ideia de arte que se apoia numa técnica e tecnologia de representação, numa mecânica natural9 de acção/reacção. É uma arte do combate às consideradas perigosas energias instauradoras das vontades individuais movidas pelo sentido de liberdade de cada um: “Que a ideia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o arrasta para o crime.”10; “à pena toda a conformidade possível com a natureza do delito, a fim de que o medo de um castigo afaste o espírito do caminho por onde era levado na perspectiva de um crime vantajoso”11. A punição não é abordada como um efeito arbitrário do poder, mas como o resultado do cálculo de uma proporção entre o crime e o castigo. Para quem a contempla, ela é admitida como adequada ao crime que castiga: “Tem que haver relações exactas entre a natureza do delito e a natureza da punição; aquele que foi feroz em seu crime sofrerá dores físicas; aquele que tiver sido preguiçoso será obrigado a um trabalho penoso; aquele que foi abjecto sofrerá uma pena de infâmia.” 12

9

op. cit., p. 87. op. cit., nota (1), p. 87. 11 op. cit., nota (2), p. 87. 12 op. cit., nota (5), p. 88. 10

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Interessava traçar uma economia do poder que desviasse e aprisionasse as forças que estavam na base dos delitos, quaisquer que fossem, e investir, as mesmas, em mecanismos punitivos. O poder jogava estratégica e eficazmente. As mesmas forças que praticavam o delito também o puniam na mesma proporção. O castigo aparecia como um castigo natural e adequado a todos os possíveis culpados, investindo-se de exemplaridade mecânica, colectiva e positiva: “É o triunfo da liberdade civil, quando as leis criminais tiram cada pena da natureza particular de cada crime. Então cessa qualquer arbitrariedade; a pena não depende em nada do capricho do legislador, mas da natureza da coisa; não é de modo algum o homem que faz violências ao homem, mas a própria acção do homem.”13. Processos múltiplos, mínimos e descontínuos repetiam-se, imitavam-se e apoiavam-se mutuamente, distinguindo-se pelos seus campos de aplicação, convergiam, no entanto, para a formação de um método geral que circulava entre o exército, as escolas, os colégios e os liceus e que visava responder a exigências conjunturais de poder: “(…) aqui uma inovação industrial, lá a recrudescência de certas doenças epidémicas, acolá a invenção do fuzil ou as vitórias da Prússia.”14. O corpo passou a ser pensado como docilidade manipulável que se modelava, treinava e obedecia. A figura ideal do soldado, que era reconhecida pelo seu vigor e coragem, passou a ser pensada como uma massa informe, com apagamento da identidade e respectivo arbítrio, e destinada a uma linha de montagem cujo produto final deveria ser uma máquina automatizada, silenciosa e disponível, o corpo humano, em geral, passou a inscrever-se nos circuitos produtivos como matéria-prima e, na linguagem economicista, como recurso: “A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados (…) A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos económicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) (…) a exploração económica separa a força e o produto do trabalho; digamos que a coerção

13 14

op. cit., p.97. op. cit., p. 119.

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disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre a aptidão aumentada e uma dominação acentuada.”15. Neste contexto, a disciplina, tão relevada por Foucault, constituía um instrumento de controlo da produção dos discursos, garantindo a reactualização normativa permanente das regras. A partir da figura da biopolítica, começou a ser traçada a figura de um biopoder que investia na norma e na disciplina como configuradores de estratégias locais/globais, cumprindo um programa de massificação mecânica a funcionar como um valor biopolítico de equilíbrio local/global. O Panóptico de Jeremy Bentham é pensado, por Foucault, nesse contexto, como uma das figuras do poder, cuja causalidade era induzir um estado consciente e permanente de visibilidade16 que assegurasse a imediatez automática do funcionamento da mesma. Disposicionalmente, o Panóptico visava não apenas uma pessoa, mas uma certa distribuição dos corpos, das superfícies, das luzes e dos olhares. Tratava-se, sobretudo, de um olhar organizador, atento e vigilante que punha em funcionamento um projecto de visibilidade total e geral: “O Panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogéneos de poder.”17. A segunda metade do século XVIII tinha sido assombrada pelo espaço escuro que impedia a visibilidade das coisas, das pessoas e das verdades. O desejo de dissolver os fragmentos da noite instalou-se. Era preciso demolir as câmaras escuras do arbitrário político, dos caprichos da monarquia e das superstições religiosas. Os castelos, os hospitais, os cemitérios, as prisões e os conventos suscitavam a desconfiança e o ódio. O poder deixou de tolerar regiões de escuridão: “Se o projecto de Bentham despertou interesse foi porque ele fornecia a fórmula, aplicável a muitos domínios diferentes, de um “poder exercendo-se por transparências”, de uma dominação por “iluminação”: O Panopticon é mais ou menos a forma do “castelo”

