REPRESENTAÇÕES DA MÃE E DO PAI NAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO DE HIPONA

May 21, 2017 | Autor: A. Milhazes | Categoria: Feminist Philosophy, Biblical Studies, Feminism, Augustine, Biblical Theology, Augustine of Hippo
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REPRESENTAÇÔES DA MÃE E DO PAI NAS CONFISSÕES DE AGOSTINHO DE HIPONA1 ANA CATARINA MILHAZES

“E a mãe do meu corpo […] fazia tudo para que tu fosses meu pai” Confissões, I, XI, 17.

Agostinho de Hipona tem sido um dos autores clássicos a merecer críticas desapiedadas das vozes feministas. A sua fama de legislador monástico, por causa do De Sancta Virginitate, limita muitas das leituras finas que se possam fazer sobre o feminino na sua obra. Não obstante, mais recentemente, há também vozes feministas indo no sentido inverso, procurando compreender Agostinho no seu tempo e notando o quanto este teólogo não foi apenas neutro mas foi surpreendentemente salutar em muitas leituras do feminino religioso (e do masculino, em relação de comparabilidade). Não foi, como ainda se vai julgando, um seguidor zeloso do cultu feminarum de Tertuliano, exaltando a virgindade como ideal ético universal. Muitos dos investigadores que cabem neste último grupo, o das leituras finas sobre o feminino na obra de Agostinho, têm estudado a figura de Mónica, mãe do teólogo, que aparece em algumas das suas obras. Também eu, como eles, entendo que Mónica foi uma figura determinante na conversão de Agostinho, mas determinante também para se entender como conversão e questões de género se implicam de modo singular, em Agostinho. Mónica tem de facto um papel determinante no encontro com o Pai, absolutamente determinante também na teologia agostiniana, pelas implicações que levanta a sua actuação como uma espécie de coadjuvante de Deus, uma mediadora da religação. É todavia um erro grosseiro pensar que as questões de género, em Agostinho, se resumem numa hierarquia simplista Mãe-Pai, num escalonamento taxonómico onde o Masculino se sobreleva face ao Feminino. A meu ver, se cometermos o erro desta leitura estamos justamente a ler Agostinho utilizando alguns dos preconceitos que arguciosamente Agostinho invalidou. Mas para poder falar da condição feminina em Agostinho, sob a influência da figura de Mónica, parece-me indispensável comentar muito brevemente a condição feminina na perspectiva clássica. Dos pontos de vista social, jurídico e religioso, a mulher foi, no pensamento clássico, inferior ao homem. Um único factor, todavia, parece estar na base dessa inferioridade: a fisiologia do corpo da mulher. O corpo da mulher apresenta-se como o inverso da ordem linear: é curvilíneo, instável, as suas formas, oscilantes, as suas transformações recorrentes e inesperadas. O corpo da mulher, na tradição clássica, é o símbolo do imprevisto e do desconhecido. A menorreia e o parto são os dois grandes motivos de curiosidade e desconfiança do corpo da mulher. Mas, se o parto era um 1

Comunicação apresentada no Congresso Internacional Intersexualidades: Cruzando Corpos, Cruzando Fronteiras (Faculdade de Letras da Universidade do Porto/ Fundação de Serralves), 23-25 de Março de 2017.

