Repartir o Pão: Adoração e Comunhão na Igreja Cristã Primitiva (2015)

June 6, 2017 | Autor: Milton Torres | Categoria: History of Christianity, Early Christianity
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Repartir o Pão: Adoração e Comunhão na Igreja Cristã Primitiva publicado originalmente em: TORRES, Milton L. Torres. Repartir o pão: adoração e comunhão na igreja cristã primitiva. In: REIS, Emilson; FOLLIS, Rodrigo; CARMO, Felipe (Orgs.). Bases bíblicas da adoração. Engenheiro Coelho, SP: UNASPRESS, 2015. p. 11-30. Vários questionamentos poderiam nortear um estudo da adoração na igreja cristã primitiva: onde os primeiros cristãos adoravam? como era sua liturgia de adoração? que dia guardavam? como eram suas orações? será que seus hinos mantiveram, de fato, a tônica espiritual de Ef 5:19 e Co 3:16? como eram seus sermões? como eram suas reuniões diárias? qual era a participação das mulheres? que semelhanças havia entre seu estilo de adoração e o culto judaico ou pagão? Todas estas são indagações legítimas. No entanto, devido às limitações impostas pela natureza abrangente do congresso cujos anais são presentemente publicados, preferimos concentrar a atenção em um elemento específico a fim de explorar sua significância. Nosso objetivo girou, portanto, em torno de apresentar uma visão panorâmica da comunhão ou ceia do Senhor na igreja cristã primitiva com base na evidência disponível no Novo Testamento e em outros escritos pertencentes aos quatro primeiros séculos de nossa era. O levantamento das fontes não tem a intenção de ser exaustivo, mas apenas representativo. Ou seja, pretendese mostrar que tipos de discussão ocorriam a esse respeito no nível da evidência documental.

A Comunhão no Primeiro Século É do Novo Testamento que provém a identificação de um importante elemento presente na adoração da igreja cristã primitiva. A prática, estabelecida pelo exemplo de Jesus (Mt 26:26-29; Mr 14:22-25; Lc 22:13-20), recebe o reforço do apóstolo São Paulo em 1 Co 11:20-21, onde ganha a denominação de “ceia do Senhor” (kyriakon deipnon). Este não é, porém, o único nome pelo qual ficará conhecida. Como o apóstolo confere ênfase especial ao fato de Jesus ter dado graças pelo pão e pelo vinho, a expressão “ação de graças” (eucharistia), mesmo sem ter sido explicitamente empregada por Paulo nesse contexto, vai ficar definitivamente associada com essa celebração a partir do segundo século. Outros fatores vão intervir para que nomes adicionais lhe sejam atribuídos. Em At 2:42 e 46; 20, fala-se ainda de “comunhão” (koinônia) e “partir do pão” (klasis tou artou), expressões que vão se tornar recorrentes nos escritos dos primeiros pais da igreja. Em consonância com 1 Co 10:16, preferimos usar aqui o termo “comunhão” (koinônia):

τὸ ποτήριον τῆς εὐλογίας ὃ εὐλογοῦμεν, οὐχὶ κοινωνία ἐστὶν τοῦ αἵματος τοῦ Χριστοῦ; τὸν ἄρτον ὃν κλῶμεν, οὐχὶ κοινωνία τοῦ σώματος τοῦ Χριστοῦ ἐστιν; O cálice da bênção que proferimos não representa comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos não representa comunhão com o corpo de Cristo?

De qualquer forma, não devemos confundir a comunhão com o ágape, a festa de amor realizada desde o período neo-testamentário e da qual participavam os primeiros conversos. O “ágape” (agapê) podia incluir a comunhão, mas não se restringia a ela. Ou seja, reservamos o termo “comunhão” para a liturgia do pão e vinho comemorativa da morte de Jesus, enquanto que o “ágape” constituía uma refeição mais ampla da qual outros alimentos faziam parte. Tanto em uma quanto no outro, havia certa preocupação dos primeiros cristãos para que essas cerimônias não ocorressem de forma desordenada. Assim, além das recomendações de Paulo com relação ao comportamento dos coríntios durante a celebração da ceia do Senhor, Judas 12 reflete a ansiedade dos líderes em relação a comportamentos impróprios durante os ágapes:

οὗτοί εἰσιν οἱ ἐν ταῖς ἀγάπαις ὑμῶν σπιλάδες συνευωχούμενοι ἀφόβως, ἑαυτοὺς ποιμαίνοντες Estes são escarpas que, nos ágapes, se banqueteiam sem restrições, apascentando-se a si mesmos.

Os ágapes eram, portanto, junta-panelas ou pot-lucks que tinham importante função social na igreja cristã primitiva, um aspecto de convivialidade que alguns gostariam que estivesse mais presente na igreja, especialmente numa era de escassez de alimentos e de alimentos industrializados que nem sempre contribuem para a saúde dos membros (SONG, 2004, p. 388400). Não se tem certeza se a assim-chamada Didachê pertence ao final do primeiro ou início do segundo século (AUDET, 1958). Trata-se de uma espécie de manual de igreja que pode ter sido empregado em alguns círculos cristãos a fim de nortear as práticas da igreja primitiva, conectando-as com os ensinamentos dos apóstolos. Não é possível avaliar, no entanto, quão difundido tenha sido o seu uso. Apesar dessas limitações, o tratado dedica seu capítulo 9, versos 2 a 5, à santa ceia. O texto contém uma ordem da cerimônia e até sugestões de orações a serem proferidas durante a bênção do vinho e do pão:

Περὶ δὲ τῆς εὐχαριστίας, οὕτως εὐχαριστήσατε· πρῶτον περὶ τοῦ ποτηρίου· Εὐχαριστοῦμέν σοι, πάτερ ἡμῶν, ὑπὲρ τῆς ἁγίας ἀμπέλου Δαυὶδ τοῦ παιδός σου, ἧς ἐγνώρισας ἡμῖν διὰ Ἰησοῦ τοῦ παιδός σου· σοὶ ἡ δόξα εἰς τοὺς αἰῶνας. . Περὶ δὲ τοῦ κλάσματος· Εὐχαριστοῦμέν σοι, πάτερ ἡμῶν, ὑπὲρ τῆς

