REPENSAR O ENSINO MUSICAL: PROPOSTA PARA EMESP 2009

May 28, 2017 | Autor: Silvio Ferraz | Categoria: Musical Composition, Music Education
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REPENSAR O ENSINO MUSICAL: PROPOSTA PARA EMESP 2009 silvio ferraz, maio 2009

I. Um projeto de escola de música deve antes de mais nada contemplar uma imagem de mundo. O mundo sonoro-musical atual é uma grande rede de cruzamentos no qual a música do séc. XVI convive com a do séc.XX, com a música iraniana, com a música indígena brasileira, com as musicas urbanas. Em um campo amplo como este, um profissional do ensino de música não pode mais ser aquele que prejulga a música de outros povos e que elege uma única música como sendo A música. Não há mais A música, há apenas música. E neste novo e amplo domínio as disciplinas que antes compartimentavam o ensino musical precisam estar integradas em quase um único e grande laboratório prático de escuta e invenção. A partitura não é mais o único suporte da “boa” música, também não á mais o espaço de uma verdade absoluta (aliás, ela nunca o foi) sobre uma determinada música. Do mesmo modo, as técnicas do contraponto não são mais uma única e absoluta, nem as do pensamento rítmico e métrico (aliás, nunca foi assim entre os compositores). É preciso que se repense urgentemente as disciplinas da música, que elas se tornem ágeis para um mundo que compreende outras velocidades, e que elas se tornem um lugar de diálogos entre as mais diversas formas de invenção musical. Não que as velhas disciplinas do conservatório estejam totalmente equivocadas. Não se trata disto. A velhas disciplinas precisam ser redimensionadas e novas disciplinas tem de adquirir a força daquelas e conduzir a resultados tão eficientes quanto. Claro que novas disciplinas exigem novos professores. O professor de música há muito vem tendo de deixar de ser aquele que dita regras de contraponto e harmonia, aquele que sentado ao piano toca ditados melódicos, aquele que sabatina solfas todos os inícios de aulas. O professor de música tem de ser aquele que respira música, que experimenta música e que tenha em todas as práticas musicais o suporte para sua invenção de estratégias de ensino. É ele o responsável por trabalhar um novo músico, um músico que deverá enfrentar um mercado multifacetado, como aquele no qual o jovem Brahms teve de tocar músicas de origens folclóricas para sobreviver, prática que acabou deixando fortes marcas em sua obra composicional, ou aquele em que um jovem violinista terá de ser DJ nos finais de semana. Trabalhar um novo músico é não mais determinar um campo restrito mas desenhar a cada momento redes de conexões abertas, de Machaut a Cage, de Ligeti a Senleches e Solage, de Berio à música da África Central, de Mozart à música dos Yaualapitis. De certo modo, um novo professor que conheça e toque um instrumento, que não tenha medo de compor, que mergulhe na etnomusicologia e na etnologia, que se deixe contagiar pelos mais recentes estudos em neurociências e ciências cognitivas, que se lance em experimentações com auxílio de computador, que compreenda a estrutura acústica do som etc. 1

