Representações cartográficas de nomadismos

June 7, 2017 | Autor: Daniel Melo Ribeiro | Categoria: Artes, Cartografia, Cultura E Identidades, Mapas E Sociedade
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Representações cartográficas de nomadismos Cartographic representations of nomadisms DA NIEL M ELO R IBEIRO 1

Resumo: Este estudo tem como objetivo principal discutir a representação de identidades culturais por meio de mapas que expressam nomadismos. Para isso, serão analisadas três obras de arte que usam mapas para provocar discussões sobre identidades híbridas da cultura contemporânea associadas ao espaço geográfico. Foram destacadas três obras que exploram tal conceito de nomadismo enfatizando três vertentes: (1) a imigração, (2) o flâneur urbano e (3) o nacionalismo. Os exemplos selecionados propõem uma releitura do espaço geográfico ao contar histórias ligadas a identidades. Os diferentes relatos que emergem dessas obras questionam as condições locais que afetam os sujeitos, retratam a dimensão política do deslocamento e expressam a complexidade das relações entre indivíduos e lugares. Palavras-Chave: Espaço. Identidades Culturais. Nomadismo. Cartografia. Mapas.

Abstract: This study discusses the representation of cultural identities using maps. Selected artworks based on maps will be analysed, in order to stimulate discussions about hybrid identities linked to geographical space in contemporary culture. There were chosen three artworks that explore the concept of nomadism, emphasizing three aspects: (1) immigration, (2) the urban flâneur and (3) the nationalism. These examples illustrate the geographical space, telling stories about identities. Many narratives emerge from these maps, questioning the local conditions that affect individuals, showing the political dimension of displacement and expressing the complex relation between people and places. Keywords: Space. Cultural Identities. Nomadism. Cartography. Maps.

INTRODUÇÃO E CONTEXTO

E

STE ESTUDO se insere num recorte sócio-histórico denominado de maneira plu-

ral como globalização, sociedade pós-industrial, pós-modernismo (JAMESON, 1996) ou sociedade em rede (CASTELLS, 1999). Tal cenário pode ser caracterizado, numa visão abrangente, por uma série de indícios que questionam os valores da modernidade e que estão presentes em manifestações científicas, artísticas e culturais, muitas vezes associadas a inovações tecnológicas e a mudanças na própria lógica do capitalismo.

1. Doutorando em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, possui mestrado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP e graduação em Comunicação Social pela UFMG. Interesses de pesquisa: visualização de dados, design de informação e cartografia. [email protected]

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Segundo Harvey (2006), o modernismo - projeto progressista originário do movimento iluminista do século XVIII - defendia uma proposta de pensamento positivista, tecnocêntrica e racionalista. Porém, a crença no projeto modernista se abala profundamente a partir do século XX, especialmente após as guerras mundiais. A sociedade, menos otimista quanto ao progresso prometido, passa a desconfiar de discursos universais e totalizantes, abraçando a heterogeneidade, a fragmentação e a indeterminação. Assim, ao perceber que a racionalidade iluminista levou a uma lógica de dominação e opressão, os indivíduos abandonam o sentido de continuidade e acumulação histórica de valores e crenças. Por outro lado, esse período também viu surgir importantes inovações tecnológicas, especialmente no campo das telecomunicações. Tais inovações permitiram a introdução de novas condições técnicas de codificação de informação e compartilhamento de conhecimento em escalas nunca antes observadas, o que fomentou rearranjos sociais e econômicos. Dois conceitos são de particular interesse deste estudo e irão sofrer ressignificações relevantes nesse contexto: o (a) espaço e as (b) identidades.

