Repensando o ensino de línguas estrangeiras no contexto de pós humanidades 2016 VERA HANNA.pdf

June 2, 2017 | Autor: Vera Hanna | Categoria: Transdisciplinarity
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O ensino de línguas estrangeiras no contexto de pós-humanidades: os estudos culturais, a transdisciplinaridade

HANNA, Vera L. Harabagi. O ensino de línguas estrangeiras no contexto de pós-humanidades: os estudos culturais, a transdisciplinaridade. IN: VASCONCELOS, Maria Lucia. Língua e Literatura: ensino e formação de professores. São Paulo: Editora Mackenzie. Prelo [2015].

Vera Lucia Harabagi Hanna

Let me cordially warn you, at the opening of these so-called lectures, that I haven’t the remotest intention of posing as a lecturer. Lecturing is presumably a form of teaching; and presumably a teacher is somebody who knows. I never did, and still don’t know. What has always fascinated me is not teaching, but learning. E.E.Cummings, 1953.

Um percurso triangular: humanidades, línguas estrangeiras, estudos culturais

Trazer para o debate o ensino de línguas estrangeiras no momento atual significa,

antes

de

tudo,

contextualizá-lo

no

acelerado

crescimento

intercomunicacional, proporcionado pela simultaneidade dos encontros transnacionais que trazem para a conjuntura dos estudos linguísticos e literários a questão dos ‘participantes de uma comunicação intercultural’. As ocorrências de interconectividade entre pessoas e culturas dessemelhantes têm se tornado constantes na coletividade global, assim,

pensar o papel das Letras na constituição humanística dos cidadãos

neste momento

parece ser uma decorrência natural, a despeito de inúmeras vezes

negligenciada. Para discorrermos sobre o assunto, adotaremos um percurso triangular – a relação entre as humanidades, o ensino de línguas estrangeiras e os estudos culturais (portanto, a transdisciplinaridade) - por avaliá-lo como imperativo sempre que nos dispusermos a refletir sobre a concepção de língua como um meio de comunicação e

interação entre indivíduos de cultura e sociedades distintas no viés de seu ensino. Como um dos principais meios que o indivíduo possui para expressar o modo como vê o mundo, a língua revelará, nas interações sociais, a conexão com a cultura e assim deverá ser entendida em sua importância no aprendizado - a apreciação do contexto no qual ela é utilizada deve ser considerada de forma ampla. A língua se constitui, por excelência, um dos tópicos mais adequados ao estudo e à análise inter/transdisciplinar, pois encontra-se implícito seu valor não somente nas pesquisas linguísticas e literárias (como nos comunicamos, como as ideias e experiências

humanas

são

proclamadas

e

interpretadas),

antropológicas, arqueológicas, históricas, nas artes

mas

(uma vez que

também

nas

expressam a

subjetividade humana, estudam o desenvolvimento humano social, político e cultural e nos auxiliam a refletir e analisar processos criativos); nos negócios, na estratégia de mercado, na publicidade (em que a escolha das palavras e a construção do texto carregam a conveniência de um conceito), e, ainda, na aquisição linguística e nas relações interpessoais

avaliadas pela psicologia; na filosofia e na ética (por

considerarem o significado da vida e as razões de nossos pensamentos e ações), bem como na área médica, na física, na biologia, na engenharia. Em todos esses campos do saber, profissionais da área procuram, de maneiras diversas, saber como a língua opera, por que razão, quando, onde, para quem e por quem é operada. Segundo Hanna (2014), no ensino de idiomas, a transdisciplinaridade encontrase subentendida, uma vez que, para além do aprendizado de línguas estrangeiras para fins específicos, os aspectos formais e informais da língua deverão fazer parte das estratégias de ensino em todos os níveis. Dessa forma, são contemplados a literatura, a história, as artes, a música, as instituições sociais, os costumes e atitudes, os aspectos do cotidiano, haja vista estarem absolutamente entrelaçados na língua de todos que vivem aquela cultura. Em síntese, ao ajuizarmos o binômio língua-cultura, ponderamos dois componentes básicos da noção de cultura: um antropológico - as atitudes, os costumes, o cotidiano, e todas as maneiras de sentir, pensar e agir, seus valores e referências; e o outro histórico - que forma uma espécie de moldura para o primeiro por representar a herança de um povo. Conhecer vários idiomas, apreciar a literatura, analisar grandes ideias, estudar filosofia, admirar as artes, tratar dos problemas do planeta, conjecturar sobre a história,