fenómeno surpreendente, era pelo menos compreensível do ponto da vista da sua finalidade biológica. Já a menorreia, cuja finalidade biológica não era imediatamente evidente, foi vista como uma deformidade, quando comparada a biologia do corpo feminino com a do masculino. O sangue da menstruação era entendido como um sinal da imperfeição do corpo da mulher. Os médicos do corpus hipocrático descreveram a menstruação como misteriosa, perigosa e contaminadora. Em Da Geração dos Animais, Aristóteles escreve que “a descarga menstrual é sémen que está em condição impura, isto é, ao qual falta um constituinte, e um só, que é o princípio da alma”2. Também o sangramento do parto seria um sinal da imperfeição da mulher, ainda que fosse um mal necessário para a reprodutibilidade da espécie. A ideia da medicina clássica era que o corpo da mulher era um corpo de homem deformado. Para Galeno (séc. II, a.C.), por exemplo, os ovários seriam testículos menores e menos perfeitos.3 As questões da menstruação e do parto estão naturalmente relacionadas com a da virgindade. A perda da virgindade é inevitável para a protecção da espécie, pelo que apenas um número selecto de mulheres pode manter aquele que foi considerado por muito tempo o mais elevado atributo feminino. De facto, apenas as mulheres cujo serviço religioso assim o exigia mantinham a sua virgindade. A perda da virgindade em idade precoce significava também uma perda/ privação ao nível social e jurídico. A legislação ateniense do séc. VI a. C. que proibia a venda de crianças como escravos excepcionalizava as meninas que não fossem virgens, a quem se entendia não dever o Estado protecção. Por outro lado, a honra da família era medida em parte pela virgindade da filha, que como é sabido, só podia ser perdida com o consentimento do pai. Em paralelo, na tradição judaico-cristã, temos em Deuterónimo 22:21, no AT, a determinação de que o castigo para a mulher que perde a virgindade antes do casamento é o apedrejamento até à morte. Temos a ideia da impureza da mulher durante a menorreia, em Levítico 15, o impedimento da entrada da mulher no santuário e da sua participação nas actividades do templo, após o parto, em Levítico 12, e a necessidade de um rito de purificação da mulher, que foi depois adoptado pelo Catolicismo e abolido apenas no período da Reforma. A incompreensão da transformação do corpo da mulher, a inconstância do seu organismo, do ponto de vista físico e certamente também do ponto de vista hormonal e humoral, e a recorrência dessa transformação justificou a exclusão parcial da mulher das actividades religiosas no templo. A exclusão parcial da vida religiosa, política e cívica, confina-a maioritariamente ao espaço da casa familiar, ao trabalho doméstico. É hoje claro que a mulher não se limitava ao trabalho doméstico por incapacidade de exercer outras funções, mas antes que a limitação ao trabalho doméstico a incapacitou, porque a impediu, de exercer outras funções. Mas procuremos entender Agostinho e o modo como, não exigindo uma mulher contrária à da tradição, antecipou os preconceitos da tradição clássica. É verdade que a mulher é um caso agudo, para Agostinho. É ela que desperta a lascívia e é ela a razão da libido imoderada de Agostinho, como o próprio lhe chama. A mulher é a tentação de Agostinho, no sentido sexual certamente, mas também no sentido da vitalidade, porque na mulher os sentidos estão mais vivos, as suas formas despertam o que mais prende Agostinho: a vivência dos sentidos. O desespero do Agostinho adolescente perante a mulher é muito claro: a mulher é a tentação da carne, 2

Aristóteles, Da Geração dos Animais, 726b. Lefkowitz/ Fant, Women’s life in Greece and Rome, vol. I, Baltimore, John Hopkins University Press, 2005, pp. 90-3, 215-6. 3

