Representações da vida em sociedade em \"Olhai os lírios do campo\", de Érico Veríssimo

June 2, 2017 | Autor: Tiêgo Alencar | Categoria: Literatura brasileira, Literatura, Literatura Brasileira Contemporânea
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Graduando em Letras com habilitação em Língua Francesa pela Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. E-mail: [email protected]
Sobre a trajetória de vida de Veríssimo, há ainda duas obras do próprio autor que o tratam de maneira clara: Solo de Clarineta e Um Certo Henrique Bertaso.
Exemplos deste dilema na sociedade atual podem ser consultados no site Guia do Bebê: http://guiadobebe.uol.com.br/sou-imensamente-grata-a-deus-pela-minha-vitoria-vida-de-mae/
http://guiadobebe.uol.com.br/pensei-que-minha-vida-nao-iria-dar-certo-ana-cristina/ (acesso em: 17 jan. 15)
A SOCIEDADE REPRESENTADA EM OLHAI OS LÍRIOS DO CAMPO, DE ÉRICO VERÍSSIMO
Tiêgo Ramon dos Santos Alencar

RESUMO: Trata-se de uma investigação acerca dos perfis da sociedade representados em Olhai os lírios do campo, do aclamado autor gaúcho Érico Veríssimo. Este trabalho tem por objetivo evidenciar como a sociedade é retratada no romance, ressaltando as características das personagens centrais do enredo. Utilizando teóricos que corroboram com a ideia de literatura e sociedade a exemplo de Cândido (1989, 2006), Bessa (2000), Souza (2010) e Oliveira (2013), verificou-se que a obra apresenta uma sociedade condizente com o período em que foi escrita (1938), além de mostrar dilemas das relações entre as personagens que se aproximam da realidade do mundo atual.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; sociedade; Érico Veríssimo; Olhai os lírios do campo.
RÉSUMÉ: Il s'agit d'une recherche sur les perfils de la société répresentés dans l'œuvre Olhai os lírios do campo, du consacré auteur du sud du Brésil Érico Veríssimo. Ce travail a pour objectif evidencier comme la société est montrée sur le roman, en surlignant les caractéristiques des personnages principales de la parcelle. En utilisant des théoriciens qui concordent avec l'idée de littérature et société à l'exemple de Cândido (1989, 2006), Bessa (2000), Souza (2010) e Oliveira (2013), on a vérifié que l'œuvre présente une société qui correpond au période dont elle a été écrite (1938), en plus de montrer des dilemmes des relations entre les personnages qui s'approchent de la réalité du monde actuel.
MOTS-CLÉS: Littérature; société; Érico Veríssimo; Olhai os lírios do campo.

1 INTRODUÇÃO
Olhai os lírios do campo, obra lançada em 1938, é um dos escritos de maior expressão da produção prosódica do autor sul-rio-grandense Érico Veríssimo. Ao tecer um enredo que anos mais tarde seria adaptado para a televisão, Veríssimo alcançou grande projeção social ao retratar a história de vida de Eugênio, um rapaz de origem pobre e que não se conformava com a situação em que vivia com seus pais. Por intermédio dos esforços de seus genitores, Eugênio tem êxito ao conquistar uma vaga no curso de Medicina.
Assim, é na universidade que Eugênio conhece Olívia, o grande amor de sua vida. Porém, movido pela ambição, o rapaz tenta esquecer Olívia ao se envolver com Eunice, filha de um grande empresário do setor industrial, objetivando única e exclusivamente sua definitiva ascensão social. Eugênio só consegue se desvencilhar de seus pensamentos egocêntricos ao tomar conhecimento da morte iminente de Olívia, fato esse que muda a vida da personagem em sua totalidade.
Considerando o enredo de Olhai os lírios do campo, é possível analisar a obra sob diversos aspectos, tais como religioso, histórico e social. Neste trabalho, a obra será concebida à luz das abordagens histórica e social, considerando as características da sociedade brasileira à época da publicação do romance, bem como as principais marcas nas personalidades das personagens.
Para isso, como base teórica foram utilizados teóricos como Cândido (1989, 2006), Souza (2010), Bessa (2000) e Minchillo (2013) que discutem acerca da relação literatura e sociedade, além de também proporem discussões sobre a obra de Érico Veríssimo.
O presente trabalho se estrutura da seguinte maneira: inicialmente, a introdução abordará brevemente o enredo da obra, assim como situará sob que aspectos este texto será conduzido, além de mencionar autores que contribuíram como base teórica para o mesmo. No segundo momento, o referencial teórico será exposto para marcar o diálogo entre os teóricos e o objeto desta investigação. No terceiro e penúltimo momento, será de fato evidenciada a sociedade retratada em Olhai os Lírios do Campo com o foco nas representações sociais a partir de características personagens principais da obra. E por fim, serão tecidas considerações acerca da discussão proposta por este artigo.