são estudos pertencentes ao escopo das Humanidades que, em sentido amplo, explora tudo o que constitui SER HUMANO. Enfatizaremos o último componente - conjecturar sobre a história - por estar diretamente relacionado ao conceito de cultura concebido por Clifford Geertz e que se coaduna com nossos propósitos, expressos em diversos estudos em que a interseção ensino de línguas estrangeiras e estudos culturais esteja presente, assunto a ser retomado mais adiante. A sobreposição das palavras do antropólogo, “a cultura é um padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas”, e que ele esclarece serem “expressos em formas simbólicas por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento em relação à vida” (Geertz, 1989, p. 103) nos leva a asseverar que as humanidades incorporam a formulação de cultura como modo de vida, prática social, produção cultural, como sistema de significações, a cultura somos nós; nós, os seres humanos, somos o argumento primeiro das Humanidades, nossa identidade é a soma de narrativas que tomamos emprestado da cultura. Assim, no aforismo “a cultura é o conjunto de histórias que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos”, Geertz sintetiza sua reflexão de natureza prática (ou moral) - o conhecimento cultural é algo que nunca termina (id. p. 448). Em consonância com Karen Risager (2007), acreditamos que não seria mais necessário, hoje, reconhecermos como legítima a ideia de que o ensino de língua deveria abranger uma dimensão cultural. É válido ressaltar, no entanto, que, embora pesquisadores de línguas, linguística e comunicação preocupem-se mais intensamente com a influência mútua de língua-cultura desde a década de 1980, os resultados teóricos parecem ainda hoje extrapolar os práticos. A partir de então, uma tendência intitulada de “pós-modernista” pela autora (p.163), começa a observar processos e estratégias de aprendizado com foco na diversidade dos alunos, em suas experiências, atitudes e emoções e nas habilidades de entender o ‘outro’. As abordagens interculturais surgidas nas décadas seguintes apresentam esses preceitos como basilares, expressos em inúmeras publicações, escritas em parceria ou individualmente em que podemos destacar dois teóricos, Claire Kramsch (1994, 1998, 2004) e Michael Byram (1991; 1994; 1997; 1998; 2000; 2002). Desde aquele momento os princípios defendidos resumem-se em: uma integração do aprendizado linguístico e

cultural para facilitar a comunicação e interação; uma comparação dos outros e de si mesmo para estimular a reflexão e questionamento crítico sobre a própria cultura e a(s) cultura(s) da(s) língua(s) alvo; uma mudança de perspectiva que envolve processos psicológicos e de sociabilização; uma compreensão do potencial do ensino de línguas na preparação dos indivíduos para que conheçam e se comuniquem com outras culturas e sociedades (Byram e Fleming, 1998, p.7). A pedagogia cultural/intercultural no ensino de línguas estrangeiras é, antes, produto da mundialização, dos contatos linguísticos em sociedades multilíngues e multiculturais que exige que o aprendiz seja um “falante transnacional” (Kramsch, 1998, p.27). A adoção dessa pedagogia visa a que os participantes sejam motivados a manter e desenvolver junto à dimensão linguística, o conteúdo referente à estrutura da língua alvo, o conhecimento lexical e, igualmente, seja instado a manifestar sensibilidade para perceber as diferenças culturais e o impacto que produzem na comunicação. A prática linguística sempre envolve normas linguísticas, devemo-nos lembrar, porém, de que todas as vezes que usamos a língua, essas normas são reproduzidas de maneira diferente, pois o tratamento linguístico é parte da prática social e da negociação cultural, assim como acontece com quaisquer outras formas da prática social (Risager, 2007, p.195). Nesse contexto, ao se depararem com outras culturas, aqueles que estiverem envolvidos em processos como os citados terão o ensejo de decifrar outros valores, outras crenças, outros comportamentos, além de alcançarem mais intimamente suas próprias culturas por vias de comparação. O “falante transnacional”, de Kramsch, contemporiza o “entendimento transnacional” de língua e cultura, de Risager, que tem por finalidade promover um “cidadão do mundo” - expressão já consagrada, utilizada em teorias sobre a globalização