a sinestesia dos sentidos, a gula, a sedução dos perfumes, os prazeres do ouvido e do olhar combinados: “[…] eu, adolescente tão digno de compaixão, digno de compaixão no começo da adolescência, chegara mesmo a pedir-te a castidade e dissera: ‘Concede-me a castidade e a continência, mas não já. Pois receava que me ouvisses de imediato e de imediato me curasses da doença da concupiscência, que eu preferia que fosse saciada e não extinta’”.4 Devemos acreditar, pelo relato confessional de Agostinho, que este soube desde tenra idade que a sua conversão dependia de uma parcial, senão total, desistência da vivência da sensualidade, dependia da recusa da avidez descomedida. Esta renúncia é de tal modo difícil para Agostinho que a maravilha da sua formulação poderia aparecer nesta outra forma: “por favor, que eu deixe de querer isto, por enfartamento, para que não sinta mais falta, mas não me tires antes do meu tempo, porque o lamentarei para sempre”. É uma proposta sábia, porque Agostinho sabe que a proibição em vez da saciação, tornará eterno o desejo incompleto, distraindo-o das coisas verdadeiramente importantes. É já muito antes da conversão, pelo menos desde a adolescência, que Agostinho conhece os dois entraves que impedem a sua aproximação a Deus: a concupiscência, como lhe chama, e a ambição de superioridade. As Confissões reúnem capítulos sobre as tentações dos sentidos, as mulheres que se sucedem umas às outras, o desejo de amar. E, antes da conversão, era isto que ocupava o pensamento de Agostinho: “[…] desagradava-me o que fazia no mundo […] ainda estava profundamente preso à mulher […]”5. É também nesta altura que Agostinho sabe que a sua ambição de superioridade o tem feito o mais idiota dos homens, aquele que, conhecendo a verdade e todos os argumentos incapazes de a rebater, não se transforma: “Com que vergastadas de pensamento não flagelei a minha alma […]? […] Tinham sido gastos e rebatidos todos os argumentos: restara uma muda inquietação, e ela temia, como uma espécie de morte, ser privada da torrente do hábito, com a qual se ia consumindo até à morte”.6 Porque razão, então, demorava tanto Agostinho (desde a adolescência até aos 33 anos, idade da sua conversão)? Primeiro porque, de facto, como Agostinho disse, nós sabemos a verdade muitos antes de vivermos em/de verdade. Segundo, porque, aquela que lhe mostrava Deus lhe falava de coisas que lhe pareciam mulheris: “Estes conselhos [os de sua mãe] pareciam-me mulheris […]. Mas eram conselhos teus, e eu não sabia, e julgava que tu te calavas e que falava aquela pela qual tu não te calavas para mim” 7 . Deus era, para Agostinho, ‘coisa de mulheres’, leviandades para iletrados, como as mulheres ocupadas da família e dos trabalhos domésticos, alheias ao saber da academia. Está aqui a consequência dos preconceitos da tradição clássica sobre o feminino, que vimos acima. Só a revisão desses preconceitos levará à 4

Confissões VIII, VII, 17. Todos os fragmentos das Confissões transcritos neste artigo utilizam a edição da INCM, 2004. 5 Ibidem, VI, XV, 25 e VIII, I, 2. 6 Ibidem, VIII, VII, 18. 7 Ibidem, II, III, 7.

conversão de Agostinho, só, portanto, a atenção à questão do género e especificamente do “género impeditivo”, o feminino, levará à conversão de Agostinho. Voltemos à primeira razão, a de sabermos a verdade antes de vivermos por ela. Escreveu Agostinho, relatando os sentimentos anteriores à sua conversão: “[…] assim também tinha eu como certo ser melhor entregar-me ao teu amor do que ceder à minha concupiscência; mas aquilo agradava-me e vencia-me, isto sabia-me bem e amarrava-me”. Repare-se como a passagem de ‘aquilo’ para ‘isto’ (hoc), nesta passagem, sugere a permanente presença da tentação. E continua: “[…] e a ti, que mostravas de todos os lados que dizias a verdade, não havia absolutamente nada que eu te pudesse responder, convencido da verdade, a não ser apenas umas palavras arrastadas e sonolentas ‘já vou, vou já, só mais um bocadinho’”.8 Eis aqui Agostinho diante de Deus, antes da conversão: a criança cambaleante que não quer fazer o que sabe que deve. E o que deve a criança? Ouvir o que a mãe lhe diz, ouvir as coisas mulheris. Pois, então, se Agostinho compreende ter de renunciar às tentações de uma mulher (da mulher que lhe desperta a lascívia) por outra (o “Deus mulheril”), compreende também que o impedimento não está nas mulheres mas no modo como Agostinho as vê. É importante que se entenda que este conflito com o feminino é o conflito de Agostinho, não necessariamente o conflito do Homem com a Mulher, de um modo genérico, pelo que de modo nenhum se pode ler aqui uma apologia da mulher familiar, beata, silenciosa e paciente, como é Mónica, como a imagem da única mulher respeitável. Esta foi a resolução de Agostinho, a conversão mental que antecipa a sua conversão religiosa. Este aspecto é verdadeiramente importante, em Agostinho, que foi talvez o primeiro teólogo a tornar muito evidente que o caminho é de cada um, não é universal, de tamanho único. Agostinho referiu-se muitas vezes à Verdade sumamente interior, à dimensão universal da Verdade (dimensão superior), bem como à dimensão pessoal da Verdade (dimensão interior). É significante o relato da conversão numa obra que Agostinho quis chamar Confissões, demarcando manifestamente a dimensão pessoalizada do discurso, incitando cada um a fazer o seu percurso, sem copiar nenhum outro, nem o tendo como exemplo, porque o único caminho, para Agostinho, é Cristo. Sobre Deus e sobre a Bíblia, “cada qual extrai para si a verdade que pode”9. Vejamos, então, que mulher se substitui a outra, no pensamento de Agostinho. A mulher do amor carnal, que prende Agostinho, é substituída pela do amor incondicional. E Deus, essa coisa mulheril, é, para Agostinho, uma espécie de amante feminina. Como escreveu Manuel Barbosa da Costa Freitas, “Agostinho não desdenhou do vocabulário de um Catulo – deliciae meae (minha delícia) – ou de um Horácio – dimidium animae meae (metade da minha alma) –, sem recear as conotações que tal vocabulário trazia à memória do leitor”10. Mónica é a mulher que inspira esta conversão mental e religiosa de Agostinho, a mais emblemática presença real do amor incondicional. Quem sabe ser o amor incondicional, se não o conhece? É desta questão retórica que parte Agostinho para dar a entender que deve a Mónica a sua conversão11, porque ela sabia verdadeiramente o que Agostinho desconhecia. Todas as súplicas de Mónica eram prova do seu conhecimento de Deus: “Quem te invoca sem te conhecer? […] como hão-de invocar aquele em que não crêem?”12. 8

