Representações de \"bárbaros\" nos Panegíricos de Sidônio Apolinário (século V d.C.), TCG de Gabriel Freitas Reis

May 23, 2017 | Autor: G. Gemam/ufsm | Categoria: Sidonius Apollinaris, Visigoths, Antiguidade Tardia, Reinos Bárbaros, Sidonio Apollinare
Share Embed


Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS CURSO DE HISTÓRIA

Gabriel Freitas Reis

REPRESENTAÇÕES DE “BÁRBAROS” NOS PANEGÍRICOS DE SIDÔNIO APOLINÁRIO (SÉCULO V D. C.)

Santa Maria, RS 2016

Gabriel Freitas Reis

REPRESENTAÇÕES DE “BÁRBAROS” NOS PANEGÍRICOS DE SIDÔNIO APOLINÁRIO (SÉCULO V D. C.)

Trabalho de Conclusão de Graduação apresentado ao Curso de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado e Bacharel em História.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Semíramis Corsi Silva

Santa Maria, RS 2016

Gabriel Freitas Reis

REPRESENTAÇÕES DE “BÁRBAROS” NOS PANEGÍRICOS DE SIDÔNIO APOLINÁRIO (SÉCULO V D. C.)

Trabalho de Conclusão de Graduação apresentado ao Curso de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS) como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado e Bacharel em História.

Aprovado em 16 de janeiro de 2017:

Semíramis Corsi Silva, Dra. (UFSM) (Presidente/Orientadora)

Miguel Spinelli, Dr. (UFSM)

Pablo Dobke, Me. (UFSM)

Danilo Medeiros Gazzotti, Me. (UFPR)

Santa Maria, RS 2016

Agradecimentos

Às Sagradas Divindades que sempre estiveram comigo, e embora eu não saiba seus nomes, nunca deixaram de me fortalecer, de me reerguer nos momentos difíceis, e me restaurar as esperanças quando havia perdido as perspectivas de vitória. Obrigado por terem me trazido até aqui... À minha amada professora, orientadora e amiga Semíramis Corsi Silva, por ter aceitado me orientar e por ter construído comigo essa pesquisa quando eu ainda não tinha noção nenhuma das discussões a respeito da Antiguidade Tardia. Obrigado por tudo o que vivemos durante esse tempo, pelas brincadeiras, repreensões e principalmente pela paciência. Amo-te de todo o meu coração! Àqueles que aceitaram compor a minha banca, contribuindo com suas leituras que certamente serão muito valiosas: Prof. Dr. Miguel Spinelli (UFSM), Prof. Me. Pablo Dobke (UFSM), e especialmente ao Prof. Me. Danilo Gazzotti (UFPR), não só por ter aceitado participar da banca, mas por todas as valiosas ajudas que me concedeu até então, com todas as bibliografias que me enviou e que me fez conhecer e, sobretudo, por ter me possibilitado acessar a fonte histórica utilizada na minha pesquisa. À UFSM pela Bolsa de Iniciação Científica FIPE, concedida em 2016. Obrigado pela importante ajuda financeira que permitiu que essa pesquisa fosse completa. Aos meus amigos e colegas do Grupo de Estudos sobre o Mundo Antigo Mediterrânico da UFSM - GEMAM/UFSM, por terem sido sempre tão legais comigo e por termos construído belas amizades plenas de companheirismo, de discussões que enriqueceram nossas pesquisas e de inigualáveis momentos de descontração. Obrigado Angélica, Jordana, Fábio, Lucas, Natanael, Kelly, João Vitor, Jivago, Calison, Augusto, Renan, Débora, Rodrigo, Pedro, Cristina, Jayme, Gabriela, Raquel, e meus amados Henrique, Dandara, Luana, Luiza e Camila. E também àqueles que estiveram comigo ainda antes, e que contribuíram para aumentar o meu desejo de pesquisar Antiguidade Tardia, o Grupo Guerreir@s, com aqueles que não fizeram parte diretamente do GEMAM/UFSM, mas estiveram presentes nessa trajetória: Marjori, Carla, Sabrina e minhas amadas Sandra e Jéssica. Agradeço a todos aqueles que, embora alguns eu não tive a oportunidade de conhecer pessoalmente, contribuíram com suas imprescindíveis ajudas para que essa pesquisa fosse completa, assim como com seus textos e demais publicações. Entre eles cito os professores: Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca), Profa.