Neste sentido as disciplinas todas que apóiam o aprendizado de um instrumento têm de se intercambiar, trocar práticas. Deixam de ser teorias e passam a ser práticas: a prática da leitura da partitura, a prática da escrita da partitura, a prática da improvisação com conjuntos aparentemente abstratos. Fica assim desenhado um novo quadro, a partir do antigo: da simples decifração de uma partitura um aluno pode chegar a compreender grandes formas, a observar modos, escalas, harmonias. Da simples partitura poderá conhecer a história da música, de como cada compositor inventou suas estratégias de criação. Também do simples fato de cantar em conjunto poderá compor todo um repertório que o localizará face a uma música de um povo e outra de outro povo, uma de uma época e outra de outra época. Repertório/apreciação/decifração, Rítmica, Coral, Escrituras por vozes, estas talvez sejam as disciplinas das quais podemos partir tendo sempre ao lado a prática instrumental, os estudos individuais e a prática coletiva, a música de câmara. Partir delas para em um momento mais avançado adentrar os tratados, adentrar o ensino superior universitário. Por enquanto falemos apenas das disciplinas básicas: um primeiro chão. Repertório/apreciação/decifração A primeira questão no que tange a esta disciplina é seu nome. O nome aqui corresponde de certo modo ao conteúdo programático e forma de abordagem. O primeiro termo que talvez deva ser tratado é o da decifração. O que seria a decifração? O curso de decifração, déchiffrage, originalmente veio ao complementar o curso de leitura que era realizado apenas pelo professor de instrumento e passou a contar com o suporte de uma disciplina específica. Na visão que adotamos, ampliamos esta disciplina como preparação para os cursos de escritura e análise dando a estas disciplinas o caráter de prática musical que implicam, não mais vistas como disciplinas teóricas. Ela visa dar ao aluno suporte e treinamento necessário para decifração de partitura, progredindo passo a passo, desde o aprendizado dos elementos fundamentais de uma partitura (seja de uma áudio-partitura ou de uma partitura tradicional) até aqueles elementos mais complexos de distinção de frase, elementos estilísticos, forma, noções de harmonia, até o curso de escritura a 1, 2, 3 e 4 vozes. A idéia de distinguir esta disciplina da tradicional teoria e solfejo vem do fato de hoje termos um convívio intenso em modelos de práticas musicais: Europa, Ásia, Oriente Extremo, Américas e África. É também referência para a formação musical uma grande diversidade de práticas no próprio ocidente, sendo que hoje cada momento da história da música é vivido de um só lance e a noção de sincronicidade é bastante presente. O jogo de decifrar corresponde a transformar um material sonoro de escuta em notação ao papel, ou outro suporte, que posteriormente será re-transformado em material sonoro. Decifrar é passar de uma linguagem a outra, ter um código – que pode ser tanto um

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código usual como um código elaborado pelos alunos em aula (dependendo da idade). A escuta de uma Fuga, por exemplo, tem foco nos como objetos musicais: tema, contrasujeito, imitação, pedal. A escuta de um amostra de música africana pode ter como objetos musicais o ritmo, os instrumentos, pode ter também a melodia, a imitação (como nos Pigmeus da África Central) e ter por objeto sonoro as regiões frequenciais, os timbre diversos (a organologia da música africana). Então decifrar é também verificar as ideias contidas em uma amostra musical. Deste modo a disciplina também incorpora a idéia de apreciação, ou seja, a escuta de música (escuta de objetos musicais e objetos sonoros). A disciplina poderia bem ser chamada de repertório/escuta/decifração (a escuta no sentido schaefferiano do termo, buscando afastar o risco de professores mais tradicionais confundirem escuta com o velho solfejo e ditados musicais). A escuta é aquele ponto de conexão entre um pensamento musical e um repertório, entre o som e as ideias contidas nas construções musicais. Na escuta não interfere a teoria ou a história no seu sentido teleológico. Ouvir músicas dentro de uma perspectiva sincrônica. Por exemplo, uma aula que tenha por tema a monodia poderá ser trabalhada desde melodias da Grécia antiga ou construções melódicas assírias, passando pela melodia no barroco-clássico e chegando à melodia em obras de compositores do século XX e XXI como Aperghis, Berio, Ligeti. Trabalhando com os princípios do contraponto modal, harmonia tonal, contraponto tonal e atonal, da polifonia renascentista e da micro-polifonia, da noção de acorde e de síntese sonora (os agregados sonoros de Varèse), o aluno não mais estaria restrito a uma idéia eurocêntrica e dezenovista de música para poder entrever todo o universo sonoro e musical que o mundo nos permite atualmente. Fica assim que a dupla repertório/apreciação (escuta) está aqui designando um curso em que o aluno tenha contato com os mais variados repertórios e consiga construir um panorama do repertório musical do ocidente e os diálogos que sua música realizou com a música de outros povos. O termo apreciação estaria então ligado á noção de escuta, de construir um modo de escuta musical a partir de repertórios variados, de modo a valorizar a produção musical de culturas diversas e evidenciar a decifração da música enquanto escutada. O quadro de objetivos da disciplina se fecha então com a decifração da partitura: o que é uma partitura? Uma partitura tem duas funções. Historicamente a partitura nasce como um modo de registro passando a ser um espaço de criação a partir do séc. XI. Ainda neste viés histórico, uma partitura que simplesmente registrava estruturas melódicas, passou com o tempo a designar posições de dedos sobre um instrumento, seqüências de dedilhados, tablaturas etc. Até que no século XX começou a ser espaço em que os compositores registram sonoridades. Com isto, decifrar uma partitura é justamente aprender aquela forma de pensamento que só se dá neste pequeno espaço de papel. É também o lugar em que os alunos podem trabalhar, desde pequenos, o detalhamento dos objetos musicais: a passagem do objeto sonoro ao objeto musical. Um conjunto de garrafas pode permitir que um professor trabalhe a afinação de garrafas em intervalos conhecidos, uníssono (sem batimentos), segundas (maior presença de batimentos), as terças e quintas (com seus batimentos regulares e proporcionai): passa-se do objeto sonoro batimento ao objeto musical nota-intervalo. Do mesmo modo, pode-se passar do 3