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op. cit., p. 119. op. cit., p. 166. 1717 op. cit., p. 167. 16

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(torre cercada de muralhas) utilizada paradoxalmente para criar um espaço de legibilidade detalhada.”18. No sucesso arquitectural do Panóptico inscrevia-se, também, uma economia de baixos custos. Bastava, apenas, o olhar; nem armas, nem violências físicas, nem coacções materiais: “Um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de se observar a si mesmo; sendo assim, cada um exercerá esta vigilância sobre e contra si mesmo. Fórmula maravilhosa: um poder contínuo e de custo afinal de contas irrisório.”19. Às dinâmicas do biopoder que podem ser configuradas a partir da segunda metade do século XVIII, foi-se juntando um certo discurso de bem-estar. As sociedades burguesas passaram a agir segundo dinâmicas que visam o seu bem-estar, ao mesmo tempo que as sociedades proletárias passaram a reagir, procurando, também, esse bem-estar. Investindo-se quer em marcadores agentes em nome da vida, quer em marcadores reagentes preferindo a vida, passou a reclamar-se, em nome da vida, o poder de multiplicar as possibilidades da vida, ao mesmo tempo, que, também em nome da vida, se passou a reivindicar o poder político de matar, pedir a morte, mandar matar, reclamar a morte, dar a ordem de matar e expor à morte: “Como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de prolongar a sua duração, de multiplicar as suas possibilidades, de desviar os seus acidentes, ou então de compensar a suas deficiências? (…) como esse poder que tem essencialmente o objectivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder?”20. É nesta configuração local/global que Foucault introduz a questão do racismo: o racismo21 não apareceu com o biopoder, já existia. O biopoder deu-lhe notoriedade como mecanismo radical de repressão que faz o cálculo do que deve viver ou morrer, introduzindo um corte biológico na espécie humana.

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Foucault, Microfísica do Poder, p. 217. op. cit., p. 218. 20 Foucault, Em Defesa da Sociedade, p. 304. 21 op. cit., p. 304. 19

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O cálculo do aparecimento das raças, da distribuição das raças, da hierarquização das raças fragmenta o campo biológico, no interior da população, configurando certos grupos, em relação a outros, o que permite o tratamento estatístico da mesma, como uma mistura de raças, tornando assim possível a subdivisão da espécie em subgrupos, ou seja, as raças. Esta é a primeira função do racismo22, a saber: fragmentar, fazer cesuras no interior do contínuo biológico a que se dirige o biopoder. Uma segunda função do racismo é compatibilizar com o exercício do biopoder, uma máxima de guerra do tipo: se você quer viver, é preciso que o outro morra, com outras máximas do tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria a minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura.”23. O racismo tornou-se, irrecusavelmente, um marcador biológico do biopoder, investido por uma função de cálculo estratégico, com vista à eliminação das ameaças biológicas: “Quando vocês têm uma sociedade de normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda a superfície e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo.”24. Assassínio directo ou indirecto, como a exposição à morte, ou a multiplicação do risco de morte, ou, ainda, a expulsão e a rejeição são calculados pelo exercício do cálculo racista, o qual assegura que a função de morte, na economia do biopoder,