- segundo uma visão pós-moderna na pedagogia

cultural (2007, p.164). Resta acrescentar que, somente uma formação humanística que envolva disciplinas acadêmicas que procurem entender e interpretar a experiência humana, conforme prega Melissa Terras, do Centro de Humanidades Digitais da University College London, não só de indivíduos, mas de culturas inteiras e que incentive, como demonstra no infográfico Humanities matter (2013), investigações, incorpore as descobertas, e prestigie não somente a preservação do passado como essencial, mas que

estimule a comunicação entre o presente e o passado, será factível fazer com que um maior número de pessoas possível seja capaz de entender mais significativamente a sociedade contemporânea. Confiando que as humanidades tratam de tudo o que se refere a SER HUMANO, entendemos que ser cidadão do mundo significa entender os indivíduos através da língua, da cultura. Deste modo, ao propormos o estudo de línguas e literaturas clássicas e modernas, juntamente com o de história, de artes, de comunicação e de outros correlatos, acreditamos que tal formação nos fará perceber que, para que possamos nos comunicar plenamente, deveremos colocar

em prática atividades de um exercício

cultural e intercultural no processo de novos contatos linguísticos. O aprendiz de línguas poderá vir a ser um aprendiz intercultural, ao mesmo tempo em que se assume como um falante intercultural - que se instruirá a negociar suas próprias identificações e representações culturais, sociais e políticas com as daqueles com quem se relacionará.

Ao conceder privilégio a experiências vividas, o educando se esforçará por traduzi-las no contato intercultural, agindo assim, fará com que os mais diferentes modos como os seres humanos criam significados culturais tenham chance de fazer jus a atenção

-

ele exercerá o papel de

um etnógrafo, de um etnógrafo moderno.

Reconhecer que o conhecimento das humanidades deveria ocupar um lugar cada vez mais importante na sociedade globalizada é de suma relevância.

A partir do exposto, é tempo de incluir na exposição o vértice dos Estudos Culturais a partir de nossa experiência acadêmica. O diálogo constante entre pesquisas sobre a interseção de língua/cultura/intercultura, tanto nos estudos linguísticos como nos literários e as

disciplinas que temos ministrado em cursos da Graduação e Pós-

graduação em Letras (para formação de professores de língua estrangeira e pesquisadores), deixa evidente que a interface com aquela área do saber tem trazido inúmeras contribuições para investigações realizadas no grupo do CNPq e do Projeto de Pesquisa do Programa de Pós Graduação em Letras da UPM, novos insights, novos pesquisadores, novas publicações (Hanna, 2012 (a;b); 2013; 2014(a;b), aqui citados), além de trabalhos apresentados em congressos, comprovam o que antes era apenas hipótese. Tal visão torna-se imperativa na constituição da taxonomia que contempla os estudos relativos ao ensino de línguas e abaliza o momento contemporâneo como o de

consolidação do binômio língua-cultura, logo, o papel da transdisciplinaridade num contexto de pós-humanidades acontece de modo tácito, adjacente ao crescente interesse pela função desempenhada pelos contextos interculturais. Destacamos como característica principal da área dos Estudos Culturais

a

concepção transdisciplinar a ela atinente. Pertence a um campo de pesquisas que confundem suas fronteiras com as disciplinas ligadas às Humanidades - sociologia, economia, política, estudos da comunicação, e outros discursos teóricos como os já anotados - motivo pelo qual é comum encontrar em vários países programas de Graduação e Pós-graduação em ‘Humanidades e Estudos Culturais’. A área dedica-se ao estudo da cultura contemporânea analisada sociologicamente, economicamente, criticamente. A ininterrupta discussão teórico-metodológica sobre e dentro da disciplina pauta-se pela particularidade da noção de ‘cultura’, um conceito sabidamente ambíguo, polissêmico. O caráter transdisciplinar de transgressão de fronteiras acadêmicas indica, igualmente, que não devemos nos prender à fronteira do texto, por outro lado, é imprescindível acrescentar que os Estudos Culturais são radicalmente praticados em contextos. Sobre o assunto, Jeff Lewis (2006, p.30) comenta que ambos, os Estudos Culturais e a teoria da linguagem entendem o desenvolvimento do indivíduo em relação à construção cultural do significado do contexto - a mutabilidade e o dinamismo, a capacidade receptiva, fazem parte da construção da identidade, da mesma maneira que acontece a construção do texto. Destarte, a transdisciplinaridade, inerente a esse campo de estudo, navega através da disciplina do texto para o contexto e, assim, dos textos para a cultura e para a sociedade, distintivo que interessa nossa apreciação como um todo. De acordo com essa perspectiva e um dos temas fundamentais a ser ressaltado no contexto das Letras é o da representação, com ênfase nas maneiras como o mundo é socialmente construído e representado para e por nós, nos termos de Chris Barker, podemos atestar que, [...] a língua não é um meio neutro para a formação de significados e conhecimento relativos a elementos separadamente da língua, ao contrário, é parte constitutiva daqueles mesmos significados – a língua fornece significado a objetos materiais e práticas sociais e faz com que se tornem inteligíveis nos termos em que a língua delimita (2004, p.45).

