RENOVAR-SE OU MORRER: PRESENÇA FEMININA NA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA EM SÃO PAULO NA PRIMEIRA REPÚBLICA

May 22, 2017 | Autor: Beatriz Silvério | Categoria: Anarchism, Monografia, História das Mulheres, Anarquismo, Gênero, Educacao Libertaria
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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL BEATRIZ RODRIGUES SILVÉRIO

RENOVAR-SE OU MORRER: PRESENÇA FEMININA NA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA EM SÃO PAULO NA PRIMEIRA REPÚBLICA

SÃO PAULO 2016

BEATRIZ RODRIGUES SILVÉRIO

RENOVAR-SE OU MORRER: PRESENÇA FEMININA NA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA EM SÃO PAULO NA PRIMEIRA REPÚBLICA

Monografia apresentada como exigência de conclusão do Curso de História pela Universidade Cruzeiro do Sul. Orientador: Prof. Dr. Silvio Pinto Ferreira Junior

SÃO PAULO 2016

SILVÉRIO, Beatriz Rodrigues. Renovar-se ou morrer: presença feminina na educação libertária em São Paulo na Primeira República. 2016. 69 p. Monografia (Bacharelado em História) – Curso de História, Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2016.

São Paulo,___ de_________de____.

BANCA EXAMINADORA

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São Paulo 2016

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente à minha mãe, Célia, que sempre me mostrou a importância dos estudos e o poder dos livros, E também à minha avó, Ana, pela força em todos os momentos. À todas e todos professoras(es) que fizeram parte dessa trajetória, especialmente àqueles que plantaram a sementinha do questionamento. Ao meu orientador, Prof. Dr. Silvio Pinto Ferreira Junior, pela parceria estabelecida. Um especial agradecimento à cada estudante com os quais tive contato desde que mergulhei no mundo da educação. Nem consigo mensurar o quanto aprendi com cada um! Às amizades, meu sincero muito obrigada, vocês foram essenciais! Agradeço também à Biblioteca Terra Livre pelas dicas e contatos. E ao Centro de Cultura Social, que disponibilizou parte das obras de Maria Lacerda de Moura que foram utilizadas nessa pesquisa. Ainda falando em acesso à fontes, meu muito obrigada ao Arquivo do Estado de São Paulo, e ao Centro de Memória Sindical, especialmente à Fátima, que mediou o acesso ao jornal A Plebe. E agradeço à todas as pessoas e coletivos que de alguma forma me inspiraram (e inspiram) a pesquisar esse tema.

“A vida será mil vezes mais bela quando a mulher for realmente uma “mulher livre”.” (Ilse, Mujeres Libres)

RESUMO

A presente monografia tem como tema a presença feminina na educação libertária em São Paulo durante a Primeira República, compreendendo o período de 1890 à 1925. Analisa através do recorte temático, como a educação pode reforçar a hierarquia entre gêneros, ou propor um rompimento com o sistema de exploração da mulher. Nos detemos também ao contexto do trabalho urbano, a dinâmica social criada no capitalismo, e qual a condição reservada às mulheres pertencentes às classes menos privilegiadas nesse sistema. Para tal, nos voltamos às Escolas Modernas e associações ligadas à essa pedagogia, fundadas na cidade de São Paulo no século XX, mantidas por pessoas vinculadas ao movimento anarquista, e como se dava a dinâmica da relação de gêneros nesses espaços. O objetivo proposto não é uma análise pedagógica, mas compreender como se deu a utilização da escola como ferramenta de luta libertária. Utilizamos o jornal A Lanterna e seu sucessor A Plebe para encontrar registros das ideias e feitos de mulheres anarquistas nesse sentido educacional.

Palavras- chave: Gênero, Anarquismo, Educação.

ABSTRACT

This present monograph has as theme the female presence in the liberatory education in São Paulo during the First Republic, looking to understading the period from 1890 to 1925. Here was analised troughout the thematic cut, how education could give hierarchy strength between gender, or propose a rupture with the women exploring system. We also detained ourselves to the urban working context, the social dinamic created by capitalism, and what was the condition reserved for women in a less privileged class in this system. To do so, we turn to the Modern Schools and associations linked to this pedagogy, funded in the city of São Paulo in the XX century, kept by people associated to the anarquist movement, and how was the gander dinamic amongst these spaces. The goal proposed is not a pedagogic analysis, but to understand how came the utilization of schools as a tool for the liberatory fight. We used the paper “A Lanterna” and it’s successor “A Plebe” to find register of the ideas and the female anarquists making in this educational meaning.

Keywords: Gender, Anarquism, Education.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 8 2. O PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO E A PRESENÇA FEMININA .......................................................................................................................................... 11 2.1 República oligárquica e imigração ........................................................................................ 11 2.2 Condição feminina .................................................................................................................. 13 2.3 As “plantas exóticas” .............................................................................................................. 16 2.4 Características do anarquismo no Brasil ............................................................................. 19 3. EDUCAÇÃO PARA DOMINAÇÃO ............................................................................................. 23 3.1 A educação regeneradora ..................................................................................................... 23 3.2 Reforma educacional paulista: o lugar das mentes e dos corpos .................................... 24 3.3 Pós reforma de 1892 .............................................................................................................. 31 3.4 As reformas de 1920 .............................................................................................................. 32 4. EDUCAÇÃO PARA LIBERDADE ............................................................................................... 36 4.1 Autogoverno e Autonomia na Educação ............................................................................. 36 4.2 Anarquistas e a crítica à educação tradicional ................................................................... 37 4.3 Ideias e Prática ........................................................................................................................ 39 4.4 A coeducação dos sexos na Escola Moderna .................................................................... 42 4.5 As mulheres e a educação libertária .................................................................................... 44 5. A PRESENÇA FEMININA NAS ESCOLAS MODERNAS PAULISTAS ................................ 49 5.1 Escolas Modernas em São Paulo ......................................................................................... 49 5.1.1 A Escola Moderna N.1 .................................................................................................... 50 5.1.2 A Escola Moderna N.2 .................................................................................................... 52 5.2 Rastros de grupos femininos ................................................................................................. 54 5.3 Centro Feminino Jovens Idealistas ...................................................................................... 59 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................... 62 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................. 64

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1. INTRODUÇÃO

Podemos considerar esse trabalho como fruto de uma inquietação coletiva em relação à educação pública brasileira e os caminhos que essa vem trilhando nos últimos

tempos.

Acompanhamos

um

forte

posicionamento

de

estudantes

secundaristas em todo o país nos anos 2015 e 2016, florescendo um novo movimento estudantil, contra as reformas de ensino propostas pelos governos vigentes. Além da evidente questão “para onde vamos?”, urge a pergunta “como chegamos até aqui?” A História pode ser uma excelente ferramenta para entendermos a conjuntura na qual se encontram as sociedades, mas para tal, é necessário que esta atinja alguma ligação com seus interlocutores. É mais do que simplesmente escrever a história do povo, é criar condições para que este povo reconheça e registre sua própria história. É preciso que as pessoas se reconheçam nessa historiografia. Assim, ao estudarmos a educação na primeira república, os movimentos de trabalhadores ácratas, suas manifestações contra o sistema escolar e as soluções propostas por estas pessoas, podemos talvez encontrar um fio de ligação entre os jovens descontentes de ambos os séculos. Porém, não é interesse deste trabalho traçar um paralelo entre os dois momentos históricos citados; isso deixaremos a cargo do(a) leitor(a). Os objetivos aos quais nos destinamos eram: investigar como a dinâmica de gêneros estava inserida na educação tradicional da época, e se havia nos ambientes de educação libertária um contraponto à essa hierarquia. Para alcançá-los, buscamos responder algumas problematizações ao longo do texto. No primeiro capítulo é abordado o contexto social e político que permeava o Brasil na Primeira República – período que abarca os anos de 1890 à 1930. É primordial voltar os olhos ao grande número de imigrantes que aqui chegaram como mão de obra, o processo de industrialização pelo qual passou a cidade de São Paulo na época, e as condições às quais a classe trabalhadora estava subordinada. Nos voltamos então ao anarquismo e como esse movimento veio a se desenvolver, principalmente a partir do início do século XX. Buscamos resgatar a participação feminina ao longo desse percurso, a condição da mulher no patriarcado, a situação em que vivia a trabalhadora e também como esta se inseria no movimento libertário.

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Depois, no segundo capítulo, manteremos o foco na educação tradicional. É durante a Primeira República que se considera o efetivo início da escola pública no Brasil, tendo São Paulo ocupado uma posição pioneira nessa trajetória. Passaremos pela reforma da Escola Normal, colocada em prática por Caetano de Campos, com especial atenção à intencionalidade entremeada nesse processo, a criação da Escola Profissional feminina, depois a reforma de 1920 até a criação da ABE, trabalhando sempre, ao longo desta escrita, as relações de gênero e o ideal feminino dentro do processo de delimitação do “cidadão ideal”. Procuraremos mostrar também a relação entre as ações da classe trabalhadora e as iniciativas liberais na educação pública. Abordaremos no terceiro capítulo as ideias anarquistas acerca da educação, passando pelas críticas ao modelo tradicional, e pelas pedagogias libertárias criadas no século XIX. Trataremos da Escola Moderna, criada por Francisco Ferrer y Guardia, sua influência no Brasil, e então conheceremos as ideias propostas por pensadoras brasileiras acerca desta temática, tendo destaque os escritos da educadora Maria Lacerda de Moura. O título desse trabalho – Renovar-se ou morrer – foi retirado da obra A mulher é uma degenerada? cuja autoria é da citada pensadora. Chegamos, então, ao quarto e último capítulo, no qual nos ocuparemos da reverberação dessas ideias em São Paulo, levantando as experiências das Escolas Modernas 1 e 2, como estas lidaram com a coeducação, e o especial objeto desta pesquisa, os ambientes educacionais fundados e mantidos por mulheres. O proposto no Projeto desta pesquisa era o foco no Centro Feminino de Educação, fundado em 1922 e na Sociedade Feminina de Educação Moderna; porém, ao longo do processo de levantamento de registros, nos deparamos com uma escassez de informações sobre esses grupos nas fontes utilizadas , o que nos fez alterar o foco para o Centro Feminino Jovens Idealistas – não excluindo do trabalho os outros grupos citados. Utilizamos como fontes principais o periódico A Lanterna, à partir da sua fase IV, quando passou a ser dirigido por Edgar Leuenroth, e edições de seu sucessor A Plebe até meados de 1924. Também recorremos ao Boletim da Escola Moderna e ao Início, ambos publicações das Escolas Modernas paulistas. Duas edições do Anuário da Educação Pública do Estado de São Paulo estarão presentes, complementando os temas abordados no segundo capítulo. Além do recorte

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temporal aplicado, em relação às fontes principais, também priorizamos escritos femininos, buscando resgatar as ideias das militantes que ficaram registradas nesses jornais. Ao longo da escrita, alguns autores permearam a metodologia, e podemos colocar a historiadora Margareth Rago, a professora Marta Maria Chagas de Carvalho, e Silvio Gallo como as presenças mais marcantes, além é claro, de outros autores que estiveram presentes nesta pesquisa. Para analisar a questão de gênero, fizemos uso da teoria do capitalismo patriarcal de Heleieth Saffioti. Buscamos assim, compreender como a educação influencia na formação dos seres sociais, especialmente das mulheres, buscando entender como o espaço escolar pode também ser um reforçador da hierarquia de gênero. Iremos além, adentrando a educação libertária, a adoção desta como arma de luta e resistência anarquista, e como ocorria a inserção da figura feminina nessa dinâmica.

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2. O PROCESSO DE INDUSTRIALIZAÇÃO NA CIDADE DE SÃO PAULO E A PRESENÇA FEMININA

Para iniciarmos a imersão na temática que desenvolveremos nessa monografia, se faz necessária uma contextualização histórica e social do período a ser abordado. Assim, começaremos pelo novo panorama político proporcionado pela instauração da República, passando pelas correntes imigratórias e a forte industrialização pela qual passou a cidade de São Paulo no início do século XX. Durante essa ondulação nos nortearemos pela questão feminina, e as relações entre os gêneros, pauta primária dessa pesquisa. O movimento operário, e a presença do pensamento anarquista serão também abordados nesse capítulo. Buscaremos preparar, desta forma, o campo para as discussões que serão trabalhadas posteriormente.

2.1 República oligárquica e imigração Durante a chamada República Velha, que compreende o período de 1890 à 1930, diversas regiões do Brasil passaram por processos de industrialização, e São Paulo vive esse processo de forma bastante intensa, com um galopante crescimento nas primeiras décadas do século XX, que veio a colocar a cidade em posição de destaque não apenas político, mas também econômico, graças ao subsídio do agronegócio cafeicultor e à numerosa mão de obra imigrante. A forte tendência migratória que toma os europeus à partir do século XVIII, graças ao processo da mercantilização e as viagens marítimas, o sonho de construir a América, quando somados à necessidade de mão de obra imposta pelo crescimento da economia cafeeira em são Paulo, resultarão em um forte fluxo imigratório nesse Estado, advindo das mais diversas nacionalidades. Essas correntes imigratórias possuíam dois caminhos, “uma fornecendo braços para a grande lavoura do café, e a outra promovendo o povoamento de áreas escassamente povoadas por meio de estabelecimento de pequenas propriedades” (PETRONE, 1985, p. 99). Com a autonomia estatal estabelecida pelo Governo da União a partir da constituição de 1891, houve queda no número de imigrantes que adentravam o solo brasileiro, mas, São Paulo foi a exceção, por conseguir manter o subsídio às viagens e graças à propaganda feita por compatriotas e cafeicultores na

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Europa, sendo que “mais da metade da corrente imigratória recebida pelo Brasil se dirige para esse Estado”. (PETRONE, 1985, p. 104). Se entre 1895 e 1899 a maior parte desses imigrantes era subvencionada, esse quadro foi posteriormente alterado para uma maioria espontânea, formada por artesãos ou por trabalhadores industriais que pretendiam se fixar no meio urbano. Muitas foram as nacionalidades que desembarcaram em São Paulo, no entanto, ainda que seu destino fosse as fazendas de café, quem marcou a fisionomia das cidades, foi sem dúvida o italiano. 1 Esse processo de industrialização pelo qual São Paulo passa na transição dos séculos, é construído em grande parte pelo dinheiro do café. Cada vez mais a cidade “começava a se definir como grande centro urbano, tornando-se gradativamente o grande mercado distribuidor de produtos e mão de obra” (FAUSTO, 1986, p. 16). Porém, mesmo estando em uma condição praticamente subordinada ao agronegócio, não devemos negar as posições políticas e ideológicas adotadas pela classe industrial no jogo do poder oligárquico. (PERISSINOTTO, 1994, p. 130) O crescimento deve-se também à parcela significativa de imigrantes que permaneceu na cidade, onde esperavam encontrar mais oportunidades de ascensão social e econômica. (FAUSTO, 1986, p. 18) .Temos um primeiro surto industrial no final do século XIX, com um constante crescimento que levaria São Paulo à primeira posição manufatureira em 1920. (PERISSINOTTO, 1994, p. 132) Os efeitos são sentidos, e nessa década “se registram 64,2% dos estabelecimentos industriais existentes no Estado como sendo de imigrantes,e cerca de dois terços da cidade de São Paulo são formados por estrangeiros e seus descendentes.” (PETRONE, 1985, p. 120) Esses também compunham a maior parte do proletariado urbano com a grande maioria persistentemente formada por italianos. As regiões que mais atraíam imigrantes e indústrias foram o Brás, o Bom Retiro e a Moóca, por conta do baixo preço dos terrenos e a proximidade das ferroviárias - em contrapartida, os bairros residenciais estavam localizados nos terrenos mais altos e saudáveis. (FAUSTO,

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“Cerca de um terço dos imigrantes, ou seja 694 489 entrados em São Paulo eram italianos. [...] Na década de 1890 predominaram os italianos com 340 243 imigrantes, que perfazem 58,5% do total. [...] Na década de 1910 predominaram os imigrantes de origem ibérica: 135 326 (30,30%) são espanhóis e 132 682 (29,71%) portugueses. Na década de 1920 a maior corrente é a portuguesa: 113 366 perfazendo 23, 27% do total”. (PETRONE, 1985, p. 104)

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1986, p. 19). Esse crescimento durante as primeiras décadas do século XX coloca a indústria em posição cada vez mais destacada no plano nacional. Analisaremos neste cenário, a presença das mulheres e o lugar que lhe é reservado em uma cidade inserida em um intenso processo de industrialização.

