Representações da Mulher em Hoje de Madrugada de Raduan Nassar

August 31, 2017 | Autor: Eduardo Navarrete | Categoria: History and literature
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Representações da Mulher em Hoje de Madrugada de Raduan Nassar

Eduardo Navarrete (UEM)



Resumo: Raduan Nassar é, indubitavelmente, um dos grandes escritores da
literatura brasileira do último quarto do século XX. Sua obra, embora não
seja de grande extensão, uma vez que escreveu apenas uma novela (Um Copo de
Cólera em 1970), um romance (Lavoura Arcaica em 1974) e uma compilação de
contos (Menina a Caminho na década 60 e 70), foi reconhecida pela Crítica
como uma preciosidade inestimável para a literatura nacional, tendo
recebidos diversos prêmios e conquistando grande prestígio entre o público.
Todo esse destaque deve-se aos recursos lingüísticos e estéticos que usa –
marcados pelo apuro estilístico e pela alta carga lírica –, e ao universo
temático com que trabalha. Tal universo é constituído por conflitos
familiares e amorosos, onde vemos sobressair-se, entre outras coisas, a
problemática referente à condição da mulher. Presente em todos os livros do
autor, a figura feminina é tematizada em sua situação sócio-histórica, de
modo que são trazidas para primeiro plano as diferenças cristalizadas
historicamente entre os sexos, tanto na sociedade dita pós-moderna quanto
na patriarcal. Partindo do conceito de representações desenvolvido por
Roger Chartier, pretendemos abordar especificamente seu conto Hoje de
Madrugada. Escrito em 1970, momento de profundas transformações na
sociedade ocidental, transformações essas que tiveram seus efeitos na
família e nas relações de gêneros, essa narrativa traz uma mulher
vivenciando essas transformações em sua relação com o personagem masculino.
Nosso objetivo será mostrar, relacionando obra literária e contexto
histórico, o modo como Nassar constrói esteticamente essa personagem
feminina.

Palavras-chave: Gênero; Literatura; Raduan Nassar.



















Introdução

Raduan Nassar é daqueles escritores que tiveram grande
reconhecimento em vida. O filho de imigrantes libaneses foi saudado, tanto
pela Crítica quanto pelo público, como uma das grandes revelações de nossas
letras nos últimos tempos. E todo esse merecido destaque se deve certamente
aos recursos lingüísticos e estéticos que usa – extremo apuro estilístico e
alta carga lírica –, e ao universo temático com que trabalha. Tal universo
é constituído por conflitos familiares e amorosos, onde vemos sobressair-
se, entre outras coisas, a problemática referente ao relacionamento entre
os gêneros. Presente em todos os livros do autor, seja entre as personagens
principais ou entre as secundárias, a relação entre homem e mulher é
tematizada de uma perspectiva sócio-histórica, de modo que são trazidas
para primeiro plano as diferenças cristalizadas historicamente entre os
sexos, tanto na sociedade dita pós-moderna quanto na patriarcal. Talvez
seja acertado dizer que, tratando de momentos distintos de nossa História,
a obra de Nassar traça um panorama das vicissitudes das relações familiares
e amorosas no Brasil.

Sabemos que Nassar concebeu seus textos na década de 60 e,
sobretudo, na de 70, momento esse de transformações radicais em todas as
esferas da sociedade Ocidental. Trata-se do início do que muitos chamam de
pós-modernidade – um novo período histórico caracterizado pelo intenso
individualismo, pela valorização das diferenças, pelo declínio das
metanarrativas, etc. (SANTOS, 1986). A família, como núcleo social básico,
sentiu os efeitos dessas transformações mais estruturais, sendo que aquele
modelo de família nuclear burguês, sustentado pela ainda presente ideologia
patriarcal, sofreu fortes abalos, caminhando para uma pluralidade de
formas, como a família monoparental, homossexual, etc.

