RENDERS, Helmut. \"Suprindo na vossa abundância a falta dos outros\". In: Mosaico – Apoio Pastoral, ano 10, n. 25, p. 12-14 (abril/junho de 2002).

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etodismo

Suprindo na vossa abundância a falta dos outros Mordomia judaica e cristã e os/as pobres (parte II) Helmut Renders Sou ecônomo de Deus para os pobres1

embrei na primeiraparte,desteartigo,queaproposta da economia cristã de JoãoWesleycaracterizouse por uma profunda compaixão para com os (as) pobres.2 Segundo um bom número de publicações, defendendo o dízimo, como “a” forma bíblica de mordomia cristã, a proposta de João Wesley deveria ser simplesmente desconsiderada.3 Mas será que nada sustenta mesmo a prática wesleyana?

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O Dízimo no mundo do Antigo Testamento: uma prática questionada

O dízimo é uma instituição muito mais antiga do que o AT. Assim, Gênesis 14.20 e 28.22, ligam o dízimo com os lugares Betel e Jerusalém antes que eles se tornassem importantes santuários em Israel e Judá. O “Código da Aliança” menciona somente contribuições na forma de primícias ou de primogênitos. As duas únicas vozes com referência ao tempo dos reis, 1 Samuel 8.15-20 e Amós 4.4, questionam esse dízimo parecido com a prática dos povos vizinhos. Primeira transformação: um meio de

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fraternidade

Inicialmente, o dízimo garantiu o sustento dos levitasnosdiversossantuáriosemIsraeleJudáenas cidades dos levitas. “O cerne mais profundo dessafraternidade(deIsrael) é formado pelos levitas. Eles não têm posse [...] A sua função é o serviço no santuárioesecomoissose tornampobres[...]justamente então pode ascender-se,emrelaçãoaeles,a fraternidade dos israelitas.”4 Nesta linha, Números 18.26 reflete um funcionamento do templo mais clássico, onde os sacerdotes receberam o dízimo do dízimo dos levitas. Segunda transformação: a ampliação da solidariedade

No inicio da época do reinado do Josias, durante a decadência do Reino daAssíria,opovodaterra manteve o poder em Judá. Os levitas, que em parte já tinham que fugir do norte para o sul,5 encontraram-se, segundo Deuteronômio 14.29, 16.11, 14 e 26.11, agora lado a lado com viúvas, estrangeiroseórfãos.Diantedas mudanças sócio-econômicas,substituiu-se,emparte, o antigo Código de Aliança.Nestasituação,o dízimotorna-sepapelchave, porém, numa forma

radicalmente nova: “Nosantuário(...)odízimo e os primogênitos devem ser consumidos pelo israelita(...).Nãosemenciona nenhum recebedor (...) Na prática (...) isso acaba com o dízimo, pois o próprio produtor vem a consumi-lo.”6

O santuário transformou-se numa espécie de um centro comunitário. Ainda mais, no terceiro ano, o dízimo foi distribuído diretamente para os pobres no lugar da produção. Tempo de exílio e pósexilio: múltiplas vozes

A falta do templo explica a ausência do tema durante do período do exílio. Ezequiel confirma somente a perda funcional dos levitas em Jerusalém. Ele propõe a posse da terra como solução.7 O retorno para Jerusalém inclui um projeto da reconstrução do templo. Assim, reaparece o tema

em três variantes: Segundo Ageu 1.14, o povo contribui com a sua mão de obra, e o tema de dinheiro aparece indiretamente (2.8).Esdras2.68-69fala de“ofertasvoluntárias[...] de acordo com as suas possibilidades”e doações de colheitasdasterrasdorei Cirus (7.8). Em Neemias 13,odízimoparecejárestabelecido, agora como sustentodoslevitas.Neemias 5.17 relata uma refeiçãosolidárianacasado próprio Neemias, com 150 pessoas diariamente, dentreeles,estrangeiros. Talvez temos aqui um reflexo da prática de Deuteronômio.8 Pós-exílio: a lembrança do aspecto solidário em Malaquias

Malaquias 3.7-12 menciona os levitas e a instituição do dízimo em ligação com o Templo. O teólogo metodista Meeks interpreta Malaquias 3.7-

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12 como exemplo de cuidado para com os (as) pobres.9 E, realmente, Malaquias 3.3-4, não lamenta a falta de ofertas,10 mas a ausênciadejustiça.Segundo 3.5, a opressão dos órfãos,dasviúvaseaprivação dos estrangeiros dos seus direitos fazem parte da falta de respeito pelo SenhordosExércitos.Voltar,converter-sesignifica parar de roubar de Deus (v.8)11. Segundo Meeks, roubar de Deus e roubar do pobre são a mesma coisa.12 Assim, o “alimento em minha casa” serve para ospobres,inclusiveoslevitas (Ml 3.3). Talvez, Malaquias siga mais Deuteronômio. Concordo em geral com Meeks: “O dízimo existe por muitas razões na Torá. Mas a razãomaisdistintivaéodireito dos pobres ao sustento [...]. Em nosso contexto, freqüentemente pensamos no dízimo como um meio de sustento das instituições religiosas. O dízimo, de fato, é uma forma de edificar a casa, assegurando que ninguém será excluído dos meios de sustento da casa.”13