2.2 Condição feminina Simone de Beauvoir, em 1949 lançou a provocadora assertiva “Não se nasce mulher, torna-se”, que a filósofa francesa explica logo a seguir, ao afirmar que “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.” (1967 p. 9). O papel feminino não foi definido pela própria mulher, “a humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo” (BEAUVOIR, 1970, p.10). Ao homem foi delegado o papel privilegiado nesse sistema, que mesmo ao trazer prejuízos para determinados indivíduos que fogem da lógica masculina, de forma geral beneficia os pertencentes ao gênero masculino. A ideia de que esses papéis desempenhados à partir da designação mulher/ homem não seria algo inato, mas sim fruto de uma construção social advinda de cada cultura, recebe o título de teoria de gênero - não mais sexo, que passa a conotar uma condição biológica. Essa categoria foi adotada pelas correntes históricas que se propunham a rachar com uma linha tradicional, e ao mesmo tempo, ir além da chamada história das mulheres ao explorar a relação estabelecida por homens e mulheres ao longo do tempo. Joan Scott (1989) ao remontar o que seria uma História do uso histórico dessa categoria, destaca que foi apenas à partir do final do século XX que a academia incorpora essa possibilidade de análise da sociedade. A autora também afirma a importância de se localizar temporalmente o gênero, para evitarmos uma fixidez de como se deu essa relação ao longo da história. Heleieth Saffioti adota a ideia de patriarcado para se referir a relação hierárquica entre os gêneros, presente também no Brasil republicano, mesmo que “nenhum (a) estudioso (a) sério (a) consideraria igual o patriarcado reinante em Atenas clássica ou na Roma antiga ao que vive nas sociedades urbano-industriais

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do Ocidente” (SAFFIOTI, 2015, p. 107), defendendo o uso desse conceito como reforço da desnaturalização da dominação - exploração, já que o “patriarcado moderno vigente alterou sua configuração, mas manteve as premissas do pensamento patriarcal tradicional.” (NARVAZ E KOLLER, 2006, p. 50). Essa estrutura, mantida há mais de 2600 anos (SAFFIOTI, 2015, p. 63) “confere aos homens o direito de dominar as mulheres, independente da figura humana singular investida de poder.” (SAFFIOTI, 2015, p. 108). Ou seja, está tão arraigada na nossa cultura que para ser mantida não é necessário nem a presença de uma figura masculina que defenda suas bases, sendo possível que na ausência dessa, uma mulher desempenhe o papel de renovadora da ideologia. Iremos esmiuçar os efeitos dessa divisão social na vida da mulher trabalhadora, imigrante, moradora da cidade de São Paulo durante o fim do século XIX e início do XX. Para tal, será necessário ir além da categoria de gênero, e simultaneamente não reduzir a realidade desse grupo apenas à classe social, unindo as duas perspectivas, e desenvolvendo essa análise sem ignorar o viés político imputado. O capitalismo é muitas vezes considerado o marco da inserção feminina no mercado de trabalho, porém, Saffioti rebate: A mulher das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as épocas e lugares tem ela contribuido para a subsistência de sua família e para criar a riqueza social. Nas economias pré-capitalistas, especificamente no estágio anterior à revolução agrícola e industrial, a mulher das camadas trabalhadoras era ativa: trabalhava nos campos e nas manufaturas, nas minas e nas lojas, nos mercados e nas oficinas, tecia e fiava, fermentava a cerveja e realizava outras tarefas domésticas. (2013, p. 61).

A industrialização opera determinantes alterações no modo de produção, que virão a repercutir diretamente na realidade feminina. O trabalho desempenhado no ambiente doméstico passa a ser subvalorizado, por não atender ao padrão considerado ideal dentro de uma sociedade economicamente individualista. (SAFFIOTI, 2013, p. 331). Assim, temos simultaneamente um acoplamento de certas funções femininas e a redução das funções que elas poderiam vir a realizar. Já exploramos a participação de imigrantes no trabalho fabril da Primeira República. O Brasil recebeu um grande contingente de família imigrantes, porque se reconhecia a mulher como mais uma força produtora. Contamos com o dado de que em 1890 “existiam no Brasil 119.581 mulheres estrangeiras contra 231.731 homens”

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(RAGO, 2004, p. 580). Vamos agora aprofundar a visão sobre as personagens femininas presentes nesse período histórico, tantas vezes ignoradas pela historiografia. As fábricas têxteis foram as propulsoras do processo de industrialização, e como já vimos, os trabalhadores estrangeiros foram a solução encontrada para um problema de falta de trabalhadores qualificados, enquanto a mão de obra infantil e feminina ocupava as funções não-qualificadas. (PENA, 1981, p. 106). Segundo o relatório do Departamento Estadual do Trabalho de São Paulo de 1912, utilizado por Maria Valéria Junho Pena, haviam 7499 trabalhadores estrangeiros nas fábricas têxteis visitadas, contra 1943 brasileiros e 862 de nacionalidade não identificada; desses 10204 empregados, haviam 6801 mulheres. (PENA, 1981, p. 111). “Nas sociedades baseadas na propriedade privada dos meios de produção, quer pré- capitalistas, quer capitalistas, a força de trabalho feminina determina-se diversamente da masculina.” (SAFFIOTI, 2013, p.328). As operárias paulistas possuíam rotinas de 10 a 14 horas de trabalho diárias, desempenhando funções menos especializadas e com a remuneração menor do que a paga aos homens. (RAGO, 2004, p. 583) Parte das mulheres (e homens) imigrantes com experiência anterior na produção industrial ocupavam tarefas de fiação e tecelagem que exigiam um treinamento mais específico, enquanto as tarefas que exigiam menor conhecimento técnico eram desempenhadas por pessoas adultas desempregadas e crianças que viviam em orfanatos e lares de caridade. “Uniram-se os interesses dos capitalistas a uma ideologia edificante de que usar o trabalho intensivo das mulheres e crianças – as desocupadas – consistia num exercício de caridade.” (PENA, 1981, p.107) Consideramos também as milhares de mulheres que desempenhavam serviços domésticos, trabalhando “às vezes até 18 horas por dia, para alguma fábrica de chapéu ou alfaiataria.” (RAGO, 2004, p. 581). Um dos pontos que interferiam na rotina da trabalhadora, que Maria Valéria Junho Pena indica, é efetuado quando o operariado que antes praticamente morava nos dormitórios das fábricas, passa a viver em Vilas operárias, e assim a alimentação dos(as) trabalhadores(as) deixava de ser responsabilidade da empresa e transformava-se em responsabilidade do operário(a) assalariado(a), mesmo quando adquirida nos armazéns da indústria: para a mulher, outra jornada de trabalho. (PENA, 1981, p.110)

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Sentimos a necessidade de destacar que essa é a realidade vivida pelas mulheres trabalhadoras brancas, pois as negras “após a abolição dos escravos, continuariam trabalhando nos setores os mais desqualificados recebendo salários baixíssimos e péssimo tratamento.” (RAGO, 2004, p. 582). Sabemos que essa forte imigração europeia é sintomática do plano de criação do “cidadão novo”, adequado às expectativas liberais da época, e nesse plano as mulheres negras - assim como os homens negros - não estavam inclusas. Elas continuavam prestando serviços domésticos, servindo famílias de classe média e alta, em regime não muito diferente da escravidão, sofrendo uma dupla opressão, por serem mulheres e negras. (PENA, 1981, p.113) Sobre essas condições femininas na sociedade capitalista, Saffioti pontua que, [...] a marginalização de grandes contingentes femininos do sistema dominante de produção de bens e serviços transforma-os em força de trabalho potencial para esse sistema e, portanto, reguladora dos salários de mão de obra efetivamente nele empregada. (2013, p. 334)

Essa condição varia de acordo com o grau de desenvolvimento do país, e “em razão da vitalização daqueles setores da economia considerados mais apropriados à atividade da mulher.” (SAFFIOTI, 2013, p. 335) Seguindo essa análise, não é díspare as péssimas condições enfrentadas pelas mulheres nas fábricas, que sem uma legislação de trabalho adequada, estavam sujeitas à todo tipo de abuso, como alguns jornais da época se dispuseram a denunciar. Jornadas médias de 12 horas por dia, horas extras não remuneradas, salários extremamente baixos, e os diversos assédios sexuais que sofriam, são alguns dos aspectos que rodeavam a condição feminina nesse ambiente. (RAGO, 2004, p. 584).

2.3 As “plantas exóticas” Boris Fausto (1986, p.62) recorre à criação da imagem da “planta exótica”, forjada pelas correntes reacionárias em objetivo de combater as ondas revolucionárias que alcançaram o Brasil. Se enquadram nessas “plantas” os núcleos anarquistas que se instauraram no país, em meados de 1890, compostos em sua maioria por imigrantes, principalmente de origem italiana, e também espanhóis e

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portugueses. (PINHEIRO, 1985, p. 149) Esses imigrantes eram recebidos pelo país “não como cidadãos mas, tanto quanto possível como “força produtiva pura”.” (FAUSTO, 1986, p.69)2 O anarquismo, fugindo ao estereótipo criado em torno da palavra, considerada sinônimo de caos, desordem, até mesmo terrorismo, é uma doutrina político social, com diversas linhas de pensamento, mas que possuem o denominador comum da rejeição à toda autoridade, à figura do Estado e ao sistema capitalista. As três variantes mais conhecidas são anarco-coletivismo, anarcosindicalismo e anarco-comunismo – sendo as duas últimas mais populares no movimento operário da Primeira República3. Se o maior inimigo dos explorados, na visão anarquista, é o Estado, em solo brasileiro este “parecia confirmar em larga escala a teoria anarquista, ao negar o reconhecimento dos mínimos direitos operários, ao optar pela repressão nos momentos de confronto aberto de classes.” (FAUSTO, 1986, p. 69) Para compreendermos mais profundamente algumas das ideias defendidas pelos anarquistas, vamos recorrer aos escritos de Emma Goldman, a russa que posteriormente se tornou operária nos Estados Unidos da América, famosa militante do movimento anárquico e feminino. Em seu escrito Anarquismo – o que ele representa4, ela nos brinda com uma particular acepção do que compõe essa ideologia. Primeiramente, se faz necessária uma breve explicação: “ANARQUISMO: a filosofia de uma nova ordem social baseada na liberdade sem restrição, feita da lei

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Não nos dedicaremos à história geral do movimento operário da Primeira República, mas recomendamos como fonte adicional o livro O Movimento Operário – A Greve de 1917, transcrição de palestras do anarquista e jornalista Edgar Leuenroth, lançado em 2016 pelo Centro de Cultura Social de São Paulo. 3 Breves definições, por Boris Fausto (1986): “O mutualismo proudhoniano investia contra o capital e o Estado capitalista, pretendendo substitui-lo por uma livre associação de produtores diretos, possuidores dos meios de produção.” (p. 64). Já o “anarco-coletivismo, que teve em Bakunin sua figura mais importante, distinguia-se do mutualismo por optar claramente pela coletivização dos meios de produção, por sua defesa da violência e a ênfase do papel que os sindicatos desempenhariam na obra emancipadora da sociedade.” (p. 64). Ambos sistemas propunham a permanência de salário, ao contrário do anarco-comunismo, no qual “o critério de distribuição de bens e serviços deveria ser a necessidade e não o trabalho, suprimindo assim o salário como fonte de desigualdades no interior da comuna.” (p. 65) Por fim, o anarco-sindicalismo, como o nome denota, considerava o sindicato não apenas como órgão de luta, mas o “núcleo básico da sociedade do futuro”. (p. 66) 4 Dentre as/ os diversos anarquistas que se propuseram a explicar o que seria esse pensamento, optamos por utilzar a definição de Emma Goldman, que mesmo tendo se afeiçoado mais ao anarquismo individualista, teve forte presença no sindicalismo e foi também uma ferrenha defensora da libertação feminina.

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do homem; a teoria de que todos os governos descansam sobre a violência e, portanto, são equivocados e perigosos à medida que também são desnecessários.” (GOLDMAN, 2014, p. 22) Em seguida, Emma Goldman afirma que esse pensamento “é a única filosofia que traz o homem à consciência de si; que sustenta que Deus, o Estado e a sociedade são inexistentes, que são promessas nulas e vazias, desde que só podem ser cumpridas através da subordinação do homem.” (GOLDMAN, 2014, p. 24) Para Emma Goldman, uma sociedade perfeita seria resultante de uma organização com indivíduos verdadeiramente livres, sendo que “não há conflito entre o indivíduo e os instintos sociais, não mais do que há entre o coração e o pulmão: um, o receptáculo da preciosa essência da vida, o outro, o repositório do elemento que mantêm essa essência pura e forte.” (2014, p. 24), E complementa, ao vociferar contra todas as instâncias de poder, que “não importa se o governo é de direito divino ou da maioria. Em todo o caso, seu objetivo é a subordinação absoluta do indivíduo”. (GOLDMAN, 2014, p. 29). O sistema econômico capitalista é alvo das críticas anarquistas, mas desde os primeiros registros de pensadores dessa linha, o principal alvo da revolução libertária seria o Estado, como nos esclarecem as palavras de Goldman, Sendo uma tal disposição de energia humana possível apenas em completa liberdade social e individual, o anarquismo canaliza suas forças contra o terceiro e maior inimigo de toda a igualdade social; nomeadamente, o Estado, a autoridade organizada ou as leis estatuárias – o domínio da conduta humana. (2014, p. 29).

Se a questão de classes é uma das preocupações do anarquismo – colocada de forma diferente do marxismo -, então a questão do trabalho não seria excluída dos problemas colocados por seus teóricos e nem de suas propostas apresentadas. Contra o sistema de exploração do trabalhador, a solução apresentada pelo anarquismo seria uma sociedade [...] onde o homem é livre para escolher o modo de trabalho, as condições de trabalho, e a liberdade de trabalhar. Uma personalidade para a qual a produção de uma mesa, a construção de uma casa, ou a lavra do solo, seja o que o quadro é para o artista, o que o invento é para o cientista, - o resultado é a inspiração, o intenso desejo e um profundo interesse no trabalho como uma força criativa. (GOLDMAN, 2014, p. 28)

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Dessa forma, “O anarquismo almeja privar o trabalho de seu aspecto mortífero, embotador, de sua obscuridade e obrigatoriedade.” (GOLDMAN, 2014, p. 35) Em relação à forma como se alcançaria esse modelo social livre e não hierárquico, Emma Goldman (2014, p. 42) sustenta que “Nenhuma mudança social veio à tona sem uma revolução.” E salienta que o modelo anarquista “não representa a prática e a uniformidade militar; ele representa, porém, o espírito da revolta sob qualquer forma e contra tudo o que impede o desenvolvimento humano.” (GOLDMAN, 2014, p. 38) Já que “Ciências, artes, literatura, o drama, a luta por melhoria econômica, com efeito, toda oposição individual e social à atual desordem das coisas é iluminada pela luz espiritual do anarquismo”, como Goldman ( 2014, p. 42) nos apresenta, iremos, nos próximos capítulos, esmiuçar se e como essa tal luz veio a iluminar a educação nas primeiras décadas do século XX em São Paulo.

2.4 Características do anarquismo no Brasil O movimento anarquista no Brasil, além de ser majoritariamente imigrante, também era marcado pela forte presença dos trabalhadores operários. Apesar da dificuldade de se mensurar numericamente e estruturalmente o que foi esse movimento, por negar as formas de organização tradicionais, Boris Fausto (1986, p. 95) fez uma seleção de 33 nomes , dos quais “11 pessoas pertencentes a grosso modo à média burguesia intelectual e 22 trabalhadores manuais”, e entre estes estavam presentes trabalhadores dos mais diversos segmentos. Assim como também os líderes “eram verdadeiramente operários, o que não acontecia com os movimentos reformistas, cujos líderes provinham geralmente das classes médias.” (PINHEIRO, 1985, p. 150) Algo a se destacar é a ausência da figura feminina entre esses nomes levantados. Boris Fausto (1986, p. 96), aponta a falta de trabalhadores texteis nesse levantamento, complementando a afirmação de Paulo Sérgio Pinheiro de que esse segmento por ser constituído “em grande parte por mulheres e crianças naturalmente [grifo nosso] ofereciam dificuldades para serem organizados”. (1985, p. 152) Essa ausência de registro da participação das mulheres anarquistas é algo um tanto curioso, já que ao contrário do que a historiografia tradicional parece

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apontar, elas existiram. Na imprensa anarquista podemos encontrar alguns registros das ideias acerca da condição feminina que permeavam o movimento dos trabalhadores libertários. Um exemplo é a coluna Para Orientação do Operariado, numa edição do periódico A Plebe, que apresenta resoluções do Primeiro Congresso Operário de 1906: A organização das operárias Considerando que as mulheres mais do que os homens, estão sujeitas a todas as explorações patronaes; Considerando que, por causa dessas explorações a mulher operária parece sempre no seu labor victima de tuberculos e pelo excesso de trabalho; Considerando que a mulher organizada em syndicatos é o melhor elemento para a libertação do trabalho; Considerando que é esse o melhor programma a inscrever na bandeira de combate de uma grande federação operaria; O 1º Congresso Operario resolve que o primeiro acto da Confederação que surgir do nosso seio, seja empregar todos os esforços para organizar o elemento feminino em syndicatos de resistência, livremente unidos aos syndicatos congeneres do elemento masculino. (Para a orientação do operariado. A Plebe, São Paulo, 21 jun. 1924. p. 4)5

A resolução é relembrada no Terceiro Congresso Operário, em 1920 – quatorze anos depois: As operárias O 3º Congresso Operario, confirmando as resoluções do 1º Congresso quanto à situação do elemento feminino no meio proletario, aconselha vivamente as associações obreiras a se esforçarem para interessar directamente as operarias na vida syndical, preocupando-se com a sua educação social e intellectual e para que se estabeleça no trabalho um ambiente de respeito, repelindo as brutalidades dos patrões e encarregados de serviços, intensificando-se a campanha no sentido de que para ellas seja abolido o trabalho nocturno e os seus salários sejam equiparados aos dos homens. (PARA A ORIENTAÇÃO DO OPERARIADO. A Plebe, São Paulo, 21 jun. 1924)

Apesar disso, se entre os conservadores havia uma preocupação com a desmoralização da mulher ao adentrar o ambiente fabril, no discurso operário não encontramos grandes diferenças; Margareth Rago aponta como, [...] muitos acreditavam, ao lado dos teóricos e economistas ingleses e franceses, que o trabalho da mulher fora de casa destruiria a família tornaria os laços familiares mais frouxos e debilitaria a raça, pois as crianças cresceriam mais soltas, sem a constante vigilância da mãe. As mulheres deixariam de ser mães dedicadas e esposas carinhosas, se trabalhassem fora do lar; além do que um bom número delas deixaria de se interessar pelo casamento e pela maternidade. (2004, p. 585)

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Optamos por manter a ortografia originalmente encontrada nos documentos utilizados.

