Repensando o sistema (ordenamento jurídico)

May 27, 2017 | Autor: T. Bonatti Peres | Categoria: Legal Theory, Legal Philosophy
Share Embed


Descrição do Produto





ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal [tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 276-277.
11

REPENSANDO O SISTEMA
(13/05/2013)

TATIANA BONATTI PERES
Doutora em Direito Civil pela PUC-SP.
Mestra em Direito Civil pela PUC-SP.
Graduada pela PUC-SP.
Advogada em São Paulo.
Autora de diversos livros e artigos jurídicos,
inclusive o Livro "Solidariedade e abuso do Direito",
publicado em 2016 pela Editora Lumen Juris.

RESUMO: O presente artigo analisa dois textos, para abordar a noção atual de sistema e ordenamento jurídico.
PALAVRAS-CHAVE: sistema – ordenamento – justiça – segurança jurídica – interpretação da lei.
ABSTRACT: The present article analyzes two texts, in order to discuss the current notion of legal system.
KEYWORDS: legal system – Law – justice – legal certainty – legal interpretation.
Estamos vivenciando uma mudança na forma de interpretação e aplicação do Direito, que requer que a noção de sistema jurídico seja repensada.

Neste artigo, analisamos dois textos, para discutir a relação entre direito, segurança e sistema.

O primeiro texto, é o trecho a seguir da obra da autora Hannah Arendt: "'A legislação particular', indicou a sentença, 'é totalmente diferente de qualquer outra legislação usual em códigos criminais', e a razão dessa diferença está na natureza dos crimes com que lida. Sua retroatividade, pode-se acrescentar, viola apenas formalmente, não substancialmente, o princípio de nullum crimen, nulla poena sine lege, uma vez que este se aplica significativamente apenas a atos conhecidos pelo legislador; se um crime antes desconhecido, como o genocídio, repentinamente aparece, a própria justiça exige julgamento segundo uma nova lei".

O segundo texto é o trecho extraído do voto do Min. Eros Grau: na ADPF 153 (conforme anexo).

Os textos selecionados para análise trazem duas noções opostas sobre a questão da punição de crimes praticados sob a égide de um sistema jurídico anterior e por ele legitimados.

Eros Grau, em seu voto, discorre sobre a lei de anistia, inserida no novo sistema normativo por meio de Emenda Constitucional, para deixar de punir autores de crimes praticados durante a vigência do sistema normativo anterior, enquanto no texto da Hannah Arendt a questão é inversa, pois refere-se a lei criminal que é criada para punir atos anteriores, uma vez que quando tais atos foram praticados não eram tipificados como crime.

Verifica-se, no primeiro texto, uma preocupação marcante quanto à observância do processo legislativo e da estrita legalidade, isto é, considera-se que, tendo sido respeitado o processo para a existência e eficácia da norma, ela é válida e deve ser respeitada, ainda que não seja considerada justa.

Nota-se aqui, ainda, a antiga noção que identificava o Direito estritamente com a lei, isto é, como algo separado dos fatos históricos e dos valores sociais e morais.

As decisões judiciais, sob essa ótica, devem ser um processo automático de subsunção, um processo quase matemático de encontrar na própria lei a solução ao caso concreto; um processo racional lógico, um silogismo, onde a premissa maior é a lei, a premissa menor é o fato e a sentença a conclusão: se o fato é permitido ou não pela lei, que já indica a consequência em caso de prática de atos não permitidos.

Ao juiz cabe, nesse contexto, apenas encontrar a lei aplicável no sistema jurídico vigente e aplicá-la em seus exatos termos, isto é, fazer a vontade da lei, de forma literal e estrita.

É o que se verifica, por exemplo, quando se menciona no voto da decisão que: "O acompanhamento das mudanças do tempo e da sociedade, se implicar necessária revisão da lei de anistia, deverá ser feito pela lei, vale dizer, pelo Poder Legislativo, não por nós. Como ocorreu e deve ocorrer nos Estados de direito. Ao Supremo Tribunal Federal --- repito-o --- não incumbe legislar."