ζωῆς καὶ γνώσεως, ἧς ἐγνώρισας ἡμῖν διὰ Ἰησοῦ τοῦ παιδός σου· σοὶ ἡ δόξα εἰς τοὺς αἰῶνας. . Ὥσπερ ἦν τοῦτο κλάσμα διεσκορπισμένον ἐπάνω τῶν ὀρέων καὶ συναχθὲν ἐγένετο ἕν, οὕτω συναχθήτω σου ἡ ἐκκλησία ἀπὸ τῶν περάτων τῆς γῆς εἰς τὴν σὴν βασιλείαν· ὅτι σοῦ ἐστιν ἡ δόξα καὶ ἡ δύναμις εἰς τοὺς αἰῶνας. . Μηδεὶς δὲ φαγέτω μηδὲ πιέτω ἀπὸ τῆς εὐχαριστίας ὑμῶν, ἀλλ' οἱ βαπτισθέντες εἰς ὄνομα κυρίου· καὶ γὰρ περὶ τούτου εἴρηκεν ὁ κύριος· Μὴ δῶτε τὸ ἅγιον τοῖς κυσί. Acerca da comunhão, assim a celebrareis: primeiramente, a bênção sobre o cálice. “Damos-te graças, Pai Nosso, pela santa vide de Davi, teu filho, a qual nos fizeste conhecer por intermédio de teu Filho Jesus. A ti seja a glória para sempre. Amém”. Então, a bênção pelo partir do pão: “Damos-te graças, Pai Nosso, pela vida e pelo conhecimento, que nos revelaste por intermédio de teu Filho Jesus. A ti seja a glória para sempre. Amém. Assim como o trigo foi semeado sobre os montes e, quando colhido, se tornou um único pão, da mesma forma que a tua igreja seja recolhida dos confins da terra para o teu reino. Pois tua é a glória e teu o poder para sempre. Amém”. Ninguém coma ou beba da vossa eucaristia, a não ser os que se batizaram no nome do Senhor. Com efeito, sobre isto se pronunciou o Senhor: “Não deem o que é santo aos cães”.

O texto da Didachê revela, portanto, a preocupação com a santidade da cerimônia da santa ceia que fica reservada aos membros batizados. É justamente o fato de os não batizados serem despedidos da congregação a fim de que os batizados participassem da comunhão que pode ter gerado a aplicação do termo missa à cerimônia da eucaristia. Os primeiros oficiantes anunciavam a frase “podem ir, a igreja está despedida” (ite, missa est ecclesia). A frase foi posteriormente encurtada para ite, missa est. Os menos avisados passaram, então, a entender a expressão como significando “podem ir, é hora da missa” (RIDDLE, 1843, p. 548-549). Além disso, a Didachê sugere um ordenamento que difere da fórmula paulina. A bênção pelo vinho deve ser dada primeiramente. Isso não significa, porém, que os que tomam parte na cerimônia devem compartilhá-lo primeiro. A própria especificação quanto à participação exclusiva dos batizados parece inverter a ordem, sendo o verbo “comer” mencionado primeiramente. É provável que as duas bênçãos fossem proferidas conjuntamente sobre os emblemas, em rápida sucessão, e que só depois disso os participantes tivessem, então, acesso aos mesmos. Sendo assim, parece que, na descrição da Didachê, os participantes comiam o pão e bebiam o vinho simultaneamente.

A Comunhão no Segundo Século Uma das primeiras referências à ceia do Senhor no segundo século é feita por Inácio de Antioquia (35-107 A.D.), em relação à qual usa linguagem figurativa (CAMELOT, 1975):

ἕνα ἄρτον κλῶντες, ὅς ἐστιν φάρμακον ἀθανασίας, ἀντίδοτος τοῦ μὴ ἀποθανεῖν, ἀλλὰ ζῆν ἐν Ἰησοῦ Χριστῷ διὰ παντός (Epístola aos efésios 1.20.2).

partindo um único pão, que é remédio para a imortalidade, um antídoto contra a morte, e serve para conceder vida em Cristo Jesus para sempre.

O termo “pão” é aqui empregado como sinédoque para “pão e vinho”. Trata-se, como se percebe, de evidência de que os cristãos, desde o princípio, compreenderam a dimensão escatológica da celebração. Há disputas quanto à autenticidade das passagens de Inácio sobre a comunhão (RIDDLE, 1843, p. 557). Mesmo assim, muita controvérsia resultou de sua declaração na Epístola a Filadélfia 6.4:

παρακαλῶν ὑμᾶς μιᾷ πίστει καὶ ἑνὶ κηρύγματι καὶ μιᾷ εὐχαριστίᾳ χρῆσθαι· μία γάρ ἐστιν ἡ σὰρξ τοῦ κυρίου Ἰησοῦ καὶ ἓν αὐτοῦ τὸ αἷμα τὸ ὑπὲρ ἡμῶν ἐκχυθέν (εἷς γὰρ ἄρτος τοῖς πᾶσιν ἐθρύφθη καὶ ἓν ποτήριον τοῖς ὅλοις διενεμήθη), ἓν θυσιαστήριον πάσῃ τῇ ἐκκλησίᾳ rogando que vocês tenham uma única fé, uma única pregação e uma única eucaristia; pois uma é a carne do Senhor e um o sangue que por vocês foi derramado (um único pão é partido para todos e um único cálice é partilhado com todos), só há um altar para toda a igreja.