Como não poderia deixar de ser, a mulher e o homem, nesse contexto,
também tiveram seus papéis remodelados a partir dos novos valores e
práticas da contemporaneidade. A moral hedonista, a exacerbação do
individualismo e a conseqüente fragilidade dos afetos e das relações
(BAUMAN, 2005), levaram ambos, impulsionados pela revolução comportamental
de Maio de 1968, a uma tentativa de ruptura mais radical com os antigos
padrões de feminilidade e masculinidade patriarcais. A mulher que, submissa
ao poder masculino, "estava destinada ao lar, aos muros de sua casa, à
fidelidade absoluta" (PERROT, 1993, p. 76), desde então, busca uma
libertação plena, não apenas econômica, mas também política e sexual,
conforme vemos nas exigências da quarta etapa do movimento feminista no
Brasil, que, "além de discutirem o direito à sexualidade, ao prazer e ao
aborto, levantaram-se contra a ditadura militar e a censura" (ZOLIN, 2007,
p. 54). É uma mulher senhora de seu corpo e de seus desejos, beneficiada
pela pílula anticoncepcional e pela descoberta da masturbação, defendendo
uma nova concepção de maternidade (ela pode escolher quantos, quando e se
quer ter filhos ou não) que vemos nascer. Por sua vez, o homem sente sua
autoridade, que antes era tida como absoluta no âmbito familiar, decair
frente aos avanços femininos, é impelido a abandonar sua pose viril e
adotar uma nova sensibilidade, e a própria paternidade passa por uma
reconceituação na medida em que o pai perde seu status de homem do saber
frente aos filhos (CORSO, 2011).

Raduan Nassar, contemporâneo dessa nova realidade histórica,
vivenciou e testemunhou todas essas mutações, tematizando-as em suas
narrativas ficcionais. Seus enredos revelam uma profunda preocupação com os
dramas familiares e amorosos contemporâneos, abordando a conflituosa
questão do relacionamento entre os sexos. Dois dos seus livros trazem
personagens femininas e masculinas imersas nas novas e problemáticas
configurações das relações de gênero: Um Copo de Cólera, novela que relata
o conflito amoroso e ideológico de um casal de classe média; e Menina a
Caminho, coletânea de contos, em que as personagens femininas medem forças
com seus parceiros amorosos. Neste artigo, limitar-nos-emos a abordar um
dos contos dessa coletânea, a saber, Hoje de Madrugada. Escrito em 1970,
ele enfoca um momento íntimo de um casal contemporâneo, onde a mulher
solicita em vão a satisfação de sua carência sexual e afetiva. É um texto
pouco explorado e, apesar de ter como temática central os problemas dos
homens e mulheres contemporâneos, ainda não foi investigado sob esse ponto
de vista. Ele integra, junto com os outros contos, uma parte menor da obra
de Nassar, que ele mesmo definiu como "safrinha" (CADERNOS, 1996, p. 65), e
cuja linguagem, diferentemente do tom febril e delirante das obras maiores,
é mais comedida e menos apaixonada.

Trata-se de uma narrativa em que Nassar nos coloca diante de
mulheres contemporâneas em intenso conflito com o universo masculino,
podendo ser notadas as relações de poder que permeiam os gêneros. Nosso
intento, no trabalho com esse texto, é fazer um exame dos perfis femininos,
contrastados com os masculinos, construídos pelo prosador, cotejando-os com
os modelos de feminilidade tradicionais, verificando em que medida eles se
aproximam ou distanciam. Em outras palavras, buscamos compreender se as
mulheres de seus textos criaram novas condutas realmente emancipatórias ou
se ainda têm "um pé na casa patriarcal" (LAURETIS, 1994).

Para tanto, lançaremos mão de uma metodologia que mescla as
contribuições da História Cultural e dos estudos de gênero - duas propostas
de estudo que repousam sobre a noção de gênero, a qual postula o caráter
social e cultural das distinções entre os sexos. A vertente historiográfica
chama a atenção para o caráter histórico e mutante dos conteúdos da
feminilidade, bem como da masculinidade, e tem como objetivo identificar,
para cada período e lugar, as representações culturais (lingüísticas,
literárias, imagéticas, etc.) que constroem as diferenças e relações de
poder entre os gêneros fazendo-as parecerem naturais e universais
(CHARTIER, 1995). Os estudos de gêneros, do mesmo modo, têm como objetivo
revelar as ideologias basilares às representações dos homens e das mulheres
presentes nos mais diversos artefatos culturais, entre eles o literário.