Essa declaração, citada por Hanna e Bastos (2014, p. 6), esclarece que a disciplina preocupa-se com os processos de produção de significado como práticas de significação “para que se apreenda cultura é necessário explorar como o significado é produzido simbolicamente como forma de representação” (Barker, 2004, p.45). Dando continuidade ao assunto, o autor discorre, também, sobre a importância da geração textual em variados contextos que demonstram a materialidade das representações e significados culturais - sons, inscrições, objetos, imagens, livros, revistas e programas de televisão, por exemplo, são produzidos, validados, utilizados e entendidos em contextos sociais materiais específicos. Esse fato os torna apropriados para o estudo da cultura sempre que o conceito significar práticas de representação situadas no interior dos contextos de produção, circulação e recepção material e social. Juntemos a essas considerações o fato de que o objetivo dos alunos é o de instruir-se na língua estrangeira operando as quatro habilidades – ouvir, falar, ler, escrever – dificuldades inerentes ao processo de aquisição de línguas surgirão, mas poderão ser mais facilmente vencidas se houver um entendimento dos papéis dos interlocutores nesse processo. Percebendo-se como um etnógrafo, na explicação de Byram e Esarte-Sarries (1991, p.12 ), o aprendiz adquirirá, em seus próprios termos, a atitude de alguém que deseja aprender e entender os outros – as técnicas de fazer perguntas sobre (para) indivíduos e textos estabelecerão o significado dos objetos e das ações que auxiliará na formação de um ponto de vista que combina a percepção dos participantes com a do observador externo por meio de uma interpretação crítica. Essa atitude servirá como subsídio tanto na interpretação do outro quanto um meio de desenvolver a capacidade linguística, em síntese, uma anuência da relação língua e cultura.

O contexto do pós-humanidades O renomado professor e crítico literário canadense Northrop Frye, em entrevista que ganhou o título de “O Papel das Humanidades”, em 1985, afirmava que as humanidades são predominantemente ‘disciplinas verbais’. No centro estão colocadas a língua e a literatura vistas, como ironiza ele, sob a égide de “um desinteressante estudo das palavras” – ao redor delas viria a filosofia, a organização verbal das ideias, e a história, que é, essencialmente a atualização da memória. A imaginação literária, comentava, cria um mundo de possibilidades e, essas formam milhares de outras

possibilidades de ver as coisas (p.1). É a ideia de exequibilidade do exercício da língua que abordamos nas Letras que nos possibilita encontrar eco nas palavras de Frye, “a operação de pensar é a prática de articular as ideias até transformá-las em palavras corretas, adequadas” (p.3). Passemos, então, à tentativa de usar as palavras seguindo a asserção acima e assim fazer uma breve análise do estado das Humanidades como um todo, para e além das Letras, à guisa de completar nossa exposição. Embora os objetivos aqui expressos se apresentem coincidentes, baseados em estudos dos teóricos mencionados, temos ainda de refutar recursivas dúvidas como a que se insere na pergunta: “As humanidades estão morrendo?” Muito já se tem aventado a respeito de certa mórbida fascinação em discutir o tema da morte das Humanidades. Poderíamos replicar que, tratar da possibilidade de sua quase extinção significaria, mesmo, admitir que as Humanidades ainda importam - conforme demonstrado até aqui. Argumentações a favor de seu renascimento e de sua continuidade adquiriram força nas últimas décadas em universidades no mundo todo, corroboradas