Ibidem, VIII, V, 12. Ibidem, XII, XXVII, 37. 10 Manuel Barbosa da Costa Freitas, “Introdução”, Confissões, Lisboa, INCM, 2004, p. IX. 11 De Beata Vita I, 6. 12 Confissões I, I, 1. 9

Assim se iniciam as Confissões. Assim se inicia a obra e assim se terão iniciado também muitas das analogias que servem a Agostinho para falar de Deus: a maternidade, o parto/ nascimento e renascimento, o alimento e o leite, e as lágrimas são algumas das imagens que permitirão a Agostinho falar sobre Deus. Confiando no que Mónica lhe mostrou e deu, Agostinho invoca Deus como amante incondicional, mãe, alimento e leite, ou regaço maternal. Mónica é responsável pelo nascimento e pelo renascimento de Agostinho: “[…] com muito maior solicitude me dava à luz espiritualmente do que me tinha dado fisicamente”13; “E a mãe do meu corpo, porque mais custosamente dava à luz também a minha salvação sempiterna, de coração puro na tua fé […]. Ela fazia tudo para que tu fosses meu Pai, meu Deus […]”14. Mónica alimenta: dá o leite materno e o alimento espiritual, o seu corpo e a casa de Deus: “[…] no peito de minha mãe já começaras o teu templo e iniciaras a tua santa habitação”15; “[…] este nome do meu Salvador, teu filho, tinha-o piedosamente bebido no meu tenro coração com o leite de minha mãe”; “Tomaram conta de mim as consolações do leite humano […]. Era bom para elas [mãe de Agostinho e suas amas] o meu bem que vinha delas, que não tinha origem nelas, mas que passava por elas: pois todos os bens têm origem em ti” – e o leite “passava por elas” como a Verdade passa por aquele que a prega.16 Mónica ensina as palavras e também o Verbo. Apoia Agostinho no prosseguimento dos estudos de Retórica, acreditando que o estudo da palavra e do discurso o aproximarão de Deus17. As lágrimas e os muitos ais de sua mãe deram a Agostinho a imagem do crente diante de Deus: “[…] que sou eu, quando estou bem, senão uma criança que suga o teu leite […]?”18. Que outra coisa, senão um infante, aquele que não sabe falar (in-, “não”, + fans/fari, “falar”), é o ser humano antes de conhecer o Verbo?: “[…] porque o Verbo se fez carne, para que a tua sabedoria […] amamentasse a nossa infância”19. As imagens de maternidade na descrição de Deus e dos seus feitos não é, é certo, um exclusivo de Agostinho. Deus aparece com traços femininos no AT e, embora no NT as formas maternais de Deus sejam muito mais raras, é lá que as mulheres merecem uma visibilidade absolutamente incomum. Jesus não ordenou as mulheres, é verdade, mas dignificou-as: o episódio da Samaritana admira não porque Jesus fala com uma samaritana mas porque fala com uma mulher (João 4:27); em Marcos 5:25-34, Jesus deixa-se ser tocado por uma mulher impura, com um fluxo de sangue que dura há 12 anos!; em João 8:1-11, perdoa uma mulher adúltera, que a Lei mandava apedrejar; em Marcos 14:3-9, aceita o perfume sobre os seus pés oferecido por uma mulher pecadora; e, finalmente, são as mulheres que saem a chorar por Jesus quando ele caminha para o Calvário com a Cruz (Lucas 23:27-31), e lá, no Calvário, só João, dos homens, tem coragem para permanecer na dor da Paixão (João 19:25-27) – junto à Cruz, no momento da dor suprema, são as mulheres que permanecem. Também na Ressurreição: naquele momento arrepiante em que Jesus chama Maria Madalena pelo seu nome e esta percebe que Jesus ressuscitou; é ela quem corre a avisar os discípulos, ela, mulher entre os homens (João 20:16-18). A meu ver, para quem tenha em conta o que disse acima sobre a condição da mulher na tradição 13

