RENDA DE BILROS EM PORTUGAL E NO BRASIL: PATRIMÓNIO E MERCADO

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Anais 3° Colóquio de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo e Design Brasil-Portugal: UFU e UL

FAUL – Lisboa – Portugal – 2015

Anais 3° Colóquio de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo e Design Brasil-Portugal: UFU e UL

Organização Glauco de Paula Cocozza (FAUeD-UFU) Tânia Biesl Ramos (FA-ULisboa) Edição Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Design - FAUeD Av. João Naves de Ávila, 2121 - Bairro Santa Mônica Uberlândia - MG - CEP 38400-902 ISSN – CD-ROM 2358-4076

FAUL – Lisboa – Portugal – 2015

RENDA DE BILROS EM PORTUGAL E NO BRASIL: PATRIMÓNIO E MERCADO BOBBIN LACE IN PORTUGAL AND BRAZIL: HERITAGE AND MARKET BRIZOLA, Ana Lídia Campos (1) Mestre em Psicologia Social Pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal de Santa Catarina e-mail: [email protected] BIEGER, Isabel Cristina (2)1 Doutoranda do curso de doutoramento em Design Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa e-mail: [email protected] CARVALHO, Cristina (3) Professora Assistente - Faculdade de Arquitetura - Universidade de Lisboa email: [email protected] Resumo A renda de bilros constitui um património cultural que tem sobrevivido, mesmo que timidamente, entre a industrialização e a contemporaneidade, às mudanças do mundo. A história da sua urdidura atravessa séculos e continua enraizada junto às regiões costeiras - comummente associada à atividade pesqueira. A sua importância advém não apenas da originalidade e beleza intrínsecas, mas da característica de um saber fazer artesanal, da sua forma tradicional de transmissão e do seu papel enquanto manifestação identitária. Actualmente, diversos investimentos públicos e privados são realizados, por vezes articulados, para que a renda de bilros não se perca como património mas, também, para que venha a participar ativamente da economia local e regional. Aqui relacionamos as rendas de Peniche/Portugal, considerada mais antiga e a renda de bilros de Florianópolis/Brasil. Buscamos as semelhanças entre elas nas estratégias de difusão e de preservação, visando a conservação e a continuidade do bem patrimonial. Inseridas em comunidades tradicionais, as rendas de bilros testemunham e reforçam identidades locais. Se antigamente estabeleciam-se redes mais ou menos espontâneas de intermediários e consumidores, hoje são, também, os investimentos públicos os responsáveis pela inserção dessa renda-produto no mercado e pela conservação de um património que encontra-se potencialmente ameaçada de desaparecimento. Palavras chave: renda de bilros, património cultural, design, comunidades tradicionais. Abstract The bobbin lace is a cultural heritage that has survived between industrialization and the contemporary, in the change of the world. The story of his warp spans centuries and remains rooted along the coastal regions - commonly associated with fishing. Its importance stems not only from the intrinsic beauty and originality, but feature an artisanal know-how, their traditional way of transmission and its role as a manifestation of identity.

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Bolseira Capes 2013/14 114

Currently, various public and private investments are made, sometimes articulated, so that the lace is not lost as heritage but also that it may actively participate in the local and regional economy. Here we relate the lace of Peniche/Portugal, considered the oldest, and the lace of Florianópolis/Brazil. We seek the similarities between them in strategies for dissemination and preservation in order to continue the heritage property. Inserted in traditional communities, bobbin lace witness and reinforce local identities. If previously established more or less spontaneous networks of intermediaries and consumers today are also public investments responsible for the inclusion of this income-product on the market and for the conservation of a heritage that is potentially threatened with disappearance. Keywords: bobbin lace, cultural heritage, design, traditional communities.