objeto sonoro batimento ao objeto musical pulsação. O que se tem com isto é uma curva que vai do objeto sonoro ao objetos musical, numa espécie de afinação (aumento de foco) continua. A disciplina de escritura a 1, 2, 3 e 4 vozes Do mesmo modo que na disciplina de repertório/apreciação/decifração o objetivo é a visão holística da música, as disciplinas de escritura também permitem um transito livre entre modos distintos de escrita, podendo um tema ser abordado em diversas épocas da história a música ocidental. Digamos que esta disciplina corresponde a um foco mais delimitado da repertório/apreciação/decifração. Por que não chamá-la de contraponto simplesmente ou elementos de contraponto? A resposta está novamente em evitar os caminhos viciados que focam o contraponto apenas no séc. XVI e, sobretudo nas descrições de Fux sobre a música do último renascimento. Do francês écriture traduz-se em português por escrita, no entanto o termo é elevado a conceito e vem da literatura e da lingüística; aparece em Paul Valery, Barthes e migra para a música com Pierre Boulez. A escritura corresponde aos modos de escrita musical adotados no ocidente desde o momento em que a partitura deixa de ser simples espaço de registro e se torna espaço de criação musical. Deste modo um aluno pode ter contato com a escritura a vozes tendo por base não os tratados, mas o repertório musical e as estratégias de escritura de cada compositor. escrituras são os modos como a música foi escrita ao longo da história do ocidente, esta música cujo espaço de pensamento implica na partitura. Considerada a escritura, um professor de contraponto ou harmonia fica livre para transitar desde as formas de construção contrapontística a duas vozes em Machaut, e contrapô-la a exercícios de escrita com noções mais amplas de campo harmônico ou modos, tal qual aparece em Bartók ou na micropolifonia de G. Ligeti. Fica também livre para deduzir as fórmulas composicionais de cada período, assim como o fez Fux no séc.XVIII, ou Rameau à mesma época. Rítmica Uma aula de solfejo: um professor sentado ao piano tocando para os alunos anotarem o ditado ou em pé tomando de cada aluno o exercício da semana. O aluno em casa apenas decora o que lhe foi pedido e na aula reproduz o que o professor lhe pede. Claro, existe a leitura a primeira vista, mas basta estudar e decorar o livro de leituras à primeira vista que estaremos no mesmo lugar. A aula de rítmica é uma aula de solfejo, no entanto de solfejo realizado ao instrumento, ou do solfejo realizado pela voz, mas a voz concebida como instrumento. Ler, ler e ler. Primeiro saber cantar para depois saber escrever, primeiro saber tocar e brincar com