Além de fundamentarem-se na noção de gênero, essas duas perspectivas
teóricas têm em comum também o fato de trabalharem com um mesmo conceito
fundamental – o de representações. E, com efeito, será com tal instrumento
teórico que analisaremos o conto de Raduan Nassar. Podemos defini-lo como
os "esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente
pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser
decifrado" (CHARTIER, 1990, p.17). Tomada nessa perspectiva, isto é, como
um esquema intelectual encarregado de atribuir significações, a literatura
deixa de ser um simples espelho da realidade e passa a ser vista como uma
construção lingüística, produzida a partir da posição, dos interesses e
ideologias de cada autor no campo social e literário.







Eva Derrotada

Escrito em 1970, o conto Hoje de Madrugada é uma narrativa curta,
porém densa. Ela aborda uma cena, um momento íntimo na vida de um casal de
classe média urbana. Através do recurso da análise mental em que se analisa
ao mesmo tempo em que se vivencia uma situação dramática (JÚNIOR, 2005, p.
48), o narrador protagonista, depois de raiado o dia, registra um episódio
que lhe ocorreu na madrugada: sua mulher (que, assim como ele, não é
nomeada) entra silenciosamente em seu quarto de trabalho, onde ele está na
escrivaninha acordado, e suplica-lhe pela satisfação de seus desejos
amorosos e sexuais. Descrevendo linearmente a seqüência de pequenos fatos
ocorridos, ele quase nada diz acerca da vida ou da história do casal, e,
muito menos, do motivo da tensão existente entre eles. Sua narrativa,
desprovida de digressões, se concentra na comunicação que houve entre os
dois naquele breve instante, comunicação esta que se deu apenas por
intermédio de umas poucas palavras escritas e, sobretudo, por intermédio
dos gestos; não há a palavra falada, a comunicação oral entre eles. Por
isso, compreender esse conto depende, em grande medida, da decifração da
linguagem gestual que se dá entre as personagens.

Como fica claro, o conflito dramático gira em torno das súplicas
amorosas da parte dela e da recusa categórica e resoluta da parte dele. O
próprio movimento do texto reproduz tal conflito. Estruturado em cinco
grandes parágrafos, o conto apresenta, nos quatro primeiros, um vai-e-vem
entre uma súplica dela e uma rejeição dele: no primeiro, ela entra no
quarto e fica acuada no canto à espera de alguma palavra, mas ele mal ergue
os olhos e permanece em silêncio, "mesmo sabendo que qualquer palavra
desprezível poderia quem sabe tranqüilizá-la" (NASSAR, 1997, p. 54); no
segundo, ela apanha um bloco de anotações e escreve "vim em busca de amor"
(NASSAR, 1997, p. 55), ao que ele responde secamente "não tenho afeto para
dar" (NASSAR, 1997, p. 55); no terceiro, ela tenta acariciar-lhe a nuca e
ele ergue seu braço, "retirando sua mão dali como se retirasse um objeto
corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos" (NASSAR, 1997,
p. 56); no quarto, a investida dela se dá por baixo da mesa, onde ela, com
o pé, afaga suas pernas, enquanto ele se esquiva, "recolhendo meus próprios
pés que cruzei sobre a cadeira" (NASSAR, 1997, p. 57); já no derradeiro
parágrafo, não há esse movimento de súplica e recusa, sendo ele apenas um
desfecho em que ela desiste de suas tentativas e segue embora de "ombros
caídos" (NASSAR, 1997, p. 58).

Entretanto, em uma análise mais detida, o conflito do texto se
mostra maior do que o que se dá entre os dois personagens. Muito mais
amplo, ele opõe a personagem feminina, não só à masculina, mas também ao
próprio tempo e espaço em que ocorre a cena. É como se a mulher, sedenta
por afeto, fosse o único elemento destoante no universo, extremamente frio,
seco e indiferente de Hoje de Madrugada. O tempo do conto,
predominantemente cronológico (a demora nas respostas, a espera da mulher
pelas respostas dele retardam o andamento temporal configurando uma
dimensão psicológica do tempo), marcado pelas etapas do dia e pela sucessão
linear de pequenos acontecimentos, é situado numa madrugada – horário do
sono e da noite, momento em que todos dormem numa semi-morte; não é o tempo
da vida, da luz e do afeto. O espaço onde transcorrem todas as ações é o
quarto de trabalho dele. Trata-se de um ambiente fechado e sério, de uma
atmosfera destituída de Eros, da qual ela busca, inclusive, à certa altura,
refugiar-se, indo até a janela - símbolo de uma fuga da escuridão e da
frieza que foi em vão, pois a janela estava fechada e "ela não tinha o que
ver, nem mesmo através das frinchas" (NASSAR, 1997, p. 56). Até mesmo a
linguagem adotada pelo narrador, em consonância com os outros elementos, é
seca, dura, enxuta, direta, uma vez que é feita de períodos curtos, cheia
de elipses e marcada por uma grande precisão sintática e vocabular. É uma
escrita que estiliza a desafeição ou o desamor. Enfim, tempo, espaço e
estilo constituem o universo dele, que é um universo caracterizado pela
ausência de vida, desejo e amor, dentro do qual a mulher, transbordando
desejo, é apenas uma intrusa, uma estrangeira, um elemento estranho.