RENDA DE BILROS EM PORTUGAL E NO BRASIL: PATRIMÓNIO E MERCADO A renda de bilros é uma atividade muito antiga e a discussão sobre a sua procedência é ambígua. Não há documentação suficiente ou capaz de provar a sua origem e alguns países a disputam. A renda de bilros, onde quer que se encontre, é reconhecida como um património cultural, abarcando dimensões materiais e intangíveis. Tendo em conta o contexto histórico da colonização do Brasil por Portugal, é legítimo pensar na renda de bilros como uma herança cultural do período e, ainda mais relevante, sua trajetória nos dois países, a fim de identificar semelhanças e dar início a uma discussão que nos leve, futuramente, a uma proposta de design de serviços voltado às populações detentoras de saberes tradicionais, bens culturais a serem preservados. Em Portugal, focaremos a renda de bilros de Peniche, cidade costeira localizada no centro oeste do país. No Brasil, nos debruçaremos sobre as rendas encontradas em Florianópolis, cidade litorânea, capital do estado de Santa Catarina, sul do país. Ambas têm na renda de bilros um património reconhecido, valorizado como bem cultural e explorado como atrativo turístico. Também em ambas, é possível perceber um gradativo desinteresse das novas gerações a ameaçar a manutenção da tradição. Assim, instituições locais investem na preservação da renda através, sobretudo, de iniciativas focadas na transmissão dos saberes pertinentes e na promoção de valores que a ancoram. A renda de bilros em Peniche Em Peniche é inevitável associarmos a renda ao movimento piscatório, estabelecendo uma relação intrínseca e marcada pelos nós, nós da renda e nós da rede de pesca. Há quem afirme que em Portugal aprendeu-se a fazer a renda com os belgas, outros, com os árabes. Remotas ligações e carência de documentação tornam imprecisas as teses sobre a procedência da renda de bilros em Peniche. A renda de bilros, fortemente presente na cidade, sempre foi realizada em paralelo com a atividade piscatória, sendo divididas por gênero: a pesca é predominantemente uma tarefa 115

masculina e a renda tarefa feminina. Frequentemente a renda de bilros vezes serviu, se não como sustento, como complemento na renda familiar. Para a confeção da renda de bilros são necessários materiais e instrumentos específicos, uma almofada especial, cilíndrica com o meio vazado que tem como objetivo segurar e virar a renda quando for preciso. Esta almofada deve conter palha de trigo no seu interior e forro de tecido de linho ou de algodão, também chamada de rebolo, a qual fica apoiada sobre um banco de madeira. São precisos, também, os moldes em cartão desenhados e perfurados com agulha (piques), alfinetes, linhas e finalmente as peças que dão nome à renda, os bilros, que poderão ser de madeiras diversas, de marfim ou de outros materiais. Os tipos de bilros diferem muito de acordo com os locais em que a renda é feita e com as condições financeiras da mulher rendeira (Vargas 2004, 13). Normalmente executada com fio de algodão de cor branca, percebe-se pouca alteração no design da renda ao longo dos anos, e ao mesmo tempo pouco investimento no que diz respeito à inovação do produto e à sua apropriação. Com usos e funções pouco alterados a renda de bilros tornou-se pouco atrativa para as gerações mais jovens, que pouco se interessam na sua aprendizagem e continuidade enquanto tradição. A renda de bilros em Peniche é ensinada na maioria das vezes de forma familiar. Ainda em crianças aprenderam através das mães ou das avós. Algumas antes de irem para a escola já sabiam fazer a renda de bilros. Segundo Mariano Calado (2003) é esta atividade que marca o fluxo de vida natural de muitas mulheres de Peniche. A mulher, mesmo que não precise do retorno financeiro com a venda das rendas, honra-se em continuar a fazê-las. Este orgulho pela tradição, o evocar das coisas da terra, faz-nos pensar na profundidade poética que a renda de bilros encerra e na influência que esta exerce sobre a identidade das mulheres rendilheirasi. São estas relações e constituição de identidades que dão vida a este saber popular. “(…) durante as prolongadas invernias em que a miséria vivia paredes meias com a gente do mar, eram elas, com o produto da venda das suas rendas, o único recurso da família” (Calado, 1991, p. 383). Peniche reconhece a renda como a arte da sua terra, da sua cultura e do seu povo. Entre oscilações na valorização da renda de bilros, as mulheres de Peniche consideram quase que uma obrigação aprender. É muito difícil encontrar uma mulher de Peniche que nunca tenha tocado nos bilros ou assistido ao processo de urdidura. A renda de bilros constitui a identidade visual de Peniche e está presente na história da maioria da população. É o próprio povo que a reconhece como um bem e faz da urdidura da renda um prazer pessoal.