Em função dessa passagem, alguns argumentam que todos os participantes deveriam fazer uso do mesmo cálice. Outros vestígios da comunhão no segundo século vêm de uma fonte inesperada. Por volta do ano 112 A.D., o governador da Bitínia troca correspondência com o imperador de Roma acerca da situação dos cristãos naquela província do Império. O governador Plínio apresenta um relatório, com relativa minúcia, para Trajano, das entrevistas que ele havia conduzido com esses habitantes de seu território (BETTENSON, 2001, p. 28-31). Plínio se refere às explicações que os próprios cristãos lhe haviam dado para seu comportamento:

Affirmabant autem hanc fuisse summam vel culpae suae vel erroris, quod essent soliti stato die ante lucem convenire, carmenque Christo quasi deo dicere secum invicem seque sacramento non in scelus aliquod obstringere, sed ne furta ne latrocinia ne adulteria committerent, ne fidem fallerent, ne depositum appellati abnegarent. Quibus peractis morem sibi discedendi fuisse rursusque coeundi ad capiendum cibum, promiscuum tamen et innoxium (Epístola 10.96.7). Afirmavam que sua culpa se resumia a isto: em determinados dias, costumavam se reunir antes da alvorada e recitar um hino a Cristo como se a um deus, obrigavam-se por um voto não a algum crime, mas a se abster de furtos, roubos e adultérios, a não abandonar a fé e a restituir empréstimos. Concluído esse rito, costumavam distribuir e comer um alimento comum e inofensivo.

Plínio não deixa de prestar importante esclarecimento quanto à natureza dos alimentos ingeridos pelos cristãos em sua liturgia: “comum e inofensivo” (promiscuum… et innoxium). Esta referência pode ter sido necessária em que pesasse contra os cristãos a acusação de canibalismo, um problema ocasionado pela literalização da declaração famosa de Cristo em Jo 6:55-56. O mais longo testemunho sobre a comunhão no segundo século vem de Justino Mártir, filósofo cristão e apologeta martirizado em 165 A.D., que escreveu um tratado intitulado Primeira apologia no qual faz referências à comunhão (GOODSPEED, 1912):

καὶ τῇ τοῦ ἡλίου λεγομένῃ ἡμέρᾳ πάντων κατὰ πόλεις ἢ ἀγροὺς μενόντων ἐπὶ τὸ αὐτὸ συνέλευσις γίνεται, καὶ τὰ ἀπομνημονεύματα τῶν ἀποστόλων ἢ τὰ συγγράμματα τῶν προφητῶν ἀναγινώσκεται, μέχρις ἐγχωρεῖ (67.3). εἶτα παυσαμένου τοῦ ἀναγινώσκοντος ὁ προεστὼς διὰ λόγου τὴν νουθεσίαν καὶ πρόκλησιν τῆς τῶν καλῶν τούτων μιμήσεως ποιεῖται (67.4). ἔπειτα ἀνιστάμεθα κοινῇ πάντες καὶ εὐχὰς πέμπομεν· καί, ὡς προέφημεν, παυσαμένων ἡμῶν τῆς εὐχῆς ἄρτος προσφέρεται καὶ οἶνος καὶ ὕδωρ, καὶ ὁ προεστὼς εὐχὰς ὁμοίως καὶ εὐχαριστίας, ὅση δύναμις αὐτῷ, ἀναπέμπει. καὶ ὁ λαὸς ἐπευφημεῖ λέγων τὸ Ἀμήν, καὶ ἡ διάδοσις καὶ ἡ μετάληψις ἀπὸ τῶν εὐχαριστηθέντων ἑκάστῳ γίνεται, καὶ τοῖς οὐ παροῦσι διὰ τῶν διακόνων πέμπεται (67.5). οἱ εὐποροῦντες δὲ καὶ βουλόμενοι κατὰ προαίρεσιν ἕκαστος τὴν ἑαυτοῦ ὃ βούλεται δίδωσι, καὶ τὸ συλλεγόμενον παρὰ τῷ προεστῶτι ἀποτίθεται. καὶ αὐτὸς ἐπικουρεῖ ὀρφανοῖς τε καὶ χήραις, καὶ τοῖς διὰ νόσον ἢ δι' ἄλλην αἰτίαν λειπομένοις, καὶ τοῖς ἐν δεσμοῖς οὖσι, καὶ τοῖς παρεπιδήμοις οὖσι ξένοις, καὶ ἁπλῶς πᾶσι τοῖς ἐν χρείᾳ οὖσι κηδεμὼν γίνεται (67.6). E no assim-chamado dia do sol, ocorre uma reunião, no mesmo lugar, de todos os que moram nas cidades e nos campos, e é lida a memória dos apóstolos ou os escritos dos profetas, enquanto o tempo permite (67.3). Então, quando o leitor termina, o oficiante faz, por meio da palavra, uma exortação e uma admoestação à imitação de suas boas obras (67.4). Depois, nós nos levantamos todos juntos e fazemos orações. E, como dissemos antes, quando terminamos nossas preces, trazem-se o pão, o vinho e a água, e o oficiante, semelhantemente, eleva suas preces e ações de graça, de acordo com sua capacidade. O povo expressa sua concordância, dizendo o amém. Faz-se, então, a distribuição e cada um participa das coisas pelas quais oramos. Faz-se também com que cheguem aos que não estão presentes por meio dos diáconos (67.5). Aqueles que têm recursos e os que estão dispostos, cada um segundo propôs no seu coração oferta o que deseja, e a coleta é depositada junto ao oficiante. Este provê, então, para os órfãos, as viúvas, os que estão carentes em razão de alguma enfermidade ou por outra causa, os que estão na prisão e os que são estrangeiros residentes. Isto é, ele se torna o protetor de todos os que estão em necessidade (67.6).

A passagem mostra que, no segundo século, alguns cristãos já se reuniam no domingo com o propósito de adoração congregacional; por outro lado, serve de confirmação ao fato de que o domingo continuava a ser chamado de “o dia do sol” (hê tou hêliou hêmera) nesse período.