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estruturas rítmicas para depois saber anotar e inventar ao papel. No primeiro momento de aprendizado vamos da prática instrumental e vocal à prática da escritura. Nosso exercícios rítmicos geralmente não passam de uma depuração do solfejo melódico. O ritmo é a melodia sem alturas. Mas aí mora toda uma série de brincadeiras que podemos pensar para o ritmo: uma série rítmica pode ser separada em mais de uma linha, ela pode ter um agudo e um grave, e quando pensada sobre um instrumento ela pode imaginar tocar na borda e no centro, tocar no aro e na pele. Para pensar o ritmo temos de distinguir, junto com Stravinsky, o ritmo da métrica. O que é a métrica, é a pulsação. O músico não toca sempre sobre a mesma pulsação, a música muda de pulsações, e uma interpretação rica é aquela em que a métrica é aparentemente constante mas subentende pequenas modulações. Temos aí as modulações métricas, accelerandos e ritardandos. O ritmo é a reunião de grupos de beats sob um mesmo ou mais princípios métricos. Cada unidade, que chamamos de durações, cada beat pode ser, subdividido em subunidades de durações proporcionais. Alguns exercícios: Imaginar seqüências de acentos sobre um pulso fixo (isócrono) ou mesmo sobre um pulso que acelera ou retarda. Agrupar as seqüências de modo simples, como 3,2,2 ou 3,3,3, e propor jogos de sobreposição de ciclos como é dado encontrarmos nas práticas africanas relatadas por Simha Arom. Pode-se também trabalhar com o sistema de pés da Grécia Antiga, alternando longas e breves, e ter-se não apenas seqüências isócronas mas alternando longas-breves em uma concepção que funde o pensamento ternário e o binário (2,3,5 (2+3),7 (2+2+3). Sobre seqüências semelhantes o professor pode ainda propor aos alunos distinguir lugares de tocar, modos de jogo ou mesmo alturas e permutar estes elementos ora seguindo o padrão da estrutura rítmica criada, ora contrapondo-se a ela. É comum nosos exercícios de leitura rítmica e invenção rítmica serem centrados em uma só linha timbrística ou de altura (ta-tatata-tatataa-ta). Abrir este quadro permite aos alunos articulares mecanismos de memória mais complexos bem como, se estiverem trabalhando com instrumentos, estruturas corporais mais complexas (ta-titi-tata-ti-ta-titatata-titi-tata-ti-tu-ti-tu-ti-tutu-ta-titi etc). Deste modo desde cedo o estudante de música se defronta coma experimentações rítmicas pós-stravinskianas (ta-titititititititi-ta-titi-ta-tititi-ta-titititititi-ta-titititi-ta-titi), mas que de fato são extremamente simples de serem concebidas. Coral (com foco em leitura, memorização e afinação) Esta disciplina talvez seja a mais difícil de ser trabalhada pois é sempre tomada como prática de canto coletivo. Neste caso optamos pela disciplina coral por sua dimensão coletiva mas focando-a sobre a leitura de partituras. A criança pode desde cedo defrontar-se com a partitura. A primeira partitura pode ser já aquela que utilizamos, as das alturas, das durações, do eixo x-y, mas ela também pode ser partitura inventada,