22

op. cit., pp. 304, 305. op. cit., p. 305. 24 op. cit., p. 306. 23

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funcione como a máxima de que a morte dos outros fortalece biologicamente o indivíduo particular, no sentido em que o mesmo pertence a uma raça e a uma população, e na medida em que é um elemento de uma pluralidade viva. O racismo opera como uma técnica, uma tecnologia, uma táctica e uma estratégia do poder, no seu exercício fracturante de eliminação, necessário à sua soberania e cuja sustentabilidade é garantida pela classificação tipológica sinalizadora de raças hierarquizadas numa mesma espécie. Este biopoder, configurável a partir da figura da biopolítica25, foi plenamente exercido pelo regime nazi, sobrevivendo ao próprio nazismo como operador de poder que se tem desenvolvido e reimplantado e, em certos pontos, modificado, mas de modo algum reexaminado pelas ditas democracias, quanto às suas bases de causalidade e modos de funcionamento. A ideia de um biopoder, configurado pelo investimento na vida, na sua organização, multiplicação e correcção das possíveis ameaças, ou oportunidades biológicas, permanece. Sempre que está em causa a luta contra o inimigo ou o adversário, o cálculo continua a ser feito pelo marcador tipológico de raças. Neste contexto, também o sexo passou a ser um marcador de poder, no sentido em que se constituiu como acesso à vida do corpo, à vida da espécie, sendo alvo de vigilâncias infinitesimais, controlos de todos os instantes, exames médicos, medidas estatísticas e intervenções que visam os indivíduos e os grupos, sendo regulado e regulamentado por um cálculo racista que opera num domínio do valor e de utilidade mercantilizável, compatível com as disciplinas do corpo: o adestramento, a distribuição de força, o ajustamento e economia das energias, e a regulação das populações. Os mecanismos do poder passaram a dirigirem-se ao corpo, abordando-o como como objecto de aplicação do poder, no que respeita ao reforço da espécie e ao vigor da mesma, como capacidade para dominar ou ser dominada; ao seu uso como índice de força social; à sua energia política e, ainda, ao seu vigor biológico reprodutivo. O sexo passou a ser investido de poder matricial regulador: “(…) a sexualidade é procurada até no mínimo pormenor das existências; é acossada nos comportamentos,

25

op. cit., p. 313.

12

perseguida nos sonhos; suspeitam da sua presença sob as mais pequenas loucuras, perseguem-na até nos primeiros anos da infância (…) torna-se a cifra da individualidade (…) aquilo que permite analisá-la e, ao mesmo tempo, o que torna possível fazer o seu levantamento. Mas vemo-la também tornar-se tema de operações políticas, de intervenções económicas (por incitamento ou freios à procriação) de campanhas ideológicas de moralização ou de responsabilização (…).”26. Situada entre o corpo e a população, a sexualidade tornou-se um alvo privilegiado do biopoder para a exclusão da diferença, no que diz respeito às práticas de um saber-poder normalizado para efeitos repressivos disciplinadores e regulamentadores dos corpos e da população, podendo o biopoder ser referido como a mais recente figura do poder, cuja dinâmica pode ser significada, através dos diferentes operadores de dominação, cujos trajectos se ramificam, constituindo redes, nas quais se apoiam, negando-se ou anulando-se, ou, ainda, convergindo e fortalecendo-se, através de estratégias locais/globais, e a partir de multiplicidades de sujeições locais, cuja legitimidade é garantida pela heterogeneidade das técnicas e tecnologias que invertem os valores, os equilíbrios, e as polaridades tradicionais de inteligibilidade, e, cuja explicação é suportada por um cálculo confuso, obscuro, aleatório: “pois o que deve valer como princípio de decifração da sociedade e da sua ordem visível é a confusão da violência, das paixões, dos ódios, das cóleras, dos rancores, dos amargores; é também a obscuridade dos acasos, das contingências, de todas as circunstâncias miúdas que produzem as derrotas e garantem as vitórias.”27. Se os saberes técnicos e tecnológicos tinham uma existência plural, polimorfa, múltipla e dispersa que era conforme às regiões geográficas, empresas e oficinas, pelas quais se distribuíam, de acordo com as categorias sociais, a educação e a riqueza de cada um, era porque tais saberes valiam como riqueza e autonomia, mas os saberes múltiplos, saberes segredos, passaram a confrontar-se e a segmentar-se, ao ritmo do crescimento económico e do desenvolvimento das forças produtivas, contribuindo para uma acumulação e fortalecimento das exigências de segredos que se tornaram cada vez mais tensionais e vulneráveis. 26 27

Foucault, História da Sexualidade I, A Vontade de Saber, p. 148. op. cit., pp. 63-64.