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A identidade está profundamente envolvida no processo de representação social, e estas, localizadas num tempo e num espaço simbólico. Para o autor Stuart Hall a sociedade moderna convive com a mudança rápida e contínua e que “as culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintamente novos produzidos na era da modernidade tardia” (Hall, 2006, p. 89). Isso nos leva a pensar a necessidade de articulações entre a tradicional renda de bilros e elementos da atualidade, para que sejam renovados os laços, as representações, que como as identidades, estão em constante metamorfose. Assim, a identidade poderá ser encontrada também “nas tradições inventadas que ligam o passado e o presente, em mitos de origem que projetam o presente de volta ao passado, em narrativas de nação que conectam o indivíduo a eventos históricos nacionais mais amplos, mais importantes” (Hall, 2006, p. 72). Em Peniche as primeiras escolas de renda eram as chamadas “escolinhas populares”, consideradas como o local de acolhimento das crianças, em que lhes era ensinado, sob a doutrina católica, a ler, a escrever e a contar e a praticar a renda de bilros. Deram continuidade e desenvolveram a tradição, através da transmissão de saberes e de conhecimentos. “Mais do que estabelecimentos de tomar conta de crianças, estas escolinhas particulares terão sido, de facto, o autêntico caminho por onde terá passado, de modo relevante, a transmissão do saber das rendas” (Calado 2003, 134). A seguir existiu a “Casa de Trabalho das Filhas de Pescadores”, que como o próprio nome diz, eram destinadas às filhas dos pescadores e tinham a aprendizagem da renda de bilros como uma das atividades desenvolvidas. Peniche teve ainda a “Escola de Desenho Industrial” voltada a suprir as necessidades locais tais como o desenvolvimento de piques. Após o encerramento da escola, a renda de bilros passou a ser uma disciplina de opção curricular na Escola Secundária. Através do estímulo do grupo Amigos de Peniche, criou-se a Associação Rendibilros e, a partir desta, a escola-oficina, com o objetivo de estimular, defender e promover o desenvolvimento da renda. Hoje a “Escola de Rendas” está localizada no edifício do Posto de Turismo de Peniche, no centro da cidade. A Escola é uma referência como baluarte na defesa deste Património local, frequentada por alunas dos 6 aos 90 anos. A Escola, além de ensinar a fazer a renda de bilros, serve também como ponto de encontro das mulheres rendilheiras. Aos sábados são as crianças que vão à Escola de Rendas e, no verão, a Escola funciona também como atelier, uma alternativa de ocupação do tempo livre, dedicada ao fomento da arte de rendilhar, de forma lúdica e divertida, durante o período de férias escolares.