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Essa presença de um discurso moralmente conservador entre as elites e os meios operários, mostra como a mulher ainda era vista por ambos como uma figura passiva, ou uma vítima a ser preservada. Mesmo com a constante modernização da sociedade que ocorre no século XX, “as relações familiares continuavam a se pautar por um forte moralismo, tanto nas camadas ricas quanto nas mais pobres da sociedade” (RAGO, 2004, p. 587), não sendo as ideias no meio anarquista muito díspares dessa concepção. Margareth Rago ressalta também que, [...] as trabalhadoras pobres eram consideradas profundamente ignorantes, irresponsáveis e incapazes, tidas como mais irracionais que as mulheres das camadas médias e altas, as quais, por sua vez, eram consideradas menos racionais que os homens. (2004, p. 589)

É nesse período que as feministas começam a aparecer publicamente na sociedade paulista, apontando os benefícios sociais da inserção da mulher no mercado de trabalho, porém, esse discurso era muitas vezes voltado ao ingresso das mulheres das classes médias e altas, e novamente se exclui as trabalhadoras pobres das reinvidicações políticas. (RAGO, 2004, p. 591). As operárias, tão vitimadas pelas péssimas condições de trabalho, pelos baixos salários, pela quantidade de filhos que deveriam criar, tão presas à condição biológica, eram consideradas até mesmo pelas feministas como incapazes de produzir alguma forma de manifestação cultural. (RAGO, 2004, p. 591)

As mulheres anarquistas existiram, assim como as socialistas “procuraram organizar as trabalhadoras, nas primeiras décadas do século, convocando-as para assembléias sindicais ou para discutir os problemas femininos dentro dos sindicatos e comitês a que pertenciam” (RAGO, 2004, p. 595). Assim como os homens estavam decididos a alterar as estrutas sociais, as mulheres libertárias “procuravam mostrar como a questão da emancipação da mulher poderia ser encaminhada e resolvida por intermédio da “revolução social” mais ampla, que daria origem a um mundo fundado na igualdade na justiça e na liberdade” (RAGO, 2004, p. 596). Fundaram seus próprios espaços e grupos, além de estarem presentes, direta ou indiretamente, nas manifestações predominantemente masculinas. Um exemplo é a União das Costureiras, fundada em 1919 na cidade de São Paulo, (A Commemoração em S. Paulo do 1º de Maio. A Plebe. São Paulo, 19 abr 1919. p. 3)

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que inclusive aderem à comemoração do 1º maio, não indo trabalhar nesse dia. (Mundo Operário. A Plebe. São Paulo, 26 abr 1919. p. 3). Participaram também dos movimentos de educação libertária que viriam a fermentar nos meios anarquistas, e aos quais nos atentaremos depois. Uma das estratégias de luta dos anarquistas foi o teatro social, que tomou força no Brasil com os italianos. Para estes grupos, era uma forma de se levar ideias anarquistas e socialistas aos trabalhadores, abarcando toda a família, e desviando das atrações consideradas inadequadas e imaculadas pela moral burguesa. (RODRIGUES, 1984, p. 145) Esses espaços, em São Paulo, foram marcados por uma forte presença feminina. (CORREIA, 1986, p. 44) Em São Paulo e Santos, alguns nomes obtiveram certo destaque no movimento anarquista: [...] empunhando a pena ou fazendo uso da palavra, Ernestina Lesina (socialista), Elisabella Valentini, Teresa Maria Carini, Isabel Cerruti, Maria Angelina Soares, Emma Ballerini, Tomasina Montsanto, Sofia Garrido e Maria Lacerda de Moura deixaram marcas inapagáveis na imprensa e movimento anarquista ao longo de meio século. (CORREIA, 1986, p.43)

Posteriormente, iremos nos aprofundar em algumas dessas feministas libertárias e nas suas concepções de lutas contra as mazelas vividas pelas mulheres na cidade de São Paulo na República Velha.

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3. EDUCAÇÃO PARA DOMINAÇÃO

Apresentamos

as

condições

à

que

trabalhadoras

e

trabalhadores,

majoritariamente imigrantes provenientes da Itália e Espanha, estiveram submetidas e submetidos em São Paulo, na Primeira República. Exploramos também como estas pessoas estavam inseridas no movimento anarquista que veio a se formar nesse período. Os grupos que se auto denominavam responsáveis pela construção da pátria não viam com bons olhos os movimentos dos trabalhadores, e diante desse cenário a educação viria a ocupar uma função de regeneração do comportamento considerado inadequado. Neste capítulo iremos abordar as reformas educacionais e a ideologia que as motivaram, focando especialmente na reforma da Escola Normal de 1893, colocada em prática por Caetano de Campos, e paralelamente traremos qual a dinâmica das relações de gênero e a inserção feminina nos espaços de educação. Criando, assim, o terreno de contextualização das contestações libertárias que surgiram no país, e também suas raízes e influências.

3.1 A educação regeneradora A ideia de “educação regeneradora” surge como uma forte tendência no ideário republicano. Expomos anteriormente o processo de industrialização e as correntes de mão de obra imigratória que viriam a marcar o período. É nesse contexto que os intelectuais liberais 6 que desejavam construir a República adotam a ideia de que a escola poderia ser a solução para resolver os problemas sociais (SAVIANI, 2004, p.22) de um país que possuia 85% de sua população analfabeta. (GHIRALDELLI, 1987, p.16) Vamos esmiuçar quais foram as estratégias adotadas para colocar em prática essa ideia, e as reações que viriam a despertar. 7 6

Ao longo deste trabalho usaremos o termo liberal em referência aos adeptos do Liberalismo, e o termo libertário em referência aos anarquistas. As duas concepções políticas possuem visões distintas sobre liberdade, que procuramos desenvolver ao longo dos capítulos. 7 O liberalismo é uma corrente política, que tem sua origem atribuída ao iluminismo e à Revolução Francesa – evento no qual a burguesia se levanta contra a autoridade do clero e da nobreza. É marca do iluminismo o rompimento com as ideias da Igreja, predominantes no pensamento medieval. Para um entendimento mais profundo do tema, recomendamos: BOTO, Carlota. Na revolução francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de condorcet. Educ. Soc., Campinas, vol. 24, n. 84, p. 735-762, set. 2003. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/es/v24n84/a02v2484.pdf>. Acesso 26 out 2016, 11:23:53.

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Considera-se que a escola pública só veio a ser realmente implantada no Brasil após a instauração da República8, quando a primeira Constituição republicana delegou aos estados autonomia para gerir a educação. (SAVIANI, 2004, p.22) O pontapé inicial foi de São Paulo, que implementou uma reforma na instrução pública entre 1890 e 1896 , que embora não tenha conseguido se consolidar, serviu como referência aos demais estados ao longo do período. (SAVIANI, 2004, p. 19). Os liberais que pensaram essa reforma, inspirados pelo positivismo e cientificismo, defendiam o rompimento com a educação religiosa, além de “neutralidade do Estado frente às correntes de pensamento, não adotando nenhuma para garantir a livre concorrência entre elas, de modo que, pelo mérito, fosse determinada a mais autenticamente verdadeira” além de considerar que o ensino é “completo, profícuo, integral e concreto quando constitui-se na recapitulação das verdades científicas”. (REIS FILHO, 1995, p.36) Foi ainda durante o Império, como alude Paulo Ghiraldelli Jr., que as ideias liberais acerca de uma educação redentora começa a criar raízes no Brasil, sendo Rui Barbosa o principal expoente desse pensamento. Para ele, se a ignorância da população era a principal causa das desgraças que assolavam o país, e entrave para uma nação livre, a solução encontrada seria educar esse povo, habilitando-o para o trabalho. (GHIRALDELLI, 1987, p.16)

3.2 Reforma educacional paulista: o lugar das mentes e dos corpos A reforma da instrução pública paulista tem como grande precursor Rangel Pestana, que elabora o decreto de 1890, inspirado nos sistemas educacionais de países como Alemanha, Suíça e Estados Unidos, (SAVIANI, 2004, p.24) defensor de um ensino “que habilita, pelo conhecimento fornecido pela ciência, o homem para o trabalho.” (REIS FILHO, 1995, p.43) É ele que indica o então Dr. Antônio Caetano de Campos para desempenhar a tarefa de reformar o ensino público, à partir da Escola Normal. 8

Dermaval Saviani remonta brevemente a história da educação brasileira, partindo da chegada dos jesuítas em 1549, passando pela Pedagogia Pombalina à partir de 1759, período em que, após o fechamento dos colégios jesuítas, em que o Estado assume a responsabilidade de pagamento do professor e determina o conteúdo a ser ministrado – sem prover o espaço físico onde ocorreriam as aulas – e pelo pós Proclamação da República, em que mesmo com a Lei das Escolas de Primeiras Letras , em 1827, não houve a criação de uma Escola Pública em nível nacional, já que o Ato Adicional de 1834 passou a responsabilidade de gestão educacional para as províncias. (SAVIANI, 2004, p.17)

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Inspirada pelos ideais iluministas, essa nova escola era símbolo da instauração da ordem, “o sinal da diferença que se pretendia instituir entre um passado de trevas, obscurantismo e opressão, e um futuro luminoso em que o saber e a cidadania se entrelaçariam trazendo o progresso.” (CARVALHO, 1989, p.23). Tudo o que compunha o ambiente escolar deveria ressaltar o futuro glorioso para o qual o país caminharia. Caetano de Campos tem um pensamento pedagógico norteado fortemente pelo cientificismo, afinal, sua formação acadêmica inicial foi em medicina. Defendia uma educação pública, gratuita, universal, neutra, obrigatória e laica. “Seu pensamento é fruto da vulgarização das obras dos naturalistas, historiadores e filósofos que no fim do século XIX europeu, utilizaram os conhecimentos científicos para combater a metafísica escolástica.” 9 (REIS FILHO, 1995, p.59) Marta Maria Chagas de Carvalho faz uma análise histórica material e também das mentalidades que formavam essa luta de poderes no Brasil República. Em relação ao uso da educação como formadora dos cidadãos ideais que viriam a trilhar o caminho desejado pelos intelectuais liberais, utilizando falas de Caetano de Campos, a autora pontua: Não bastava, contudo, ensinar: era preciso saber ensinar. Não poderia haver ensino produtivo sem a adoção de métodos que estariam transformando em toda parte o destino das sociedades. A educação do homem moderno exigiria uma soma de conhecimentos que resultavam “sinteticamente das noções enciclopédicas hauridas em diversos ramos de estudo”. Como era impossível “ensinar às crianças tudo quanto pode ser necessário à vida”, tornava-se praticável dar à inteligência um grau de maturidade que preparasse suficientemente o homem novo para entrar na vida social “com seguros capitais para o êxito”.” (CARVALHO, 1989, p. 26)

A Escola Normal desempenha um papel determinante nesse processo, pois considerava-se que o primeiro passo para uma educação pública bem sucedida seria preparar os professores. “Trata-se, portanto, antes de qualquer reforma geral da Instrução Pública, de reformar o programa de estudo da Escola Normal e dar preparo prático aos seus alunos.” (REIS FILHO, 1995, p.51) Cria-se então, anexa à ela, a Escola Modelo, com o objetivo de servir como exercício prático para os(as) futuros(as) educadores(as):

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Essa rompimento com a escolástica, filosofia predominante na chamada Idade Média, e a – tomando a licença da palavra – fé científica, é sinal do pensamento positivista da Lei dos três Estados, proposta por August Comte, em sua obra Discurso Sobre o Espírito Positivo.

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Destinada à prática do ensino, para os alunos do 3º ano da Escola Normal, a Escola Modelo é estruturada pelo Decreto de 12 de março, em três graus de ensino: 1º grau para crianças de sete a dez anos de idade; 2º grau para as idades de dez a catorze; e 3º grau para adolescentes de catorze a dezessete anos. Entretanto, sua organização atingiu apenas o ensino do 1º grau [...]. (REIS FILHO, 1995, p.53)

Essa escola possuía inicialmente duas turmas do 1º grau, uma destinada à cada gênero, com no máximo 25 estudantes cada. Além de importar materiais, foram contratadas também professoras formadas nos Estados Unidos, para se dedicarem à Escola Modelo. Marta Carvalho utiliza o depoimento de um aluno, João Lourenço Rodrigues, para remontar a primeira experiência de duas educadoras americanas contratadas, Miss Browne na seção masculina e D. Maria Guilhermina, responsável pela educação das meninas. Ambas, exímias na arte de ensinar, encontraram intensa dificuldade para se comunicarem com as e os estudantes, tendo ambas aulas inaugurais mal-sucedidas. Contudo, a autora também aponta que essa inépcia não foi vista como um problema para a pedagogia que se valia do ver para reproduzir os modelos que lhes seriam ministrados.(CARVALHO, 1989, p. 29-31) Caetano de Campos narra de interessante maneira a contratação das duas professoras, mas nos atentemos especialmente acerca de Miss Browne: Faltava-me porém, um homem para os meninos, e isto é que é absolutamente impossível. [...] Achei, por fim, não um homem mas uma mulher-homem. Eis sua fé de ofício: Miss Browne, 45 anos, solteira, sem parentes nem aderentes, sem medo dos homens, falando ainda mal o português, ex-diretora de uma Escola Normal de senhoras em Saint Louis (Massachusetts) [...] e, finalmente trabalhando como dois homens, diz ela, quando o ensino necessita. (apud. REIS FILHO, 1995, p.57)

Foi essa mesma professora a única mulher a ocupar o papel de membra no Conselho Superior de Instrução Pública10, em 1893. (REIS FILHO, 1995, p.116) É interessante notar a masculinização que Caetano de Campos faz ao especificar porque Miss Browne seria, mesmo pertencendo ao gênero feminino, capaz de instruir a classe de meninos: por ser uma mulher-homem. Guacira Lopes Louro, ao abordar qual seria o comportamento ideal para uma professora, no período 10

Reis Filho cita os membros do Conselho na data de sua instalação, 3 de maio de 1893: “a) Doutor Artur César Guimarães, Diretor Geral da Instrução Pública. b) José Estácio Correia de Sá e Benevides, Diretor Interino da Escola Normal da Capital. c) Miss Márcia Browne, Diretora da Escola Modelo. d) Doutor Isaías Vilaça, representante das Câmaras Municipais. e) Ernesto Rodrigues Goulart Penteado, representante do Professorado Público.” (REIS FILHO, 1995, p.116)

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abordado, fala sobre como aquelas “que tivessem um nível de instrução mais elevado ou que ganhassem seu próprio sustento eram percebidas como desviantes, como uma ameaça aos arranjos sociais e à hierarquia dos gêneros de sua época.” (LOURO, 2004, p. 69) A mulher que rompe com o seu papel de subordinação prédeterminado, acaba por romper também com seu gênero, na mentalidade patriarcal do Brasil Republicano. A feminilização do magistério foi um processo marcante num país que manteve as mulheres inaptas para ensinarem até o início do século XIX. A primeira Escola Normal em São Paulo foi criada em 1836, porém era destinada somente aos rapazes. Ao final desse século já se nota uma mescla de professores de ambos os gêneros, sendo esta uma das poucas profissões prestigiadas que uma mulher poderia vir a desempenhar. (PENA, 1981, p.114) Com a reorganização da Escola Normal em 1871, cria-se currículos diferenciados para moças e rapazes, sendo que elas teriam, além das matérias básicas escolares, “bordado branco, em filó, de matiz, flores de conta e de aplicação, corte de roupas brancas e lisas.” (PENA, 1981, p.115) A instauração da República traz consigo a feminilização citada, e um quase domínio da presença da mulher no magistério, pois a escola regeneradora constrói “a tessitura mulher-mãeprofessora, aquela que ilumina na senda do saber e da moralidade.” (ALMEIDA, 2004, p.62) Essa visão está em harmonia com o papel feminino ideal, que exploramos no primeiro capítulo. Já com a reforma de 1890, a Escola Normal passa a abrigar duas turmas, uma feminina e outra masculina. Casemiro dos Reis Filho (1995, p.56) traz os números de matrículas do ano: na seção masculina, 20 no 1º ano, 37 no 2º e 27 no 3º; já a seção feminina era composta por 41 moças no 1ºano, 29 no 2º e 37 no 3º. Se somarmos o total de pessoas matriculadas, temos 23 mulheres à mais do que homens. Se inicialmente houve resistência diante da diminuição de homens no magistério, aos poucos houve incorporação das qualidades tidas como femininas: cuidado, afetividade, devoção. Mas, se as mulheres estavam ocupando a função de educadoras, cargos mais altos ainda eram masculinos. “A eles se recorria como instância superior, referência de poder; sua presença era vista como necessária exatamente por se creditar à mulher menos firmeza nas decisões”. (LOURO, 2004, p.460)

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Utilizando a maternalização do professorando, através do método intuitivo, se buscava realizar um interesse e um dever ao educar o povo; Interesse “porque só é independente quem tem o espírito culto, e a educação cria, avigora e mantém a posse da liberdade”. Tal interesse não se restringia ao ensino primário. Se este era importantíssimo por desenvolver na criança “o hábito de refletir antes de enunciar, a ciência de aproveitar o tempo (...) e sobretudo o amor ao trabalho”, isto não seria suficiente para formar cidadãos. [...] Os conhecimentos científicos ministrados na escola secundária deveriam ser a base da educação. Fornecer tal ensino inteiro, completo, de base científica, condição efetiva da cidadania plena, é o que se entendia como tarefa republicana.(CARVALHO, 1989, p. 33)

Suscitaremos uma questão: quem eram esses cidadãos e trabalhadores adequados que o governo republicano almejava formar? Marta Carvalho alude ao imigrantismo, não apenas como forma de obter mão de obra barata e qualificada, mas também como o bloqueador da “onda negra” que os intelectuais desejaram expurgar do país, através de uma miscigenação com objetivo de causar um efeito de branqueamento moralizador no povo. (CARVALHO, 1989, p.33) A população negra não estava nos planos - de tendência européia e norte-americana - dos liberais que almejavam “construir o país”. Autogoverno. Self-government. Caetano de Campos alude, que após a instauração da república, “Já que a revolução entregou ao povo a direção de si mesmo, nada é mais urgente do que cultivar-lhe o espírito, dar-lhe a elevação moral de que ele precisa, formar-lhe o caráter para que saiba querer.” (apud. REIS FILHO, 1995, p.60). E completa: Nós, os filhos do povo, nós que ao povo devolvemos o cetro que só ele pode empunhar, queremos que ele seja instruído largamente, proficientemente, como que precisa governar-se a si, e poder governar outros povos, se a ocasião o exigir. (apud. REIS FILHO, 1995, p.62).