Dra. Érica C. M. da Silva (UFES), Profa. Erica Albarral (UNIFAL), Prof. Alex Rogério Silva (UNESP/Franca), Profa. Dra. Carolline Soares (UFES), Profa. Dra. Bruna Gonçalves Campos (UNESP/Franca), Prof. Me. Carlos Eduardo da Costa Campos (UERJ) e Profa. Dra. Carolina Kesser Barcelos Dias (UFPel). E por fim, mas não menos importante, à minha família, que apesar de todas as nossa diferenças, sem ela eu não teria nem conseguido chegar na Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Agradeço à minha mãe Tibiane, ao meu pai Walério, às minhas avós Neli e Francisca, ao meu avô José, ao meu padrinho Giovanni e às minhas tias Viviane, Mariane e Maria Alice, por me incentivarem a seguir sempre adiante, me sustentarem financeiramente durante esse tempo e durante toda a vida, aguentarem as minhas irritações e me consolarem durante as minhas crises existenciais.

RESUMO REPRESENTAÇÕES DE “BÁRBAROS” NOS PANEGÍRICOS DE SIDÔNIO APOLINÁRIO (SÉCULO V D. C.) AUTOR: Gabriel Freitas Reis ORIENTADORA: Semíramis Corsi Silva Sidônio Apolinário foi um aristocrata galo-romano cristão da região de Lugduno (atual Lyon, França), na Gália Lugdunense, que viveu da década de 430 até 480. Seu pai e seu avô haviam sido Prefeitos do Pretório das Gálias e por parte de mãe ele era aparentado com os Ávitos da Arvérnia (ainda hoje com esse nome, França), laço fortificado por seu casamento com Papianilla, filha do futuro imperador Ávito. Sidônio recebeu como dote uma propriedade rural arvernesa chamada Avitacum. Sua carreira política ascendeu por conta da declamação de seus panegíricos a imperadores romanos, o primeiro a seu sogro Ávito, que lhe rendeu uma estátua erguida no Fórum de Trajano, o segundo a Majoriano, derrotador da conspiração lugdunense com os burgúndios contra si, que rendeu a Sidônio os títulos de conde e senador, e o terceiro a Antêmio, genro do imperador oriental, o que lhe fez se tornar patrício, Prefeito de Roma, e, em 469, bispo da Arvérnia, onde lutou contra os desmandos do rei visigodo de Tolosa (atual Toulouse, França) Eurico I (466-484), que tentou anexar toda a Aquitânia. O nosso autor viveu em um período de intensos contatos culturais entre diferentes povos germânicos presentes em variadas regiões do Império Romano, sobretudo em sua parte ocidental, tendo vivido na época mais intensa das redefinições políticas ligadas à formação das monarquias romano-germânicas. Seu vasto corpus documental, com epístolas e poemas, dessa forma, está repleto de representações desses povos. Em seus três panegíricos temos representações sobre os conflitos e negociações culturais, étnicas e políticas da época nas regiões nas quais elas se faziam mais intensas, como a Itália, a África, a Gália e o vasto território da Germânia. Nossas análises, então, pretenderam dar conta de responder às questões sobre os processos de continuidades e rupturas promovidos por esses restabelecimentos de fronteiras identitárias nos quais se envolvem questões políticas, religiosas e culturais. Assim, pretendemos ter mostrado que esse período diz respeito a uma continuação das estruturas da Antiguidade em transformação, configurando-se dentro das ideias daqueles que a consideram uma Antiguidade Tardia. Utilizar-nos-emos do conceito de representação de Roger Chartier, ligado à Nova História Cultural, e também do conceito de fronteira étnica e identitária amparados nos estudos do antropólogo Fredrick Barth. Palavras-chave: Sidônio Apolinário; “Bárbaros”; Panegíricos; Representações; Antiguidade Tardia.