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Para que a renda de bilros não se perca com o tempo, a Câmara Municipal de Peniche investe em alguns serviços para o uso da comunidade. A Escola de Rendas citada acima é um dos exemplos. A Câmara dispõe de uma monitora capaz de auxiliar e acompanhar todas as ações e aprendizagens à volta da renda de bilros. Peniche comemora em Julho o dia da rendilheira alargando para um evento de 4 dias chamado “Mostra Internacional Rendas de Bilros de Peniche”. Neste evento reúnem-se rendilheiras de várias partes do mundo com programação específica em torno da renda. Workshops e concursos de inovação são atrações do evento. Do mesmo modo, a Câmara Municipal buscou parceria com a MODATEX – Centro de Formação Profissional da Indústria Têxtil, Vestuário, Confecção e Lanifícios, para busca de novas utilizações ou aplicações da renda de bilros no vestuário. Esta sinergia foi mais um investimento para o aproveitamento da renda. Os resultados são apresentados em desfile na “Mostra Internacional”. O projeto “Rendas de Bilros vão à Escola” é transversal e significativo, pretende motivar as crianças do primeiro ciclo do Ensino Básico do Concelho para o conhecimento e aprendizagem do artesanato típico da terra. Esta iniciativa tem lugar todos os anos, no mês de Março mobilizando toda a comunidade na troca de experiências e conhecimentos. É mais uma iniciativa por parte da Câmara que contribui para a inversão da tendência do desaparecimento da renda. A Câmara apoia o desenvolvimento da renda de bilros, sendo estes incentivos capazes de resgatar a valorização da tradição pelo povo. A Câmara Municipal de Peniche homenageou, também, as mulheres rendeiras, através de um monumento encomendado ao escultor Fernando Marques, escultura que hoje encontra-se no jardim público de Peniche. Outro projeto que devemos salientar é a construção do Museu destinado à renda de bilros, que hoje encontra-se em construção. Com a finalidade de divulgar a nível nacional e internacional este artesanato, a Câmara Municipal de Peniche investe na promoção da sua sobrevivência mostrando-nos claramente a preocupação em manter viva a tradição do povo. Consideram a renda de bilros não apenas inerente à vida da comunidade, mas como uma atividade desenvolvida no quadro da cultura popular local, como parte da identidade do seu povo. Diante do pouco interesse das novas gerações, estas iniciativas buscam evitar o afastamento da comunidade da sua tradição, promovendo a renda não apenas como um objeto de desejo para o consumo, mas acima de tudo como património local. Rendas e rendeiras em Florianópolis

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De origem europeia, a renda de bilros chega a Santa Catarina através da migração de açorianos promovida por Portugal no século XVIII para a ocupação do litoral. No contexto de uma economia de subsistência, onde a lavoura e a pesca eram preponderantes, a renda adquiriu um papel secundário porém relevante, garantindo, muitas vezes, o ingresso monetário que viabilizava a aquisição daquilo que não era produzido. Somada às tarefas da casa, da roça e da criação de animais, a renda era produzida nos breves períodos entre uma atividade e outra e, sobretudo, à noite. (Beck, A., Costa, C. M., Torrens, J. C. & Lacerda, E. P., 1982). Voltada inicialmente para a constituição de enxovais, objetos de uso e decoração da casa, as rendas agregavam ao valor económico, as habilidades e criatividade da fazedeira de renda ou rendeira, exercendo também seu papel na socialização feminina. As mulheres eram introduzidas na atividade desde a infância, cerca de 7 anos, aprendendo com as mães ou irmãs mais velhas, em geral ajudando na confeção de mercadorias que seriam entregues a uma comerciante, também chamada rendeira, que as levaria para vender na cidade. O aprendizado tinha, ainda, o objetivo de tornar as moças prendadas, além de fazer com que permanecessem mais tempo em casa. Atividade passada de mãe para filha, é bastante comum encontrar gerações de rendeiras trabalhando juntas. Muitos filhos foram ninados ao som dos bilros, comeram, estudaram ou ganharam algum mimo fruto da renda, que passou a constituir a identidade dessas comunidades. Quanto ao material utilizado para a produção da renda na região, deve-se contar com: almofada cilíndrica, que pode variar de tamanho desde 29 x 32 chegando a 40 x 100 cms, recheada de fibras vegetais (palha de bananeira, macela, gravatá etc); bilros, que são pequenas bobinas de madeira (podendo ser esta rabo-de-macaco, guamirim entre outros) com aproximadamente 15,0 cms; alfinetes (feitos de espinhos de mandacarú, xique-xique ou laranjeira); piques que são modelos para as renda, feitos através da perfuração de um papelão geralmente amarelado, para que se destaque da cor da renda, geralmente branca, e os fios, usualmente linha de algodão (Soares, 1987). Entre as rendas de bilro mais conhecidas, produzidas no município, estão a “Maria Morena” e a “Tramoia”, ou renda de sete pares, que é considerada um produto típico de Santa Catarina, produzida principalmente por artesãs do Ribeirão da Ilha e da Lagoa da Conceição. Artesanato intrinsecamente articulado ao modo de vida das comunidades produtoras, esta atividade e os saberes a ela relacionados, apesar da constante reinvenção, sofrem um progressivo processo de abandono, em virtude de novas práticas culturais e econômicas introduzidas nas comunidades (Lago, 1998), no bojo da expansão do capital, urbanização e desenvolvimento do turismo na região, que se dá sobretudo nos anos 70 do século XX. Com 119