A liturgia, conforme explicada por Justino, parece elegante e simétrica: Deus fala aos adoradores por meio da leitura de porções das Escrituras e por meio do sermão proferido pelo oficiante, enquanto os participantes falam a Deus por meio de suas inúmeras preces. Além disso, Deus oferece sustento aos adoradores por meio do pão e do vinho, enquanto os participantes oferecem sustento à obra de Deus por meio de seus donativos. De fato, Justino faz duas descrições da mesma ordenança, uma após a outra e mais ou menos nos mesmos termos. Por isto, Riddle (1843, p. 560) argumenta que a segunda é uma recapitulação da primeira ou, em vez disso, que a primeira descrição se refere à primeira comunhão, realizada logo após o batismo, e que a segunda descrição trata da comunhão durante o culto congregacional, em conexão com o ágape. Justino descreve a comunhão como sendo um culto bastante espontâneo no qual a leitura da Escritura podia se prolongar pelo tempo que os oradores suportassem. Essa leitura consistia da recitação de textos da “memória dos apóstolos” (isto é, os evangelhos) ou dos “escritos dos profetas” (isto é, de porções do Antigo Testamento). As orações eram feitas em pé, sendo que o próprio movimento de se levantar pode ter a significância de apontar para a ressurreição de Jesus e para a nova vida do participante (GOOCH, [s.d.]). Além disso, percebe-se que o número de orações aumentou, indo muito além da bênção pelo pão e pelo vinho (FOLSOM, 1996). Um terceiro elemento é acrescentado: a água. Alguns anos mais tarde, haverá água para que, com ela, o oficiante lave as mãos. No texto de Justino, a menção à água remonta provavelmente ao costume generalizado na antiguidade de se acrescentar água ao vinho para diluir o seu teor alcoólico. Conforme se perceberá mais adiante, o emprego do vinho na celebração da comunhão vai se tornar um motivo de disputa na Cristandade. Até Justino, não há evidência alguma de que o vinho empregado na comunhão tivesse teor alcoólico. É justamente a partir dele que as primeiras controvérsias a respeito disso surgem. Pode-se supor, portanto, que a prática original dos apóstolos era a de usar vinho sem fermentação, como acontece no caso do pão. Por volta do fim do segundo século, temos outras evidências de que o vinho estava sendo misturado com água, durante a comunhão, a fim de diluir o seu teor alcoólico. Essas evidências vêm dos escritos de Irineu, bispo de uma região do Império Romano que hoje é a França. Ao reprovar certo herege, assim se pronunciou o bispo (KEBLE, 1872):

Ποτήρια οἴνῳ κεκραμένα προσποιούμενος εὐχαριστεῖν, καὶ ἐπὶ πλέον ἐκτείνων τὸν λόγον τῆς ἐπικλήσεως, πορφύρεα καὶ ἐρυθρὰ ἀναφαίνεσθαι ποιεῖ (Contra as heresias 1.7.2).

Fingindo oferecer a eucaristia em cálices de vinho misturado [com água], e estendendo a palavra de invocação a uma duração incomum, ele faz com que pareçam da cor de violeta ou vermelhos.

Fica difícil, porém, saber se o bispo censurava o fato de vinho ser misturado à água ou o fato de ser usado vinho com teor alcoólico. Sua preocupação com a cor avermelhada dos cálices pode sugerir o segundo caso. Em contraste com a posição de Irineu, temos, no mesmo século, a opinião de Clemente de Alexandria:

Διττὸν δὲ τὸ αἷμα τοῦ κυρίου· τὸ μέν ἐστιν αὐτοῦ σαρκικόν, ᾧ τῆς φθορᾶς λελυτρώμεθα, τὸ δὲ πνευματικόν, τοῦτ' ἔστιν ᾧ κεχρίσμεθα. Καὶ τοῦτ' ἔστι πιεῖν τὸ αἷμα τοῦ Ἰησοῦ, τῆς κυριακῆς μεταλαβεῖν ἀφθαρσίας· ἰσχὺς δὲ τοῦ λόγου τὸ πνεῦμα, ὡς αἷμα σαρκός. Ἀναλόγως τοίνυν κίρναται ὁ μὲν οἶνος τῷ ὕδατι, τῷ δὲ ἀνθρώπῳ τὸ πνεῦμα, καὶ τὸ μὲν εἰς πίστιν εὐωχεῖ, τὸ κρᾶμα, τὸ δὲ εἰς ἀφθαρσίαν ὁδηγεῖ, τὸ πνεῦμα, ἡ δὲ ἀμφοῖν αὖθις κρᾶσις ποτοῦ τε καὶ λόγου εὐχαριστία κέκληται (Pedagogo 2.20). O sangue do Senhor é duplo. Uma parte dele tem uma natureza física pela qual somos resgatados da corrupção. A outra parte tem natureza espiritual com a qual somos ungidos. E é isto o que significa beber o sangue de Jesus: tornar-nos partícipes da incorruptibilidade do Senhor. O espírito da palavra é poder, assim como o sangue físico. De maneira semelhante se mistura o vinho à água, o espírito ao homem. Uma parte alimenta a fé, isto é, a mistura; a outra parte, isto é, o espírito, conduz à incorruptibilidade. Assim, a mistura dos dois, bebida e palavra, recebe o nome de eucaristia.

Como se percebe, a apreciação do autor quanto à mistura de água e vinho é muito menos ambígua. Clemente já a considera um gesto litúrgico de valor espiritual. Tertuliano, uma das figuras mais notáveis do Cristianismo primitivo, escreveu sua vasta obra em latim, no final do segundo século e no primeiro quarto do terceiro século, deixandonos importante confirmação de que, desde cedo, os cristãos primitivos celebravam a comunhão nas primeiras horas do dia, conforme já havia sido apurado por Plínio, o Jovem:

Eucharistiae sacramentum, et in tempore victus, et omnibus mandatum a Domino, etiam antelucanis coetibus, nec de aliorum manu quam praesidentium sumimus. [...] Calicis aut panis etiam nostri aliquid decuti in terram anxie patimur (De corona 3). O sacramento da eucaristia, instituído pelo Senhor durante uma refeição e prescrito para todos, nós o tomamos em reuniões matutinas, antes do romper do dia, recebendoo apenas das mãos dos que presidem. [...] Devemos considerar causa de grande ansiedade se deixarmos cair na terra nosso cálice ou uma parte do nosso pão.