ABSTRACT REPRESENTTIONS OF “BARBARIANS” IN THE PANEGYRICS OF SIDONIUS APOLLINARIS (CENTURY V D. C.) AUTHOR: Gabriel Freitas Reis ADVISOR: Semíramis Corsi Silva Sidonius Apollinari was a christian gallo-roman aristocrat from the region of Lugdum (present-day Lyon, France) in Lugdunense Gaul, who lived from the 430s until the 480s. His father and grandfather had been Mayors of the Gallic Praetorium and by mother he was related with the Avitus of the Arvernian (still today with that name, France), tie fortified by his marriage with Papianilla, daughter of the future emperor Ávitus. He received as dowry a rural Arvernian estate called Avitacum. His political career was due to the declamation of his panegyrics, the first to his father-in-law Ávitus, who gave him a statue erected in the Forum of Trajan, the second Majoriano, defeater of the Lugdunan conspiracy with the Burgundians against him, titles of count and senator, and the third to Antemius, son-in-law of the Eastern emperor, that made him become Patrician, Mayor of Rome, and in 469, bishop of Arvernian, where he fought against the annoyances of the king visigoth of Tolosa (presente-dayToulouse, France) Euricus I (466-484), who attempted to annex the whole Aquitaine. Our author lived in a period of intense cultural contacts between different Germanic peoples present in various regions of the Roman Empire, especially in his western part, having lived in the most intense time of the political redefinitions linked to the formation of roman-germanic monarchies. His vast documentary corpus, with epistles and poems,therefore, is replete with representations of these peoples,and the fullest part are the three panegyrics, which speak of the ethnic and political conflicts and negotiations of the period, where they were more intense, such as Italy, Africa, Gaul and the vast territory of Germany. Our analyzes, then, sought to answer questions about the processes of continuity and rupture promoted by these reestablishments of frontiers in which political, religious and cultural issues are involved. Thus, we wish to have answered that this period concerns a continuation of the structures of antiquity in transformation, configuring itself within the ideas of those who consider it as a Late Antiquity, unlike those who see in this context the beginning of the medieval period. We will use Roger Chartier's concept of representation in connection with the New Cultural History, as well as the concept of ethnic and identity frontier, supported by the anthropologist Fredrick Barth. Keywords: Sidonius Apollinari; “Barbarians”; Panegyrics; Representations; Late Antiquity.

LISTAS DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 - Mapa mostrando o deslocamento de visigodos e outros povos em território romano..............................................................................................................19 Ilustração 2 – Mapa do Reino Visigodo de Tolosa.........................................................22 Ilustração 3 – Mapa mostrando a região dominada pelo hunos .....................................23 Ilustração 4 – Mapa da Gália Antiga...............................................................................32

Sumário INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 9 1.

O CONTEXTO DE SIDÔNIO APOLINÁRIO .................................................. 16 1.1

OS BÁRBAROS E SUA INTEGRAÇÃO NO IMPÉRIO ROMANO ........... 16

1.2 AS DISCUSSÕES ACERCA DO CONCEITO DE ANTIGUIDADE TARDIA 27 2. A TRAJETÓRIA E AS OBRAS DE SIDÔNIO APOLINÁRIO .......................... 32 2.1. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA VIDA DE SIDÔNIO APOLINÁRIO .... 32 2.2. SOBRE O CORPUS DOCUMENTAL DE SIDÔNIO APOLINÁRIO .............. 39 3. REPRESENTAÇÕES DE “BÁRBAROS” NOS PANEGÍRICOS DE SIDÔNIO APOLINÁRIO .............................................................................................................. 42 3.1 OS VISIGODOS NO PANEGÍRICO DE ÁVITO ................................................. 42 3.1