A EXPERIÊNCIA ESPACIAL REDEFINIDA Historicamente, os estudos sobre o espaço tiveram íntima relação com o tempo. Essa relação, porém, nem sempre se deu de maneira equilibrada. Alguns autores, como Edward Soja (1993) e David Harvey (2006), sinalizam que o pensamento moderno foi em grande parte influenciado por uma predominância do tempo sobre o espaço. Porém, esse modelo de progresso que havia sido anteriormente idealizado pela modernidade passa a ser questionado, gerando uma tensão na experiência do espaço e do tempo a partir da segunda metade do século XX. Foucault (1984) já ponderava que o tempo não poderia mais ser tomado como fator hegemônico em sua relação com o espaço. Segundo o autor, a época atual seria a época do espaço, da simultaneidade e da justaposição. Estaríamos presenciando um momento onde o mundo se desenvolve como uma rede de pontos e nós interligados. O tempo, condição primordial para o desencadeamento dos fatos e composição da história, não é visto mais de maneira desassociada do espaço. A história tem também uma geografia, tem ambientes, tem locais, tem paisagens, e isso afeta o pensamento e a ação. Em outras palavras, o pensamento não abandona o historicismo em favor da geografia, mas passa a enxergar o mundo em suas dimensões verticais e horizontais. É uma consciência prático-teórica que vê o mundo vital do ser como algo criativamente localizado, não apenas na construção da história, mas também na construção das geografias humanas, na produção social do espaço e na formação e reformação irrequietas das paisagens geográficas: o ser social ativamente posicionado no espaço e no tempo numa contextualização explicitamente histórica e geográfica. (Soja, 1993, p. 18)

Castells (1999) também apresenta argumentos que provocam uma nova visão sobre o espaço contemporâneo. Estaríamos imersos em um “espaço de fluxos”: fluxos de capital, de informação, de tecnologia, de imagens e de sons. O espaço de fluxos, viabilizado pelas tecnologias de comunicação, evidencia o encurtamento de distâncias e

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a aceleração do tempo percebido. Tal processo, que já havia sido iniciado pelos meios de comunicação de massa, foi intensificado pelas redes digitais, promovendo um verdadeiro rompimento de fronteiras e reinterpretação do espaço habitado. A chamada “era da informação” desloca a importância da materialidade da produção industrial para a volatilidade da informação em formato digital, cujo suporte - as redes - não depende de contiguidade. Cria-se um espaço virtual, o ciberespaço, constituído por dispositivos móveis conectados, onde a geografia física não mais importa. As fronteiras da sociedade pré-eletrônica eram reforçadas pela relação presença/ausência. Hoje, no entanto, os novos territórios informacionais inauguram múltiplas camadas de localização, alterando os conceitos de espaço, lugar e mobilidade (LEMOS, 2007). A fluidez do espaço contemporâneo nos leva a refletir sobre os efeitos da mobilidade humana, seja ela física (deslocamentos massivos cotidianos pelos meios de transporte, migrações étnicas ou mesmo o turismo regional e internacional) ou mediada (mídias de massa ou digitais). Os meios de transporte, as redes eletrônicas e as tecnologias de comunicação nos permitem viver experiências culturais, religiosas, científicas e sociais, ao mesmo tempo coletivas e situadas em múltiplas dimensões do espaço. Nesse sentido, os constantes deslocamentos promovem a expansão da percepção espacial, a transgressão de fronteiras e o hibridismo de culturas.

IDENTIDADES CULTURAIS E NOMADISMOS Stuart Hall (2003) aponta que as últimas décadas do século XX abrigaram o surgimento de novas identidades, responsáveis por fragmentar o indivíduo moderno. As identidades são por ele compreendidas como o sentimento de pertencimento a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas ou nacionais. Segundo o autor, vivemos em um momento onde tais identidades não possuem mais um caráter permanente: os indivíduos assumem múltiplas identidades, em diferentes contextos, e essa característica se reflete nos próprios sistemas de representação e significação cultural. Hall argumenta, porém, que essa noção de fragmentação de identidades não surgiu de maneira abrupta. O ideal do homem moderno aos poucos começa a ganhar outros contornos a partir do fortalecimento das grandes estruturas sociais do século XIX. O sujeito, que antes havia rompido com as tradições de sua época para ser guiado pela razão individual, começa a se ver como parte de grandes composições sociais, tais como o estado-nação, sua classe social, sua religião. Essa visão social, que entende o sujeito em duas dimensões interiores e exteriores, será somente abalada a partir da virada do século, quando novas abordagens no campo da sociologia, da psicanálise, da linguística e da filosofia começam a fragmentar as noções de identidades. Hall também dedica uma parte de suas análises à globalização, fenômeno incentivador do deslocamento de identidades culturais e responsável pela compressão das distâncias e escalas temporais. O reequilíbrio na relação espaço-tempo, como vimos anteriormente, acaba por alterar de maneira significativa as noções de identidades, especialmente aquelas que se referem ao território, às fronteiras e ao espaço habitado. Em outras palavras, estamos diante de um contexto onde as identidades se tornam híbridas e em constante transformação:

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Partindo ou não de seu caso pessoal, a identidade é uma busca permanente, está em constante construção, trava relações com o presente e com o passado, tem história e, por isso mesmo, não pode ser fixa, determinada num ponto para sempre, implica movimento. (...) Diante da globalização, aspectos locais e nacionais são cada vez mais merecedores de atenção. E, embora os estados nacionais sejam possivelmente menos importantes hoje do que em épocas anteriores, vínculos com a nação, assim como com a região, isto é, com lugares propriamente ditos, que foram uma vez pensados como particularismos arcaicos que a modernidade capitalista dissolveria ou ultrapassaria, estão renascendo. (Escosteguy, 2010, p. 148-150)

Um fenômeno, em particular, possui estreita relação com a fragmentação de identidades e com o questionamento de fronteiras: o nomadismo. Michel Maffesoli (2001) propõe uma reflexão sobre a metáfora do “nômade” e do “errante” no contexto contemporâneo. A figura emblemática do momento leva a uma identidade em movimento, uma identidade frágil, uma identidade que não é mais, como foi o caso na modernidade, o único fundamento sólido da existência individual e social. A vida errante é uma vida de identidades múltiplas e às vezes contraditórias. (Maffesoli, p. 118)

Para o autor, o “nômade” da pós-modernidade seria caracterizado pelo indivíduo, em sua maioria habitante das grandes cidades, que despreza fronteiras (nacionais, ideológicas, religiosas), motivado a transgredir a moral estabelecida pelo ideal burguês e que percorre o espaço para “experienciar” a pluralidade dos mundos. O nômade, nesse sentido mais amplo, representa tanto os imigrantes, quanto os viajantes, os estrangeiros, os trabalhadores dos subúrbios, o flâneur2.

A REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADES CULTURAIS LIGADAS AO ESPAÇO Os meios de comunicação possuem forte relação com as identidades do indivíduo contemporâneo, conforme ressaltado pela pesquisadora Ana Carolina Escosteguy (2010) em seu trabalho de mapeamento dos estudos culturais. Segundo a autora, a construção das identidades contemporâneas mediadas pelos meios de comunicação é um dos três principais pilares dos estudos culturais. A comunicação, nesse sentido, pode ser definida “como as relações, através de suas múltiplas mediações, entre produção de sentido e identidade dos sujeitos nas mais diversas práticas sócio-culturais.” (p. 63) Hall reforça esse ponto de vista, ao nos lembrar que a nova relação espaço-tempo se constitui como referência básica nos sistemas de representação dessa mesma cultura, seja por meio da escrita, da pintura, da fotografia ou do cinema. Dessa maneira, a identidade também está profundamente envolvida com os processos de representação. As discussões sobre as identidades culturais do sujeito e sua relação com o espaço habitado ganham novos contornos e novas perguntas devem ser lançadas para questionar conceitos como raça, etnias e gêneros. Como nos identificamos ou como constituímos 2. O termo em francês flâneur, explorado por Walter Benjamin, refere-se à figura do “andarilho” urbano que, sem um destino definido ou roteiro traçado, explora os lugares inusitados de Paris, perdendo-se no meio da multidão em uma peregrinação incessante (ROUANET, 1993).

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nossas identidades? Como nos apresentamos diante dos diversos grupos dos quais fazemos parte? Como nos percebemos em relação ao nosso lugar de origem ou ao lugar em que moramos? A fim de circunscrever o debate em um recorte mais preciso, coloca-se a questão deste estudo da seguinte maneira: como podemos representar identidades que possuem um caráter nômade?