A estrutura escolar foi pensada desde o Jardim de Infância, que começaria aos 4 anos, até a Escola de 3º Grau, destinada à adolescentes até os 18 anos. (REIS FILHO, 1995, p.64) Caetano de Campos elaborou também alguns princípios pedagógicos, dos quais, vamos nos atentar à dois: Autoridade – A escola elabora um sistema de prêmios e castigos, de sanções apropriadas de modo a garantir que a organização pedagógica funda-se sempre na autoridade do professor.

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Emulação – A idéias de dever, a necessidade de aprovação e o sentimento do mérito são desenvolvidos para manter a atividade escolar, e completa, desse modo, o princípio da autoridade. (REIS FILHO, 1995, p.68)

Os aspectos levantados são imprescindíveis para compreendermos quais eram os caminhos a serem adotados, através da educação tradicional, para se alcançar a almejada “redenção” do povo e o progresso econômico e social. Caetano de Campos defende, através de seu ideário liberal, a necessidade de possibilitar ao povo seu autogoverno, e deixa claro como esse processo aconteceria. O povo iria se autogovernar, mas dentro das normas liberais, através de uma educação autoritária e meritocrática. Uma fala de Miss Browne, em relatório de 1893, reafirma esses pontos que levantamos, ao colocar os métodos que seriam usados para disciplinar as crianças: O fim desta e de todas as disciplinas da Escola-Modelo é cultivar o respeito mútuo, prontidão, honestidade, obediência à lei, e um vivo sentimento de honra, em virtude da qual, a criança não aceitará nenhuma recompensa sem ser merecida. (apud. REIS FILHO, 1995, p.81)

Essas

questões

são

de

suma

importância

ao

colocarmos

os

descontentamentos pedagógicos que a Educação libertária viria a pautar. Por hora, vamos continuar a explorar o panorama da educação pública no período da República Velha. Uma das importantes transformações advindas da reforma consistiu na junção das primeiras letras em grupos escolares, que eram formados por um diretor e um número de professores de acordo com quantas escolas foram unidas para compo-los, criando assim as classes e séries anuais. Dermeval Saviani pontua também que essas escolas possuíam um estilo de ensino progressivo, no qual “ os alunos passavam, gradativamente, da primeira à segunda série e desta à terceira até concluir a última série [...] com o que concluíam o ensino primário.” (SAVIANI, 2004, p.25). É importante ressaltar que esses grupos escolares eram um fenômeno tipicamente urbano, enquanto no meio rural ainda predominavam as escolas isoladas. (SAVIANI, 2004, p.28). “Seria uma simplificação grosseira compreender a educação das meninas e dos meninos como processos únicos, de algum modo universais dentro daquela sociedade [brasileira, na transição do século XIX para o XX]”. (LOURO, 2004, p.444). Partiremos dessa afirmação para pensarmos como a escola foi – e ainda é –

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responsável pela manutenção da hierarquia de gêneros. Guacira Lopes Louro também afirma que essa instituição delimita espaços. “Servindo-se de símbolos e códigos, ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui.” (LOURO, 2014, p.62). A escola define os papéis que cada sujeito irá desempenhar, através da pedagogia adotada, e principalmente, da delimitação de quais grupos poderão frequentá-la. A mulher no Brasil republicano ainda tinha sua moral fortemente regrada pelo pensamento cristão, inclusive nas escolas. Com o fortalecimento da educação laica, se fortalece a ideia de que a falta de um apoio religioso seria extremamente danoso às mulheres. É então, que cresce o número de escolas católicas direcionadas às classes mais abastadas. Até mesmo na educação pública era possível sentir os efeitos dessa moral cristã. (ALMEIDA, 2004, p.69) As novas correntes educacionais que surgiram no final do século XIX, trataram de construir também o papel ideal para as mulheres pertencentes às classes menos abastadas. Era necessário moldar as figuras femininas que viriam a formar a sociedade. Elas deveriam ser diligentes, honestas, ordeiras, asseadas; a elas caberia controlar seus homens e formar os novos trabalhadores e trabalhadoras do país; àquelas que seriam as mães dos líderes também se atribuía a tarefa de orientação dos filhos e filhas, a manutenção de um lar afastado dos distúrbios e perturbações do mundo exterior. (LOURO, 2004, p. 447)

Essa escola vinha reforçar o local feminino, esperando delas “a permanência no espaço doméstico, o recato, a submissão, o acatamento da maternidade como a mais elevada aspiração.” (ALMEIDA, 2004, p.73) Recorremos novamente à Guacira Lopes Louro (2014, p.65); a autora afirma que gestos, movimentos e gostos são aprendidos no ambiente escolar, e “essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam e também produzem diferenças.” Porém, ela complementa essa informação: “os sujeitos não são passivos receptores de imposições externas. Ativamente eles se envolvem e são envolvidos nessas aprendizagens – reagem, respondem, recusam ou as assumem inteiramente”. No próximo capítulo abordaremos ideias de mulheres que recusaram essas imposições morais. Até para os positivistas, apoiados nas teorias científicas da época, [...] justificava- se um ensino para a mulher que, ligado ainda à função materna, afastasse as superstições e incorporasse as novidades da ciência,

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em especial das ciências que tratavam das tradicionais ocupações femininas. Portanto, quando, na virada do século, novas disciplinas como puericultura, psicologia ou economia doméstica viessem a integrar o currículo dos cursos femininos, representariam, ao mesmo tempo, a introdução de novos conceitos científicos justificados por velhas concepções relativas à essência do que se entendia como feminino. (LOURO, 2004, p.448)

3.3 Pós reforma de 1892 Instaurada a reforma em 1892, se inicia o processo e implementações à partir do ano seguinte. São Paulo passa por um processo de disseminação dos grupos escolares,e à partir de então, temos uma expansão do modelo por outros estados do país. (SAVIANI, 2004, p. 28) Em 1910 o total de grupos escolares no estado paulista chega à 102, com 25 Grupos na capital, e 77 no interior, (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1911, p. IX) tendo também 86 escolas isoladas no interior e 1.121 na capital. (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1911, p. X) Vamos aos números que o Annuario do Ensino do Estado de São Paulo de 1910 - 1911 nos fornece. Havia, em 1910, contabilizado, um total de 44.182 crianças em idade escolar na capital paulista. Destas, 93% estavam matriculadas, sendo 20.673 em escolas públicas do Estado. Esse dado difere brutalmente das estatísticas relacionadas à cidades do interior, onde, de 395.526 crianças, 270.228 estavam fora da escola. (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1911, p. LXXXVIII) Nas escolas da cidade de São Paulo, temos entre as (os) estudantes, 10.514 meninos e 10.159 meninas. Apesar de não haver muita disparidade entre os números de pessoas matriculadas por gênero, a maior diferença está nas escolas e cursos noturnos, nos quais haviam 563 matriculados, e nenhuma matriculada. (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1911, p. LXXIV) Uma interessante passagem desse relatório, é um tópico no qual o Inspetor Escolar B. M. Tolosa chama atenção à questão da educação dedicada aos meninos. “E’ um facto quem vem preoccupando muito a nossa attenção: em toda parte os meninos estão moralmente e intellectualmente em condições de inferioridade em relação ás meninas.” Afirma não ser culpa exclusiva nem de professores nem dos alunos, e completa: “Entretanto urge providencias quanto antes, pois é nossa convicção ser preciso preparar melhor os meninos, pois a sua missão social, quando se tornarem adultos, é de importancia indiscutivel.” (Annuario do Ensino do Estado de São Paulo, 1911, p. 109)

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Em 1911 foi criada, na cidade de São Paulo, a Escola Profissional feminina, ao lado da Escola Masculina, no bairro do Braz. Voltada à meninas maiores de 12 anos, advindas de famílias operárias, com pré formação em grupo escolar, oferecia cursos de Corte e Costura, Bordado e Rendas, Chapéu e Flores e Ornatos – os mais procurados – além de outros ligados à afazeres domésticos, que não alcançavam um grande número de inscritas. A causa desses cursos não atraírem muito público está relacionada à mentalidade social de que essas tarefas deveriam ser aprendidas no ambiente privado, e não numa instituição escolar. (OLIVEIRA, 1994, p. 60)

3.4 As reformas de 1920 Porém, a reforma da Escola Normal, posta em prática por Caetano de Campos, viria a ser alvo de críticas em relatório apresentado no ano 1918, pelo então Diretor Geral da Instrução Pública em São Paulo, Oscar Thompson, como nos apresenta Marta M. Chagas de Carvalho (1989, p.40). “232.621 crianças freqüentaram escolas em 1918; 247.543 em idade escolar não freqüentaram escolas públicas ou particulares conforme atesta a estatística.” A realidade é que a educação das massas não havia sido ainda abordada. (SAVIANI, 2004, p.30) Voltemos à algumas estatísticas, desta vez relacionadas ao ano 1920. A diferença de gênero entre matriculado(as) no ensino primário e médio não é muito discrepante, (Anuario do Ensino do Estado de S. Paulo, 1920- 1921, p. 116) mas ao chegarmos na educação profissional a desigualdade se torna mais evidente. Os cursos voltados ao gênero masculino consistiam em Mecânica, Marcenaria, Eletricidade, Pintura, e também o Curso Noturno. Já para o público feminino estavam reservados cursos de Confecções, Roupas Brancas, Rendas e Bordados, Flores, Chapéus e Trabalhos artísticos, Pintura e Datilografia. (Anuario do Ensino do Estado de S. Paulo, 1920- 1921, p. 61) Essas escolas eram separadas por gênero, e contavam cada uma com 909 rapazes e 622 moças. (Anuario do Ensino do Estado de S. Paulo, 1920- 1921, p. 117) Quanto mais avançamos no nível de instrução, maior a diferença. No ensino superior temos 266 homens matriculados na Faculdade de Medicina e Cirurgia, e apenas 4 mulheres. Na Escola Politécnica são 152 alunos, e nenhuma mulher.

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O ensino profissional feminino também passa por alterações, e podemos conferir as motivações dessas em texto de Aprígio Gonzaga, diretor da Escola Masculina, no Anuário de 1921. A escola profissional dever-se-ia chamar “Escola de Educação Domestica e Profissional”. Eu quero a escola que prepare a dona de casa, dando-lhe uma profissão, e não a escola que forme operarias, em detrimento de sua missão social. Deixemos de parte essa questão de direitos, reinvidicações e feminismo. (GONZAGA, Aprigio. Finalidade do Ensino Profissional Feminino. Annuario do Ensino do Estado de S. Paulo. Directoria Geral da Instrução Publica, 1921, p. 382)

A preocupação era formar a mulher que criaria os cidadãos adequados à pátria. Na escola domestica a mulher deve apprender a ser boa dona de casa. Mas, o que se deve apprender e como apprender, é a questão formal. A escola tem de visar a formação da mãe de familia, e a sciencia que nos deve preocupar é a “economia domestica”, ou antes, a “sciencia do lar”. [...] Acompanhar a vida do esposo, anima-lo, educa-lo mesmo, aparar as duras arestas do seu carater, zelar pelo governo e economia do lar, enfim, tudo justifica o que a disse a principio – à mulher cabe a parte mais difficil, mais espinhosa, de maior valor, na formação das sociedades e na grandeza da patria. Justifico-me: quantas vezes os motins sociaes, as greves, as lutas politicas nascem de pequenos problemas caseiros! (GONZAGA, Aprigio. Finalidade do Ensino Profissional Feminino. Annuario do Ensino do Estado de S. Paulo. Directoria Geral da Instrução Publica, 1921, p. 384)

Acerca dos direitos da mulher, afirma que estes estão entrevados aos deveres. E completa que tudo o que disse é feminismo. (p. 393) Esses deveres femininos estariam divididos de acordo com o estado civil: A’s casadas, o contracto matrimonial ditará os deveres, mais firmes pelo coração, que por nenhuma lei. As solteiras, entibiadas, cheias de preconceitos, são, na maioria dos casos, victimas dos homens sem palavra, gosadores, como essa raça viperina a si propria se baptisa; e desilludidas, aprendem a ser hypocritas; mas, pela acção fortemente educativa da escola, possuidoras de cultura intellectual e profissional, aptas para se manterem, ellas saberão ser fortes e dignas, na luta pela vida. (GONZAGA, Aprigio. Finalidade do Ensino Profissional Feminino. Annuario do Ensino do Estado de S. Paulo. Directoria Geral da Instrução Publica, 1921, p. 393)

Essas alterações não tiveram muita efetividade na comunidade escolar, os cursos profissionalizantes funcionaram de forma precária, e os voltados à tarefas domésticas acabaram suspensos por anos, cedendo espaço para trabalhos de

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oficina. Isso foi reflexo da falta de consenso acerca do tema entre os que pensavam a educação pública na época. (OLIVEIRA, 1994, p. 62) Diante do problema do analfabetismo, o educador Sampaio Dória, ideólogo da Liga Nacionalista, foi convidado pelo presidente do estado de São Paulo, Washington Luís para ocupar a direção da Instrução Pública do Estado, e se torna responsável pelo projeto de reforma da educação pública de 1920. Propunha inicialmente um ensino elementar de 2 anos gratuitos, com isenção de taxa aos pobres em todos os graus de ensino, e idade mínimo de 9 anos para ingresso escolar. (CARVALHO, 1989, p.43). O próprio Sampaio Dória, como pontua Saviani (2004, p.31), consideraria o projeto como gerador de uma escola aligeirada e simples, e este acabou não se consolidando totalmente. A necessidade da época era alfabetizar a população para obter um maior número de votantes, e a solução encontrada foi um letramento rápido e raso. Neste momento, novamente a educação aparece como possibilidade de redenção do povo. “O imigrante não era mais marcado no imaginário dessas novas elites pelos signos da operosidade, vigor e disciplina que haviam enleado os promotores da imigração no fim do século XX”. (CARVALHO, 1989, p.11) Os grupos operários, os movimentos de trabalhadores e trabalhadoras, as diversas greves, imprimem à essa camada social uma presença incômoda, anarquista. Era preciso suscitar um espírito nacionalista nos brasileiros, e ao mesmo tempo, integrar os imigrantes estrangeiros. Se percebe alguns pontos em comum entre a reforma de Sampaio Dória com o pensamento de Caetano Campos, afinal, ambos ligados ao liberalismo, defendiam um modelo educacional cientificista, visando o progresso da pátria através da formação de cidadãos adequados aos seus anseios. Porém, nota-se uma marcante diferença entre os dois idealizadores, enquanto Caetano de Campos possuía uma visão, podemos dizer, mais romântica da educação, Sampaio Dória apelou para a praticidade, unindo uma alfabetização rápida a prêmios à professoras que alcançavam um grande número de alunos. (CAVALIERE, 2003, p. 35) Os conflitos com o pensamento conservador republicano começam a aparecer, e os planos de gratuidade de Sampaio Dória se mostraram desajustados com a necessidade de criação de vagas sem acréscimos de custos. Se estabelece obrigatoriedade escolar apenas para crianças de 9 e 10 anos de idade, o que gera conflitos entre o reformador e o governo, e leva à demissão de Dória. A reforma

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sofreu algumas alterações e continuou a ser implementada por seu substituto, Guilherme Kuhlmann, até 1925. (CAVALIERE, 2003, p. 36) Posteriormente nasce a ABE – Associação Brasileira de Educação – em 1924, no Rio de Janeiro. Era formada por um grupo de diversos profissionais, entre eles alguns educadores, que se auto representaram como uma elite que deveria definir através da educação a Ordem e Progresso que o país alcançaria, processo no qual o povo foi visto apenas como uma matéria moldável à esses anseios. (CARVALHO, 1989, p.57) A partir de meados de 1920 São Paulo perde a posição de vanguarda nas reformas educacionais, e a ABE passa a ocupar esse papel. Não iremos nos aprofundar neste órgão, pois a baliza cronológica e geográfica adotada segue os períodos de existências das Escolas libertárias que futuramente iremos abordar, mas consideramos importante apresentar o desenrolar da questão política escolar durante a Primeira República.