Adiferençaentreasleis do dízimo do Antigo OrienteedeIsraelestá,então, na busca da garantia da vida do(a) excluído(a) a partirdeumasolidariedade mútua. “O grande símbolo da fraternidade do povo de Deus

é a solenidade no santuário central. Aí, cada um leva a sua oblação e o seu dízimo, e recebe de volta uma parte, e assim se toma fraternalmente em comum a refeiçãocultual.”Isso“[...] mais tarde impressionou a comunidade cristã primitiva de Jerusalém.”14

Novo Testamento 15 Fonte Q: na tradição do Deuteronômio?

Lucas 11.42 (Mt 23.23) lembra muito Deuteronômio. O seu final é o único texto do NT útil como base a favor de um mandamento geral de dizimar. Só que, se for a intenção principal destas perícopes, no mínimo, os outros autores do Novo Testamento devem a nós um pronunciamento explícito. O acordo da igreja: manter a solidariedade

Não é por causa de falta de oportunidades. O Concílio de Jerusalém não teria confirmado uma ordenançaarespeito,seesta existisse? Só que em Atos 15.12-41, mencionam-se leis do Antigo Testamento, mas não o dízimo. Paulo soma os deveres do conselho em Gálatas 2.10: “Que nos lembrássemos dos pobres”.16 Mas como? Justamente a partir de Gálatas2.11,luta-sepelaintegridade da Ágape. Ela eraalgoconstitutivopara a igreja primitiva também

segundo Atos 2.4247, onde Lucas descrevearefeiçãofraternalsocial integrada no encontro cúltico-sacramental. Em seguida, menciona a comunhão dos bens. Atos, como os de Paulo, refletem um cuidado mútuo no nível local comointer-eclesial,apartir da “colheita pelos pobres de Jerusalém”17, tema de 2 Coríntios 8 e 9. Existe um compromisso de contribuir, mas a medida é de acordo com a renda.18 O discurso concentra um número significativo de termos essenciais da teologiapaulina,ouseja,Paulo motiva através de argumentos.19 Do dízimo, porém, não se fala, mas sim, do aspecto solidário na herança do Deuteronômio. Na busca de igualdade

A procurada koinonia localeuniversalnaeclésia busca shalom e sedaqah: “Pois digo isto não para quehajaalívioparaoutros eapertoparavós,maspara que haja igualdade, suprindo, neste tempo presente, na vossa abundânciaafaltadosoutros,para que também a abundância deles venha a suprir a vossa falta e assim haja igualdade.” (2Co 8.13). Romanos 15.7 argumentadeformaparecidaacres-

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centando aspectos pneumáticos. O sustento de obreiros(as)

1 Coríntios 9.11 aplica Romanos 15.7 no caso de sustento de obreiros. 1 Coríntios 9.13-14 faz o paraleloentreoslevitase sacerdotes e os proclamadores do evangelho. Paulo menciona aqui uma ordenança do Senhor20, entretanto,nãoaceitaporele mesmo (v. 15)! Além disso, fala-se do direito do sustento em 1 Timóteo 5.17-18 a partir de um ditado popular.21 Todosestestextosrefletem a idéia de solidariedade eclesiásticacomoobreiro necessitado, porém, não menciono o dízimo explicitamente. Por quê? Conclusão

Partimos da pergunta, seapráticadeJoãoWesley teriaqualquersustentobíblico. Acredito que “sim” no sentido de “também”. Wesley não segue a linha realesacerdotal,masalinha profética e popular. A sua proposta de ofertas segundo a arrecadação pessoal se baseia em Esdras 2.68-69 e 1 Coríntios 16.2 e na falta de uma palavra explícita a favor do dízimo no NT. A sua compaixão para com os(as) necessitados(as)eousodascontribui-