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colorida. Uma partitura pode ser inventada e depois lida, inventada por um e depois lida por outros. Assim é que ela nasceu; uns inventavam e outros liam, liam o que imaginavam ser o correto, até que se afinou nesta dimensão que é a nota musical e que localizamos no espaço de freqüências ou mesmo na topografia de um instrumento musical: a nota tal corresponde à tecla tal. As crianças, os jovens estudantes de música, devem desde cedo conhecer este universo estranho que é a partitura. A do piano dispõe as alturas verticalmente, mas no instrumento estas mesmas alturas estão dispostas horizontalmente. Nas flautas a mesma inversão, nos clarinetes e oboé tudo segue um pouco como está no sentido do pentagrama, mas no violoncelo é o inverso da partitura, os graves estão acima e o agudo abaixo. No violino para destros é como o piano, com o grave para o lado esquerdo. Entre os percussionistas a brincadeira da partitura é ainda mais livre da estrutura de agudo-grave. Ler uma partitura vocalmente é uma experiência ao mesmo tempo prática ao mesmo tempo de abstração, pois vincula uma nota a outras, uma frase a outras. O repertório da música vocal ocidental traz diversas possibilidades de se trabalhar a leitura e memorização de intervalos, escalas, estruturas rítmicas. Um grupo pode manter um longo pedal enquanto um aluno improvisa uma escala sobre este pedal, o grupo continua e outros alunos se exercitam...basta o professor mudar a escala na lousa, e os alunos têm de mudar as escalas. As escalas podem ser cantadas linearmente (do-re-mifa-sol etc), terem suas notas permutadas (do-mi-re-sol-fa-do-re etc), ou em zig-zag... Mas como disse acima, existe todo um repertório da música vocal, que vai desde cânones simples, exercícios de falso bordão, pedais e diferencias, até a música vocal coletiva de Bartok, de Schoenberg, de Schnebl. E o coral deixa de ser apenas uma disciplina de leitura para se tornar também uma disciplina de repertório, de criar um ambiente em que os alunos estejam permeados por uma história da música que vai sendo contada não por suas curiosidades muitas vezes musicalmente inexpressivas, mas contada como um jogo de descobertas que o ser humana realizou e vem realizando, um jogo vivo que aconteceu e continua acontecendo: a música tem de ser passada aos alunos como música viva...as escalas não nasceram, elas nascem a cada hora. A história não é uma seqüência de fatos, ela é um modo de ligarmos os fatos, e nossos fatos são as músicas, sua inter-relação com sociedades e modos de vidas. Como fazer com que os alunos mergulhem neste mundo? Uma criança que se exercita com colegas em uma brincadeira com escalas, menores, maiores, alteradas, modos de Messiaen, pentatônicas, eneatônicas, terá o mesmo prazer que um cantor que trabalhe sobre as obras corais do primeiro Ligeti. Um grupo de crianças que brinque com uma só nota, ou duas, e improvise timbristicamente estará dando seus passos para poder adentrar a música de Scelsi.