Aliás, o encerramento do voto de Eros Grau parece até um pedido de desculpas pela decisão, ao mencionar que repudia os atos cometidos, mas deixa de puni-los, em virtude da lei.

Assim, essa decisão é um belo exemplo da chamada Cultura do Código, que, ainda é muito forte nos nossos tempos, apesar de estar progressivamente perdendo a força, como voltaremos a comentar adiante.

De outro lado, o texto da Hannah Arendt defende uma posição ousada, isto é, entende justificável a criação de lei para a punição de atos que, quando praticados, não eram vedados por lei, o que causa uma forte sensação de insegurança jurídica.

Ao contrário do que se defendia na vigência da Cultura do Código, essa posição reconhece que o sistema jurídico não é completo, isto é, o legislador não consegue prever todos os fatos que acontecem ou acontecerão na sociedade.

Dessa forma, defende-se que podem aparecer situações que, apesar de não terem sido previstas em lei, devem ser punidas pela sua natureza e gravidade, por ser clamor da justiça.

É o que se verifica, por exemplo, no seguinte trecho "se um crime antes desconhecido, como o genocídio, repentinamente aparece, a própria justiça exige julgamento segundo uma nova lei" (grifo nosso).

Essa noção defendida pela Hannah Arendt, todavia, tem o ponto positivo de reconhecer a influência que as mudanças sociais e valores exercem sobre o Direito. O Direito, dessa forma, deixa de ser identificado apenas com a lei, para alinhar-se à noção de justiça.

Abandona-se a interpretação (ou aplicação) exclusivamente literal da lei, para buscar a sua finalidade e a sua aceitação social, passando o padrão estrito da legalidade a conviver com o padrão da legitimidade da norma.

Conclui-se, então, que a norma deve ser observada e aplicada apenas se estiver alinhada ao sentimento social de justiça, no momento da decisão, isto é, da análise do caso concreto.

Sem adentrar na questão específica da retroatividade da norma, especialmente em matéria penal, por ser questão que merece estudo e comentários mais aprofundados, é evidente que não se pode abandonar por completo a lei vigente na solução do caso concreto, nem a consistência, coerência e lógica do sistema jurídico vigente, na hora de julgar cada uma das novas situações não previstas pelo legislador, sob pena de se instaurar a insegurança jurídica.

Feitas essas considerações preliminares, retornamos à questão da noção de sistema jurídico atual, a qual estamos vivenciando.

Atualmente, a sensação de insegurança jurídica se instaura, muitas vezes, porque, fazendo uma analogia com o movimento de um pêndulo, a primeira reação que se tem quanto a um sistema jurídico considerado falho ou insatisfatório é o seu abandono completo, um afastamento que leva o pêndulo até a sua extremidade oposta, antes de encontrar novamente o equilíbrio, retornando ao centro.

A virtude, como já dizia Aristóteles, está no meio termo e é este que deve ser constantemente buscado e encontrado, também na aplicação do Direito, em sua noção pós-moderna.

Nós, civilistas, não temos dúvidas de que a Cultura do Código, na tentativa de racionalizar por completo a função do juiz, deixou-nos de lembrança diversas decisões injustas, mas totalmente conforme a lei.

Não é à toa, por exemplo, que o nosso Código Civil vigente positivou a figura do abuso do direito como ato ilícito: muitos atos, apesar de permitidos por lei, foram praticados com a finalidade exclusivamente emulativa e a pessoa prejudicada não tinha nenhum remédio contra quem exercia seu direito, pois, ainda que a pessoa exercesse seu direito de forma ou com finalidade imoral ou antiética, o exercício de seu direito continuava protegido pela lei.

Os atos dessa natureza, se por um lado poderiam ser considerados como dentro do Direito, se e quando identificado apenas com a lei, devem ser entendidos como fora do Direito, quando este é associado à noção de efetividade ou aos padrões de justiça e aceitação social.