a melhoria de acessos rodoviários, frentes de expansão econômica passam a pressionar essas comunidades, sobretudo os ramos imobiliários e turístico. Uma nova lógica se contrapõe ao modo de vida tradicional, seduz e abala suas estruturas. Nesse contexto, irão pesar, ainda, as dificuldades de adaptação do produto às tendências e critérios de um mercado moderno, o baixo retorno financeiro obtido pelas artesãs, que não podem prescindir das intermediárias e as exigências físicas e de tempo para a confecção da renda, tornando o investimento cada vez menos atrativo, sobretudo para as jovens que passam a vislumbrar outras formas de inserção social e no mercado de trabalho. Com isso, técnicas de confecção da renda e também dos instrumentos de trabalho deixam de ser passadas às novas gerações, preconizando o fim da atividade. Com esta preocupação, entre outras, instituições locais passaram a investir em oficinas nas quais rendeiras transmitem seus conhecimentos e socializam com os participantes em espaços culturais da cidade, seja na região central do município ou nas localidades onde vivem as rendeiras. No ano de 2010, o governo federal, através de parceria entre o Ministério da Cultura (Minc) e a Fundação Cultural de Florianópolis Franklin Cascaes (FFC) viabilizou a criação do Centro de Referência da Mulher Rendeira, espaço permanente de exposição de variados tipos de renda de bilro produzidos do município. Após reforma do prédio, o local deverá contar com uma loja, agregada a um centro museográfico, com fotos, vídeos e outros tipos de registro da memória desse trabalho artesanal. Está previsto também um censo de identificação das rendeiras da cidade e elaborado um inventário de referências culturais da renda de bilro catarinense. O objetivo é incentivar a preservação da produção artesanal da renda de bilro, investindo em estratégias para evitar que essa tradição venha a desaparecer. Estudos em desenvolvimento no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal de Santa Catarina, levantam aspectos histórico-culturais, sociais e econômicos que envolvem esse artesanato, além dos significados que assume para as mulheres que o produzem. O Museu é guardião de uma coleção de rendas de bilro composta por cerca de 300 peças, na sua maioria reunidas ao longo de 40 anos pelo folclorista Doralécio Soares, podendo abranger um período de produção ainda maior. A pesquisa sobre os materiais e técnicas utilizados através do tempo, permite vislumbrar as transformações em todo o contexto, em que o modo de vida tradicional é pressionado pela lógica do capital. Nesse sentido, é possível observar o progressivo abandono das técnicas mais complexas, que exigiam mais tempo e desenvolvimento de maiores habilidades, em favor de pontos mais simples e abertos, que permitiam uma maior produção em menor tempo e com economia de fios. É possível observar, ainda, o abandono do fio tecido artesanalmente pelo fio 120