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4. EDUCAÇÃO PARA LIBERDADE Após explorarmos as tendências educacionais e pedagógicas que marcaram o ideário republicano, de forte inspiração liberal e positivista, e como estas refletiram na construção de sujeitos e reforço de divisões sociais, iremos abordar neste capítulo as linhas anarquistas e libertárias de contraponto à essas ideias. Para tal, se faz necessária a restituição do surgimento dessas questões, e a investigação de qual linha de pensamento causou maior influência no Brasil, especialmente em São Paulo. Posteriormente, iremos abordar a materialização dessas ideias.

4.1 Autogoverno e Autonomia na Educação Silvio Gallo pontua dois níveis de autogestão no processo de ensinoaprendizagem: [...] primeiro, a auto-organização dos estudos por parte do grupo, que envolve o conjunto de alunos mais o(s) professor(es), num nível primário e toda a comunidade escolar – serventes, secretários, diretores, etc. – num nível secundário; além da formalização dos estudos, a autogestão pedagógica envolve um segundo nível de ação, mais amplo, mais geral e menos explícito, que é o da aprendizem sócio-política que se realiza concomitantemente com o ensino formal propriamente dito. (1995, p. 167)

Assim, o autor afirma que essas duas etapas envolvem primeiramente todo o corpo escolar e posteriormente se aplica ao nível da aprendizagem sócio-política que se desenvolve paralelamente às outras instâncias do ensino formal. A tendência autogestionária não pertence apenas ao anarquismo. Silvio Gallo utiliza a divisão das pedagogias autogestionadas criada por Georges Lapassede, que consiste em três grandes tendências, primeiramente a autoritária, na qual o professor passa ao grupo de alunos algumas técnicas de autogestão. Depois, aborda o que Lapassade chamou de tendência Freinet – nominada de acordo com o professor francês que seria sua grande influência, a qual deteremos atenção: Nessa tendência, próxima à individualização do ensino e à autoformação, estariam englobadas as experiências norte americanas de self-government na educação através do Plano Dalton e as propostas de uma Pedagogia Institucional, às quais se filia o próprio Lapassade. (GALLO, 1995, p.168)

Recordemos então alguns aspectos pedagógicos que foram trabalhados no segundo capítulo acerca da reforma proposta por Caetano de Campos. Inspirados

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por essas correntes educacionais americanas, o médico e educador propunha uma educação intuitiva e que possibilitasse o self-government no povo brasileiro. É importante lembrar que Caetano de Campos não adotou a linha pedagógica americana, mas a adaptou, da forma que considerou ideal para a realidade brasileira do período republicano. A figura do(a) professor(a) apesar de funcionar apenas como condutora do processo educativo, ainda mantinha autoridade e cobrava resultados de forma meritocrática dos(as) estudantes. Se essa experiência acabou tendo resultados não tão satisfatórios, não foi uma fuga à regra, já que a maioria dessas tentativas liberais de educação não atingiu uma expansão considerável, pois apenas camuflavam as desigualdades de classe e políticas que norteiam a sociedade capitalista. (MANFREDI, 1993, p. 3) Num sistema que se estabelece na heterogestão, com pequenos grupos determinando o processo produtivo nas fábricas e empresas, e controlando o funcionamento da máquina Estatal, mesmo que hajam interpretações liberais da autogestão, ela não é, como já foi evidenciado aqui, nem a realidade nem o objetivo da sociedade capitalista [...]. No contexto do capitalismo, a autogestão – enquanto projeto – faz parte da luta dos trabalhadores pela construção de uma nova ordem social. (GALLO, 1995, p.153-154)

Chegamos, então, à terceira e última tendência posta por Lapassade, a libertária, que abrange as experiências anarquistas na educação, definidas por ele como “um processo em que os professores deixam nas mãos dos alunos quaisquer orientações no sentido de instituir um grupo de aprendizagem e limitam-se a ser consultores deste grupo.” (GALLO, 1995, p. 168). Silvio Gallo discorda dessa afirmativa, e coloca que as experiências libertárias estariam muito longe da colocação de Lapassade. (1995, p. 169) É sobre essa linha de educação autogestionada e autonomista que iremos nos debruçar.

4.2 Anarquistas e a crítica à educação tradicional Primeiramente, é necessário pontuar a histórica oposição anarquista à educação tradicional, que esses grupos vinham denunciando desde a consolidação do poder burguês, à partir da Revolução Francesa. Seguiram-se duas frentes de escritos contrários à essa educação, “por um lado a crítica ao sistema de ensino

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praticado no capitalismo; por outro, uma discussão em torno de novas bases e objetivos libertários para a educação.” (GALLO, 1990, p. 110) Silvio Gallo aponta para Willian Godwin como um dos precursores do anarquismo e crítico da educação tradicional, utilizando um texto datado de 1793. Recorremos à fonte. Os danos que podem resultar de um sistema nacional de ensino estão, em primeiro lugar, no fato de que todos os estabelecimentos públicos trazem em si a idéia de permanência. [...] Mesmo que tenham sido extremamente úteis à epoca de sua criação, é inevitável que se tornem cada vez mais desnecessários com o decorrer do tempo. (GODWIN, apud. WOODCOOK, 1998, p. 252)

A negação de uma educação estatal é decorrência de uma contestação do Estado, de uma contrariedade à governo. Godwin continua: [...] todo projeto nacional de ensino deveria ser combatido em qualquer circunstância pelas suas óbvias ligações com o governo, uma ligação mais temível do que a velha e muito contestada aliança da Igreja com o Estado. Antes de colocar uma máquina tão poderosa nas mãos de um agente tão ambíguo, cumpre examinar bem o que estamos fazendo. Certamente que o governo não deixará de usa-la para reforçar sua própria imagem e instituições. (GODWIN, apud. WOODCOOK, 1998, p. 254-255)

Retomando Silvio Gallo, o autor afirma que essas críticas foram base de outros pensadores que prosseguiram esse debate – como Proudhon e Bakunin. (GALLO, 1990, p. 112) E aborda as intencionalidades que norteiam essa educação tradicional, que é ao mesmo tempo criadora e mantenedora das hierarquias do sistema capitalista, “servindo operários conformados para o trabalho braçal e formando os filhos da burguesia para as funções de gestão da sociedade [...].” (GALLO, 1990, p. 115) Um anarquista que veio a discordar da educação tradicional, e a colocar em prática uma alternativa de fuga à ela, foi Adelino Tavares de Pinho, educador e fundador da Escola Moderna n.2, em São Paulo11. Em um de seus artigos, publicado no Boletim da Escola Moderna, em 1918, podemos conferir algumas objeções, destacamos a crítica ao ensino religioso (grande parte dos anarquistas viriam a se alinhar ao anticlericalismo):

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Abordaremos as escolas modernas fundadas em São Paulo no próximo capítulo.

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A Escola, com raras exceções, até aqui, tem sido um instrumento de exploração religiosa, dirigida, protegida e inspirada por padres, frades, e caterva de ambos os sexos, com o intuito evidente de corromper o espírito da humanidade e desvia-lo do caminho do progresso, sustentando indefinidamente o domínio dessas chagas daninhas que são verdadeiras peias morais e intelectuais para a marcha ascendente do progresso. (PINHO, 2015, p. 91)

Seguindo a linha dos outros autores citados, Adelino Pinho também se coloca contra a educação estatal. Dessa vez em artigo da revista A Vida, em 1915. Os estados modernos, compreendendo perfeitamente que com a decadência da religião e com o desenvolvimento comercial e industrial das sociedades, era impossível manter na ignorância suína, dos tempos idos, as multidões, abriram escolas, as mais que puderam, especialmente nas cidades onde os agrupamentos são maiores e onde as ideias se disseminam mais facilmente, porque há mais sociabilidade, para por esse meio lançarem mão dos cérebros infantis e modelá-los ao seu bel prazer, enchendo-os de fórmulas metafísicas e abarrotando-os de palavrões estragados, como pátria, fronteira, estrangeiro e inimigos, acostumando os termos infantes a desconfiar de outros povos e a precaver-se contra eles, o que leva os do país estranho a fazer o mesmo vice- versa. (PINHO, 2015, p. 93)

Assim, podemos resumir que, para os anarquistas que questionaram a educação tradicional, esta seria a fonte e a manutenção das divisões de classe, das desigualdades econômicas e - podemos dizer - da hierarquia de gêneros. Essa última será objeto da nossa pesquisa em breve, mas por enquanto os autores utilizados ainda não haviam se voltado, de forma minuciosa, à condição da mulher. “Para resumir: afastar a iniciativa do Estado, dadas as implicações desta relação, mas torná-la cada vez mais próxima da sociedade: eis a proposta libertária.” (GALLO, 1995, p. 119)

4.3 Ideias e Prática Se a autoridade professoral foi um meio adotado por diversas linhas pedagógicas para atingir um determinando fim, inclusive entre os liberais, como esta se aplicaria aos anarquistas? Silvio Gallo discorda da afirmação de que na escolas libertárias o professor seja apenas uma presença de consulta para os alunos, que deteriam todo o controle do ambiente educacional. E ele explica que esta não foge ao uso da autoridade, mas coloca a necessidade do uso dela apenas nos ciclos iniciais, e é utilizada como ponte para que os indivíduos possam alcançar a liberdade, numa dinâmica em que os educadores se mostrem aos educandos como

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seres verdadeiramente autônomos, criando assim um ponto referencial para a criança. (GALLO, 1995, p. 72 e 75) Dessa forma, “a autoridade – e não o autoritarismo – deve ser o ponto de partida da educação das crianças” seguindo um processo no qual essa autoridade “seja progressivamente diminuída até desaparecer por completo, no momento em que as crianças já forem plenamente capazes de gerir, junto aos professores, a sua própria educação.” (GALLO, 1995, p.79) Ao mesmo tempo, na instrução de pessoas adultas, a autoridade já não seria adequada, pois [...] abandona o nível da pré-política e invade o nível político por excelência, perdendo por isso mesmo a legitimidade; na instrução de adultos já não existe mais autoridade, mas coerção, imposição, expressões materiais do poder político. (GALLO, 1995, p. 71)

Como já foi pontuado, os anarquistas e libertários possuíam densas discordâncias em relação ao ensino público, fornecido pelo Estado. A visão tecida pelos grupos operários no Brasil não destoava da linha anteriormente explicita. Ao mesmo tempo, o acesso à educação era uma das lutas anarquistas, e o movimento articulava críticas à condução governamental do ensino. (GHIRALDELLI, 1987, p. 105) Naquele momento, era necessário repensar a pedagogia tradicional, para através da alfabetização levar aos trabalhadores e trabalhadoras as ideias sobre emancipação humana. Alguns pensadores libertários influenciaram essa discussão, entre eles Francisco Ferrer y Guardia, cujas ideias infestaram as páginas dos periódicos anarquistas no início do século XX (GHIRALDELLI, 1987, p. 114). Será sobre Ferrer e sua Escola Moderna que nos deteremos nessa pesquisa. 12 A Escola Moderna foi idealizada e concretizada por Francisco Ferrer y Guardia, inspirada nas ideias de ensino racionalista, científico e integral, a qual Ferrer narrou a experiência em obra homônima. O livro, apesar de ter circulado amplamente no Brasil, ganhou uma tradução íntegra apenas em 2010. (GALLO, 2014, p. 11) Ferrer foi um republicano liberal, que muito se aproximou dos anarquistas, apesar de ter sempre rejeitado rótulos. (GALLO, 1995, p. 195). 12

Para um maior panorama sobre as experiência na educação libertária, recomendamos o capítulo Algumas Experiências de Autogestão Pedagógica, in GALLO, S. Educação Anarquista: um paradigma para hoje. Piracicaba: UNIMEP, 1995.

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A missão da Escola Moderna consiste em fazer com que os meninos e as meninas que lhe forem confiados se tornem pessoas instruídas, verdadeiras, justas e livres de qualquer preconceito. Para isto, o estudo dogmático será substituído pelo estudo racionalizado das ciências naturais. [...] Em vista do bom êxito que o ensino misto obtém no estrangeiro, e, principalmente, para realizar o propósito da Escola Moderna, encaminhado à preparação de uma humanidade verdadeiramente fraternal, sem categoria de sexos nem classes, serão aceitas crianças de ambos os sexos a partir da idade de cinco anos. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 37)

Seguindo essa linha de pensamento, foi inaugurada a Escola Moderna no dia 8 de setembro de 1901 com um total de 30 alunos; 12 meninas e 18 meninos. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 44) Além da coeducação dos sexos, esse espaço também defendia a coeducação das classes sociais, colocando “em contato uns com outros na inocente igualdade da infância, por meio da igualdade sistemática da escola racional[...].” (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 52) Além disso, não haviam provas, para evitar uma possível hierarquização de estudantes, e nem castigos, utilizando outras estratégias pedagógicas diante de conflitos. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 79).

A escola se manteve em atividade até 1906, quando foi fechada pelo governo espanhol. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 149) Não houve tempo de ser retomada, pois em 13 de outubro de 1909, em Barcelona, Ferrer foi fuzilado pelo governo, indiciado como um dos líderes do movimento que ficou conhecido como “Semana Trágica”, uma série de revoltas contra a burguesia, a monarquia e a Igreja. Dois anos mais tarde foi declarado inocente. (GALLO, 2014, p. 15. apud. Ferrer y Guardia, 2014). Apesar da morte de seu idealizador e do fim da Escola Moderna, a ideia de educação integral e racionalista continuou a reverberar no Brasil. No primeiro número da Fase IV do periódico A Lanterna13, no dia 17 de outubro de 1909, podemos conferir matérias de capa demonstrando intensa insatisfação com a morte do professor. 13

A Lanterna foi um órgão anticlerical e anarquista, fundado em 1901 pelo advogado maçom Benjamim Motta, tendo suas publicações interrompidas em 1904, e retornando em 1909, na Fase IV, dessa vez com Edgar Leuenroth na direção. (FAUSTO, 1986, p. 83). O próprio Benjamim Motta passa a palavra aos novos responsáveis e esclarece: “O programa d’A Lanterna é sempre o mesmo: desvendar todas as patifarias clericaes e trabalhar pela emancipação da consciência humana.” (A Lanterna, São Paulo, 17 out. 1909, p. 1) Nesta pesquisa trabalharemos apenas com edições à partir dessa IV fase.