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ções especialmente para o Notas bem estar dos(as) pobres 1 Carta para Carlos Wesley, tem fortes raízes em Deu27/11/1766. Também: “Deixa ele retribuir tudo que ele teronômio, em Paulo e em consegue para Deus, no 22 Atos. A possibilidade de pobre.” Carta para Carlos ausentar o pobre da conWesley 23/07/1773. “Seja um ecônomo fiel e sábio, de tribuição e de pedir do(a) Deus e dos pobres” Sermão rico(a)mais,estáconfor28, Sermão das Montanhas, 8º discurso, § 28. me as grandes linhas do 2 RENDERS, Helmut. “Tome triplo mandamento do as providências para consiamor, da busca de igualgo e distribua o restante” in: Mosaico. Ano 10 nº 24, Jan. dade e do comunismo priMar, 2002. mitivo em Atos dos Após- 3 /Uma rara exceção é OLItolos. VEIRA, Paulo José F. de. Desmistificando o Dízimo. Destacamos que as O que a Bíblia realmente implicaçõessociais,fraterensina sobre o dinheiro. São Paulo: ABU Editora, naisecúltico-sacramentais da herança de uma refei- 4 1999 (2ª edição). Veja: LOHFINK, Norbert. “A ção diante de Deus desemmensagem da ALIANÇA: o Deuteronômio”, in: Palavra bocam no ágape. Não é e Mensagem. (J. Schreiner, por acaso que Wesley reed.), São Paulo: Paulinas, tomou isso na “festa do 1978, 253. amor”, com sua oferta 5 Veja: HERMANN, Siegfried. Geschichte Israels in altespara os(as) necessitatamentlicher Zeit. München: Kaiser, 1980,325-333. dos(as).23 Aqui, a herança 6 Especialmente CRÜSEmetodista guarda uma viMANN, Frank. A Tora. Teosão de comunhão, contrilogia e história da lei do Antigo Testamento. Petróbuição e compaixão para polis, Vozes: 2002, p. 303. com os (as) pobres ainda 7 Ezequiel 48.11-13. Veja não devidamente investitambém Neemias 13 e Malaquias 3.3. gadaeresgatada. 8 Veja: CROATTO, J. SeveTermino com a obserrino. “A Dívida na Reforma Social de Neemias”, in: vação que os pais e as mães RIBLA 5-6, 1990/1 e 2, São do metodismo brasileiro e Paulo: Imprensa Metodista, do Plano para Vida e Mis35-39. são também caminharam 9 Veja: MEEKS, M. Douglas. “Sanctification and Ecosem uma “lei do dízimo”. nomy: A Wesleyan PersÉ uma falha? Eles (as) pective on Stewardship”, in: Rethinking Wesley’s Theotambém queriam que tology Today for Contemdos (as) metodistas assuporary Methodism. (Editor: Randy l. Maddox), Nashmissem o compromisso da ville: Abingdon, 1998, p. 92 missão. Por que será que e MEEKS, m. Douglas. eles (as) buscaram um ouEconomia Global.Economia de Deus. SBC: EDITEO, tro caminho? Por que deip.32. xaram o assunto mais em 10 2002, A Bíblia Almeida traduz aberto? “oferta”, mas “minhah” sig-

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nifica também “sacrificio”. Deuteronômio combina a sua legislação social a favor dos(as) pobres com ambas formas. É a teologia do deuteronomista, inclusive da uma das sua palavras centrais, “shuv”. MEEKS, Sanctification, 91. Baseia-se em GNUSE, Robert, 91. Baseia-se em GNUSE, Robert. You shall not Steal. Community and Property in the Biblical Tradition. Maryknoll, Orbis Books, 1985. MEEKS, Economia, p.32. Também MEEKS, M. Douglas. God the Economist. The Doctrine of God and Political Economy. Minneapolis: Fortress, Press, 1992 (2a edição), p. 87. Lohfink, A mensagem, 253. NT: Mt 23.23; Lc 11.42; 18.22. Hb 7.8 No tempo do Concílio de Jerusalém, o templo ainda existia. Um texto parecido com 1Co 9.13-14, destacando o dízimo, teria sido possível mesmo assim. A novidade é que o velho “centro” recebe ajuda por causa da sua necessidade, não por causa de privilégios especiais. Paulo fala em 1Co 16.1-2 que “ordenou a colheita”, “de acordo com a (...) ren-

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da (de cada um)”. Veja também Fm 14. JEWETT, Robert. “Tenement Churches and Communal Meals in the Early Church: The Implications of a FormCritical Analyses of the 2 Thessalonians 3.10”, in Biblical Research, Vol.38, 1993, p. 23-43 argumenta que os (as) pobres ausentados (as) de contribuições solidárias. KLAIBER, Walter. “Freikirchliche Uberlegungen zum Thema Kirchliche Finanzen, in: Evangelische Theologie 61º ano, 1/2001. Gutersloh: Chr. Kaiser, p.49-56. Como em 1Co 16.1, temos aqui o verbo diatassein num aoristo passivo. Em outros textos, Paulo usa a palavra mais forte epitassein. Mt 10.10 e Lc 10.7 usam o mesmo e combinam o direito de comer com o seu dever de ser pobre. Por causa disso é muito infeliz quando se argumenta contra o dízimo dizendo que o evangelho substitui a lei. Não existe solidariedade sem o “terceiro uso da lei”. Mas veja: IGREJA METODISTA. Ritual da Igreja Metodista. São Paulo: Cedro, 2001, p. 26.

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