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II. Do ensino coletivo à prática musical coletiva O ensino de música, centrado no ensino do instrumento musical, tem por objetivo a prática coletiva. O música pratica sua música em conjunto: a música de câmara erudita e a prática de conjunto popular – divisões ainda provisórias que esperam por ser ultrapassadas. Neste sentido o curriculum de música tem no foco à práticas coletivas a ideia de que o estudante deve começar a estudas seu instrumento e coletivo com seus colegas, desde pequeno, desde o início. Lembrando que entre as exigências da prática musical está a afinação do tocar em grupo, a sustentação de um pulso coletivo, as interações rítmicas, os jogos de pergunta e resposta (com todo um sistema de receber e devolver, que diz respeito à modos de interpretação), a importância de obter um timbre coeso, ressonante, entre cada um dos instrumentos de um grupo etc. Sai-se assim do ensino coletivo de instrumento, tendo por apoio as disciplinas de rítmica, coral leitura e repertório/apreciação/decifração, para atingir o bordo extremo em que o estudante novamente está tocando em grupo, focando sua atividade em um grupo (no qual pode ser desde um membro de um coletivo textural até mesmo ser um solista que se destaque ora ou outro deste coletivo), porém agora amparado por uma capacidade individual de escolha de repertório, capacidade de empreender projeto de estudos em áreas correlatas (tecnologia musical, acústica musical, estudos etnológicos e antropológicos, produção e pré-produção musical). O caminho de um ponto ao outro tem o foco um pouco retirado da prática em conjunto, para introduzir as aulas individuais (novamente aqui a ideia do aumento de foco) de instrumento, no qual o aluno é levado a observar problemas técnicos específicos à seus traços singulares. Neste meio de caminho a presença das disciplinas coletivas fica reforçada por uma prática de conjunto e música de câmara ainda incipiente e por disciplinas de apoio – repertório/apreciação/decifração, rítmica, coral leitura, posteriormente solfejo, percepção, harmonia, escritura, áreas nas quais é interessante os professores estimularem as pesquisas em grupo: a formação de grupos para estudo de um tema específico com começo-meio-fim dados: os velhos seminários em grupo. O que este ponto da ideia permite pensar é que o aprendizado de música (talvez qualquer aprendizado semelhante) neste campo das disciplinas de apoio, ele não necessita de um aprendizado linear, mas de um aprendizado que pode ser modular, o aluno não precisa aprender x depois de y apenas, ele pode aprender a criar linhas sincrônicas que ligam fatos de história da música com questões de harmonia, contraponto, leitura, e prática instrumental. A avaliação formativa A idéia de implementar a avaliação formativa como modelo para a Emesp parte do princípio de que no aprendizado musical a noção de reprovação e a avaliação por notas não trazem nenhum dado concreto ao aluno no que tange a saber seu grau de desenvolvimento técnico bem como a reprovação implicaria em reaprender conteúdo de todo um ano não condiz com o ensino de música.

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Neste sentido a idéia de avaliação formativa ela vem de par com a necessidade de se repensar a idéia de reprovação. Em que consiste a avaliação formativa? Como elaborar um modelo de avaliação formativa? Para se pensar esta questão é necessário primeiro evidenciar a necessidade de um plano de ensino de instrumento que tenha por estrutura um repertório de peças e métodos que o aluno deve vencer semestral e anualmente. Definido tal plano de trabalho, com objetivos e justificativas claras, o aluno tem este plano como referência de trabalho, e o professor pode avaliar o aluno de dois modos: A porcentagem de programa que o aluno cumpriu e as suas capacitações e dificuldades técnico-instrumentais. Com isto o aluno é avaliado pelo cumprimento ou não de meta e pela sua capacidade ou não de cumprir tal meta. Este mecanismo permite que um aluno cursando um determinado ciclo ou ano do curriculum tenha aptidões próximas a seus colegas de mesmo ano ou ciclo. Do mesmo modo com que o professor define de antemão um repertório-objetivo a ser realizado anualmente, ele também pode especificar questões técnicas relativas àquele repertório: desde questões técnico-instrumentais (digitação, respiração, postura) até elementos de decifração (reconhecimento de frases, harmonias, aspectos formais relevantes, questões estilísticas).

III Proposta para definição das ementas de cursos Uma ementa de curso é como um projeto, nela o professor determina seus objetivos, a justificativa de tais objetivos e a metodologia com a qual abordará seu material para poder atingir seus objetivos. Também deve trazer os modos como a disciplina se articula com outras dentro do mesmo curso. É nela também que o professor declara quais suas principais referencias para realizar seu percurso junto ao aluno. A proposta de ementa é ainda mais relevante quando a proposta de um professor é inovadora e não se basta nos métodos – sejam eles tradicionais ou “da moda”. Vale ter sempre em mente que distingue-se aquele professor que reitera uma conhecimento já transmitido há muito tempo, de resultado garantido (o que é sempre duvidoso, dado a aleatoriedade de alguns aspectos do aprendizado e a seleção sempre muito focado dos casos que deram certo e legitimam método), daquele professor que está sempre trabalhando como se fosse pela primeira vez, como se o que ele traz para seus alunos tem o cheiro de descoberta recente, e lhe pertence, pois ele conhece sua gênese, ele não parte de uma forma pré-elaborada, mas ele conhece a “mise-en-forme” de seu processo. Neste caso o projeto é a baliza para conferir-se os resultados, para mudar de rumo se necessário. Lembrando sempre que um professor, mais do que sua disciplina, é sempre aquele que tem a comunicar um entusiasmo e não um conteúdo apenas. 8