industrializado, a introdução de cores e a priorização da confecção de artigos do tipo souvenir. A rendeira, no entanto, seguiu trançando seus fios na mesma almofada, em casa, driblando o tempo e a modernidade com suas tramóias. Em 2011, a instituição deu início a um trabalho de qualificação de sua coleção de rendas com a participação de rendeiras da cidade, e desenvolveu duas iniciativas de difusão da renda de bilros e capacitação de rendeiras para a modelagem de peças de vestuário e acessórios. Em parceria com a organização não-governamental ALICE - Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação e o curso de extensão ECOMODA (UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina), o Museu formou a rede AME, com a finalidade de registrar, preservar e difundir os saberes das rendeiras de Florianópolis, além de contribuir para o desenvolvimento de novos produtos. O projeto empreendeu um conjunto de ações baseando-se na participação ativa das rendeiras. Em uma série de encontros foram discutidas preocupações destas mulheres relacionadas às atividades e seu futuro, em especial a organização coletiva, o preço justo do produto e a atual condição das rendeiras - em processo de extinção, sem direitos trabalhistas e com imensas dificuldades para sustentar a si e suas criações. Foram confeccionadas peças especiais de renda, sob a orientação de estilistas e modelistas, que formaram uma pequena coleção de peças de vestuário e acessórios. As mesmas foram apresentadas em um desfile de moda na Ecofashion 2012, no Rio de Janeiro. Posteriormente, as peças compuseram uma exposição coordenada pelo MarquE/UFSC, inaugurada no mesmo ano. Foram realizadas, ainda, entrevistas em profundidade com rendeiras de diversas localidades do município, bem como com artesãos de bilros, que foram gravadas em áudio e vídeo para a composição de um livro e vídeo. Paralelamente, rendeiras, em visitas sistemáticas à reserva técnica do Museu, puderam ter contato com o acervo e identificar em variadas peças, materiais, pontos e desenhos. Uma outra etapa é prevista para esse trabalho: a confecção de piques a partir do acervo, o que permitirá a reprodução de peças não mais confeccionadas. Ressaltamos, no entanto, que os empreendimentos mencionados, Centro cultural da mulher rendeira e Projeto AME não lograram reunir esforços para um trabalho mais ambicioso em relação a esse património cultural, apesar de alguns esforços localizados. Esta é uma questão que não poderá ser tratada aqui, mas que não deixamos de destacar pois reputamos da maior importância para o desenvolvimento de projetos futuros. Na troca de informações sobre as realidades encontradas em Peniche e Florianópols, encontramos, como visto, situações bastante semelhantes, onde o património é ameaçado por uma modernidade que não o abraça, verdadeiramente. Frentes econômicas tem feito 121

dele mais uma mercadoria, atrativo turístico que tende a permanecer apenas como repetição, cópias sem sentido (Zanella, 1999). Instituições diversas, ainda que busquem a preservação de bens culturais, precisam ter em vista que esses bens são constituídos em contextos de modos de vida tradicionais, que embora estejam em constante mudança, só podem se manter, enquanto tal, em processos de transformações lentas, que se baseiam em territórios, relações com o ambiente, coesão social. Sem a manutenção dessas bases, podemos ambicionar a continuidade de tradições, a preservação de bens imateriais e produções diversas delas decorrentes? Que identidades emergirão dos processos de transformação contemporâneos? Que identidades poderão ser forjadas? As rendeiras não tecem o passado, suas tramas articulam passado, presente e futuro. A vida é transformada e o tradicional reinventado, ressignificado. Renda, como gente, se presta a mudar, mas para isso só precisa de tempo. E de existir. Referências Beck, A., Costa, C. M., Torrens, J. C. & Lacerda, E. P. (1982). Roça, pesca, renda: Trabalho feminino e reprodução familiar. Boletim de Ciências Sociais, 23, pp. 5-39. Calado, M. (2003). História da Renda de Bilros de Peniche. Peniche, Edição de autor. Calado, M. (1991). Peniche na História e na Lenda. Peniche, Edição de autor. Hall, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro, DP&A Editora. Lago, M. C. S. Famílias e modos de vida. Paideia, fev-ago 1998, 33-43. Soares, D. (1987). Rendas e Rendeiras da Ilha de Santa Catarina. Florianópolis, FCC. Zanella, A V., Balbinot, G. & Pereira, R.S. (1999). Tu me ensina a fazer renda que eu te ensino a ... inovar: Um estudo do constituir-se rendeira à luz da psicologia históricocultural. In Silveira, A.F., Gewehr, C., Bonin, L.F. & Bulgagov, Y.L.M. orgs. Cidadania e participação social, Porto Alegre, ABRAPSOSUL, pp. 183-194.

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Em Portugal é utilizado o termo de rendilheiras, no Brasil utiliza-se rendeiras.

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