Tertuliano, em seu tratado dedicado às esposas, também é o responsável pela popularização de outro nome para a comunhão: “mesa do Senhor” (mensa Dei ou convivium Dominicum), um

contraste propositalmente estabelecido com a expressão grega “mesa de demônios” (trapeza daimoniôn), comumente empregada pelos cristãos daquele século em relação às liturgias pagãs. Não se deve, contudo, imaginar a presença de uma mesa como a que as igrejas evangélicas de hoje usam para celebrar o ritual. Trata-se, simplesmente, de um móvel sobre o qual os emblemas podiam ser mantidos cerimonialmente separados para uso na igreja (RIDDLE, 1843, p. 543-544). A principal contribuição de Tertuliano é reconhecer, porém, que muitas das práticas associadas com a comunhão já em seu tempo destoavam das orientações escriturísticas:

Sine ullius Scripturae instrumento, solius traditionis titulo, et exinde consuetudinis patrocinio vindicamus (De corona 3). Sem qualquer apoio das Escrituras, com base apenas na tradição, vindicamos, por conseguinte, o patrocínio do costume.

A Comunhão no Terceiro Século Três fontes importantes do século III fazem referência à comunhão: Hipólito de Roma, Orígenes e Cipriano de Cartago. Hipólito, martirizado em 236 A.D., foi uma personalidade polêmica da igreja cristã primitiva. Ele escreveu suas obras em grego, língua em que a maior parte de seus escritos foi conservada. No entanto, a Tradição apostólica, obra de 225 A.D. na qual se refere à comunhão, com a exceção de alguns fragmentos gregos, só nos chegou através de uma tradução latina do quarto século (DIX; CHADWICK, 1992). Segundo Bettenson (2001, p. 135), “o documento é, provavelmente, em parte composição e em parte compilação. Suas fontes parecem ser as liturgias orientais”. Nos fragmentos gregos da obra, Hipólito proíbe que o oficiante se abstenha de participar dos emblemas:

Χῆραι καὶ παρθένοι πολλάκις νηστευέτωσαν καὶ εὐχέσθωσαν ὑπὲρ τῆς ἐκκλησίας. Πρεσβύτεροι, ἐπὰν βούλοιντο, καὶ λαϊκοὶ ὁμοίως νηστευέτωσαν. Ἐπίσκοπος οὐ δύναται νηστεύειν, ἐὰν μὴ ὅτε καὶ πᾶς ὁ λαός. Ἔσθ' ὅτε γὰρ θέλει τις προσενεγκεῖν, καὶ ἀρνήσασθαι οὐ δύναται· κλάσας δὲ πάντως γεύεται (Tradição apostólica 96). As viúvas e as virgens muitas vezes jejuam e oram pela igreja. Que jejuem os presbíteros, se assim o desejarem, e, igualmente, os leigos. Mas o bispo não pode jejuar, senão quando todo o povo jejue. Haverá momentos em que alguém vai desejar participar e ele não poderá se recusar a fazê-lo. Quando partir o pão, deve sempre provar dele.

Infelizmente, não foi possível localizar o original da tradução latina. Sendo assim, os excertos abaixo foram adaptados de Bettenson (2001) e de Dix e Chadwick (1992), versões portuguesa e inglesa, respectivamente.

Em Hipólito, a liturgia da comunhão inclui primeiramente uma leitura responsiva:

Oficiante: o Senhor esteja convosco! Participantes: E com o teu espírito! Oficiante: Levantai ao alto os corações. Participantes: Assim os levantamos para o Senhor. Oficiante: Demos graças ao Senhor, nosso Deus. Participantes: Ele é digno e justo.

Finalmente, o oficiante faz uma longa oração para abençoar os emblemas:

Damos-te graças, ó Deus, por teu amado Filho Jesus Cristo, que nos enviaste nos derradeiros tempos para ser nosso Salvador e Redentor e o mensageiro de tua vontade; o qual é o Verbo inseparável pelo qual fizeste todas as coisas e no qual puseste tuas complacências. Tu o enviaste dos céus ao seio da virgem, e ele foi concebido e se encarnou, foi reconhecido como teu Filho, nascido do Espírito Santo e da virgem. E ele, cumprindo tua vontade e preparando para ti um santo povo, estendeu suas mãos ao sofrimento para libertar do sofrimento os que creram em ti. O qual, ao ser entregue voluntariamente a sua paixão, para que pudesse destruir a morte, romper as cadeias do maligno, pisar o inferno, libertar os justos, marcar as fronteiras e, para que pudesse manifestar sua própria ressurreição, tomou o pão e deu graças, dizendo: “Tomai e comei: este é o meu corpo que é quebrantado por vós”. Semelhantemente, tomou o cálice, dizendo: “Este é o meu sangue que é derramado por vós. Cada vez que fizerdes isto, fazei-o em memória de mim”. Por esta razão, nós, em memória da sua morte e da sua ressurreição, oferecemos-te este pão e este cálice, dando graças a ti porque nos fizeste digno de apresentar-nos a ti e de servir como teu sacerdote. E te imploramos te dignes enviar teu Santo Espírito sobre a oblação de tua santa igreja, concedendo que todos os teus santos que dela participam sejam feitos um, para a plenitude do Espírito Santo e a confirmação de sua fé na verdade. Assim possamos louvar-te e glorificar-te por Jesus Cristo, teu Filho, através de quem seja glória e honra a ti, ao Pai e ao Filho com o Espírito Santo em tua santa igreja, hoje e eternamente. Amém.