OS BURGÚNDIOS NO PANEGÍRICO DE ÁVITO ....................................... 51

3.3 GENSERICO, REI DOS VÂNDALOS, NO PANEGÍRICO DE ÁVITO............ 52 3.4

OS FRANCOS E OS HUNOS NO PANEGÍRICO DE ÁVITO....................... 54

3.5

GENSERICO, REI DOS VÂNDALOS, NO PANEGÍRICO DE MAJORIANO ...........................................................................................................................58

3.6

OS VISIGODOS NO PANEGÍRICO DE MAJORIANO ................................. 61

3.7

OS FRANCOS NO PANEGÍRICO DE MAJORIANO .................................... 63

3.8 OS HUNOS E OS BURGÚNDIOS NO PANEGÍRICO DE MAJORIANO ......... 64 3.9 OS HUNOS NO PANEGÍRICO DE ANTÊMIO................................................... 67 3.10 GENSERICO, REI DOS VÂNDALOS, NO PANEGÍRICO DE ANTÊMIO..... 69 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 72

9

INTRODUÇÃO

O tema da nossa pesquisa, apresentado neste Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em História, diz respeito à análise de representações de povos bárbaros nos complexos processos de negociações e contatos político-culturais e territoriais entre os romanos e os germanos no século V d. C1. A pesquisa, portanto, se insere dentro do período da chamada Antiguidade Tardia, que, segundo o historiador Renan Frighetto (2012), abrange o período do século II ao século VIII d. C2. Focaremos, sobretudo, no contexto dentro desse recorte em que as relações entre os romanos e os povos “bárbaros” que passaram a viver no território do Império Romano do Ocidente se tornaram mais estreitas e próximas. A partir dos diversos autores que lemos, sabemos que essas relações foram dramáticas e conflituosas, mas também que envolveram alianças e acordos3. Sabemos, da mesma forma, que os contatos entre esses grupos étnicos e culturais duraram quase toda a extensão da história do Império Romano, mas que à medida que se aproxima o período em que estudamos, o século V, tais relações se tornam tensas devido à uma série de processos internos e externos ao Império, facilitando a formação de reinos dentro das províncias romanas. Buscaremos, assim, compreender a dinâmica que envolveu essas relações nos períodos específicos em que elas são contempladas pela fonte que utilizaremos: os panegíricos do aristocrata galo-romano Sidônio Apolinário. Segundo Ana Paula Franchi (2009, p. 34), os panegíricos são um tipo de poema que surge no período conhecido pela historiografia como Dominato4 e foi uma forma de elogiar um soberano. Ainda que os temas dos panegíricos não sejam especificamente as conquistas, as usurpações e suas posteriores legitimações de governo, eles tradicionalmente falavam sobre estes episódios na vida do governante elogiado. Segundo a historiadora citada, os panegíricos vêm de uma tradição grega e encontraram 1

Definimos contatos político-culturais como as relações político-administrativas estabelecidas entre os romanos e os povos de diferentes identidades de dentro e de fora do Império e a relação que estabelecem a partir daí em suas reinterpretações culturais de cunhos material, religioso e simbólico, conforme teoriza sobre isso Semíramis Corsi Silva (2014, p. 16). 2 A maioria dos historiadores brasileiros não concorda com essa periodização, preferindo dizer que a Antiguidade Tardia se inicia no século III e acaba no VII. 3 Entre tais autores podemos citar Bruna Gonçalves Campos (2011), Ricardo da Costa (2010) e Dominique Barthélemy (2010). 4 Gilvan Ventura e Carolline Soares (2013) criticam o uso do termo Dominato, utilizado aqui por Ana Paula Franchi, porque ele se baseia demasiadamente apenas nas transformações políticas do que ocorreu no período, sendo por isso que esses autores preferem utilizar o termo Antiguidade Tardia, como o qual também não concordam plenamente, dizendo que ele não dá conta de toda a amplitude dos processos históricos ocorridos no período.