Mulher e homem, nesse conto, formam, portanto, um par antinômico, um
opondo-se diametralmente ao outro. E essa oposição, embora se trate de um
casal da pós-modernidade, vivendo todas as supostas reformulações dos
padrões masculinos e femininos, se dá ainda, em linhas gerais, segundo os
moldes estabelecidos pela ideologia patriarcal. A mulher e o homem
nassarianos em Hoje de Madrugada, desse modo, são constituídos a partir de
traços tradicionalmente atribuídos ao sexo masculino e feminino.

Vejamos a personagem feminina. Antes de tudo, temos que assinalar
que o narrador procura definir um antes e um agora da mulher, isto é,
procura sublinhar a diferença entre o comportamento que ela tinha no
passado e o que ela teve naquele momento. São dois os trechos em que ele
adverte o leitor dessas mudanças (aliás, são esses os únicos trechos em que
diz algo a respeito da vida pregressa deles). No primeiro, logo que ela
adentra no quarto, ele nota "a tensão escondida na moleza daqueles seus
braços, energéticos em outros tempos" (NASSAR, 1997, p. 54). Percebe-se,
aqui, que a energia que o braço tivera é uma metáfora para a força, não
física, mas simbólica da personagem em outros tempos em contraste com a
fraqueza representada pela moleza. No segundo trecho, na "cena" seguinte,
quando ela lhe escreve a frase dizendo que veio em busca de amor, o
narrador compara a imagem altiva que ela tinha antigamente com a de
completa rendição que apresenta agora: "Tentei arrumar (foi um esforço) sua
imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a
nuca a um golpe de misericórdia" (NASSAR, 1997, p. 55). A referência ao
golpe de misericórdia remete a uma guerra, a um duelo travado entre os
dois, no qual ela teve uma postura desafiadora, mas que agora sucumbe ante
o poder masculino. A personagem, portanto, no tempo em que se dá a
narrativa, é uma mulher que, sem que o leitor/a saiba o porquê, perdeu seu
poder e que se encontra no estado de quem se entrega na luta entre os
gêneros.

E, com efeito, a representação da personagem feminina é construída
sob o signo da fragilidade, da fraqueza e da carência. Sabemos, através dos
estudos de Bourdieu (2007), que dentro do patriarcalismo, a mulher é
definida como um ser natural e essencialmente frágil, o que lhe impõe a
condição de submissão, ao contrário do homem, que é marcado pela força e
pela coragem. São diversos os traços gestuais sinalizados pelo narrador
para compor um perfil frágil de sua mulher. Assim, logo que ela entrou
"ficou espremida ali no canto" (NASSAR, 1997, p. 54). É a situação de um
animal acuado e temeroso de seu predador. Outros gestos seus revelam que
ela como que padecia de uma enfermidade grave: o narrador vê na frase que
ela lhe escreve no bloco de notas "um grito de socorro" (NASSAR, 1997, p.
55), e quando ela escreve "responda" NASSAR, 1997, (p. 55) após perceber
que ele não responderia, ele diz: "era um gemido" (NASSAR, 1997, p. 55).
Nota-se que, na ausência de linguagem verbal, ele interpreta as frases dela
como sons orais manifestados em situações de dor ou desespero. Ela, ainda,
apresenta outras características doentias, como quando, angustiada, "mordia
seus dedos" (NASSAR, 1997, p.56), e, como ele diz ao ser tocado por ela,
"me queimava a perna com sua febre" (NASSAR, 1997, p. 57), além do que seus
"dentes é que tremiam" (NASSAR, 1997, p.57). Mordendo o próprio corpo,
febril, trêmula – sinais evidentes de quem sofre de alguma doença.