Nesta oração, não é possível determinar precisamente se Jesus é chamado de “Filho” ou de “servo” de Deus, uma vez que tanto o termo grego pais quanto o termo latino puer tem as duas conotações (GINZBURG, 2001, p. 104-121). Isso não aconteceria se o autor tivesse optado pelo termo hyios, comum nos evangelhos para se referir à filiação de Jesus. Hipólito também se preocupa com a atuação dos diáconos para auxiliar os oficiantes:

E se não houver oficiantes suficientes, os diáconos também passarão os cálices, ficando em pé em boa ordem e reverência: primeiramente, a água; em segundo lugar, o leite; em terceiro lugar, o vinho. E os que os receberem provarão deles três vezes.

Assim, em Hipólito, temos o acréscimo de mais um elemento à liturgia: o leite. A presença de leite, nesse caso, tem sido interpretada de diversas maneiras: uma forma de as crianças participarem da ceia (MOKHELE, 2006), uma alusão ao papel de Maria como mãe do Jesus da eucaristia (STEENHUISEN, 2008, p. 311-333), ou uma referência escatológica à promessa de uma

terra que mana lei e mel, uma vez que o mel também será, posteriormente, incorporado à cerimônia. De qualquer forma, o escritor modernista James Joyce imagina uma perversão da santa ceia, na abertura de seu Ulysses, em que leite é oferecido em vez de vinho (ELLMANN, 2009, p. 336). Cipriano também representa um testemunho sobre o formato da comunhão no terceiro século. Esse bispo de Cartago, famoso pela declaração “não há salvação fora da igreja” (extra ecclesiam nulla salus), em sua Epístola 72, e por ser a mais antiga testemunha favorável à assim-chamada comma joanina (Unidade da igreja 1.6), escreveu, por volta do ano 255 A.D., algumas orientações sobre a santa ceia que foram enviadas a outro bispo (CLARKE, 1986):

Admonitos autem nos scias, ut in calice offerendo Dominica traditio servetur, neque aliud fiat a nobis, quam quod pro nobis Dominus prior fecerit. Ut calix, qui in commemoratione ejus offertur, mixtus vino offeratur (Epístola 63.2). [...] Non est ergo, frater clarissime, quod aliquis existimet sequendam esse quorundam consuetudinem, si qui in praeteritum in calice Dominico aquam solam offerendam putaverunt. Nisi si in sacrificiis matutinis hoc quis veretur ne per saporem vini redoleat sanguinem Christi. Si ergo incipit et a passione Christi in persecutionibus fraternitas retardi, dum in oblationibus discit de sanguine ejus et cruore confundi (Epístola 63.1415). Saibas, portanto, que fomos instados a que obedeçamos à tradição do Senhor quando abençoamos o cálice e que nada façamos além do que anteriormente o Senhor fez por nós. Que o cálice que é ofertado em sua comemoração seja oferecido com uma mistura de vinho (63.2). [...] Ninguém deve pensar, portanto, caríssimo amigo, que está seguindo esse costume se imaginar que, no passado, oferecia-se apenas água no cálice do Senhor. Pode ser que, nos sacrifícios matutinos, se receie que, ao provar o vinho, se exale o sangue de Cristo. É assim que a fraternidade na perseguição também começa a se afastar do sofrimento de Cristo, quando nas devoções aprende a se envergonhar de Seu sangue (63.14-15).

Cipriano enfaticamente ordena que os participantes bebam vinho. Isso pode refletir o fato de que os fiéis estavam expressando sua relutância em ingerir bebida com teor alcoólico, especialmente nas primeiras horas do dia, o momento costumeiro em que participavam da comunhão. Parece que a aversão ao odor de álcool teria provocado escrúpulos naqueles que eram instados a participar da cerimônia todos os dias. O vinho na antiguidade era normalmente diluído em água. Mesmo assim, é lícito indagar se sua presença constante na ceia da qual participavam tantos cristãos não estaria contribuindo para a criação de dependência química nos fiéis. As implicações sociais desse fato podem ser imaginadas. Não admira que, com o passar do tempo, o acesso ao cálice tenha ficado restrito ao oficiante, embora o acesso ao pão continuasse liberado para todos. A presença do leite junto com os emblemas pode também ter tido a função de atenuar o impacto do vinho, contribuindo para diluí-lo ainda mais. Cipriano não

leva nada disso em consideração. Para o exigente bispo, negar-se a ingerir o vinho equivalia a negar a eficácia do sacrifício de Cristo e fugir da responsabilidade cristã do martírio. Numa breve menção, Cipriano ainda recomenda que os fiéis participem diariamente da comunhão: hunc autem panem dari nobis quotidie postulamus, “achamos que este pão nos deve ser dado diariamente” (De orat. Domin.). Neste caso também, a palavra “pão” tem o valor de sinédoque para “comunhão”. Cipriano reconhece, além disso, que a eucaristia era também dada às crianças. Ele conta que uma criança havia participado de um sacrifício pagão e, depois disso, teria sido obrigada pelos adultos a participar da comunhão. O fato provocou vômitos na criança, o que o levou a declarar:

In corpore atque ore violato eucharistia permanere non potuit. Sanctificatus in Domini sanguine potus de pollutis visceribus erupit: tanta est potestas Domini, tanta maiestas (De lapsis). No corpo ou na boca que foi violada, a eucaristia não pode permanecer. Santificada pelo sangue do Senhor, a bebida irrompe das vísceras contaminadas: tal é o poder do Senhor, tal é sua majestade.

Uma carta datada aproximadamente no ano 268 A.D. e enviada por um amigo a Cipriano acabou preservada entre suas epístolas. Firmiliano, bispo de Cesareia, na Capadócia, lhe fala acerca de uma mulher que vinha oficiando, com frequência, a santa ceia na região onde morava:

Mulier, quae in ecstasi constituta, prophetem se praeferret, et quase sancto Spiritu pleno plena sic ageret (Epístola 75). Uma mulher, que se achava em êxtase, se dizia profetisa e, como se cheia da plenitude do Espírito Santo, assim agia.