Ibidem, V, IX, 16. Ibidem, I, XI, 17. 15 Ibidem, II, III, 6. 16 Ibidem, I, VI, 7. 17 Ibidem, II, III, 7. 18 Ibidem, IV, I, 1. 19 Ibidem, VII, XVIII, 24. 14

clássica, é difícil não admitir que Jesus e o seu magistério foram verdadeiramente feministas. Quanto a Agostinho, é verdade que a defesa da virgindade eterna de Maria (De Sancta Virginitate, 18), mesmo sabendo que Jesus teve irmãos da mesma mãe, e a apologia da virgindade como o maior atributo da mulher cristã, aproximou Agostinho e a sua teologia dos preconceitos da tradição clássica – pior do que isso, por vezes intensificou-os, na tradição cristã. Todavia, nem sempre as consequências são a cópia das intenções. E, de facto, não me parece que as intenções de Agostinho fossem exactamente ser um legislador do monastério feminino e um apologista cego da virgindade. Como, de resto, pode Agostinho ser tão contemplador e adulador da maternidade e apologista da virgindade? Para Agostinho, evidentemente, nenhuma mulher, à excepção de Maria, pode ser mãe e virgem. A virgindade de Maria era, sem dúvida para Agostinho, literal, mas talvez não pudesse ser para outras mulheres. Como disse, são mais raras, no NT, as passagens que tratam Deus como Mãe. Não obstante, duas das passagens a que Agostinho dá mais atenção são precisamente Mateus 23:27, em que Jesus é assemelhado a uma galinha que protege os seus pintinhos, e João 13:23, quando João se recosta sobre o peito de Jesus. São estas duas das passagens que alimentam a imagem a que Agostinho por vezes recorre de Deus/ Jesus como aquele que alimenta as crianças no seu peito20. Ao lado de Clemente, Orígenes, Ireneu, João Crisóstomo ou Ambrósio, Agostinho não foi o único dos teólogos do cristianismo primitivo a tratar Deus como Mãe, mas, seguramente por isso, não poderá ser culpado dos preconceitos que se perpetuaram sobre a impureza e pecado da mulher.21 Parece-me, pelo contrário, que Agostinho, como Jesus e S. Paulo, soube dar uma atenção incomum às mulheres. Algumas das suas ideias podem levantar dificuldades de leitura, fora do seu tempo, mas é importante perceber que Agostinho, como todos os autores a meu ver, merece ser lido no seu tempo e dentro da sua cabeça. Isto é, só faz sentido ouvir o que Agostinho diz sobre a virgindade se entendermos o que diz sobre a sua mãe, o que entende por maternidade e o que entende como feminino. Parece-me, aliás, significativo que o seu primeiro livro sobre teologia cristã, o De Doctrina Christiana (397-426), tenha sido logo interrompido pela escrita das Confissões (397-398). Talvez Agostinho tenha sentido necessidade de introspecção, de compreensão de si, da sua vida e sobretudo da sua conversão mental (metánoia), que leva à espiritual, antes de poder escrever sobre Deus e o caminho para ele. Diz em Solilóquios I.I.IV: “Deus, Tu criaste o homem à Tua imagem, e conhecem-na aqueles que se conhecem a si mesmos”. O cerne dessa conversão, a meu ver, implica a compreensão da mulher, do feminino e da maternidade. E Mónica é a razão dessa compreensão e conversão. O próprio Agostinho defende a leitura próxima das intenções do autor, até no caso da Bíblia, onde seres humanos normais, com palavras comuns, quiseram de alguma forma dizer Deus. A hermenêutica de Agostinho propõe encontrar “a tua [de Deus] intenção através da intenção do teu servo”22. É mesmo assim que é dito nas Confissões. E não é isso que Agostinho faz através de Mónica? Mónica, para Agostinho, é “um magistério da Escola de Cristo”23. 20