Vemos, aqui, que Nassar traça uma associação entre o desejo feminino
e doença/loucura e, por contraste, entre a abstenção masculina e
saúde/sanidade. Tal associação revela que o escritor tinha uma postura
bastante crítica ao imperativo moral hedonista predominante durante a
chamada pós-modernidade. O sociólogo Zygmunt Bauman (1998), em suas
investigações sobre esse período histórico, nos diz que houve a partir de
meados do século XX uma exacerbação do individualismo, ou seja, uma
valorização dos desejos do eu em detrimento das vontades dos grupos
(família, casamento, etc.), que trouxe consigo uma moral extremamente
hedonista. Se antes desse período sempre predominou a ideia de que o
indivíduo deveria abdicar do prazer em prol da segurança fornecida pelos
rígidos laços humanos, a partir daí há uma inversão e o que passa a
predominar é uma espécie de obrigatoriedade do gozo em que aquela segurança
fica relegada para segundo plano. Prevalece entre os homens pós-modernos
o "demasiadamente humano reclamo de prazer, de sempre mais prazer e sempre
mais aprazível prazer - um reclamo outrora desacreditado como base e
condenado como autodestrutivo" (BAUMAN, 1998, p. 9).

Nassar, ao caracterizar a personagem feminina, sôfrega por prazer
tanto quanto uma Emma Bovary, com os sinais de uma doença, mostra que via o
tão propalado hedonismo, não como uma garantia de felicidade, mas como uma
patologia, como um estado de morbidez, que contrasta com a tranqüilidade e
repouso do personagem masculino que renunciou aos apelos do desejo. Em Hoje
de Madrugada, portanto, a mulher desejante é representada pela doença e o
homem que se abstém pela saúde.

Enferma, ela também é caracterizada pela condição de extrema
carência afetiva. É ela que o tempo todo vai à busca dele. É ela que, como
diz o narrador, está mendigando afeto. Sua mendicância é mostrada através
de uma imagem, onde ela aparece como uma ave que espera os grãos doados por
seu dono: quando vê ele escrever no bloco a frase negativa que serviria de
resposta a seu pedido, "sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o
grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos"
(NASSAR, 1997, p. 55). Ela age, assim, feito uma ave faminta que bica uma
migalha de afeto que ele deixa cair em um "desperdício." Além da
fragilidade e da carência, há ainda outro traço, próprio da definição da
mulher dada pelo patriarcalismo, que lhe marca o perfil: a emoção. A mulher
de Hoje de Madrugada é, antes de tudo, emotiva; é impulsionada, não por
reflexões racionais, mas pelo caldeirão de desejos e sentimentos que fervem
dentro de si. A motivação fundamental de sua ação é o sentimento amoroso, a
busca pela satisfação afetiva, como fica claro em suas tentativas de
seduzir ele e na frase nervosa que ela lhe escreve: "vim em busca de amor"
(NASSAR, 1997, p. 55). Não lhe falta, inclusive, um quê de louca, uma marca
de irracionalidade: o narrador-personagem, ao vê-la voltar da janela,
afirma não se surpreender "com o traço de demência lhe pervertendo a cara"
(NASSAR, 1997, p. 56).

Há, contudo, uma característica na composição da personagem feminina
que comporta certa ambigüidade, isto é, revela que ela é, ao mesmo tempo,
uma mulher emancipada e sujeita às determinações do patriarcalismo. Tal
característica consiste no fato de, desde o início, ela, e não ele, tomar a
iniciativa na conquista sexual e amorosa. Ela abandona a posição,
tradicionalmente atribuída às mulheres, de passividade e castidade e torna-
se ativa, assumindo livremente seu desejo e buscando seduzir e conquistar o
homem. Nesse sentido, concordamos com De Paula, quando ela afirma que:




(...) surpreende-nos a figura feminina nassariana no conto Hoje de
Madrugada, que reflete um perfil já esboçado na novela Um Copo de
Cólera, em que é ela quem vai em (sic) busca de saciar os desejos
do corpo. Ou seja, é a mulher, a princípio, a agente da
transformação da figura masculina em objeto de satisfação sexual,
abandonando a posição de objeto para ser sujeito no jogo de sedução
(DE PAULA, 2006, p. 116).