O final da história não é feliz. O amigo do bispo reclama desse comportamento e o atribui às artimanhas do demônio (GERSDORF, 1839; COYLE, 1993, p. 135-138):

Atqui illa mulier, quae prius, per praestigias et fallacias Daemonis, multa ad deceptionem fidelium moliebatur, inter cetera quibus plurimus deceperat, etiam hoc frequenter ausa est, ut et invocatione non contemptibili sanctificare se panem et eucharistiam facere simularet, et sacrificium Domino no sine sacramento solitae praecationis offerret; baptizaret quoque multos (Epístola 75). Por meio dos truques e ilusões do demônio, essa mulher tinha anteriormente trabalhado para enganar os fiéis de várias formas. Entre as coisas que ela usou para ludibriar a muitos, o que ela frequentemente ousava fazer era o seguinte: usando uma invocação adequada, ela fingia santificar o pão e consagrá-lo. Ela oferecia o sacrifício ao Senhor em um ato de liturgia celebrado de acordo com um rito aprovado e ela batizava muitas pessoas.

Outro testemunho do terceiro século vem da pena de Orígenes. Como Tertuliano, o autor demonstra grande preocupação com o manuseio do pão e do vinho (POPE, 1840):

Volo vos admonere religionis vestrae exemplis: nostis qui divini myteriis interesse consuestis, quomodo cum suscipitis corpus Domini, cum omni cantela et veneratione servatis, ne ex eo parum qui decidat, ne consecrati muneris aliquid dilabatur. Reos enim vos creditis, et recte creditis, si quid inde per negligentiam decidat. Quod si circa corpus eius conservandum tanta utimini cantela, et merito utimini: quomodo putatis minoris esse piaculi verbum Dei neglexisse, quam corpus eius? (Homilia 13) Vocês que frequentam nossos sagrados mistérios, saibam muito bem que, quando vocês recebem o corpo do Senhor, é preciso ter cuidado, com reverente cautela, para que nenhuma parte dele, por menor que seja, caia ao chão. Assim, nenhuma porção da oferta consagrada deve ser desperdiçada. Se qualquer pedaço cair por sua negligência, considerem-se culpados, e o considerarão corretamente. Se vocês usam tanta cautela, e com razão, nessa questão, quem pode considerar um pecado menor negligenciar o Verbo de Deus do que o seu corpo?

Desta forma, percebe-se que, ao mesmo tempo em que o ritual associado com a comunhão recebe acréscimos que o tornam cada vez mais complexo, a igreja continua a considerá-lo importante e tenta preservá-lo das corrupções que muitas vezes são provocadas pelo próprio desejo de atribuir importância ao rito.

A Comunhão no Quarto Século Entre 350 e 380 A.D., Cirilo, bispo de Jerusalém, publicou uma série de instruções batismais, denominada Catequese, que incluía explicações sobre a santa ceia (MIGNE, 1844):

τὸ νίψασθαι τὰς χεῖρας, τὸ ἀνυπεύθυνον εἶναι ἁμαρτημάτων ἐστίν (5.2). Σημεῖον τοίνυν ἐστὶ τὸ φίλημα τοῦ ἀνακραθῆναι τὰς ψυχὰς καὶ πᾶσαν ἐξορίζειν μνησικακίαν. Διὰ τοῦτο ὁ Χριστὸς ἔλεγεν· «Ἐὰν προσφέρῃς τὸ δῶρόν σου ἐπὶ τὸ θυσιαστήριον, καὶ ἐκεῖ μνησθῇς ὅτι ὁ ἀδελφός σου ἔχει τι κατὰ σοῦ, ἄφες τὸ δῶρόν σου ἐπὶ τὸ θυσιαστήριον, καὶ ὕπαγε πρῶτον διαλλάγηθι τῷ ἀδελφῷ σου, καὶ τότε ἐλθὼν πρόσφερε τὸ δῶρόν σου.» (5.3). [...] Διὰ τὸ γὰρ τὴν παραδοθεῖσαν ἡμῖν ἐκ τῶν σεραφὶμ δοξολογίαν ταύτην λέγομεν, ὅπως κοινωνοὶ τῆς ὑμνῳδίας ταῖς ὑπερκοσμίοις γενώμεθα στρατιαῖς (5.6). Εἶτα ἁγιάσαντες ἑαυτοὺς διὰ τῶν πνευματικῶν τούτων ὕμνων, παρακαλοῦμεν τὸν φιλάνθρωπον Θεὸν τὸ ἅγιον Πνεῦμα ἐξαποστεῖλαι ἐπὶ τὰ προκείμενα (5.7). Εἶτα μετὰ τὸ ἀπαρτισθῆναι τὴν πνευματικὴν θυσίαν, τὴν ἀναίμακτον λατρείαν, ἐπὶ τῆς θυσίας ἐκείνης τοῦ ἱλασμοῦ, παρακαλοῦμεν τὸν Θεὸν ὑπὲρ κοινῆς τῶν ἐκκλησιῶν εἰρήνης, ὑπὲρ τῆς τοῦ κόσμου εὐσταθείας, ὑπὲρ βασιλέων, ὑπὲρ στρατοπέδων καὶ συμμάχων, ὑπὲρ τῶν ἐν ἀσθενείαις, ὑπὲρ τῶν καταπονουμένων, καὶ ἁπαξαπλῶς ὑπὲρ πάντων τῶν βοηθείας δεομένων (5.8). [...] Εἶτα μετὰ ταῦτα