em

levantamentos que temos realizado nos últimos anos, em congressos, publicações de livros, em jornais e revistas especializados, e não-especializados sobre o tema, que confirmam a revitalização das Humanidades como objeto do desejo de considerável número de catedráticos em renomadas instituições. Para que compreendamos a importância da luta que vem sendo travada pela permanência e estabilidade das Humanidades no mundo acadêmico, deliberamos apreciar dois extremos cronológicos: a metade do século XX, o ano de 1954, quando se realizou a 8ª sessão da Conferência Geral da UNESCO (United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), em Montevidéu, Uruguai, cotejando-o com duas experiências recentes efetivadas em reconhecidas instituições americanas, no século XXI, em 2013 e 2014. Num breve relatório, intitulado The Role of the Humanities in Contemporary Cultures, basic paper, advindo das discussões ocorridas entre novembro e dezembro de 1954, o diretor geral daquele órgão recomendava em seu texto a formação de comissões para debates sobre a função das humanidades na educação e no desenvolvimento da vida cultural das comunidades para o programa de 1955 e 1956. Cabe observar que o documento destacava que durante séculos o papel dos estudos humanísticos e da

herança clássica sempre ocupara lugar central e insubstituível. No entanto, o século XX havia passado a questionar aquele prestígio no tocante à função da tradição do classicismo e ao esforço que significava mantê-la; muitos ousavam até a apontar as Humanidades como obstáculo ao progresso, pois os ideais a elas concernentes, justificavam alguns, haviam perdido sentido. Esse questionamento, a ser discutido ao redor do mundo, passara a ser vinculado aos objetivos da educação, a uma maior participação dos homens na vida cultural de suas comunidades e a um entendimento mútuo entre povos e culturas díspares. O documento completo da UNESCO, Records of the General Conference, Eighth Session, de Montevideo, de 90 páginas, publicado no ano seguinte, datado de 16 de setembro de 1955,

aconselhava, naquela ocasião, que se examinasse o papel da

cultura clássica e das humanidades no cotidiano cultural junto à tarefa de ensiná-las nas escolas. A proposta foi elaborada para que se fizesse uma reflexão não somente em termos particulares, restrita aos próprios países, mas sim para ser notada como um problema universal, dirigida a educadores, cientistas, artistas pertencentes às diversas culturas, com o intuito de estimular uma discussão profunda e pública sobre a preservação da herança cultural da humanidade. Para que tenhamos noção de como o plano faz jus a mérito, destacamos algumas das resoluções, admiravelmente expostas sobre o tema e que entendemos como plausíveis para o recorte que demos para este estudo, por advertir sobre atividades culturais e propor o desenvolvimento de cooperação de organizações culturais internacionais (p.33-37) e que, aqui assinaladas, revelam-se essenciais para alcançarmos o significado do prosseguimento do estudo das Letras no terceiro milênio, A Resolução, IV 1.4.11, Atividades Culturais (Cultural Activities) preocupa-se com incentivos a organizações de cooperação internacional (Co-Operation with International Cultural Organizations); Na Resolução IV.1.4.31 fala-se em Estudos Humanísticos em Cultura e Educação (Humanistic Studies in Culture and Education); Na Resolução IV.1.4.32 a Educação através das artes e do artesanato é destaque (Education Through the Arts and the Crafts); Na Resolução IV 1.4.42 discute-se o Estudo das Relações entre as várias Culturas (Study of Relations Between Various Cultures); A Resolução IV. 1.4.44 trata de um assunto frequentemente visto com certa indiferença, o das Traduções (Translations), concernentes a trabalhos representativos de vários países;

A Resolução IV. 1.5 volta-se para a ascensão da Comunicação de Massa (Mass Communication) termo que se popularizou com os estudos do teórico da comunicação, Marshal McLuhan, na década de 60.

Podemos comparar a seleção como algo muito caro ao contexto de língua e cultura, ou seja, a primeira e melhor maneira de abrir os olhos para outra cultura, para um modo diferente de pensar, é aprender uma segunda língua. Anotamos, também, que a Resolução IV. 1.4.44, sobre tradução, faz soar as considerações da filósofa Martha Nussbaum, que dedica uma capítulo inteiro de seu livro Not for Profit: why democracy needs the humanities, de 2010, aos “cidadãos do mundo”, e denuncia que um dos aspectos mais negligenciados da educação pela cidadania é o aprendizado de línguas estrangeiras – estudar um novo idioma, lembra ela, é aprender como outras pessoas podem

enxergar o mundo de modos diferentes, além de terem oportunidade de

descobrir como quase todas as traduções são interpretações imperfeitas (p.90). O documento nos leva a considerar, além disso, o papel da língua como prática social, evidenciado em quatro atributos demonstrados por Kramsch (1994, p.205-206), que cabe aqui sintetizar, pois sinaliza os pontos essenciais a serem ressalvados por professores que aceitem o desafio da educação linguística intercultural, -

estabelecer uma ‘esfera de interculturalidade’ – constituir uma ligação entre formas linguísticas e a estrutura social (refletir sobre a cultura nativa e a cultura da língua alvo)