2 REFERENCIAL TEÓRICO
A literatura considerada enquanto expressão de arte e enquanto ciência tem sua base na realidade. Sobre isso, ORTIGA (2010) diz que

A literatura leva o leitor à análise de realidades diversas (...), pois trata de reflexos da história e da Realidade social de determinadas comunidades retratando a cultura, os costumes, e a organização política e social de determinada região (ORTIGA, 2010, p.1).
Com isso, pode-se compreender que literatura e sociedade estão intimamente interligadas, já que impulsionam o leitor a identificar e analisar elementos de sua ou de outras realidades a partir do que é proposto num poema ou romance, por exemplo. Nesse sentido, a historiadora Elaine Rosa de Souza, em sua tese acerca das relações de gênero na obra O Tempo e o Vento de Veríssimo, considera, sobre a relação literatura-sociedade, que

A literatura é um produto cultural da sociedade e precisa ser desconstruída para resgatar suas próprias singularidades, propriedades determinadas, especificidades, intencionalidades subjacentes e positividades, o que permitiria trabalhar com as representações sociais (SOUZA, 2010, p. 13).
Nota-se que a teórica concebe a literatura como resultado da cultura de uma sociedade e que é a partir dela que se extraem características próprias de cada um, além das suas intenções em relação a essa sociedade. Com isso, os estudos que englobam literatura, história e sociedade se mostram ainda mais importantes, uma vez que eles contribuem para que o indivíduo leitor saiba se reconhecer na e ser crítico em relação a realidade na qual se insere.
Dessa forma, de acordo com Cândido (2006) a influência da sociedade nas obras artísticas "constitui hoje um verdadeiro truísmo" (CÂNDIDO, 2006, p. 28). O autor completa a sua fala ao ratificar que o artista, não somente o escritor, tem quatro grandes momentos em sua produção: "a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões da sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio." (CÂNDIDO, 2006, p. 31). Estas palavras se reafirmam ao perceber que, em Olhai os Lírios do Campo, Veríssimo pautou sua obra segundo o que regia a sociedade da época (o "progresso" econômico, social e político do Brasil), a seleção de temas e formas, como religião, traição, egoísmo e amor. O conjunto destes fatores culminou no sucesso da obra e identificação do público leitor com os dilemas visualizados na narrativa, inclusive extrapolando as barreiras nacionais, como mostra MINCHILLO (2013) em sua tese de doutorado acerca do cosmopolitismo e das relações interamericanas na obra de Veríssimo:

A confiar nas notícias sobre a malograda viagem em 1939, o sucesso de Olhai os lírios do campo já havia chegado aos ouvidos dos empresários de Hollywood, interesse que se confirma mais tarde com a notícia dada em 1941 pelo jornal O Momento, de Caxias (RS), de que os direitos cinematográficos de Olhai os lírios do campo haviam sido comprados pelo produtor Walter Wanger (MINCHILLO, 2013, p. 192).
Nesse sentido, pode-se inferir que o artista tem influência direta do meio no qual vive em sua produção e que o resultado disso também influencia a mesma sociedade que o influenciou. Porém, é importante observar que Cândido também afirma que é necessário ter "consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente" (CÂNDIDO, 2006, p. 22). Ou seja, a produção artística não é um retrato fiel da realidade, até porque ela é um reflexo principalmente das ideias do autor, que assim como o leitor também carrega consigo valores, princípios e experiências que o tornam único.
É interessante perceber que apesar do momento histórico em que o Brasil se encontrava na década de 30 com a explosão das ideias modernistas, Veríssimo não se deteve no sentido mais radical do movimento em Olhai os lírios do campo, apesar de ser considerado um "radical urbano" como explica Cândido (1989), em sua obra "A educação pela noite e outros ensaios":