Vale lembrar, como sempre se menciona nas discussões sobre o novo sistema jurídico instaurado pelo Código Civil de 2002, que foi abandonada a ideia de completude do sistema e do Código, isto é, a lei não tem mais a pretensão de ser fechada ou de trazer todas as soluções aos casos futuros, mas de dar ao juiz padrões e referenciais que devem ser observados nas decisões.

A introdução de princípios e conceitos indeterminados de forma expressa e intencional no Código Civil Brasileiro se deu justamente para que o juiz tenha maior flexibilidade para decidir diante do caso concreto e fugir de decisões injustas. É o que se chama de sistema semiaberto.

Se, por um lado, não se justifica haver uma decisão notoriamente injusta, apenas para estar conforme a letra fria da lei, por outro lado, não se pode recusar a aplicação da letra da lei vigente para aplicar princípios ao caso concreto, dando-lhe solução oposta ao que o legislador previu de forma expressa e clara, sob pena de instaurar-se a insegurança jurídica e a arbitrariedade.

O grande desafio de nossos tempos e dos juízes que operam as cláusulas gerais, princípios e conceitos indeterminados (e esse sistema jurídico denominado de orgânico) é não deixar que o pêndulo fique muito longe do centro ou se desloque para a extremidade dos valores e convicções pessoais.

A maior liberdade e autonomia do juiz de hoje, com a nova noção de Direito, que se identifica não apenas com as normas, mas com os valores e finalidades que permeiam tais normas, não significa a possibilidade de decidir segundo suas convicções pessoais ou crenças.

Vivemos numa sociedade democrática, num Estado de Direito, de modo que as decisões ainda devem pautar-se, antes de tudo, na lei, ainda que sua interpretação hoje possa ser mais ampla e flexível; e também em valores e crenças socialmente aceitas no momento da decisão, de modo que o Direito possa evoluir junto com as expectativas e mudanças sociais.

O sistema jurídico atual (orgânico) é mutável e evolui com o tempo, ainda que a redação das normas permaneça inalterada.

Trata-se do reflexo de um movimento contínuo de vida social, que faz surgir novas situações e, com elas, novas interpretações e padrões que afetam a forma de aplicação das normas e o conteúdo das decisões.

O sistema jurídico de hoje deve ser entendido como um conjunto de normas que não se impõe de forma automática e impensada aos seus destinatários, mas que é pensado, repensado e reformulado no caso concreto.

Como o Professor Tércio fez questão de enfatizar em aula, a quebra do eixo da Cultura do Código, que focava na lei/caso, passa ao eixo judiciário/caso.

Diante do caso concreto, o Direito (como conjunto de normas, princípios, valores e suas demais fontes) é interpretado e aplicado por legitimação, isto é, estabelece-se uma comunicação entre os destinatários da norma e o conteúdo da norma esperado por eles para aquela situação concreta, com base em valores sociais - em especial e tendo grande peso os princípios encontrados de forma expressa ou implícita nas próprias normas do sistema vigente.

Dessa forma, não existe uma única solução possível, mas as diversas possíveis soluções contidas no sistema de forma expressa (legalidade) ou implícita (valores/princípios), são analisadas caso a caso e vão ganhando forma e testando sua aceitação na sociedade (legitimidade), através da fundamentação e argumentação, que ganham maior importância.

A jurisprudência passa a ser fonte importante do Direito e referencial para outras soluções, na medida em que dá nova efetividade a normas e princípios que já estavam no sistema jurídico e que foram apenas desenhados ou organizados de uma maneira que o legislador não tinha previsto, por qualquer motivo.

Vale lembrar que, mesmo nesse novo modelo, não se pode abandonar inteiramente nenhum dos padrões de funcionamento do sistema: legalidade, efetividade, legitimidade, senão, o sistema deixa de funcionar.