Qual então os objetivos preliminares de cada uma das disciplinas que elencamos acima? Repertório/apreciação/decifração objetivo: Dar ao aluno subsídios para que compreenda a música, para que penetre o mundo da música pelo seu viés de fatura, de produção. Não mais posicionado como mero receptor e reprodutor, mas como produtor daquilo que ouve. O aluno produz a história, produz sua escuta sendo o objetivo da disciplina dar subsídios para que o aluno atinja este objetivo. justificativa: A justificativa é simples, pois diz respeito à grande importância que a compreensão de um repertório, o conhecimento estéticos de uma determinada música, tem na interpretação desta música. Não sendo a partitura um objeto sozinho, mas estando ela sempre acompanhada de uma série de elementos históricos, composicionais, estéticos, poéticos. metodologia: Apresentação de repertório, ouvir música e identificar procedimentos composicionais. Apresentar o repertório sob diversos aspectos: a partitura, a escuta, a prática de exercícios de criação que utilizem princípios semelhantes. A decifração da partitura, o desenho de partituras com recursos distintos da partitura do compositor, o reconhecimento de elementos tradicionais na partitura, o reconhecimento dos desenhos melódicos, campos harmônicos (os conjuntos e sub-conjuntos de notas, os principais encadeamentos), o timbre instrumental). Todos estes elementos podem ser abordados a partir da exploração da partitura. articulação da disciplina com outras disciplinas: Por tratar de três formas de abordar o material musical (o repertório = a memória; a apreciação = a escuta; a decifração = a leitura), e por tais duas destas formas de abordagem trazerem no seu bojo a ideia de invenção (um repertório é como uma playlist, e quem cria esta playlist é aquele que ouve, que seleciona o repertório; a escuta é a invenção de conexões entre sonoridades), esta disciplina já articula-se facilmente à prática instrumental e à composição. Articula-se também com a história, disciplina que de certo modo traça a continuidade mais detalhada desta disciplina no momento em que o aluno estiver trabalhando também mais detalhadamente disciplinas como a escritura ou o solfejo/percepção. Rítmica objetivo: Permitir ao aluno a prática da leitura, da concepção, escuta e memorização rítmica, conforme diferentes práticas musicais. Ela tem por objetivo não apenas a prática vocal do ritmo mas sobretudo a prática corporal deste ritmo, seja

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através de exercícios com instrumento, seja por exercícios que envolvam atividade corporal, como a dança acompanhada dos jogos silábicos do theka indiano, por exemplo. justificativa: Com vistas a dar ao aluno uma habilidade de articulação, seja na leitura de partituras, seja na memorização de passagens rítmicas, o aspecto corporal e performático da disciplina tem por objetivo favorecer o seu aprimoramento técnico instrumental, tendo em vista seu objetivo principal que é o da prática instrumental. metodologia: Para atingir o objetivo desejado fazem parte do quadro metodológico desde o uso de recursos da música ocidental (a partitura e o pensamento de prolações) até incorporar outras práticas como os ritmos aditivos indianos, o theka e as alternâncias silábicas e timbrísticas, as estruturas reiterativas da música da África Central, os jogos de sobreposição rítmicos, exercícios de modulação métrica (modulação de pulsos). Esta disciplina talvez seja aquela em que o suporte etnomusicológico tenha maior importância, haja visto o desenvolvimento e estruturação do sentido rítmicos em outros povos.

SP.2009

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