-

entender o ensino da cultura como um ‘processo interpessoal’ (o significado emerge da interação social)

-

adotar o ensino da ‘cultura como diferença’ (em razão do crescimento de sociedades multiétnicas e multiculturais)

-

cruzar as fronteiras entre as disciplinas (praticar a interdisciplinaridade)

Passados sessenta anos daquela reunião da UNESCO, continuamos tentando, obstinadamente, na metade da segunda década do século XXI, resgatar o papel das Humanidades no estado democrático,

teremos o ensejo, agora, de adicionar o

comentário sobre a leitura dos dois próximos documentos, de forma comparativa, que foram liberados a partir de pesquisas em conceituadas universidades americanas, uma privada e uma pública. Analisamos, primeiramente, o resultado de uma inquirição concretizada pelo departamento de Liberal Arts (Humanidades) da Harvard University, durante 20122013, através do documento The Teaching of the Arts and Humanities at Harvard College, Mapping the Future (2013). O trabalho foi elaborado por um comitê de

pesquisa, com a participação de quarenta professores que trabalhou durante dezoito meses, com o objetivo, dentre outros, de dar ênfase ao estudo do curriculum da graduação e examinar o papel e o propósito do aprendizado humanístico na academia como um todo. O relatório de 66 páginas apresentou, além de um histórico das Humanidades nas universidades americanas, uma valiosa coleção de dados estatísticos sobre o passado e o presente da instituição na área. Dentre a volumosa lista de informações coletadas, surpreende a alta taxa de desistência daqueles cursos entre os calouros – e que vai ao encontro de dados dos cursos de Humanas nas universidades brasileiras. A comissão fez recomendações muito práticas para combater esses resultados e melhorar a integração junto à divisão de Arts and Humanities. Chamou nossa atenção, entre as mais de vinte recomendações, a providência tomada para atrair o interesse dos alunos de todos os cursos da instituição, a oferta imediata de disciplinas com concentração exclusiva em Arte e Humanidades, em áreas de Língua Inglesa, Música e Artes Visuais, cuja procura vem diminuindo desde 1966. Foram colocados em prática, logo após a publicação do relatório, cursos considerados “pré-disciplinares” com duração de um ano, como The Art of Listening (A arte de ouvir), The Art of Reading (A arte de ler), e The Art of Looking (A arte de olhar), com continuidade de oferta em 2014 e 2015. O planejamento das disciplinas tem por finalidade proporcionar aos alunos a apresentação e discussão de problemas fundamentais relativos a histórias e métodos críticos, através de estudo intensivo de textos considerados ‘clássicos’ – os ensaios críticos de Roland Barthes estão entre os selecionados – assim como o estudo de sons, imagens e objetos. No universo amplo dos estudos acadêmicos, fazemos nossas as palavras da Profa. Diane Sorensen, diretora do departamento de Arts and Humanities daquela universidade e coordenadora geral da pesquisa. O objetivo principal de uma educação humanística na graduação é o de desenvolver senso crítico, de aprender e expandir a expressar as ideias de maneira persuasiva, além de saber como escrever bem. Ao mesmo tempo, a instituição deve oferecer caminhos para que se alcance a resolução de problemas complexos; o que deve se sobressair, no entanto, com persistência, segundo ela, é a proclamação desse intuito de modo compreensível, convincente, para

que os alunos sejam, antes de tudo, motivados a frequentar os cursos ofertados pelas Humanidades. Razões coincidentes são expressas pelo Prof. David Theo Goldberg, diretor do Instituto de Pesquisa das Humanidades, da Universidade da Califórnia e professor de Literatura Comparada e Antropologia, em The Afterlife of the Humanities, ensaio de abril de 2014. A universidade está atravessando um longo período de mudanças profundas em todo mundo e, é em relação direta com o efeito das contundentes