Em outras palavras, nesse novo rumo do Direito, as normas e decisões devem alinhar-se às expectativas sociais de justiça, sob pena de se frustrar e arrebentar o sistema jurídico vigente. É o que pode acontecer se o pêndulo se direcionar rumo à insegurança e/ou insatisfação social.

Esse é o motivo, aliás, ainda fortemente encontrado para a existência de uma Constituição como norma origem no sistema jurídico atual, apesar do desfazimento da estrutura de pirâmide: a instauração de uma nova ordem jurídica (para superar a que era considerada injusta), delineando suas regras e valores fundamentais, bem como ordenando as normas do sistema conforme seu grau de importância, sem que isso signifique que o sistema está fechado a influências de outras fontes, ou a outros fatores e valores, ainda que vindos de "fora".

A ideia de "fora do sistema jurídico" hoje deve ser entendida apenas como uma questão territorial ou temporal, pois toda valoração e análise é bem vinda na decisão do caso concreto, ainda que não tenha natureza estritamente jurídica (podendo ser financeira, política, ou de outra natureza), e nada impede que o que estava fora do sistema entre, saia, ou retorne ao sistema, se as mudanças sociais, ou os valores ou os critérios observados na decisão assim o exigirem, no caso concreto.


ANEXO – DECISÃO

ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL
153 DISTRITO FEDERAL
RELATOR : MIN. EROS GRAU

50. Permito-me repetir o quanto afirmei linhas acima. O acompanhamento das mudanças do tempo e da sociedade, se implicar necessária revisão da lei de anistia, deverá ser feito pela lei, vale dizer, pelo Poder Legislativo, não por nós. Como ocorreu e deve ocorrer nos Estados de direito. Ao Supremo Tribunal Federal --- repito-o --- não incumbe legislar.
A Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985

51. Chego quase ao final deste voto. Antes, contudo, cumpre considerarmos preceito veiculado pelo artigo 4º, § 1º da EC 26/85:
"Art. 4º É concedida anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.
§ 1º É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais".
Repito: "É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos. ..". O período alcançado por esta anistia, da EC 26/85, é definido pelo § 2º desse mesmo artigo 4º: atos praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Perdoe-me, Senhor Presidente; perdoem-me, Senhores Ministros, mas leio a lei e a Emenda Constitucional:
[i] Lei n. 6.683/79, art. 1º: "É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes.. .";
[ii] Emenda Constitucional n. 26/85, art. 4º, § 1º: "É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos..." --- e completo: no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

52. Retorno ao texto de Nilo Batista20, em trecho em que diz da impropriedade de entrever-se autoanistia na lei:
"Sempre se soube da grande negociação política; hoje se sabe até que houve resistência à lei do ex presidente General Geisel. Mas se o Congresso Nacional de 1979 pode ser olhado com certas reservas, o de 1985 --- já após eleições diretas para os governos estaduais, já com o país governado por um presidente civil, entre outros indicadores importantes --- por certo não precisava legislar anistia em causa própria; e na mesma emenda na qual era convocada a Assembléia Nacional Constituinte que resultaria na Constituição de 1988, a anistia ascendia à hierarquia constitucional, deixando no degrau de baixo a restrição aos chamados 'crimes de sangue', que integrara a lei ordinária, e assim tornando-se penalmente irrestrita...".
Isso fulmina o argumento, do Arguente, de que "o mencionado diploma legal , para produzir o efeito de anistia de agentes públicos que cometeram crimes contra o povo, deveria ser legitimado, após a entrada em vigor da atual Constituição, pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres, ou então diretamente pelo povo soberano, mediante referendo
(Constituição Federal, art. 14) . O que não ocorreu"; e, em seguida, de que "num regime autenticamente republicano e não autocrático os governantes não têm poder para anistiar
criminalmente, quer eles próprios, quer os funcionários que, ao delinqüirem, executaram suas ordens".