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Foram, então, desenvolvidos mecanismos de anexação, de confisco, e de apropriação dos saberes menores, mais particulares, mais locais e mais artesanais, pelos saberes maiores ou mais gerais, ou seja, os mais industriais e de maior circulação: “(…) uma espécie de imensa luta económico-política em torno dos saberes, a propósito desses saberes, a propósito da dispersão e da heterogeneidade deles; dos efeitos de poder ligados à posse exclusiva de um saber, à sua dispersão e ao seu segredo.”28. A causalidade técnica e tecnológica, ligada à figura do poder, no século XVIII, era garantida pela localidade dos saberes múltiplos, independentes, heterogéneos e secretos, posicionados num frente-a-frente conflituoso, no qual o Estado intervinha, através de procedimentos directos ou indirectos, eliminando ou desqualificando os pequenos saberes, normalizando-os e ajustando-os, tornando-os comunicantes, em termos geográficos, tecnicamente intercambiáveis, fracturando as barreiras erguidas como protecção do saber-fazer individual, dos seus segredos. Os procedimentos possibilitaram a classificação hierárquica que permitia encaixá-los (os saberes), segundo a sua especificidade e materialidade, em formas subordinadas a outras formas, de acordo com os respectivos graus de generalidade e segundo critérios de controlo. Os saberes em geral e o saberes técnicos e tecnológicos circulavam no poder, em rede, e através de mecanismos de selecção, normalização, hierarquização e centralização: “O século XVIII foi o século do disciplinamento dos saberes, ou seja, da organização interna de cada saber como uma disciplina tendo, em seu campo próprio, a um só tempo critérios de selecção que permitem descartar o falso saber, o não-saber, formas de normalização e de homogeneização dos conteúdos, formas de hierarquização e, enfim, uma organização interna de centralização desses saberes em torno de um tipo de axiomatização de facto.”29. Os saberes foram postos sob o controlo da disciplina para a vigilância da regularidade dos enunciados, quanto à sua qualificação e classificação tipológica, tornando-os mais acessíveis, quanto à sua compreensão, circulação e renovação.

28 29

op. cit., p. 215. op. cit., p. 216.

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A disciplina permitiu deslocar saberes, técnicas e tecnologias, das regras do discurso, apenas, imediatamente, verdadeiro, no seu uso prático do saber-fazer, para as regras do discurso dito científico, centrado num conjunto de métodos ou corpus de proposições técnicas e tecnológicas, consideradas verdadeiras. No final do século XVIII, os saberes, as técnicas e as tecnologias continuaram sob o controlo da disciplina para efeitos de poder, prolongando-se nos séculos seguintes, com a ramificação e multiplicação causal disciplinar sobre os corpos e os comportamentos, intensificando-se e consolidando-se a produção dos saberes, das técnicas e das tecnologias para efeitos de acumulação e circulação pelos circuitos da economia, igualmente, para efeitos de poder. Poder, saber, saber-fazer, técnicas e tecnologias passaram a cruzar-se normativamente cada vez mais. A intensidade e constância das respectivas relações eram apropriadas e legitimadas pela disciplina para efeitos de verdades produzidas com o propósito de julgar, condenar, classificar e obrigar a uma certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer. Verdades sempre aprovadas, a partir de relações de força, de dissimetrias e desequilíbrios, para um funcionamento, produção, acumulação e circulação do discurso com classificação de verdadeiro. Verdades transitórias circulantes e actuantes sustentadas pelas relações de força que decidem e veiculam para efeitos de poder. Os

comportamentos

são

surpreendidos,

constrangidos,

capturados

e

fragmentados pelos discursos técnicos e tecnológicos normalizados das verdades legitimadas. Corpo-alma, carne-espírito, instinto-razão, impulso-consciência são colocados sob um regime binário de lícito-ilícito, permitido-proibido, passando o poder a investir-se de uma dupla funcionalidade: exercício/repressão e exercício/prazer: “A sociedade que se desenvolve no século XVIII – a que se chamará burguesa, capitalista ou industrial, como se quiser –, não opôs ao sexo uma recusa fundamental a reconhecê-lo; pelo contrário, pôs em acção todo um aparelho para produzir sobre ele discursos verdadeiros (...)”30.

30

op. cit., p. 73.

15

O biopoder, configurável, a partir dos finais do século XVIII, e identificado por Foucault, investiu no cálculo de manutenção das desigualdades para efeitos de causalidades locais/globais de controlo, localizadas nas grelhas de inteligibilidade do poder, acoplando a sexualidade aos processos económicos e respectivos enunciados incorporados nos blocos tácticos e estratégicos actuantes no campo das relações de forças, tendo sobrevivido até agora como praxis normativa imposta pelos discursos de poder sobre o poder: poder-saber, poder-fazer, poder-ser, poder-existir. Há que interrogar a causalidade dos discursos, há que interrogar os modelos tácticos e estratégicos das forças, há que interrogar os modelos do direito, da política e da economia. Trata-se de nos orientarmos para uma concepção dinâmica do poder analisada, a partir de campos múltiplos e móveis de relações de força, nos quais se produzem efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis, de dominação, e deles nos libertarmos da condição de subjugados destinados aos mercados de vida e de morte, para nos afirmarmos na nossa identidade e diferença de pessoas com direito ao seu arbítrio, à sua dignidade como um proprium de vida, sem o qual não é possível falar de diversidade, condição fundamental do crescimento, do desenvolvimento da evolução, e da própria vida.

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BIBLIOGRAFIA

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