10

grande prestígio literário principalmente na época estudada por ela, ou seja, nos séculos III e IV. Desta forma, os panegíricos tornam-se uma fonte histórica imprescindível para os estudiosos do Império Romano. Em Roma, os primeiros panegíricos declamados em honra de governantes são de Marco Túlio Cícero, do século I a. C. Kindler (2005, p. 33) nos informa que os panegíricos não são necessariamente poemas feitos para serem declamados em honra de soberanos, mas, sobretudo em ocasiões festivas, e que, estas sim são os melhores momentos para que se honre um soberano. Do ano 101 d. C., temos O Panegírico de Adriano, escrito por Plínio, o Jovem, que exerceu grande influência sobre a tradição panegirista da posteridade, nos séculos II e III d. C. Todavia, grande parte dos panegíricos romanos se perdeu, exceto os reunidos na coleção gaulesa do século III Panegyrici latini. No século IV temos os três panegíricos de Símaco, dois em honra do imperador Valentiniano I e um em honra do imperador Graciano. Conforme Kindler (2005, p. 34), os panegíricos sidonianos guardam grandes diferenças com relação a esses panegíricos citados, pois são baseados naqueles escritos pelo poeta da corte Cláudio Claudiano, que recitou seis obras dessa natureza entre 395 e 404, inclusive com introduções semelhantes às que Sidônio compõe. Tal documentação servirá para nós como fonte para o estudo sobre esse contexto polêmico estudado pela historiografia herdeira dos estudos do historiador iluminista Edward Gibbon como o momento da “queda do Império Romano”, termo contestado, por sua vez, por uma historiografia mais contemporânea que será por nós apresentada e discutida. Nossos questionamentos, inicialmente e de forma mais específica, dizem respeito à tentativa de compreensão de como funcionavam as negociações políticoculturais através das representações feitas por Sidônio Apolinário e o que elas podem nos informar sobre as relações entre os grupos étnicos e culturais e as fronteiras destas relações. Tal conceito de fronteiras, por sua vez, teve o antropólogo Fredrick Barth como um dos principais estudiosos e mostra como nas negociações e contatos entre grupos étnicos e culturais podemos perceber elementos que ora unem, ora separam tais grupos. Visamos analisar de que forma Sidônio Apolinário cria representações de signos culturais para apresentar os “bárbaros” se afastando ou se aproximando dos romanos de acordo com o papel político que uma ou outra etnia ocupa no contexto do Império Romano e como ele representa as relações e hierarquizações identitárias de acordo com sua visão mundo e acordos por ele visados.