In Iohannis Evangelium Tractatus CXXIV 15:7, 16:2, 18:1, 21:1. Caroline Walker Bynum, Jesus as mother: studies in the spirituality of the High Middle Ages, Berkeley, University of California Press, 1984, p. 126 et passim. 22 Confissões XII, XXIII, 32. 23 John M. Quinn, “Mysticism in the Confessions: four passages reconsidered” in Collectanea Augustiniana, Augustine: mystic and mystagogue, ed. Frederick van Fleteren, Joseph C. Schnaubelt, Joseph Reino, New York: Peter Lang, 1994, p. 270. 21

Por isso também, é o “rosto feminino de Cristo”24, que estará na base de algumas das interpretações, imagens e analogias da teologia de Agostinho. Mónica foi uma colaboradora de Deus, ela mesma, como Agostinho, o entendeu assim. O seu filho coloca estas palavras na sua boca, nas Confissões: “Havia um só motivo pelo qual desejava demorar-me um pouco mais nesta vida: ver-te cristão católico antes de eu morrer”25. Tudo o que é delicado, persistente, simples e fundo é, para Agostinho, feminino. Não há, para o hiponense, hierarquia entre o feminino e o masculino, como não há entre Mulher e Homem, nem se opõem eles. O cristianismo, como percebe Agostinho, destrói o maniqueísmo dualista. Por isso é que em Mónica, mulher, encontramos o feminino e o masculino ajustados: “[…] minha mãe, com vestes femininas, fé varonil”26. O feminino está na Mulher, como em Mónica, no Homem, como em Jesus, ou no transcendente, como no Verbo. Também a palavra sagrada é feminina. É até mais do que isso, é o colo de Deus, mesmo, ou sobretudo, para os “animais, ainda pequeninos”, como chama Agostinho àqueles que fazem uma interpretação literal da Bíblia, porque vêem a sua debilidade interpretativa “amparada por esse humílimo género de linguagem, como que no regaço materno”.27 Com uma outra nota quero terminar, esperando tornar mais clara a reflexão anterior. Lembremos que, no livro VI das Confissões, ouvindo os sermões de Ambrósio, Agostinho diz ter percebido que “cada vez mais se me confirmava que era possível desfazer os nós das astuciosas calúnias que aqueles enganadores urdiam contra os livros divinos”. E é esta a referência que se segue à citação anterior: aquela que parece ser uma das maiores ‘calúnias’ no impedimento do encontro com Deus é a incorrecta compreensão da ideia do homem feito à imagem de Deus.28 A condição carnal novamente como grande impedimento do encontro com Deus. Mas aqui está implicada a ideia que mais justificou a marginalização da mulher, na tradição judaicocristã, a ideia da distinção sexual na criação à imagem de Deus. De facto, mais tarde, Agostinho insistirá na correcção deste erro, que terá sido também cometido pelo hiponense. Nos seus anos de maniqueísmo, também Agostinho tinha interpretado a passagem de Genésis 1:26 como uma referência à antropomorfia de Deus. Mais tarde, em De Genesi ad Litteram, insistirá na ideia de que a semelhança remete para uma propriedade do espírito e não do corpo. Homem e Mulher, como Agostinho explica, têm igual semelhança em relação a Deus. Esclarece igualmente que outro dos argumentos que tende a inferiorizar a mulher, a edificação de Eva a partir da costela de Adão, implica necessidade e não dependência. Eva surge de um fragmento de Adão não por ser dependente dele, mas porque ele precisa dela. Se dependência existir, ela terá de vir da parte de Adão, que “viu que estava só”. A Mulher é, na leitura de Agostinho, uma criação de Deus para o Homem, que é só.29 As “calúnias contra os livros divinos”, de que fala Agostinho, foram justamente muitas vezes fixadas e perpetuadas pelos homens educados, aqueles que, como Agostinho antes, tinham a ambição da superioridade. Mas os iletrados, os que se limitavam ao trabalho doméstico, como Mónica ou os monges do deserto egípcio, que despertam a atenção do hiponense, sabiam o que Agostinho ainda tinha que 24