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Instruir o povo é tirar freguezes aos padres, e elles, que bem o sabem, defendem-se como sempre o têm feito, sem escrupulos de especie alguma, sem reparar no numero de cadaveres, nem na monstruosidade do crime; emquanto elles dominarem, continuará a ser um crime possuir uma alma nobre, um cerebro que pense e um coração que sinta. (O grande martyr da educação popular. A Lanterna, São Paulo, 17 out. 1909, p. 1)

4.4 A coeducação dos sexos na Escola Moderna Um dos mais interessantes aspectos da educação moderna foi a proposta da coeducação dos sexos. Mais do que um ensino misto, o que a escola previa era acesso aos mesmo conteúdo pedagógico à meninas e meninos, o que não era muito popular na Espanha, como narra o próprio Ferrer. Por conta disso, buscou fazer a divulgação de forma discreta, preferindo perguntar individualmente à cada pessoa que ia fazer a inscrição se haviam meninas na família e convidando-as a formar o quadro de estudantes. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 45) O que obteve bons resultados, se haviam 12 meninas matriculadas na abertura da Escola, no fim do primeiro ano letivo fecharam 32 alunas, número que cresceu ao longo da existência da instituição, totalizando 52 meninas em 1903. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 123) A natureza, a filosofia e a história ensinam, contra todas as preocupações e todos os atavismos, que a mulher e o homem completam o ser humano, e o desconhecimento da verdade tão essencial e transcendental tem sido a causa de males gravíssimos. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 46)

Ferrer desenvolve o porquê é importante que a educação ocorra dentro desse molde: O propósito do ensino de referência é que as crianças de ambos os sexos tenham educação idêntica; que de maneira semelhante desenvolvam a inteligência, purifiquem o coração e temperem suas vontades; que a humanidade feminina e masculina sejam compenetradas, desde a infância, com a mulher chegando a ser, não em nome, mas na realidade, a companheira do homem. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 46)

Assim, surge uma possível solução para a diferença social entre os gêneros. Mesmo que o pensamento da época carregasse em si uma forte tendência biológica, e que as diferenças entre homens e mulheres fossem majoritariamente vistas como naturais, os e as anarquistas procuraram interpretar isso de forma positiva: parte da

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condição feminina era culpa de um sistema que a pretendia manter na ignorância, então a educação e o conhecimento seriam bons remédios para o problema: A mulher não deve estar recolhida ao lar. O raio de sua ação deve ser dilatado para fora das paredes das casas: este raio deveria ser concluído onde chega e termina a sociedade. Mas para que a mulher exerça sua ação benéfica, os conhecimentos que lhe são permitidos não devem ser convertidos em pouco menos que zero: deveriam ser em quantidade e em qualidade os mesmos que ao homem são proporcionados. A ciência, penetrando no cérebro da mulher, iluminaria o rico manancial de sentimento, dirigido-lhe certeiramente; nota saliente, característica de sua vida; elemento inexplorável até hoje; boa nova no porvir de paz e felicidade na sociedade. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 49)

Ferrer aponta que a mulher representaria a continuidade, send a responsável por reter na espécie humana os elementos que melhoram a vida, e para que isso seja efetivo é necessário que ela seja instruída. (2014, p. 49). E completa: A humanidade melhoraria com maior rapidez, seguiria com passo mais firme e constante o movimento ascensor do progresso e centuplicaria seu bem estar, pondo à contribuição do forte sentimento impulsivo da mulher as ideias que a ciência conquista. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 49)

Seguindo essas ideias, o educador completa a tese e o texto, com uma aposta para o futuro: Quando acontecerá tudo isto? Quando for realizado o matrimônio das ideias com o coração apaixonado e veemente na psiquê da mulher; então será um fato evidente nos povos civilizados o matriarcado moral. Então a humanidade, por um lado, contemplada do círculo do lar, possuirá o pedagogo conhecido que modele, no sentido do ideal, as sementes das novas gerações; e por outro, contará com o apóstolo e propagandista entusiasta, que por sobre todo sentimento ulterior, saiba fazer sentir aos homens a liberdade, e a solidariedade aos povos. (FERRER Y GUARDIA, 2014, p. 50)

A mulher é a mãe e também a professora, é a responsável por grande parte da formação dos indivíduos. Estar presa à uma condição de submissão e ignorância apenas atravancaria o avanço social e a emancipação humana. Seria necessário então libertar as mulheres. De quê? E como? Ferrer aponta a educação como um possível caminho, e vai além, defende a mesma educação para ambos os gêneros como ideal. É nessa linha que seguiram algumas pensadoras anarquistas – ou não rotuladas – que se dispuseram a pensar a situação feminina na sociedade em que viviam e traçaram um paralelo com a educação; como veremos a seguir.

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4.5 As mulheres e a educação libertária A ignorância – entendida aqui como falta de determinados conhecimentos – é apontada por anarquistas como uma razão para a inferioridade feminina. E essa é atribuída, muitas vezes, ao clero e à falta de educação adequada. Como afirma artigo de Maria Angelina Soares 14, no periódico A Lanterna: Já é tempo da mulher se livrar das cadeias do servilhismo e da humilhação que até agora a teem impedido de ocupar o seu posto na luta pela liberdade. [...] Quantas lutas e sacrificios serão necessarios para sua emancipação! Enquanto existir o prejuizo religioso que ainda domina o povo, ela será a escrava resignada que, com a esperança na felicidade eterna, se arrasta pelo caminho da perdição! A vós homens livres, que almejais a liberdade, a vós eu me dirijo para incitar-vos a que empregueis todos os meios persuasivos afim de estimular as vossas companheiras e as vossas filhas a tomar parte nessa obra de elevação intelectual e moral, base primordial da sua libertação. Companheiras! Já não é sem tempo que vossas faculdades recuperem a sua lucidez e vivacidade. (SOARES, Maria A. “Pela Emancipação da Mulher”. In. A Lanterna. São Paulo, 24 mai 1913. p. 1)

Podemos perceber nesse artigo, muito fortemente, a ideia de libertação feminina para emancipação social. A mulher livre seria um caminho para humanidade livre. Essa é também a linha que seguiu Maria Lacerda de Moura 15 em diversos dos seus textos. Apesar de não se considerar anarquista, e negar esse rótulo, a educadora flertava com diversos ideais libertários, e esteve presente em muitos espaços anarquistas, além de ser uma incansável defensora da emancipação feminina. Em sua segunda obra, Renovação, de 1919, ela declara: O homem não é um ser emancipado e ao seu egoísmo não convem a emancipação feminina. E’ indispensavel que a mulher trabalhe pela mulher.

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Maria Angelina Soares, filha de militantes anarquistas, nasceu em São Paulo, em 1886 e foi uma importante militante, divulgadora de ideias ácratas e de conscientização do operariado e da mulher, foi secretária da liga operária da Mooca e uma das fundadoras do Centro Feminino Jovens Idealistas (VALADÃO. LOPREATO. s/D. p. 8- 9) 15 Nascida em 16 de maio de 1887, em Manhuaçu/MG, na fazenda Monte Alverne, Maria Lacerda de Moura recebeu suas primeiras influências anti-clericais dos pais, formou-se na Escola Normal Municipal, em Barbacena/MG. Foi professora, ativista, escritora, conferencista, periodista. Teve ligação com a Maçonaria, e com a Fraternidade Rosa Cruz, com a qual rompe ao saber que sua sede havia sido cedida aos Nazistas, em 1935. (GONÇALVES, A. BRUNO, A. QUEIROZ, A. apud. MOURA, 2015, p. 6)

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E’ preciso, sobretudo, que ella se instrúa e que divulgue as leituras fórtes e uteis fazendo compreender que somo uma poderosa e formidavel energia no grande contingente das energias sociaes (MOURA, 2015, p. 52-53)

Se afirmou feminista nesta mesma obra (MOURA, 2015, p. 237) e esclareceu que seu intuito não era retirar a mulher do lar, ou do casamento - fundado no amor mas, sim proporcionar a ela instrução, para que conciliasse o trabalho intelectual ao doméstico. (MOURA, 2015, p. 116- 119) Maria Lacerda desenvolveu uma relação bastante instável com o movimento e imprensa anarquista, tendo mais forte ligação com esse pensamento durante o tempo que passou em São Paulo, mas nesse período trocou também algumas farpas com o jornal A Plebe. Uma dessas ocasiões foi em uma conferência em 1923, quando elogiou o Estado Soviético – marcado por um sistema socialista autoritário – do qual os anarquistas discordavam veemente. Esta situação gerou um texto muito interessante de Isabel Cerruti16 sobre a educadora mineira. A anarquista relata suas impressões acerca do pensamento de Maria Lacerda: [...] D. Maria Lacerda fazia longa e franca propaganda do suffragio feminino. E eu, como mulher, combatia essa campanha; pois aspiro a minha integralização nos direitos socies, mas a quero completa e de facto. E para isso, é preciso antes que o sexo opsto se agite para obter a sua carta de alforria, da escravatura que junge os dois sexos ao tronco do capitalismo, para então proclamar-se a emancipação da mulher dominando no lar, donde a arrancou a burguezia para fazer della instrumento passivo da exploração do trabalho [...] (SILVA, Isabel. Ponderando... A Plebe. São 17 Paulo, 27 out 1923, p. 3)

Eis um interessante ponto de conflito entre as anarquistas e as feministas. Como já abordado no primeiro capítulo, as trabalhadoras na Primeira República não se sentiam representadas pelo movimento feminista da época, e as libertárias negavam a luta pelo sufrágio. Afinal, sendo o Estado o principal alvo da revolução social, ter mulheres entre aqueles que o representam não era uma via para emancipação feminina, e como pontuou Maria Angelina Soares, “unamo-nos e não deixemos que progrida esse novo morbus que se introduziu entre nós e teremos 16

“Imigrante, Isabel veio bastante jovem ao Brasil, e, interessada desde cedo pelas idéias anarquistas, participou intensamente e de forma duradoura do movimento libertário. Não se sabe ao certo de que lugar emigrou, mas supõe-se que tenha sido da Itália. Isabel escreveu em jornais anarquistas, proferiu conferências, falava em comícios públicos, de comemoração e protesto, e tomou parte no Centro Educativo Feminino e na Liga Feminina Internacional. [...]colaborou na imprensa anarquista, em periódicos como A Plebe, com seu próprio nome e com os pseudônimos Isa, Ruti e Isabel Silva.” (Coletivo Insubmiss@s, s/D, p. 29) 17 Isabel Cerruti utilizou alguns pseudônimos, entre os quais, Isa Ruti e Isabel Silva.

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assim evitado que amanhã sejam nossas inimigas as que hoje são nossas irmãs.” (Despertar Feminino. A Lanterna. São Paulo, 3 out. 1914, p. 3) Isabel Cerruti prossegue, dizendo que continuou a acompanhar os trabalhos de Maria Lacerda, e viu mudança, para ela satisfatória, no seu pensamento: Deslindando a fonte do mal, entrou a operar atacando-a pela base e viu bem claro que pretender a emancipação da mulher no regimen da exploração do braço produtor, com a agravante da corrupção que envolvem os caracteres vendáveis, é coisa bem risível. (SILVA, Isabel. Ponderando... A Plebe. São Paulo, 27 out 1923, p. 3)

Continuando com a análise das ideias de Maria Lacerda, já em 1924, considerou as diferenças existentes entre os sexos18, e reforçou que “o que se quer, com energia indomável é igualdade de deveres e direitos.” (MOURA, 1982, p. 73) E completa ao dizer que “não há duvida: toda mulher deve receber uma educação especial que a prepare para dona de casa, companheira e mãe.” (MOURA, 1982, p. 85) Explanou toda sua admiração por Francisco Ferrer e sua Escola Moderna em uma obra de 1934: Dizia o apostolo do ensino racionalista, referindo-se à mulher, que o mundo só caminhará para uma evolução mais alta, quando realizar o matriarcado moral, isto é, quando o impulso sentimental feminino contribuir diretamente para a conquista da consciência. Como Ferrer compreendia a necessidade urgente de tirar partido da energia conservadora da mulher, não para cristalizar o seu pensamento em formulas rotineiras, mais para desperta-la para a vida e para beleza! (MOURA, 2012, p. 36)

Assim como Ferrer, Maria Lacerda defendia a coeducação dos sexos, do jardim da infância até a universidade, também como uma forma de

evitar que

mulheres sucumbissem à relações amorosas irrefletidas. (MOURA, 2015, p. 242) Coloca a falta de instrução também como uma questão moral: “A instrucção de que carecemos não está só nos bons livros, mas antes, na accepção séria da vida. [...] Falar linguas ou banalidades como um papagaio é inutil para a grande renovação.” (MOURA, 2015, p. 244-245) Atribui o atraso intelectual da mulher ao fator biológico, mas o vê como decorrência da deseducação que estas sofreram, e paralelamente como fator do 18

Num sentido biológico.

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atraso do desenvolvimento da civilização. “No regimen atual a mulher é escrava porque precisa da proteção masculina. O individuo protegido vale menos, e está sob a dependencia do protetor. Não póde ter dignidade: a propria dependencia já é aviltante.” (MOURA, 1982, p. 88) Volta o olhar também para a mulher proletária e pertencente às classes não privilegiadas: “a criança e a mulher proletarias são os entes mais prejudicados pelo capitalismo, pelo industrialismo moderno e são as maiores fontes da degenerencia da geração futura.” (MOURA, 1982, p. 89). Coloca também que A instrucção deve abrir os nossos olhos a ver os milhões de mulheres ultrajadas, miseraveis, abandonadas, o infinito de crianças orphãs – tendo pae e mãe, a immensidade de soffrimentos, de infelicidades, de fome e de nudez. Essas desventuradas criaturas tambem têm direito á vida e nos olham de tão longe que nem forças têm para nos odiar. E o Municipal se enche, o Assyrio regorgita, o Carnaval pompeia fantasias de contos de reis e os collos ostentam perolas carissimas, enquanto algumas miseraveis se perdem para alimentar os proprios filhos! (MOURA, 2015, p. 281)

Apesar do distanciamento em relação às operárias – afinal, Maria Lacerda de Moura era uma educadora – podemos notar uma sensibilização com a condição da mulher proletária. Teceu críticas ao ensino público. “As reformas de todo genero, elaboradas nas secretarias de cada governo, com o auxilio de codigos e leis e regulamentos antigos e modernos, extrangeiros e nacionaes, aumentam sempre o ridiculo.” (MOURA, 1982, p. 95) Considerou errôneo o ensino profissional feminino, que como conferimos no capítulo anterior, confinava as mulheres à trabalhos manuais de costura e bordado. “E’ indispensavel preparar a mulher para prover a subsistencia trabalhando em todas as profissões acessivas ao sexo, prepara-la não para ser parasita, objeto de luxo ou exploração.” (MOURA, 1982, p. 99) Isabel Cerruti também se dispôs a criticar a educação pública e a participação feminina nela. Em artigo sobre uma festa cívico-escolar realizada no Parque Antártica, no dia 7 de setembro, na qual as crianças de escola pública foram expostas ao sol desde as 7 horas da manhã, recebendo um parco lanche apenas às 16 horas, ela pontua: As professoras, que nas escolas substituem as mãis, não deviam permitir semelhante barbaridade, atentando contra a saude de seus alunos. Mas que querem é a disciplina, é a escravidão da sociedade dominante.

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Mãis, deveis criar e educar vossos filhos pelo metodo racionalista, livres de quaisquer preconceito, quer religiosos, quer civis, para que não sejam vitimas da tirania e da exploração desses abutres que se fazem governantes da nação. (CERRUTI, Isabel. “As Mais Proletarias”. A Lanterna. São Paulo, 29 jan. 1916. p. 2)

Podemos

notar

nos

discursos

dessas

três

mulheres,

libertárias,

anticapitalistas, a preocupação com a condição na qual a mulher se encontrava na sociedade patriarcal do Brasil na Primeira República, e uma esperança de alcançar a igualdade social e a liberdade, para todas as pessoas, na emancipação feminina através da educação; não aquela fornecida pelo Estado, mas integral e racionalista, como a pensada por Francisco Ferrer. Assim como o educador, as anarquistas não ficaram presas ao plano das ideias, e fundaram centros e escolas voltadas à educação moderna. É à essas instituições, e às Escolas Modernas paulistas, que voltaremos nosso olhar no próximo capítulo.

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5. A PRESENÇA FEMININA NAS ESCOLAS MODERNAS PAULISTAS Passamos pelo panorama da organização social brasileira, em especial a paulista, no período que engloba a chamada Primeira República, ou República Velha. A condição de trabalhadores e trabalhadoras, os movimentos operários, a forte presença anarquista, e a condição feminina. Diante desse contexto, tomamos conhecimento das iniciativas governamentais a fim de obter um maior controle da população através da educação, e as reformas que ocorreram visando esse objetivo. Nos aprofundamos na concepção libertária de educação e nas críticas feitas por homens e mulheres anarquistas em relação à escola pública. Chegamos, então, à materialização dessas ideias, e iremos conhecer quais foram as ações desse movimento na educação paulista, com foco na questão feminina.

5.1 Escolas Modernas em São Paulo Inspiradas nos modelos de educação libertária que exploramos no capítulo anterior, vários centros e escolas foram fundadas por grupos anarquistas pelo Brasil, no início do século XX. É importante relembrarmos como este período foi marcado pela agitação do movimento libertário, e o florescimento de escolas, associações e grupos é signo das ações da época. A Escola Moderna N.1 e a Escola Moderna N.2, ambas na cidade de São Paulo obtiveram certo destaque, e é a elas que deteremos atenção no momento. Em 1909 um grupo de militantes anarquistas formam o Comitê pró Escola Moderna, a fim de angariar fundos para compra de um terreno e materiais para as aulas. Podemos conferir uma circular do mesmo ano, publicada no jornal A Lanterna: A Escola Moderna propõi-se libertar a criança do progressivo envenenamento moral que por meio de um ensino baseado no mysticismo e na bajulação politica, lhe communica hoje a escola religiosa ou do governo; - provocar junto com o desenvolvimento da intelligencia a formação do caracter, apoiando toda concepção moral sobre a lei da solidariedade; fazer do mestre um vulgarizador de verdades adquiridas e livra-lo das peias das congregações ou do Estado, para que sem medo e sem restricções lhe seja possive ensinar honestamente, não falseando a historia e não escondendo as descobertas scientificas. (A Escola Moderna em São Paulo. A Lanterna. São Paulo, 27 nov. 1909. p. 1)

Além desse Comitê principal, foram fundadas subcomissões com o objetivo de auxiliar o empreendimento. (A Escola Moderna em São Paulo. A Lanterna. São

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Paulo, 19 mar. 1910. p. 3) Listas de subscrição eram levadas à diversas cidades do estado, por integrantes do Comitê (GHIRALDELLI, 1987, p. 132) e depois divulgadas na imprensa operária. Foram anos de intensos esforços 19, mas que em 13 de maio de 1912 deu o primeiro fruto: A Escola Moderna N.1 foi fundada, na Rua Saldanha Marinho, 66 no bairro Belenzinho.