11

A partir disso, buscaremos responder ao questionamento a respeito da ideia de ter havido ou não a tão polêmica “queda de Roma” ou “queda do Império Romano”. Não buscaremos analisar se o Império Romano teria sofrido algum tipo de decadência material ao longo da Antiguidade Tardia e como teria sido sua evolução a longo prazo em toda a sua extensão conforme discutem Bryan Ward-Perkins (2006) e Norberto Luiz Guarinello (2013), por exemplo, mas buscaremos compreender se houve uma relação de rupturas ou de continuidades político-culturais no século V d. C. no que diz respeito às relações romano-“bárbaras” na formação das monarquias que substituíram o poder político de Roma sem deixarem de se submeterem nominalmente a ele e, posteriormente a 476, a Constantinopla. Para atingir nosso objetivo empreenderemos uma análise minuciosa dos Panegíricos escritos por Sidônio Apolinário5 à luz da análise interna e externa dos documentos textuais. Como análise interna estamos compreendendo a análise que se utiliza de métodos, técnicas e conceitos historiográficos por nos escolhidos. Já como análise externa compreendemos aquela que cruza informações dos documentos com dados historiográficos e dados de outros documentos6. Não pretendemos colocar fim na questão da “decadência” ou “readaptação” das estruturas do Império Romano aos novos contextos, já que essas discussões se tornam demasiadamente complexas à medida que o tempo avança e, ao contrário de se resolverem, continuam controversas, levando consigo marcas dos contextos e da corrente historiográfica de cada historiador. Desejamos, contudo, contribuir para uma melhor compreensão do contexto. A ideia de decadência e de queda do Império Romano esteve presente no campo da história desde a Idade Média, e encontrou intensos apoios no século XIX e na primeira metade do XX, no momento em que o chamado “Ocidente” também passava por reflexões sobre uma ideia de “crise enquanto civilização” com as duas grandes guerras mundiais. Mais contemporaneamente, especialmente influenciada pela História Cultural, a historiografia sobre tal debate passou por mudanças, havendo contestações à ideia de que o Império Romano entrou em processo de decadência ou sofreu uma queda. A concepção de mudança social lenta e gradual na metade ocidental do Império Romano a partir dos Severos, se estendendo até a coroação de Carlos Magno, e só se completando com a chegada dos muçulmanos 5

Os escritos de Sidônio Apolinário serão mais bem apresentados no segundo capítulo deste trabalho. Não analisaremos outros documentos além dos Panegíricos de Sidônio Apolinário pela natureza deste trabalho, mas estaremos atentos a uma historiografia crítica que analisa uma documentação paralela à nossa. 6

12

no norte da Espanha de um lado, e de outro o não abandono da ideia de queda e de processo de ruptura, têm gerado intensos debates historiográficos. Diante disso, parece-nos óbvio que o estudo da forma como um escritor, poeta e bispo galo-romano do século V d. C., Sidônio Apolinário, via e se relacionava com os povos “bárbaros” ao seu redor, possa lançar luz sobre esses processos e fazer uma contribuição para esses debates, sobretudo no Brasil, onde essas discussões se processam de forma não menos intensa, mas onde faltam estudos sobre Sidônio Apolinário. Para tal pesquisa utilizaremos o conceito de representação, compreendido a partir do que apresentou Roger Chartier (1988), um dos principais historiadores da Nova História Cultural, corrente historiográfica com a qual compartilhamos conceitos e métodos. Assim, o conceito de representações é tomado por nós como uma espécie de mapa mental no qual o autor organiza a realidade. Cabe ao historiador desconstruir o discurso destas obras por meio da análise da compreensão de mundo do autor, analisando seus anseios apresentados em suas representações do objeto analisado. Diante disso, para Chartier (1988), os homens, por meio das representações, mostram seus anseios, suas revoltas e suas vitórias, construindo representações como se fossem verdades. Entendemos ainda que “as representações são sempre resultado de motivações e necessidades sociais” (BARROS, 2005, p. 134). Portanto, as imagens construídas por Sidônio Apolinário sobre os povos “bárbaros” germânicos serão percebidas como construções do autor que demonstram sua visão de mundo e seus objetivos conscientes ou não. Outro conceito que utilizaremos é o de bárbaros. Tal conceito será por nós utilizado por ser a forma como o autor das nossas fontes se expressa com relação aos estrangeiros, o seu outro. Conforme nos informa François Hartog (1996), desde o poeta grego Homero, quando a ideia do que era ser grego não estava, porém, tão bem delimitada ainda, os helenofônicos já demonstravam o que o conceito de bárbaro representava. Para Homero, bárbaros eram povos que não falavam a língua grega e que repetiam o que os helenos consideravam a sequência onomatopaica barbar, parecida com o balbuciar de uma criança O historiador grego Tucídides, no tempo da Guerra do Peloponeso, demonstrará a noção de bárbaro para os helenos a partir de relações de alteridade nas quais ele diz que sem gregos não há bárbaros e vice-versa. Também Hecateu de Mileto, um sofista que atuou politicamente na Revolta Jônica contra os persas em 494 a. C. (KOIKE, 2013, p. 73-77), por sua vez, dirá que a Grécia também