cf. Anne-Marie Bowery, “Monica: the feminine face of Christ”, Feminist Interpretations of Augustine, ed. Judith Chelius Stark, Pennsylvania, Penn State University Press, 2007. 25 Confissões IX, X, 26. 26 Ibidem, IX, IV, 8. 27 Ibidem, XII, XXVII, 37. 28 Ibidem, VI, III, 4. 29 Paula Oliveira e Silva, “A condição feminina em Agostinho de Hipona, à luz de uma ontologia do princípio”, in AA.VV., A Paixão da Razão – Homenagem a Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2014.

descobrir. A condescendência com que Agostinho fala a Mónica, depois de ouvir o seu sonho premonitório, é o sinal da prepotência do intelectual em relação ao iletrado. Quando Agostinho pensa que o sonho diz a Mónica que ela, ignorante, chegará a Agostinho, conhecedor, Mónica responde, segura: “Não, não me foi dito: ‘onde está ele, aí estarás tu’, mas sim: ‘onde tu estás, aí também ele estará’”. Agostinho percebe o inesperado: é o caminho inverso que tem a fazer – do ‘conhecimento’, esse, cheio de preconceitos, para a ‘ignorância’. “De onde veio também o facto de que, contando ela a sua visão, e tentando eu interpretá-la mais no sentido de que ela não perdesse a esperança de vir a ser o que eu era, ela imediatamente, sem hesitação, me disse: Não, não me foi dito: ‘onde está ele, aí estarás tu’, mas sim: ‘onde tu estás, aí também ele estará’. […] Confesso-te […] fiquei muito impressionado com esta resposta dada por minha mãe acordada, porque não se perturbou com uma interpretação errada, mas verosímil, e tão depressa viu o que devia ser visto – e que de facto eu não vira antes de ela o ter dito […]”.30 A religião dos iletrados31, o Cristianismo, revela-se simples, plana, honesta, ‘fácil’, como Agostinho não esperava que a Verdade pudesse ser.

30

Confissões, III, XI, 20. Sobre o facto de os primeiros cristãos serem maioritariamente iletrados ou semi-letrados, vd. W. A. Meeks, The First Urban Christians, New Haven, Yale University Press, 1983. 31

BIBLIOGRAFIA AGOSTINHO, Confissões, Lisboa, INCM, 2004. AUGUSTINE, The Happy Life; Answer to Skeptics, Divine Providence and the Problem of Evil; Soliloquies. New York, CIMA Publishing, 2008. ARISTOTLE, Generation of Animals. Harvard, Harvard University Press, 1942. BYNUM, Caroline Walker, Jesus as mother: studies in the spirituality of the High Middle Ages, Berkeley, University of California Press, 1984. BOWERY, Anne-Marie, “Monica: the feminine face of Christ”, Feminist Interpretations of Augustine, ed. Judith Chelius Stark, Pennsylvania, Penn State University Press, 2007. LEFKOWITZ/ Fant, Women’s life in Greece and Rome, vol. I, Baltimore, John Hopkins University Press, 2005. MEEKS, W. A., The First Urban Christians, New Haven, Yale University Press, 1983. QUINN, John M., “Mysticism in the Confessions: four passages reconsidered” in Collectanea Augustiniana, Augustine: mystic and mystagogue, ed. Frederick van Fleteren, Joseph C. Schnaubelt, Joseph Reino, New York: Peter Lang, 1994. SILVA, Paula Oliveira e, “A condição feminina em Agostinho de Hipona, à luz de uma ontologia do princípio”, in AA.VV., A Paixão da Razão – Homenagem a Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Lisboa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2014.

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