5.1.1 A Escola Moderna N.1 Criada em 13 de maio de 1912, inicialmente recebeu o nome de Escola Livre, e estava localizada na rua Conselheiro Cotegipe, sendo depois transferida para a Rua Saldanha e por fim, à avenida Celso Garcia n.262 (MORAES et al, 2013, p.63), sob a direção de João Penteado, militante do movimento operário, estudioso e admirador da obra de Ferrer. (GHIRALDELLI, 1987, p. 133) A escola era voltada para meninos e meninas, possuía taxa de matrícula no valor de 3$ para as aulas diurnas e 4$20 para as noturnas, tendo livros e materiais fornecidos gratuitamente, para “facilitar aos operarios a educação e instrucção de seus filhos segundo o metodo racionalista”. As aulas ocorriam das 8h às 12h para a seção masculina, e das 12h30 às 16h30 para a seção feminina. À noite, das 19h às 21h. Inicialmente contava com aulas de português, aritmética, geografia, história do Brasil e princípios de ciências naturais (Escola Moderna N.1. A Lanterna.São Paulo, 18 out. 1913. p. 4) Já em anúncio de 1917, é informado um horário único de aulas diurnas, das 11h30 às 16h30, com cursos de trabalhos manuais – costura, bordado – reservados apenas às alunas (Escola Moderna N.1. A Plebe. São Paulo, 16 jun. 1917. p. 4). Seguindo o método de Ferrer, a Escola Moderna em São Paulo seguia a “demonstração prática de que todos os seres humanos são igualmente dignos de respeito e suscetíveis de desenvolver as mesmas qualidades e aptidões, desde que

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Podemos conferir algumas atividades: Espetáculo realizado em 15 de outubro no Rio de Janeiro, à favor da Escola Moderna, (M.M. Do Rio de Janeiro. A Lanterna. São Paulo, 22 out. 1910. p. 1). Em janeiro de 1911 o anúncio de que o Comitê havia arrecadado 12:000$ dos 80:000$ necessários para a fundação da Escola. (A Escola Moderna em São Paulo. A Lanterna. São Paulo, 7 jan. 1911. p. 4) Um esclarecimento em 1911 por conta da pausa nas atividades do Comitê, cujos mebros estavam absorvidos em outras atividades, mas voltariam à ativa brevemente, com uma grande quermesse em benefício da Escola. (A Escola Moderna em São Paulo. A Lanterna. São Paulo, 28 out. 1911. p. 2) No final do citado ano é anunciado o fechamento do balancete e uma futura reunião para deliberação das futuras atividades a favor do projeto. (A Escola Moderna. A Lanterna. São Paulo, 30 dez. 1911. p. 3). 20 3$000 réis hoje equivaleriam à RS120,00 e 4$000 à R$160,00. Conversão feita em: . Acesso 13 out. 2016. 12:07.

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favorecidos pelas mesmas circunstâncias.” (MORAES et al, 2013, p. 64). Procurava apresentar a religião como um fenômeno histórico social, utilizando o método racional científico, e complementando esse processo com bibliotecas, atividades pedagógicas e divulgação através de imprensa própria. O primeiro jornal lançado pela Escola Moderna N.1 foi O Início, cujo conteúdo era de responsabilidade das (os) estudantes, e contava com relatos de atividades, artigos sobre educação, e balancetes. Depois, foi lançado o Boletim da Escola Moderna, que se apresentava mais como um porta-voz da instituição, e também como um espaço para o movimento operário em geral. (GHIRALDELLI, 1987, p. 134) Assim, criava-se um canal de comunicação entre a comunidade e a escola, questão que João Penteado parecia considerar fundamental, pois também procurou “participar de outras instituições existentes no bairro e na cidade, que serviam de complemento às atividades desenvolvidas pela escola e de prolongamento da ação educativa não escolar.” (MORAES et al, 2013, p. 66) Conferimos no Capítulo 4 as ideias de pensadoras(es) libertárias(os) acerca da educação feminina. Se a Escola Moderna figurou como um importante instrumento de luta anarquista no Brasil, em relação à mulher sua intenção também aparece como arma para combate do Estado e da Igreja. E mesmo que a Escola Moderna N.1 também possuísse o objetivo de instruir o gênero feminino, a implementação das aulas de costura e bordado denotam uma distorção das ideias propostas por Ferrer. (MORAES et al, 2013, p. 125) Constatamos nos anúncios da Escola que esta era voltada à pessoas de ambos os gêneros, vamos agora conferir a efetivação desse prenúncio. Durante os anos de funcionamento do espaço, em nenhum momento a quantidade de meninas estudantes ultrapassou o número de meninos matriculados. “Dezesseis foi a quantidade máxima de mulheres que a escola teve por ano nos períodos diurnos e noturnos (1915 e 1918), enquanto o sexo masculino obteve 68 matrículas em 1918, ano em que elas atingiram o pico mais elevado.” (MORAES et al, 2013, p. 126). Essa questão está ligada ao alto grau de evasão que a Escola sofreu, causada muitas vezes pela falta de recursos dos pais para manter os filhos estudando; contando com o fato de que a educação feminina recebia menor importância, esta acabava sendo a parcela mais prejudicada. Outro ponto importante é a falta de meninas que permaneceram na escola por mais de três anos consecutivos. (MORAES et al, 2013, p. 127)

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Se nos primeiros anúncios apareciam turmas divididas por gênero, ao longo do tempo essa questão parece ter sofrido alterações, como vimos num anúncio de 1917. No Boletim da Escola Moderna, de 1918, as turmas do período matutino mostram-se

todas

mistas,

enquanto

o

noturno

possuía

apenas

homens

matriculados. (Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 13 out. 1918. p. 4) Em relação ao jornal O Início, é possível conferir a presença feminina em sua elaboração, e também registro de participação das meninas de cursos mais avançados nas atividades da escola. Porém, em relação ao curso noturno, essa figuração aparece apenas em doações de prendas, enquanto os alunos do período ficavam responsáveis por exercícios mais críticos.(MORAES et al, 2013, p. 128) A Escola Moderna N.1 foi reconhecida pelos órgãos governamentais, porém, sofreu diversos ataques por parte dos setores mais conservadores ao longo dos anos, e em 1919, após um acidente numa casa no bairro do Brás, no qual após uma explosão de bomba morreram quatro anarquistas – entre eles, José Alves, diretor da Escola Moderna de São Caetano – as autoridades passam a reprimir as atividades dos libertários. (MORAES et al, 2013, p. 130) As duas Escolas paulistas foram oficialmente fechadas pelo diretor geral da instrução pública, Oscar Thompson, no mesmo ano, acusadas de serem dirigidas por anarquistas fabricantes de explosivos. Mesmo com abaixo assinados de ambas escolas, não houve afrouxamento por parte das autoridades. (GHIRALDELLI, 1987, p. 138)

5.1.2 A Escola Moderna N.2 Também fruto do Comitê pró Escola Moderna em São Paulo, a Escola N.2 foi entregue à direção de Adelino Tavares de Pinho. Criada provavelmente em 1913, estava localizada na rua Müler, n. 74, no bairro do Braz, (MORAES et al, 2013, p. 63) mudou-se para a Rua Oriente, n. 166 e por último, depois de se manter um tempo fechada, volta a funcionar em meados de 1917 na Rua Maria Joaquina, n. 13. (Boletim da Escola Moderna. São Paulo, 18 mar. 1919) Conferimos algumas ideias desse educador no capítulo anterior, que contribiu em diversos órgãos anarquistas, inclusive aqueles criados pelas Escolas Modernas, sob o pseudônimo de Pinho de Riga. Em anúncio de 1913, quando ainda estava na Rua Müler, podemos conferir que a Escola Moderna N.2 utilizava o método científico e racional, através de

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educação artística, intelectual e moral, utilizando museu e biblioteca, que estavam sendo adquiridos, para exercícios e complementos das aulas. O horário de funcionamento seria das 12h às 16 horas. (A Lanterna. São Paulo, 23 ago. 1913. p.3) Neste anúncio não há informações acerca da abertura de gênero proposta, mas no O Início, podemos conferir que haviam aulas diurnas para crianças de 6 à 12 anos de idade, de ambos os sexos, sob os valores mensais de 3$000 para principiantes e 4$000 para adiantados. Os valores das aulas noturnas seriam à combinar, e não há informação se aceitavam tanto homens quanto mulheres. Neste ano, a escola já havia se mudado para a Rua Oriente.(O Início. São Paulo, 4 set. 1915. p. 4). Se há dificuldades para se pesquisar a Escola Moderna N.1, as informações acerca da Escola N.2 são ainda mais escassas. Isso se deve muito provavelmente ao fato de que o acervo de João Penteado foi doado ao Centro de Memória de Educação/FEUSP, e um inventário de fontes, utilizado nessa monografia, se encontra disponível, facilitando acesso ao conteúdo21. Apesar dessa limitação, é possível encontrar diversos registros de atividades da instituição na imprensa operária. Como, por exemplo, o anúncio de uma sessão de propaganda na Escola Moderna N.2 com o tema A mulher na família e na sociedade, desenvolvida por Florentino de Carvalho. (Sessão de propaganda racionalista na Escola Moderna n.2. A Lanterna. São Paulo, 24 jan. 1914. p. 2) No número seguinte, é confirmado o sucesso da conferência, dita como bastante concorrida e proveitosa. (A reunião de propaganda da Escola Moderna n.2. A Lanterna. São Paulo, 31 jan. 1914. p. 3) Como já pudemos conferir, ambas Escolas Modernas foram fechadas em 1919, nas circunstâncias apresentadas. Matéria do jornal A Plebe mostra como os grupos anarquistas enxergaram esse feito: A policia, manejando os seus bonecos da Directoria da Instrucção Publica, que já perdeu a altivez e a Independencia que lhe ficavam muito bem, ordenou o fechamento das Escolas Modernas, uma a Avenida Celso Garcia, 262, do professor João Penteado, e outra á Rua Maria Joaquina, 13, do professor Adelino de Pinho. Esses professores receberam officios do dr. Oscar Thompson declarando que, tendo sido verificado pela Secretaria da Justiça que as suas escolas que visando a propaganda das ideias anarchistas e a implantação do regimen communista. Ferem de modo inilludivel a organização politica e social do paiz. Por isso foi decretado o seu fechamento. 21

O Arquivo João Penteado possui extenso acervo documental, compreendendo os espaços que tiveram participação do educador no período entre 1912 à 1961. (MORAES et al, 2013, p. 23)

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[...] Para esses que enchem os hospicios de loucos, as secretarias de idiotas, as rias de decahidas e as esquinas de invertidos, a policia não tem olhos, pois sabe que a degradação dos povos é a riqueza dos trusts politicos e commerciaes. Seus olhos colericos estão voltados para os logares onde se diz a creança que a sciencia é a unica verdade existente e que o homem que vive do trabalho de outro homem é um ladrão! (Encerram as Escolas Modernas de S. Paulo. A Plebe. São Paulo, 29 nov 1919. p.2)

Procuramos descrever as características acerca das duas Escolas Modernas fundadas em São Paulo, que pudessem trazer alguma informação sobre a presença feminina nesses espaços. Mesmo com informações um tanto limitadas, pudemos conferir que a Escola N.1 sempre abriu espaço para meninas e moças nas aulas, inicialmente com turmas separadas por gênero, e depois com seções mistas. Já a Escola N.2, apesar da falta dessa informação acerca das atividades iniciais, pudemos conferir a aceitação posterior de ambos os gêneros, provavelmente em uma turma mista. Além disso, apesar da preocupação dos diretores em abrir oportunidade à filhos e filhas da classe operária, o nível de evasão foi significativo, e quem mais sofreu com ele foram as meninas. Vamos nos voltar agora à espaços que tiveram foco na educação feminina.

5.2 Rastros de grupos femininos Ao longo dos capítulos deste trabalho buscamos sempre destacar como a insubmissão feminina no período histórico abordado foi negligenciada pelo registro histórico. Como pontua Francisco Correia, esse apagamento É um comportamento machista, injusto para com a mulher que lutou ao lado do homem nas fábricas, nas associações operárias, colaborou nos grupos de Teatro Social, participou de congressos operários, nos centros de Cultura Social, em comícios, passeatas, greves, foi presa e sofreu humilhações. (CORREIA, 1986, p. 41)

Procuramos também mostrar como se deu a participação feminina, tanto em espaços de educação tradicional quanto na educação libertária. À partir desse momento, apanharemos na imprensa operária os rastros de grupos femininos, formados em São Paulo na primeira República. A mulher esteve presente no movimento anarquista, participando e organizando grupos operários, nos eventos teatrais, foram alunas de Escolas Modernas, além de professoras. Mas surge a dúvida: será que igualmente à escolas

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tradicionais, na educação libertária estariam as figuras femininas presas à determinadas posições e cargos? Teriam elas organizado instituições, grupos, associações voltadas à instrução feminina? Durante o caso Idalina22 podemos notar a participação de muitas mulheres nos atos contra o Orfanato no qual a menina desapareceu. A Associação Feminina de Educação Moderna está presente nesse momento, e apesar das esparsas informações sobre o grupo, podemos conferir o anúncio de uma reunião em sua sede, em 1911: Apezar da prohibição da policia, os anteclericaes de S. Paulo não desistiram da realização dum comicio publico, onde possa lançar o seu protesto contra as infamias commetidas no Orfanato sinistro. Com esse fim será realizada hoje, ás 8 horas da noite, na séde da Associação Feminina de Educação Moderna, á rua 15 de Novembro, 50, terceiro andar, uma reunião. Todas as associações populares, lojas maçonicas, etc., são convidadas a se fazerem representar nessa reunião. (O Comissio. A Lanterna. São Paulo, 4 mar 1911. p. 3)

A Associação Feminina de Educação Moderna sedia encontros da Liga Anticlerical Brasileira, (Liga Anticlerical. A Lanterna. São Paulo, 22 abr 1911. p. 1) que se constituía em um órgão cujo objetivo era denunciar e combater a Igreja Católica e sua influência social. (Liga Anteclerical Brasileira. A Lanterna. São Paulo, 11 mar. 1911. p. 2) Pelo que nos informa o jornal, a Liga teria se constituído dentro da Associação. A ligação do grupo feminino com o anticlericalismo é confirmada quando este esteve presente na recepção da visita de Belén Sárraga em São Paulo. Dia 25, na chegada da nossa emerita correligionaria Belén Sárraga, os nossos amigos aproveitaram a occasião para se manifestarem contra a negra camarilha de Roma. E póde-se dizer que foi occasião oppurtuna, e unica visto que as liberdades se acham ha muito tolhidas nesta terra. Mas deante do nome consagrado de Belén Sárraga a negra camarilha de S. Paulo encolheu-se, sumiu-se como o vampiro com a apparição da luz. E foi assim que o elemento liberal poude gritar pelas ruas todo o seu odio á classe que é o maior mal da humanidade. 22

Idalina Stamato, 8 anos de idade, desapareceu do Colégio-Orfanato Cristóvão Colombo, onde havia sido internada há pouco tempo, e ao tomar conhecimento do caso, Oresti Ristori e Edgar Leuenroth passam a fazer a campanha Onde está Idalina? através da imprensa anarquista, e organizando diversos atos e manifestações contra os padres responsáveis pelo espaço. Diversos anarquistas foram presos, entre os dois citados, enquanto os padres acabaram inocentados. (RODRIGUES, 1984, p. 96- 104) A Lanterna fez uma intensa campanha sobre o assunto durante os anos de 1910 à 1912, denunciando também outros casos parecidos com o da menina. Um trabalho que trata mais sobre o tema: SOUZA, Wlaumir Doniseti de. Anarquismo, Estado e pastoral do imigrante: Das disputas ideológicas pelo imigrante aos limites da ordem: o caso Idalina. São Paulo, Unesp. 2000.