MAPAS E NOMADISMOS Mapas são representações visuais tradicionais do pensamento espacial. A linguagem dos mapas evoluiu consideravelmente (BERTIN, 1973) e a cartografia consolidou sua própria gramática visual de representação dos elementos do globo terrestre a partir do fim da Idade Média e do início das grandes navegações. Os mapas podem ser definidos como representações das relações espaciais por meio de uma linguagem que traduz uma complexidade multidimensional em um agrupamento bidimensional. O mapa é o resultado de um processo de abstração no qual a diferença é mascarada a fim de produzir uma imagem-texto homogênea que ambiciona descrever e circunscrever a diversidade sobre uma superfície plana (ZAPPERI, 2014). Entendidos como um distinto modo de representação visual do espaço, os mapas se tornam objetos de estudo da cartografia, definida como o campo de conhecimentos práticos e teóricos responsável por investigar sua linguagem. Porém, a capacidade simbólica dos mapas ultrapassa seu caráter utilitário e sua presença em nossa cultura vai além da mera mediação do espaço (HARMON, 2009). Um mapa nunca será completo ou fiel à realidade. A distorção, a deformação, a simplificação fazem parte de sua natureza. Mas justamente essa característica de “incompletude” poderá permitir a abertura para novas experiências interpretativas. A cartografia, nesse contexto, não pode se limitar à função de desenhar mapas com a intenção de mostrar às pessoas onde se encontram as coisas na superfície terrestre ou em um espaço dado. Tal definição simplifica todo seu potencial estético e expressivo (MONSAINGEON, 2013). Em sintonia com essa abordagem, Harley (1989) busca significados alternativos para os mapas e propõe a desconstrução de sua linguagem, ou seja, uma nova epistemologia cartográfica. Assim, a interpretação dos mapas como modelos científicos de representação isométrica do espaço, responsáveis por traduzir a realidade segundo princípios matemáticos, pode ser questionada. Os mapas não são neutros, eles possuem poder retórico e qualidades narrativas que precisam ser reconhecidas. Para ilustrar essa discussão, foram selecionadas três obras de arte contemporânea que exploram o conceito de nomadismo enfatizando três vertentes: (1) a imigração, (2) o flâneur urbano e (3) o nacionalismo.

Imigração A obra Latino/a America do artista Pedro Lasch (2014), provoca discussões sobre as identidades latino-americanas num cenário de intensa migração de povos latinos para a América do Norte. Em um mapa que representa o continente americano como um todo, sem delimitação de fronteiras entre os países, as palavras LATINO/A e AMERICA foram posicionadas fora de seus locais “tradicionais”. O artista aponta os

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diferentes sentidos que os termos assumem na obra, ao levantar o debate sobre a nova “latinidade” e sobre o que é ser “americano”, principalmente nos países anglofônicos. Lasch também gerou cópias impressas de seu mapa e as entregou a imigrantes latinos que cruzariam ilegalmente a fronteira do México em direção aos Estados Unidos. Em seguida, os mapas foram recolhidos pelo artista, já do outro lado da fronteira, e exibidos numa exposição. O artista nos lembra que os Estados Unidos são o único país do hemisfério ocidental a se proclamar como “a América”. Essa postura ideológica de dominação é uma extensão histórica da cristianização forçada do território americano pelos primeiros colonizadores europeus, ou seja, uma reivindicação do norte sobre o resto do continente. Por sua vez, a presença cada vez mais massiva de pessoas de origem latina nos países anglófonos da América do Norte proporciona uma alteração do espaço onde a cultura, o comércio e, em breve, a própria política se desenvolverão também no idioma espanhol. Movimentos semelhantes também ocorrem na União Européia, onde barreiras migratórias menos rígidas entre os países do bloco incentivam fluxos de pessoas em busca de novas oportunidades de trabalho e de vida. Imigrantes da região mediterrânea e dos países do leste se sentem impelidos, principalmente por pressões de ordem econômica, a buscar alternativas de vida nos países do norte, provocando intensos debates políticos que, muitas vezes, resvalam em questões de racismo e preconceito.

Figura 1. Um dos mapas da série Latino/a America, de Pedro Lasch.

Flâneur urbano Stephen Walter é artista plástico nascido em 1975 que trabalha e vive em Londres, metrópole que o inspira a produzir suas obras. O artista defende que seu trabalho se constitui como uma verdadeira “obsessão em torno do desenho, da semiótica e da fenomenologia do espaço”3. Na obra Hub, Walter utiliza grafite e tinta acrílica para desenhar, sobre o papel, a sua versão pessoal do mapa de Londres. Uma visão panorâmica nos revela os signos que remetem aos pontos principais da cidade: o curso do rio Tâmisa, as divisões Leste e Oeste identificadas por legendas, o parque olímpico à nordeste, ou mesmo a London Eye - roda-gigante às margens do rio que atrai turistas do mundo inteiro. Porém, salta aos olhos a riqueza de detalhes com que o artista retrata, principalmente pelo uso da tipografia, pontos de interesse, ruas, parques, 3. Outras obras do artista estão disponíveis no seguinte endereço: .