É possível ainda distinguir os que se poderiam chamar de radicais urbanos, atentos à desarmonia da sociedade mas também aos problemas pessoais; marcados pela sua província, mas sem obsessão regional — como ocorre na vasta obra de Érico Veríssimo e na obra parca mas admirável de Dionélio Machado, ambos do Rio Grande do Sul (CÂNDIDO, 1989, p. 203).
Contudo, é interessante traçar o paralelo autor-obra-contexto histórico, já que Veríssimo transpôs em sua narrativa boa parte de suas vivências, bem como diz Oliveira (2013) em sua dissertação de mestrado sobre a imagem do professor em obras do autor:

Erico soube retratar em suas obras todo o sofrimento do povo no período de crise e adaptação ao novo regime político, ao desenvolvimento industrial. De família tradicional, relativamente bem sucedida economicamente, viveu as rupturas enfrentadas pela sociedade gaúcha da época. É nesse período em que se casa e sente, definitivamente, as dificuldades financeiras e vê-se obrigado a trabalhar dobrado para assegurar o dinheiro para as despesas no final do mês (OLIVEIRA, 2013, p. 59).
Percebe-se então uma total ligação entre o período histórico em que passava o Brasil na década de 1930, a vivência de Veríssimo e o enredo de Olhai os lírios do campo. Assim, partindo do referencial teórico acima exposto, o próximo ponto deste trabalho tem por objetivo evidenciar a sociedade concebida na obra, além de sugerir possíveis relações entre elementos da mesma com a realidade.

3 A SOCIEDADE REPRESENTADA NA OBRA
Intitulando a obra com um trecho do Sermão da Montanha, Érico Veríssimo já antecipa uma das temáticas que permearão todo o romance: a religiosidade. A passagem a que se refere o título está situada na Bíblia Sagrada, no livro de Mateus:

Por isso eu digo a vocês: não se preocupem com a comida e com a bebida que precisam para viver nem com a roupa que precisam para se vestir. Afinal, será que a vida não é mais importante do que a comida? E será que o corpo não é mais importante do que as roupas? Vejam os passarinhos que voam pelo céu: eles não semeiam, não colhem, nem guardam comida em depósitos. No entanto, o Pai de vocês, que está no céu, dá de comer a eles. Será que vocês não valem muito mais do que os passarinhos? E nenhum de vocês pode encompridar a sua vida, por mais que se preocupe com isso.
E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé? (Mateus, 6: 25-29)
Da leitura deste fragmento do Sermão da Montanha, pode-se dizer que é chamada a atenção do leitor para o apego ao material e para a pouca consideração com o fator espiritual, que nesse caso se condensa na figura citada de Deus. O Sermão é introduzido em Olhai os lírios do campo pela voz de Olívia, a amada do protagonista, Eugênio. Olívia, por sua vez, também cometeu erros no passado, mas no final acabou encontrando a sua possível "salvação" destes erros com a aceitação de Deus, como sugere o trecho de uma de suas cartas para Eugênio: [...] "gostaria que soubesses tudo, que visses como a minha vida já foi feia e escura e como lutei e sofri para encontrar a tranquilidade, a paz de Deus" (VERÍSSIMO, 1987, p. 177).
A personagem, que se expressa apenas nas cartas reveladas a Eugênio após a sua morte, mostra-se completamente devota a Deus, o que implica na citação dele em praticamente todas as cartas. Mãe solteira, abandonada por Eugênio para viver um casamento de fachada com Eunice e tendo apenas a filha, a fé e a profissão para seguir em frente, Olívia se mostra presente na realidade atual, uma vez que inúmeras mulheres passam por situações iguais ou até mesmo piores. Olívia supera as adversidades, encontrando apoio em Deus. Essa religiosidade transpassada pela personagem é a responsável pela redenção de Eugênio.
Eugênio, no início do romance ao se recordar de sua infância, é caracterizado como revoltado pela situação na qual vive. Sobre o passado de Eugênio, Virgens, Pelegrini e Buffa (2009) dizem que