13

fora habitada por bárbaros no passado que a helenidade era passível de ser adquirida (HARTOG, 1996, p. 94). No entanto, o conceito antitético assimétrico que opôs gregos e bárbaros foi elaborado no século V a. C., e, culturalmente ele fazia sentido para os gregos. Entretanto, os bárbaros por excelência eram naquele contexto os persas e a terras dos bárbaros era a Ásia, em contraposição à Grécia. Conforme tal forma de dar sentido à realidade, o bárbaro se caracterizava por não conseguir viver sem o domínio de um rei despótico, enquanto o grego era dado às políticas democráticas da pólis isonômica e suas leis (HARTOG, 1996, p. 93-102). Ainda sobre o conceito de bárbaros, Reinhart Koselleck (2006, p. 202) nos diz que Jacob Burckardt usa uma argumentação dos gregos para conceituar os bárbaros, quando os helenos dizem que os bárbaros não tinham consciência histórica, que não conheciam a diferença entre passado e presente. Burckardt não concorda que só os gregos tinham essa consciência, mas considera um argumento convincente a respeito do que poderia diferenciar os bárbaros dos outros. Koselleck (2006) também nos mostra que quando o Império da Macedônia fundiu praticamente todo o mundo conhecido esse conceito também se alterou, sendo que a oposição entre heleno e bárbaro deixou de se configurar àqueles que habitavam ou não a Hélade e passou a ser algo que se poderia ser adquirido por meio da cultura. Desse modo, heleno passaria a ser a pessoa de cultura grega e que teria condições de exercer funções políticas no Império, ideia que Semíramis Corsi Silva (2014) demonstra ao dizer que os romanos também se apropriaram dela ao governarem a parte oriental de seu Império no século III d. C. Os romanos consideraram bárbaros aqueles povos que viviam fora das fronteiras do Império, mas também aqueles que mesmo dentro do Império não compartilhavam valores de uma elite greco-romana. O conceito foi utilizado também na Idade Média ao tratar-se dos povos que ameaçavam as fronteiras do mundo cristão, como os nórdicos, os sarracenos, os ávaros, os magiares, os eslavos e os turcos. Também na Era Moderna tal conceito foi usado como uma justificativa dos ideais expansionistas colonizadores europeus, sendo que é utilizado ainda hoje de forma histórica e política, isto é, quando são desenvolvidos trabalhos historiográficos que utilizam o conceito, ou quando realiza-se discursos políticos que tentam contrapor o Ocidente “civilizado” a outras culturas, como a islâmica, por exemplo (KOSELLECK, 1996, p. 197-206).