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casas e instituições públicas. Os mitos, as lendas, os estereótipos, a geografia e a história da cidade estão ali presentes, porém de uma maneira diferente dos guias turísticos tradicionais, uma vez que o mapa representa a visão pessoal do artista. Um museu “alternativo”, um restaurante “estrelado”, um hotel “aconchegante” ou outras referências turísticas típicas promovidas por “autoridades” locais - jornalistas especializados em gastronomia, viajantes frequentes, curadores - não estarão obrigatoriamente representadas. Assim, o mapa se torna o fio narrativo de exploração da cidade pelo flâneur, que conta uma história de vida subjetiva da relação do artista com sua própria cidade.

Figura 2. Londres, segundo Walter. Hub, 2008. Graphite and Acrylic on Paper, 101 x 153 cm.

Figura 3. Detalhe da obra Hub, de Stephen Walter.

Nacionalismo Em 2002, o artista Qin Ga, nascido na Mongólia, propôs uma experiência estética denominada “A Longa Marcha”. O artista tatuou em suas costas o mapa da China e partiu com o objetivo de refazer o percurso histórico de cerca de 12 mil Km realizado por Mao e seu exército, à época da fundação da República Popular da China. A cada final de jornada, Qin Ga tatuou, por cima do mapa, o nome da cidade por onde passou.

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Como um verdadeiro cartógrafo, explorador de regiões e desbravador de lugares, Qin Ga propõe uma série de reflexões. Para além do registro geográfico, a tatuagem “imprime” uma marca permanente em nossos corpos e essa “materialidade permanente” remete à força e ao poder das fronteiras políticas determinadas pelos estados nacionais. A identidade nacional - o sentimento que nos caracteriza como indivíduos nascidos em um país que compartilham os mesmos signos culturais - está, dessa maneira, “gravada” em nossos corpos. Porém, essa marca nem sempre se manifesta claramente diante do nosso próprio olhar. Está em nós, ela é percebida pelo “outro”, mas às vezes precisamos nos admirar no espelho, de corpo inteiro, para reconhecê-la. Outra interpretação sobre essa obra, sugerida por Monsaingeon (2013, p. 78), remete à figura mitológica do Atlas, que carrega o mundo em suas costas, cujo nome se tornou sinônimo dos livros de cartografia.

Figura 4. O artista Qin Ga, com a tatuagem “Longa Marcha” em suas costas.

CONCLUSÕES Os mapas foram aqui tratados não somente como signos convencionais da cartografia, mas também como expressões artísticas, capazes de representar as identidades híbridas da cultura contemporânea. A arte contemporânea se apresenta, portanto, como um campo privilegiado para uma reflexão crítica sobre espaço, identidade, lugar e pertencimento. Segundo Harmon (2009), os mapas se apresentam aos artistas como poderosas formas para expressão de seus questionamentos, uma vez que: • utilizam-se de metáforas que, de maneira contundente, opõem os conceitos de localização/deslocamento, ordem/caos, fronteiras políticas/fronteiras culturais, conhecimento coletivo/experiência individual; • traduzem algumas respostas às inquietações latentes da globalização social e econômica; • são instrumentos de localização numa cultura volátil. Os artistas encontram-se livres para subverter convenções e padrões tácitos da cartografia tradicional, provocando-nos a reconsiderar verdades culturais. As práticas artísticas são, portanto, laboratórios de novas linguagens para a escrita geográfica (QUIRÓS e IMHOFF, 2014).

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Os exemplos acima “reimaginam” o espaço geográfico ao contar histórias ligadas a identidades locais usando mapas para representar o espaço coletivo. Os diferentes relatos que emergem dessas obras questionam as condições geográficas que afetam os sujeitos e suas ações, retratam a dimensão política do deslocamento e expressam a complexidade das relações entre indivíduos e lugares. Mais do que isso, essas obras reforçam a pulsão da mobilidade, da descoberta de novos lugares e do questionamento da ordem, características marcantes do nômade pós-moderno.

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