53. O que importa ainda é seguirmos a exposição de Tércio Sampaio Ferraz Júnior21 a respeito da EC 26/85, cujo artigo 1º conferiu aos membros da Câmara dos Deputados e ao Senado o poder de se reunirem unicameralmente em Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional. Daí que ela é dotada de caráter constitutivo. Instala um novo sistema normativo.
Diz o Professor Tércio22 que, "ao promulgar emenda alterando o relato da norma que autoriza os procedimentos para emendar, o receptor (poder constituído) se põe como emissor (poder constituinte) . Isto é, já não é a norma que autoriza os procedimentos de emenda que está sendo acionada, mas uma outra, com o mesmo relato, mas com outro emissor e outro receptor. É uma norma nova, uma norma-origem". Essa nova norma tem caráter constitutivo, constitui ela própria o comportamento que ela mesma prevê. E conclui 23: ".. . quando o Congresso Nacional promulga uma emenda (no 26) conforme os artigos 47 e 48 da Constituição 67/69, emenda que altera os próprios artigos, não é a norma dos artigos 47 e 48 que está sendo uti lizada, mas uma outra, pois o poder constituído já assumiu o papel de constituinte".
54. Eis o que se deu: a anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Não que a anistia que aproveita a todos já não seja mais a da lei de 1979, porém a do artigo 4º, § 1º da EC 26/85.
Mas estão todos como que [re]anistiados pela emenda, que abrange inclusive os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
Por isso não tem sentido questionar se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988. Pois a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A norma prevalece, mas o texto --- o mesmo texto -- - foi substituído por outro. O texto da lei ordinária de 1979 resultou substituído pelo texto da emenda constitucional.
A emenda constitucional produzida pelo Poder Constituinte originário constitucionaliza-a, a anistia. E de modo tal que ---estivesse o § 1º desse artigo 4º sendo questionado nesta ADPF, o que não ocorre, já que a inicial o ignora --- somente se a nova Constituição a tivesse afastado expressamente poderíamos tê-la como incompatível com o que a Assembléia Nacional Constituinte convocada por essa emenda constitucional produziu, a Constituição de 1988.

55. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura a nova ordem constitucional. Consubstancia a ruptura da ordem constitucional que decairá plenamente no advento da
Constituição de 5 de outubro de 1988. Consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade.
Daí que a reafirmação da anistia da lei de 1979 já não pertence à ordem decaída. Está integrada na nova ordem.
Compõe-se na origem da nova norma fundamental.
De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que, como vimos, foi mera lei -medida, dotada de efeitos concretos, exauridos --- repito, parenteticamente, o que observei linhas acima: a lei -medida consubstancia um comando concreto revestindo a forma de norma geral, mas traz em si mesma o resultado específico pretendido, ao qual se dirige; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material; é lei não-norma. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional
quando ambos coexistam.
56. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, teremos que sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma origem.
No bojo dessa totalidade --- total idade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Por isso não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988.

57. Dir-se-á, destarte, que terá sido rebarbativo este meu voto. Se o texto da lei ordinária fora retirado do ordenamento pela emenda constitucional ou existe a par dela, tudo quanto
foi dito a respeito da lei ordinária terá sido despiciendo. Não obstante, não é assim. Em primeiro lugar por que, como diz o poeta português José Carlos Ary dos Santos24, "não há coisa mais pura do que dizer a verdade"; depois por que tudo quanto afirmei a propósito da lei ordinária se amolda ao preceito da Emenda Constitucional n. 26/85, a estabilidade social
impondo seja repetido.

58. Recebi estes autos com parecer da Procuradoria Geral da República em 29 de janeiro deste ano de 2010. Em dois meses, com afinco, mas rapidamente, preparei este meu voto. Isso na medida em que --- e por certo não me excedo ao observá-lo --- a estabilidade social reclama pronto deslinde da questão de que aqui estamos, agora, a nos ocupar. Pronto deslinde, de uma vez por todas, sem demora.







Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.