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[...] Durante o trajecto da platafórmo ao pavimento superior da estação, a sra. Belén Sárraga foi coberta de petalas de flores atiradas pelas senhoras da Associação Feminina de Educação Moderna. (A Manifestação Anticlerical do dia 25. A Lanterna. São Paulo, 29 abr 1911. p. 1)

Não há maiores informações sobre essa associação no jornal, tudo o que se pode saber é que era formada por mulheres, e sua relação com educação moderna e o anticlericalismo. Outro nome que aparece no A Lanterna ligado às manifestações relacionadas ao desaparecimento de Idalina é a Associação Feminina de Instrução Moderna: As dedicadas sociais da Associação Feminina de Instrucção Moderna – sras. Celina Nerva, Rina Ranzenigue, Mercedes Ristori, Pasqua Sarvinelli, Anna Bresan e Antonietta Cuella – também sofreram durante quasi 24 horas os rigores do carcere, tendo sido soltas porque em seu favor havia tambem sido impenetrada uma ordem de habeas-corpus, que devia ser julgada hontem, ás 4 horas. (Onde está Idalina? A Lanterna. São Paulo, 17 mar 1911. p. 1)

Essas prisões ocorreram no Comício de domingo, 12 de março, marcado para às 19h no Largo de S. Francisco, organizado pelas associações democráticas de São Paulo. Se constituiu num grande ato contra o Orfanato Cristóvão Colombo e seus crimes, para o qual foi convidado “todo o povo, sem distinções de partidos, de nacionalidades ou de sexos e, particularmente, as sociedades populares [...].” (Grande comicio de protesto. A Lanterna. São Paulo, 11 mar 1911. p. 1) Se nos atentarmos às datas, o Comício de protesto contra o Orfanato Cristóvão Colombo acontece logo após a reunião acerca de um comício, que ocorreu na séde da Associação Feminina de Educação Moderna. Supomos que as associações citadas sejam a mesma, mas que por algum motivo houve troca da palavra educação por instrução. Caso essa tese esteja correta, temos aí o nome das mulheres que compunham o grupo. Havia também a Sociedade Feminina de Educação Moderna, que aparece pela primeira vez em A Lanterna no ano 1910, em convite para uma festa dramáticodançante no salão Celso Garcia, na Rua do Carmo, n. 39. Essa comemoração contaria com as seguintes apresentações: 1. – Incoraggiamento, versos de Rocca, recitados pela menina Zuma Calza. 2º - La Vispa Teresa, peça num acto representada por crianças de 12 anos.

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3º - II Mattino, Ricclu e poveri de G. Parini, recitado pela sra. D. Beatriz Gennari. 4º - Ringraziamento, recitado pela menina Ida Gennari. 5º - Poucas palavras da sra. D. Josephina Stefani-Bertacchi sobre a natureza e o escopo desta sociedade. 6º Conferencia em português pelo sr. Ricardo Figueiredo sobre o thema: A mulher e o livre pensamento. 7º - Baile. (A Lanterna. São Paulo, 30 abr 1910. p. 3)

Contamos com interessantes informações nesse programa. Primeiramente é notável a presença feminina, e também infantil, temos provavelmente mãe e filha nesse evento, a sra. D. Beatriz Gennari e a menina Ida Gennari. A importância do teatro fica evidente, e a participação das figuras femininas neste. Também é característico o traço forte da presença italiana, mesclada com apresentações em português, característica desse movimento operário da primeira República e seu grande

contingente

de

imigrantes.

A

presença

masculina

nesse

espaço

complementa a ideia já enunciada de que para os movimentos pela emancipação feminina da época, esse não era um problema apenas das mulheres. Seguindo a linha das associações anteriormente citadas, a Sociedade Feminina também se impõe nos movimentos de combate ao clericalismo diante do desaparecimento da menina Idalina. Convocam um comício, para o dia 25 de fevereiro de 1911, convidando a todos os movimentos que se colocam em prol da humanidade, para um meeting às 20h no Largo São Francisco. E clamam: “Em nome dos vossos filhos, em nome da humanidade, mães, não falteis!” (Comício de hoje. A Lanterna. São Paulo, 25 fev 1911. p. 2). Na capa dessa mesma edição podemos conferir um pedido direcionado ao doutor chefe de polícia de São Paulo, relativo à esse comício, para que evitem provocar conflitos com os participantes, como ocorrera em outros atos, pois os manifestantes não hesitariam em se levantar contra a violência dirigida às suas mães, irmãs, esposas e filhas. (G.D. Farpadas. A Lanterna. São Paulo, 25 fev 1911. p. 1) Assim como as senhoras da Associação Feminina de Instrução Moderna, algumas participantes da Sociedade Feminina também foram presos no comício de 12 de março: Presas e incomunicaveis conservaram-nas além ás quatro horas da tarde da segunda feira, quando requerido seu habeas corpus em seu favor, foi este prejudicado com a liberdade das corajosas correligionarias. E com a senhoras a policia manifestou-se além, de descortez e violenta, deshumana. Uma das detidas tem uma creança de peito, de oito mezes de edade. Pois bem, a policia não consentiu que a creança, levada á Central, fosse

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amamentada pela mãi! E algumas senhoras que lá foram, como mãis, rogar esse acto de humanidade da policia, foram despedidas indelicadamente pelo dr. Arthur Leite, o delegado que julgaram apto para perseguir as victimas presas no comicio de domingo. (Civilidade Civilista. A Lanterna. São Paulo, 17 mar 1911. p. 2)

Uma informação interessante sobre esse grupo é a fundação de uma escola no bairro do Brás, que muito provavelmente ocorreu também em 1911. (Festas de propaganda. A Lanterna. São Paulo, 4 nov 1911. p. 3). Ao longo desse ano há ainda a notícia de outras festas de propaganda organizadas pela Sociedade Feminina de Educação Moderna, porém, nas edições seguintes não há mais informações sobre atividades mantidas pelo grupo, nem quando ocorre sua dissolução. Uma organização que obteve certo destaque foi o Centro Feminino de Educação, inaugurado em 17 de outubro de 1922, do qual, segundo consta, fizeram parte Isabel Cerruti e Maria Angelina Soares. (A Plebe, São Paulo, 21 out 1922. Apud. Boletim Operário. Duque de Caxias, 8 mar 2010. p.4) Um convite fora enviado à Edgar Leuenroth: Convidamos o companheiro e sua família para assistir à sessão de propaganda que se realizará no dia 17 do corrente, às 20 horas, no salão sito à rua Brigadeiro Machado, 47. Farão uso da palavra os companheiros Isabel Cerruti e Ricardo Cipolla. Certas de seu comparecimento, manifestam-se gratas. Pelo Comitê Angelina Soares. (apud.CORREIA, 1986, p. 46)

É dessa conferência o depoimento de Isabel Cerruti que Francisco Correia alude, e reproduzimos a seguir: A emancipação da mulher não está na igualdade desta perante o homem, nas prerrogativas políticas, de mando e de trabalho, mas sim na emancipação da Humanidade da tutela política e na igualdade econômica e social de todo gênero humano. A mulher não é escrava do homem (salvo em casos anormais), mas sim escrava juntamente com o homem de mil preconceitos, e vítima, como ele, da exploração exercida pelos potentados de ambos os sexos, tanto sobre o homem como sobre a mulher. Iguala-la aos homens é ficar onde estamos. Nós devemos é lutar ao seu lado e junto aos homens para que a emancipação da mulher seja um fato, não para a mulher, ou para o homem, mas para todas as pessoas (inclusive crianças e adolescentes) para a Humanidade, porque os dois sexos se integram e se completam. (apud. CORREIA, 1986, p. 55).

O que se faz notável em todos esses grupos femininos, além das esparsas informações acerca, é a dificuldade de se manterem, e a restrição imposta pelas

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autoridades à sua organização, perceptível diante das prisões que essas mulheres sofreram. Ao mesmo tempo que elas se colocam em uma posição igualitária na participação de atos relativos ao caso Idalina, ainda é perceptível um protecionismo masculino e uma diferenciação por serem mulheres e mães.

5.3 Centro Feminino Jovens Idealistas Dedicaremos um subcapítulo exclusivo ao Centro Feminino Jovens Idealistas, por ser um grupo que possui um registro histórico mais consistente na imprensa anarquista, e também por seu longo tempo de existência. O centro foi fundado em 29 de junho de 1913, tendo entre suas participantes a anarquista Maria Angelina Soares, da qual já partilhamos algumas ideias no capítulo anterior, e cuja carta, publicada em A Lanterna, nos traz os pontos levantados pelo grupo: Propõe-se este centro a tratar por todos os meios da propaganda em favor da emancipação da mulher, isto é, tira-la da escravidão em que hoje se encontra e coloca-la no lugar que lhe corresponde na sociedade. Com esse proposito, tratará de organizar as classes trabalhadoras em que haja mulheres e levar a seu seio a luz benefica da Verdade. [...] O nosso intuito não é de tratar exclusivamente da causa feminina, mas auxiliar toda a propaganda emancipadora. Em todas as ocasiões que os companheiros iniciarem algum acto de propaganda, poderão contar com a nossa solidariedade. (Maria Soares. A Lanterna. São Paulo, 5 jul 1913. p. 4)

Maria Angelina Soares fez parte de uma família notadamente anarquista, e junto a suas irmãs Maria Antonia Soares, Matilde Soares e Pilar Soares, esteve presente no movimento pela emancipação da mulher, através da educação, do teatro e da música. (VALADÃO; LOPREATO. s/D. p. 8-9) Os eventos de propaganda do centro seguem essa tendência, como o convite para o Festival Campestre que se realizaria em maio de 1914, contando com recitativos de poesias escolhidas, conferências, quermesse e baile familiar ao ar livre na Cantareira. (A Lanterna. São Paulo, 1 mai 1914. p. 3) Convidaram também a todos que tivessem inspirações pacifistas a uma reunião contra a guerra, na sua sede, localizada na Rua Riachuelo, n.41. (Agitação feminina. A Lanterna. São Paulo, 17 out 1914. p. 3). Em outro evento ocorreria apresentação teatral e conferência sobre a questão social. (Veladas Sociais. A Lanterna. São Paulo, 10 jul 1915. p. 3) Além dessas agitações políticas, em 1915 nasce a escola dominical do Centro Feminino Jovens Idealistas, na sede provisória localizada na Rua da Mooca, 292-A,

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com aulas gratuitas de instrução primária, voltadas à mulheres e meninas, das 13h às 15h. Para complementar esse trabalho o centro pedia doações de livros, folhetos e jornais para a concretização de uma biblioteca. (Centro Feminino Jovens23 Idealistas. A Lanterna. São Paulo, 10 jul 1915. p. 4) A educação científica e integral era um dos fins que o centro buscava alcançar, visando a emancipação feminina para a liberdade humana, e criar escolas e biblioteca gratuitas um meio de se chegar à esse estado de revolução social. (Vida Libertária. A Lanterna. São Paulo, 29 jan 1916. p. 3) Em 1920 ainda temos notícias do centro, que além de realizar concorridas conferências com as operárias, também aparece novamente a ideia de fundar-se uma escola dominical gratuita. Podemos conferir as participantes de então: “sua comissão executiva ficou assim constituida: secretaria, Maria A Soares; tezoureira, Maria Alvez; auxiliares, Margarida Pilón, Luiza Cipito, Celestina Bersin.” (Núcleos de Vanguarda. A Plebe. São Paulo, 28 fev 1920. p. 2) Podemos conferir o desfecho de uma assembléia realizada pelo grupo, tratando da questão nefasta por trás da caridade católica: [...] uma grande multidão de operarios de ambos os sexos percorreu as ruas do bairro cantando a Internacional; ao passar em frente á igreja, ouviram-se morras ao claro, á Igreja e á sociedade capitalista, dando-se muitos vivas á revolução russa, á emancipação dos trabalhadores, ao comunismo, etc., etc. Foi um belo dia de propaganda. (Núcleos de Vanguarda. A Plebe. São Paulo, 13 mar 1920. p. 3)

Nas bases de acordo do centro podemos conferir as formas de organização e ideais adotados pelo grupo. Não seguiam nenhuma seita religiosa nem tendência política, abrindo o espaço para assembléias e discussões de toda a natureza, desde que não descambassem para ofensas pessoais. Apesar de não aceitar associação de homens, não recusava a participação masculina de outras formas. Além disso, a organização não possuía poderes autoritários, e não havia salários para quem formasse comissões. Eram aceitas todas as mulheres, sem distinção de idade, nacionalidade, ou classe social, inclusive as que possuíssem ideias diferentes das adotadas pelo Centro, desde que não quisesse impor seus pensamentos ao grupo. As questões deveriam ser resolvidas em Assembléia geral, e as comissões

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Grafia original.

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poderiam tomar decisões urgentes ou de menor importância. (Bases de acordo do Centro Feminino Jovens Idealistas. A Plebe. São Paulo, 13 mar 1920. p. 4) Apesar da falta de informações sobre o desfecho do Centro Feminino Jovens Idealistas, já podemos notar uma diferença considerável em seu tempo de duração, mantendo atividades por pelo menos sete anos, em um período de forte repressão aos grupos e movimentos de inspiração libertária, anticapitalista e anti clerical. Podemos sintetizar que esse centro era formado por mulheres, possuía organização não autoritária, e fundava suas bases na educação e na instrução feminina de forma gratuita, através de escolas, bibliotecas e reuniões. Através das fontes consultadas pudemos levantar a existências de algumas associações e centros femininos voltados à educação, ligados ao movimento anarquista, e à Escola Moderna. Infelizmente não foi possível traçar panorama das atividades de todos esses grupos, tendo apenas o nome como informação em alguns casos. Porém, consideramos importante o registro dessas organizações e o nome das suas participantes, para lembrar os feitos das mulheres na história, e dedicacar-lhes o mínimo reconhecimento.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Iniciamos a presente monografia com o objetivo de investigar se as mulheres estavam integradas nos movimentos de educação libertária que floresceram em São Paulo na Primeira República, e como elas estavam inseridas nessa dinâmica. Pudemos perceber que, ao contrário da educação tradicional e pública, que visava manter a mulher presa à uma condição subalterna, os anarquistas buscaram romper com esse ideário, visando alcançar a plena emancipação humana. Na cidade de São Paulo recorreram à coeducação dos gêneros nas Escolas Modernas N. 1 e N. 2, assim como proposto por Francisco Ferrer y Guardia, porém, houveram algumas ações adotadas ao longo do percurso que fugiram à pedagogia do educador espanhol, como pudemos conferir. Mas, as mulheres anarquistas não ficaram em posição de espera pela salvação masculina, se posicionaram na luta libertária, expuseram suas opiniões, e fundaram espaços e grupos de educação. Ressaltamos o pioneirismo dessas anarquistas, visto que, em pleno início do século XX, florescimento dos movimentos das mulheres, elas já se posicionavam frente à condição feminina, e debatiam temas como maternidade, casamento, amor livre, educação, opressão de classes, entre tantos outros. Muito se fala da explosão feminista de 1960, da citada filósofa Simone de Beauvoir, que possuem papéis importantes na luta contra a hierarquia de gêneros, mas é preciso reconhecer a importância da luta das mulheres anárquicas. Diante de um momento em que o foco dos grupos eram a inclusão da mulher no sistema de trabalho e a luta pelo direito ao voto, as libertárias optaram por se posicionarem contra o Estado e o Capitalismo. Buscamos demonstrar o quão sintomático é a exclusão histórica dessas figuras femininas que romperam com o comportamento esperado pela sociedade. Os movimentos historiográficos das últimas décadas vêm tentando reparar essa lacuna, e esperamos contribuir de alguma forma para a concretização desse movimento. A História não é fixa, imoldável; tudo o que se entende hoje por verdade absoluta pode ser dissolvido nos próximos tempos, e isso é marca da pluralidade presente nas mais diversas organizações humanas. O que visamos é movimentar essa afluência de feitos da humanidade, descobrir novas nuances e reinterpretar o que já se tinha como definitivo. Assim se fez com o tema abordado nesta pesquisa. Os documentos consultados informam os nomes de grupos e associações femininas de educação

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moderna, suas formas de organização, os eventos nos quais marcaram presença e as aspirações que possuíam. Há muito ainda a ser descoberto. Esperamos que no futuro a “história dos vencidos” - apropriando-nos da dicotomia vencedores/ perdedores - seja cada vez mais explorada e reinventada, quebrando sempre a ideia de que apenas os feitos de um determinado grupo sejam registrados.

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Onde está Idalina? A Lanterna. São Paulo, 17 mar 1911. SOARES, Maria. A Lanterna. São Paulo, 5 jul 1913. SOARES, Maria A. “Pela Emancipação da Mulher”. In. A Lanterna. São Paulo, 24 mai 1913. SOARES, Maria A. Despertar Feminino. A Lanterna. São Paulo, 3 out. 1914, Sociedade Feminina de Educação Moderna. A Lanterna. São Paulo, 30 abr 1910. Veladas Sociais. A Lanterna. São Paulo, 10 jul 1915. Vida Libertária. A Lanterna. São Paulo, 29 jan 1916.

A Plebe A Commemoração em S. Paulo do 1º de Maio. A Plebe. São Paulo, 19 abr 1919. A Plebe, São Paulo, 21 out 1922. Apud. Boletim Operário. Duque de Caxias, 8 mar 2010. Bases de acordo do Centro Feminino Jovens Idealistas. A Plebe. São Paulo, 13 mar 1920. Encerram as Escolas Modernas de S. Paulo. A Plebe. São Paulo, 29 nov 1919. Escola Moderna N.1. A Plebe. São Paulo, 16 jun. 1917. Mundo Operário. A Plebe. São Paulo, 26 abr 1919. Núcleos de Vanguarda. A Plebe. São Paulo, 13 mar 1920. Núcleos de Vanguarda. A Plebe. São Paulo, 28 fev 1920. Para a orientação do operariado. A Plebe, São Paulo, 21 jun 1924. SILVA, Isabel. Ponderando... A Plebe. São Paulo, 27 out 1923. SILVA, Isabel. Ponderando... A Plebe. São Paulo, 27 out 1923.

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O Início O Início. São Paulo, 4 set. 1915.

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