alterações na

transmissão de informações nas últimas décadas que Goldberg conduz o documento. Ele faz um arrazoado sobre como entende o poder das Humanidades, tradicionalmente, em comparação com o momento atual. Os estudos clássicos, literários e filosóficos, afirma o professor, foram desafiados a alargar o horizonte da capacidade retórica para incluir as novas mídias e, ao mesmo tempo, tratar em seus cursos da ressignificação do termo comunicação. Junto a isso, teve de dar conta de abranger o debate sobre a construção da imagem na cultura global, de como se tornar um alfabetizado digital. Consequentemente, problemas como o de conduzir dilemas culturais e éticos nesses novos ambientes, como abordar e julgar atos a ele relativos, de forma prudente, posicionaram-se em debates diuturnamente. Além da confiabilidade no conhecimento adquirido, efetividade prática e política, responsabilidades individual e coletiva passam a ser considerados a significação, os valores e a ética - pilares da educação humanística -

e que são (deveriam ser)

transferidos para o novo ambiente de multimidialidades e complexidades multisociais. Goldberg chama esses novos problemas humanísticos de “pós-humanidades” – e explicita que não pretende raciocinar sobre a morte ou a pós-morte das Humanidades, mas sim apresentar modalidades alternativas para que estas se tornem atraentes e significativas nas condições do momento. O texto The Afterlife of the Humanities conquistou nossa atenção sobremaneira, já que sugere identificar as condições de vida de nosso tempo, historiciza a sua chegada e as articulações culturais, e procura, além disso, possibilitar modos dinâmicos e produtivos de entender e responder a essas condições, em outras palavras, imagina jeitos diferentes de estar no mundo.

Indica, sobretudo, uma “recriação

institucional”, menos rígida, de características transdisciplinares, não despreza as

contribuições antigas, propõe, principalmente, recolocá-las na contemporaneidade. Concluímos que a nomenclatura pós-humanidades, entendida também como humanidades contemporâneas, ajusta-se a nossas pesquisas e serve aos nossos interesses, daí adotarmos a terminologia para o título de nosso estudo.

Os cursos de Humanas (em oposição às Exatas) convivem com o fantasma de cortes de verbas e de extinção,

em universidades públicas e privadas no Brasil.

Contudo, essa situação não nos é exclusiva, é uma situação que ocorre na Europa e nos Estados Unidos, precedente às mais recentes crises econômicas e que foram agravadas nos últimos anos.

As profundas mudanças sociais demandam vigorosos exames

relativos às Humanidades, para que o mundo faça sentido e para que possamos dar sentido ao mundo. Exigem, conforme acepção do Prof. Goldberg, modos criativos e pensamento astuto, equivalentes aos desafios que todos enfrentamos diariamente no cotidiano das megalópoles. Contrariamente ao pensamento de que as Humanidades estão morrendo, devemos assumi-las com coragem para, segundo ele, desistir dos formalismos, dos solecismos, e de expressões idioletais que haviam se tornado características do “falar para nós mesmos” naquele campo há algum tempo atrás. Consideramos que explorar as Humanidades, e, muito especialmente, o campo das Letras por uma perspectiva transdisciplinar, revitalizando os programas acadêmicos, tornando-os mais atraentes, mostra-se um caminho propício a trilhar. O estudo das Humanidades nos levará a adquirir habilidades para alcançarmos um julgamento crítico, discernimento, interpretação e entendimento de enigmas da ciência, da carreira, de nosso próprio mundo, para possuirmos empatia, ajuizamento ético, de valor e de respeito que devem, obrigatoriamente, ser levados em conta até mesmo em circunstâncias mais práticas, logo, pensar a aquisição de conhecimentos em termos transdisciplinares é uma consequência. Acreditamos que os ensinamentos de Basarab Nicolescu, sobre o conceito de transdisciplinaridade, possam sintetizar o objeto, o pensamento e as aspirações que pretendemos aqui expor. Em The transdisciplinary evolution of learning, o físico e fundador do Centre International de Recherches et d’Etudes Transdisciplinaires (CIRET), explica que a transdisciplinaridade é globalmente aberta, envolve a nova visão, assim como

a experiência vivida, ao que ele chama de um modo de

‘autotransformação orientada para o conhecimento de si mesmo’,

descortina,

igualmente, uma nova arte, um novo modo de viver em sociedade" (1997, p.4). O desafio a ser enfrentado é um desafio global a ser enfrentado por cidadãos globalizados, cidadãos do mundo, que deverão entendê-lo como um lugar heterogêneo, formado por nações heterogêneas.

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