τὴν εὐχὴν λέγεις ἐκείνην, ἣν ὁ Σωτὴρ παρέδωκε τοῖς οἰκείοις αὐτοῦ μαθηταῖς (Catequese 5.11). O lavar as mãos significa isentar-se da culpa de pecados (5.2). O ósculo é, por sua vez, o sinal da união das almas e da esconjuração de toda lembrança do mal. Por isto, Cristo disse: “Se trouxeres tua oferta ao altar, mas te lembrares que teu irmão tem algo contra ti, deixa a oferta perto do altar, volta e reconcilia-te primeiramente com teu irmão; depois, vem e faze a tua oferta” (5.3). [...] Pois, por esta razão, proferimos a doxologia tradicional que nos chegou desde os serafins: para que nos tornemos unidos no cântico com as hostes supramundanas (5.6). Então, depois de nos santificarmos com esses hinos espirituais, rogamos ao Deus que ama os seres humanos a enviar o Espírito Santo sobre as coisas que estão na mesa (5.7). Então, depois de completarmos o sacrifício espiritual, o culto destituído de sangue, com base nesse sacrifício de propiciação, rogamos a Deus pela paz de todas as igrejas, pela estabilidade do mundo, pelos reis, por nossos exércitos e aliados, pelos enfermos, pelos oprimidos e, em suma, por todos aqueles que necessitam de ajuda (5.8). [...] Depois dessas coisas, recitamos aquela oração que o Salvador legou a seus mais íntimos discípulos (5.11).

Segue-se, então, uma longa exposição sobre a importância e significado do Pai Nosso (5:12-19). Mas, logo em seguida, Cirilo retoma suas considerações sobre a comunhão: Μετὰ ταῦτα ἀκούετε τοῦ ψάλλοντος μετὰ μέλους θείου προτρεπρομένου ὑμᾶς εἰς τὴν κοινωνίαν τῶν ἁγίων μυστηρίων καὶ λέγοντος· «Γεύσασθε καὶ ἴδετε, ὅτι χρηστὸς ὁ Κύριος.» ... γευόμενοι γὰρ οὐκ ἄρτου καὶ οἴνου γεύεσθε, ἀλλὰ ἀντιτύπου σώματος καὶ αἵματος Χριστοῦ (5.20). Εἶτα μετὰ τὸ κοινωνῆσαί σε τοῦ σώματος τοῦ Χριστοῦ, προσέρχου καὶ τῷ ποτηρίῳ τοῦ αἵματος, μὴ ἀνατείνων τᾶς χεῖρας, ἀλλὰ κύπτων, καὶ τρόπῳ προσκυνήσεως καὶ σεβάσματος λέγων τὸ «Ἀμὴν». Εἶτα ἀναμείνας τὴν εὐχήν, εὐχαρίστει τῷ Θεῷ τῷ καταξιώσαντί σε τῶν τηλικούτων μυστηρίων (Catequese 5.22). Depois disto, vocês ouvem uma harpa com uma melodia divina que os exorta à comunhão dos santos mistérios e diz: “Provem e vejam que o Senhor é bom”... E, ao participar, vocês não provam do pão e do vinho, mas do símbolo do corpo e do sangue de Cristo (5.20). Então, depois de participar do corpo de Cristo, participem também do cálice do sangue, não estendendo as mãos, mas baixando a cabeça, como se em adoração e reverência, dizendo “amém”. Depois, esperem a oração e deem graças a Deus que os considera dignos de participar de tão grandes mistérios (5.22).

No longo texto de Cirilo, percebe-se a presença da água já destinada à purificação das mãos e não para ser misturada ao vinho. Observa-se, além disso, outro desenvolvimento. A partir do quarto século, o ósculo santo parece ter se tornado uma obrigação dos participantes. As expressões “sacrifício espiritual” (pneumatikê thysia) e “culto sem sangue” (anaimaktos latreia) parecem ser provocações aos pagãos. Não é possível precisar a data exata da publicação da obra de Cirilo (YOUNG, 1983), mas essas expressões podem tentar fazer um contraponto aos sangrentos holocaustos pagãos oferecidos pelo imperador Juliano nessa época. Por causa deles, Gregório de Nazianzo chama o imperador de kausitauros, isto é “toureiro” (Contra Juliano 1.77), e Amiano Marcelino (22.14.3) se refere a ele como victimarius, isto é “açougueiro”

(TORRES, 2012). Independentemente disso, a expressão “sacrifício espiritual” vai pegar e será várias vezes repetidas por pais da igreja posteriores, especialmente Dídimo Cego, em seu comentário ao livro de Salmos. “Culto sem sangue” já estava em uso corrente nessa época e continuará sendo usada nos séculos seguintes, sendo uma referência frequentemente feita à comunhão, especialmente por Eusébio de Cesareia (Generalis elementaria introductio 131.8; 139.22), Gregório de Nice (De instituto Christiano 8.1; In sanctum Ephraim 46), Epifânio (Liturgia praesanctificatorum 2.32), Gregório de Nazianzo (Contra Julianum imperatorem 1.4; Liturgia sancti Gregorii 36), Atanásio (Quaestiones ad Antiochum ducem 28), Basílio (Liturgia 31), Orígenes (Selecta in Psalmos 12), João Crisóstomo (De jejunio, de Davide 62; Vidi dominum, homilia 6) e Dídimo Cego (De trinitate 2.7), entre outros. A tônica do quarto século é a de um apelo para uma volta às origens. Infelizmente, esse esforço nem sempre foi coroado de êxito.

Considerações finais Os desenvolvimentos pertinentes à celebração da ceia do Senhor revelam que a comunidade cristã se preocupava em seguir os padrões explicitados nas Escrituras, mas nem sempre conseguia fazê-lo. Do primeiro ao quarto século, a ceia sofreu alterações. Alguns desses acréscimos foram positivos e são observados até os dias de hoje; outras alterações assumiram caráter negativo e foram logo abandonadas. Apesar disso, não há garantias de que o que se perdeu tinha mesmo que ser abandonado ou de que o que permanece reflete, de fato, o modelo legado nas Escrituras. Entre essas discussões a respeito da comunhão talvez a que tenha causado mais ansiedade tenha sido a disputa sobre a utilização ou não de vinho com teor alcoólico. Ademais, parece além de qualquer dúvida que a comunidade cristã primitiva participava dessas celebrações como uma forma de publicamente demonstrar seu compromisso com a religião e, ao mesmo tempo, desfrutar da comunhão solidária do corpo de Cristo.

Referências

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