Eugênio sofreu um passado de restrições econômicas e privações afetivas. A família, composta dos pais e de um irmão mais moço, possuía características com as quais Eugênio não se identificava. E, provavelmente, sua relação com os familiares influenciou a forma como, por muito tempo, Eugênio definiu a vida, a existência de Deus e as pessoas que o cercavam (VIRGENS, PELEGRINI E BUFFA, 2009, p. 3).
O jovem não se distancia da situação em que se encontram muitas crianças e adolescentes hoje em dia, descontentes com sua situação social. Sabe-se que muitas vezes esta constatação leva pessoas ao submundo do crime e que consequentemente traz consequências devastadoras para a vida do indivíduo, caso este que não ocorre com Eugênio, que opta por estudar e se formar em Medicina. Porém, mesmo na faculdade, a personagem ainda é tomada por pensamentos negativos em relação a sua criação, negativando inclusive a Deus:

Eugênio escutava com um sorriso de desprezo. Lembrava-se do pai, da pobreza triste da sua casa, dos gorilas das suas reportagens. Ruminava as suas lutas, as suas humilhações, pensava nas desigualdades da vida, nas injustiças sociais. Se Deus existia, tinha esquecido o Mundo, como um autor que esquece voluntariamente o livro de que se envergonha. Não, mas Deus não existia. (VERÍSSIMO, 1987, p. 52)
Ainda na faculdade, é apresentado ao leitor a personagem Castanho, que é visto como "modelo de pessoa" para Eugênio. Sobre Castanho, segundo Virgens, Pelegrini e Buffa (2009),

O personagem Castanho, companheiro de Eugênio em sua vida acadêmica, representa o perfil da personalidade idealizada pelo protagonista em determinados momentos da história. O estudante de direito possui ares de casto, cético, filosófico e "amante dos clássicos", além de ser respeitado e admirado pelos companheiros de outros cursos por seus artigos publicados e pela respeitável família da qual fazia parte.
[...] Castanho era um espelho no qual Eugênio pretendia ver seus reflexos, o do indivíduo a ser seguido (VIRGENS, PELEGRINI E BUFFA, 2009, p. 5).
Castanho representa, de certa forma, o padrão, o "clássico", bem diferente de Eugênio que queria ser como o estudante de direito. Este contraponto, ao ser levado para a realidade, pode ser relacionado como o paralelo entre o "velho" e o "novo". Veríssimo constrói um herói falível, imperfeito, quase um anti-herói, que é o condutor da trama enquanto traz, em segundo plano e concomitantemente, uma personagem aos moldes clássicos, que parece perfeito, mas não é. A sociedade da época ainda se adequava aos ideais de modernidade e o autor fez um uso bem claro disso ao elaborar personagens que trazem características próprias de diferentes espaços de tempo.
Ao concluir a faculdade, Eugênio, já exercendo a medicina e ao atender uma ocorrência, conhece Eunice, filha de Cintra, um grande empresário. A personagem, nada simpática e sendo apenas a válvula de escape para o suposto sucesso de Eugênio, é cruel e mesquinha. Assim como Castanho, Eunice faz questão de mostrar que é "intelectual", causando um impacto fortemente negativo em Eugênio logo no primeiro instante em que trocam palavras:

Quando tornou a olhar para a jovem. Eugênio viu-a séria, com uma ruga de reflexão na testa.
- Qual é a sua opinião sobre Freud? - perguntou ela de repente.
A pergunta escapou-lhe dos lábios junto com uma baforada de fumo. Mas as suas palavras não tinham a natureza vaporosa do fumo. Eram sólidas, agressivas, bateram com violência no peito de Eugênio, deixando-o por um instante sem respiração. Ela contemplava-o com ar irônico. Havia uma indescritível malícia nos seus olhos cor de mel queimado (VERÍSSIMO, 1987, pp. 115-116).
É interessante o que diz Bessa (2000) acerca do posicionamento de determinados personagens em função do contexto social em que a obra se insere. A autora diz que