Porém, essa mesma característica, representativa da libertação
feminina ante o jugo masculino, faz parte, também, do repertório de conduta
da mulher tradicional. Esta, como é sabido, despossuída de poder econômico,
uma vez que não trabalhava fora do espaço doméstico, tinha na beleza seu
único instrumento de negociação com o poder masculino. As narrativas
ocidentais (literárias, cinematográficas, pictóricas, etc.), e
possivelmente as orientais, não à toa, criaram o estereótipo da mulher que
usa os encantos do corpo para atingir seus objetivos. É a mulher sedutora
que remonta à própria Eva do Gênesis, a qual seduziu Adão com uma maçã
levando-o à perdição. Na cultura judaico-cristã, consolidou-se essa imagem
da mulher em que ela é "quase sempre associada ao pecado e, portanto, à
tentação, à sedução e ao perigo, devido à tradição bíblica do livro do
Gênesis, que dá à mulher a primazia na dinâmica da queda da humanidade e do
chamado pecado original" (BINGEMER, 2002, p. 12).

Em Hoje de Madrugada, a personagem feminina é construída de acordo
com esse estereótipo, embora use a sedução, não como um meio para atingir
objetivos outros, mas como um fim em si. É o que vemos nas carícias
eróticas que ela faz no pescoço e nos pés do homem, bem como na exibição
"de seu obsceno corpo debaixo da camisola" (NASSAR, 1997, p. 53) e do
decote que deixava entrever "os seios flácidos tristemente expostos"
(NASSAR, 1997, p. 56).

Observa-se, desse modo, uma personagem ambígua que rompe e, ao mesmo
tempo, dá continuidade aos padrões que a ideologia patriarcal impôs ao sexo
feminino. Ocorre, aqui, uma resistência ao poder masculino, mas uma
resistência que se manifesta, não por fora, como uma rejeição explícita,
mas por dentro da ideologia patriarcal. É um modo de resistir que, como nos
informa Chartier, se dá pela apropriação da linguagem da dominação
simbólica e pelo seu uso contra os dominadores:




Nem todas as fissuras que corroem as formas de dominação masculina
tomam a forma de dilacerações espetaculares, nem se exprimem sempre
pela irrupção singular de um discurso de recusa ou de rejeição.
Elas nascem com freqüência no interior do próprio consentimento,
quando a incorporação da linguagem da dominação se encontra
reempregada para marcar uma resistência (CHARTIER, 1995, p. 42).



E para exemplificar sua ideia, Chartier usa justamente o caso da beleza.
Para ele, adequar-se aos padrões estéticos ditados pelo olhar masculino não
é somente uma forma de submissão, mas também pode ser um recurso para
subverter a relação de dominação. É quando ocorre o que ele denomina de
efeito beleza: "uma tática que mobiliza para seus próprios fins uma
representação imposta – aceita mas que se volta contra a ordem que a
produziu" (CHARTIER, 1995, p. 41).



Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: Entrevista à Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2005.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar,
1998.

BINGEMER, M. Experiência de Deus em Corpo de Mulher. São Paulo: Loyola,
2002.

CHARTIER, Roger. Diferença entre os Sexos e Dominação Simbólica. In:
Cadernos Pagu, n° 4, Campinas, 1995, p. 37-47.

CHARTIER, Roger. Por uma Sociologia Histórica das Práticas Culturais. In:
_______. História Cultural: entre Práticas e Representações. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 13-28.

CORSO, Diana; CORSO, Mario. Retratos de Família. Palestra proferida no
Programa Café Filosófico da TV Cultura. Campinas, 06 de maio de 2011.

DE PAULA, Marcela Magalhães. A Falta de Beleza no Corpo: Interferências nas
Relações de Afeto no Conto "Hoje de Madrugada", de Raduan Nassar. In:
Revista de Letras, N 28, 2006, p. 116-120.

NASSAR, Raduan. Entrevista. In: Cadernos de literatura brasileira. n. 2.
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996.

NASSAR, Raduan. Menina a Caminho. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

PERROT, Michele. O nó e o ninho. In: Veja 25 anos – Reflexões Para o
Futuro. São Paulo: Abril, 1993, p. 74-81.

SANTOS, Jair Ferreira de. O que é Pós-moderno. São Paulo: Brasiliense,
1986.

ZOLIN, Lúcia Osana. O Matador, de Patrícia Melo: Gênero e Representação.
Revista Letras, n. 71, Curitiba, 2007, p. 53-63.
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