Uma das características marcantes do decênio em que o romance Olhai os lírios do campo foi escrito é a consciência da diversidade social e das distâncias entre as classes sociais existentes no país. Nesse romance, há uma preocupação em denunciar os valores dominantes na década de 30. Ele o faz por meio da exposição do modo de pensar da classe dominante e das posturas estereotipadas de alguns personagens. Sob esse aspecto, a "artificialidade" dos personagens, já mencionada, denunciada por alguns críticos, adquire funcionalidade e passa de defeito a qualidade dessa obra. Essa suposta "artificialidade" manifesta na forma do romance o seu tema central: o da artificialidade das relações humanas em sociedade. (BESSA, 2000, p. 96)
Pode-se perceber essa "artificialidade", principalmente, nas vozes de Eunice, de seu pai e de Castanho, que optam por exibir sua riqueza e conhecimento para se sentirem melhores ou envaidecidos, já que a sociedade da época, como já mencionado, ainda polarizava a ideia de que ter cultura era ter conhecimento e evidenciar isso para todos, como Eunice fizera ao perguntar para Eugênio qual era a opinião dele sobre Freud.
O pai de Eunice, o "velho" Cintra, por exemplo, é caracterizado como "ricaço", o que de fato foi o que convenceu Eugênio a casar com a filha dele. Na falta de oportunidades mesmo na profissão de médico, Eugênio se frustra e não vê outra alternativa senão engajar-se num casamento de fachada, já que não amava Eunice, almejando somente atingir um status superior na sociedade.

No outro dia, no hospital, um colega, ao passar, fez-lhe uma observaç o brincalhona:
- Então, vamos entrar nos dinheiros do velho Cintra, hem?
Ele ficou vermelho e continuou a caminhar sem dizer palavra. Aquilo, porém, não lhe saía dos ouvidos. Era incrível como uma tola observação casual se lhe pudesse gravar com tanta força de penetração no espírito. Os dinheiros do velho Cintra! Fiação e Tecidos Cintra, Companhia Arrozeira Cintra, Companhia Imobiliária Cintra. (VERÍSSIMO, 1987, p. 102)
Como se pode constatar, Veríssimo marca em Olhai os lírios do campo a ascensão inevitável da indústria no país. O sogro de Eugênio, rico às pampas, possuía indústrias de produção têxtil, imobiliária e alimentícia, o que aos olhos do genro, era sinônimo de felicidade. A personagem não hesitara ao largar a profissão de médico para se dedicar aos negócios da família, mas após um certo tempo, a ficha cai:

Quando tornou a sentar-se à sua mesa, Eugênio teve a impressão de que saíra dali não apenas havia vinte minutos, mas sim vinte anos. Sentia-se velho, mais cansado e amargurado. Ficou com os cotovelos fincados na mesa, as mãos segurando o rosto, a olhar fixamente para o tinteiro. Do pátio interno chegava até ele, através de janelas, um rumor de vozes.
- Mandem tocar de novo as máquinas – disse o gerente. – Não podemos ficar parados. Tempo é ouro. (VERÍSSIMO, 1987, p. 157, grifo nosso)
É perceptível a frustração de Eugênio ao passo que acontece a supervalorização do capital gerado pela produção industrial. Um contraponto interessante, pois é a partir destas constatações que a personagem percebe que não está feliz. Este momento sugere o seguinte questionamento para uma possível reflexão: o dinheiro traz verdadeiramente a felicidade? No caso de Eugênio isso não se aplica, como se pode constatar.
Há ainda a presença da personagem que, como diz Bessa (2000), é a voz da razão e que reforça a promoção dessas reflexões em Eugênio: Seixas. Médico, ateu, carrancudo e bastante racional, a personagem promove muitas vezes no decorrer da obra discussões sobre o que, de fato, vale a pena na vida. Na passagem a seguir, mostra-se um exemplo de autorreflexão de Eugênio incitada a partir de uma conversa com Seixas:

O nosso mal tem sido fazer do conforto e do gozo - boas roupas, boas mulheres, boas comidas e boas bebidas, casas luxuosas, automóveis e dinheiro em quantidade - o objetivo exclusivo ou quase exclusivo da vida. Comigo pelo menos a coisa foi assim. Eu queria o sucesso, a boa vida. Vestia esse desejo com palavras mais bonitas, disfarçava-o... Consegui o que queria. O senhor sabe o resultado. Fui derrotado. Só agora é que começo a sentir-me forte e me vem uma grande paz por poder olhar todas essas coisas com uma espécie de indiferença superior (VERÍSSIMO, 1987, p. 277).
O pessimismo da personagem fica ainda mais claro no trecho que segue:

Seixas riu alto.
- Diga antes que quer acreditar, que faz uma força desesperada para não se entregar à descrença. - Tossiu longamente, aflito. - Quem é que pode ser otimista com esta tosse? E com letras vencidas no Banco? E com uma filha nervosa em casa? E com sessenta anos de uma vida fracassada? (VERÍSSIMO, 1987, pp. 284-285)
Seixas é realista quanto à sociedade que o cerca e não poupa palavras para tentar abrir os olhos de Eugênio, da forma mais radical possível. Não muito distante da realidade em que se encontra, quantas vezes não foram necessários alguns "Seixas" para que se despertasse para uma realidade que estava ali, próximo de cada um, mas que não era possível enxergar pois não havia alguém para alertar?
Além disso, a infância e suas felicidades não foram esquecidas por Veríssimo. Apesar de mostrar um Eugênio que sofreu quando criança por conta da situação de pobreza em que vivia com seus pais e seu irmão, a autor faz questão de mostrar o lado "doce" da infância ao apresentar a personagem Anamaria, filha de Eugênio com Olívia. A mãe, com suas cartas motivadoras e intensas, provoca a mudança na vida do pai ao pedir para que ele deixe de lado o olhar para si e volte-o para o próximo. Nesse sentido, Anamaria surge como a peça chave para que Eugênio se veja livre de seus antigos tormentos, despertando no pai o sentimento de amor incondicional que o transforma. Sobre Anamaria, Bessa (2000) coloca:

A menina tem os olhos sérios e profundos de Olívia e, ao mesmo tempo, desconfortáveis como os do pobre Ângelo. Sua presença retoma duas figuras diante das quais Eugênio precisa se redimir: seu pai, que foi por ele desprezado, e a própria Olívia, que ele abandonou por um casamento de conveniência. A presença da filha suscita-lhe interrogações e o obriga a tomar decisões sensatas e responsáveis para com os outros. Anamaria lhe permite uma compreensão da miséria humana e da necessidade de que o conjunto das ações dos homens seja orientado para minimizá-la (BESSA, 2000, p. 95).
Eugênio percebe, ao final do romance, que precisa voltar seus olhos para a sociedade e não apenas para ele próprio. Nota-se a redenção do personagem, que se arrepende de tudo o que fizera e tentando um recomeço, estimulado por sua filha, como sugere a seguinte passagem:

Sim, não bastava que ele se sentisse feliz, que tivesse Anamaria a seu lado, corada, alegre, bem vestida e bem alimentada... Era preciso pensar nos outros e fazer alguma coisa em favor deles... Por que não começar algum trabalho em benefício das crianças abandonadas? Dar-lhes alimentação adequada, boas roupas, higiene, instrução, assistência médica e dentária, colônias de férias, oportunidade de se divertirem, de serem alegres... Aí estava um grande plano (VERÍSSIMO, 1987, pp. 291-292).
Por fim, é importante evidenciar que as mazelas da sociedade também são retratadas na obra. O foco, obviamente, não é sobre elas, mas Veríssimo considera a empregada doméstica, os judeus, a menor que engravida antes do casamento, a família pobre, a criança que sofre na escola por sua condição social. O autor elabora um panorama da sociedade da época que começava a se adaptar ao regime do Estado Novo, bem como explica Bessa (2000):

O texto ficcional aponta para o que ocorre na realidade. No período de 1930 a 1945, durante o governo de Getúlio Vargas, o país atravessou um momento importante de sua história: algumas das instituições que sustentavam a República Velha foram desarticuladas e o presidente governou com amplos poderes, tendo dissolvido movimentos de insurreição contra ele e conquistado a simpatia da classe operária por meio de medidas legais que a protegiam. Se o país vivia crises internas, também não ignorava a crise mundial. O governo Vargas não se manifestara contra o regime fascista; e esse regime encontrou, durante certo tempo, simpatizantes no seio da sociedade brasileira (BESSA, 2000, p. 111).
Em uma possível análise, é possível inferir que a obra aborda, implicitamente, essa dualidade autoritarismo x socialismo, tendo em vista que o discurso de personagens como Olívia e Eunice trazem essa oposição, se se observar que Olívia prega um ideal de sociedade igualitária, justa e de bem, enquanto Eunice esbanja riqueza, soberba e desprezo para os que não se enquadram em seu status social, por exemplo. Porém, o caráter político de Olhai os lírios do campo é um ponto para ser discutido a fundo em uma outra ocasião.
Com tudo isso, visualizou-se que a sociedade se mostra das mais diversas formas em Olhai os lírios do campo, apresentando questionamentos pertinentes não apenas para a realidade da época, mas para os nossos dias atuais. Veríssimo tece uma alegoria cujos elementos se organizam de maneira única, possibilitando ao leitor múltiplas possibilidades de interpretação a depender do viés que se toma para analisá-la.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com o que foi exposto, percebeu-se que a sociedade em Olhai os lírios do campo é caracterizada das mais diversas formas: desde o rapaz que deseja ascender socialmente até os magnatas das indústrias em crescimento no país na década de 1930. A diversidade proposta por Veríssimo enriquece a obra de tal forma que a cada leitura é possível tecer interpretações diferentes.
Assim, a relação literatura-sociedade deve ser concebida como indissociável, uma vez que reflexos da realidade são visualizados nas obras literárias. Os teóricos citados na segunda parte deste trabalho reafirmam o que se pensa sobre essa relação. Érico Veríssimo e sua belíssima obra sobre as relações entre as pessoas proporciona reflexões e associações reais sobre a realidade que permeia a vida em sociedade.
Nesse sentido, relacionar realidade com a ficção deve ser uma prática constante na vida do leitor, tendo em vista que a literatura é um reflexo da sociedade e isso implica na consideração deste fato para a compreensão do que está sendo lido. É necessário ainda refletir, pensar, inferir sobre o que se está lendo, para que se haja uma efetiva prática de leitura.
Portanto, o que se vê, com a discussão proposta neste artigo, é que a sociedade retratada em Olhai os lírios do campo não se afasta muito da sociedade do século XXI. Dilemas semelhantes podem ser percebidos todos os dias, seja na TV, seja na internet. Espera-se, além de ter evidenciado como a sociedade se configura na obra, ter contribuído para uma possível reflexão acerca das personagens que, em suas particularidades, tornam-se próximas do leitor a medida em que demonstram suas humanidades, tão passíveis de erros e acertos quanto qualquer um de nós.

REFERÊNCIAS
BESSA, D. B. O discurso religioso em Olhai os Lírios do Campo. 2000. 140 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000.
CÂNDIDO, A. Literatura e Sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006.
____________. A educação pela noite e outros ensaios. 1 ed. São Paulo: Ática, 1989.
MINCHILLO, C. A. C. Erico Verissimo escritor do mundo: cosmopolitismo e relações interamericanas. 2013. 388 p. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
OLIVEIRA, M. M. C. Imagens e representações do professor em Clarissa e Música ao Vento, de Érico Veríssimo. 2013. 94 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2013.
ORTIGA, R. A. A LITERATURA COMO EXPRESSÃO DA REALIDADE SOCIAL: contribuições à ciência jurídica. XI Salão de Iniciação Científica. PUCRS: Porto Alegre, 2010.
SOUZA, E. R. "Gota de orvalho na coroa dum lírio: jóia do tempo": Erico Verissimo – Trajetória, obra e questões de gênero. 2010. 324 p. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
VERÍSSIMO, E. Olhai os lírios do campo. 57 ed. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1987.
VIRGENS, D. R.; PELEGRINI, M. A.; BUFFA, P. H. O. Formação e religiosidade em Olhai os Lírios do Campo. São Paulo: FESPSP, 2009.



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