14

Trabalharemos também com a ideia de Estado romano trazida por Norberto Luíz Guarinello (2013), a partir do que ele fala que o Império foi possibilitado graças aos séculos de integrações anteriores na bacia do Mediterrâneo, e que as cidades foram sua base de sustentação. Ele afirma que a unidade imperial sempre foi instável, e que isso se confirma graças às tentativas de criação de uma identidade romana e do fortalecimento do poder militar através da criação de um exército profissional. Ele afirma que, ainda assim, o Estado foi o maior agente unificador do Império. O conceito de civilização é outro conceito que utilizaremos em relação à ideia que dele tinham os romanos. Norbert Elias (1939) mostra a historicidade desse conceito desde o período medieval. Max Botelho (2012, p. 61), contudo, nos informa que civilização era aquilo que os romanos atribuíam a si em detrimento dos bárbaros que não a tinham, sendo que para os romanos, os bárbaros não civilizados eram considerados incultos, selvagens, cruéis, desumanos e sanguinários. O nosso trabalho buscará justamente desconstruir a ideia do senso comum de que os romanos tiveram uma visão unânime da totalidade dos bárbaros durante toda a sua história. Contudo, podemos estabelecer que para os romanos, a civilização era um atributo da sociedade deles, estando vinculada a uma série de comportamentos que eles julgavam mais refinados do que os dos estrangeiros, podendo estes estrangeiros se aproximarem ou se distanciarem de tais comportamentos. Outro conceito fundamental em nosso estudo é o de identidade. De acordo com Guarinello (2010, p. 116), nas últimas décadas as identidades passaram a ser encaradas pelas Ciências Humanas como construções sociais que envolvem processos de inclusão e exclusão e são o foco principal da descrição da ação de grupos no mundo. Guarinello diz também que nos últimos anos desfizeram-se as noções de uma identidade grega ou romana como entidades fixas, sendo ressaltada nas análises da documentação sua instabilidade ao longo do tempo, seus processos de mudança e sua eficácia social. Para o estudo do Império Romano descontruiu-se a ideia de uma identidade romana imutável imposta às províncias que poderiam rejeitá-la ou aceitá-la em bloco. Semíramis Corsi Silva (2014, p. 17), por exemplo, nos fala da possibilidade de identidades conviverem juntas na mesma pessoa no Império Romano através do exemplo do sofista Favorino que, segundo o também sofista Filóstrato se identificava como gaulês e romano ao mesmo tempo. Ainda sobre o conceito de identidade, Fredrick Barth (2000, p. 27-39) explica que um grupo étnico não pode ser visto simplesmente como um grupo que têm uma

15

comunhão de raça, cultura e língua, mas que se configura, sobretudo, pela identificação de si e identificação por outros como pertencente a um grupo e não a outro, a partir da exibição de signos culturais que podem ser irrelevantes aos olhos do antropólogo que vê de fora, mas que são essenciais para tais grupos se identificarem. Nesse caso, a identidade não equivale exatamente ao grupo étnico, porque uma pessoa não pode pertencer concomitantemente a dois grupos étnicos. Esse conceito ainda guarda reservas com relação à antiga ideia de comunhão dos três fatores anteriormente citados: raça, cultura e língua. Nesse caso, um aristocrata como Sidônio Apolinário pode ter uma dupla identidade no Império Romano de sua época, identificando-se como gaulês e como romano, sendo, por tal razão, chamado por nós de galo-romano. Quanto à divisão dos capítulos, organizamos nosso trabalho da seguinte forma: no primeiro capítulo contextualizaremos o período em que viveu Sidônio Apolinário, apresentando, especialmente, a situação dos povos por ele representados e aqui estudados. Neste capítulo utilizaremos obras de autores como Renan Frighetto para tratar de tais povos de forma geral e de outros historiadores como Dominique Barthélemy, Maria Elvira Gil Egea e Agustín Lopez Kindler, para tratar respectivamente dos francos, dos vândalos e dos burgúndios. Discorreremos sobre a historicidade desses povos errantes desde suas origens falando com ênfase de suas trajetórias e suas atividades políticas no Império Romano do século V d. C., e suas relações com Sidônio Apolinário. Nessa parte também trataremos sobre a ideia de queda do Império Romano na historiografia, apresentando alguns dos principais autores que serviram como expoentes dessa ideia e ou daquela que a ela se opõem. No segundo capítulo trataremos sobre o autor de nossa documentação e sua obra. Buscaremos mostrar com foi a trajetória de Sidônio Apolinário e como se deu sua formação cultural no contexto em que viveu. Trataremos também sobre sua carreira e suas habilidades políticas e sobre a escrita de suas obras, o que nos pode fazer compreender aspectos de seus discursos e das suas representações dos povos que estudamos, o que nos elucidará sobre elementos das representações na dinâmica de suas negociações político-culturais e estabelecimento e delimitação de fronteiras étnicas e identitárias. Já no terceiro e último capítulo, analisaremos a representação de cada povo apresentado nos panegíricos, contextualizando-as e buscando compreender o que Sidônio mostra através de tais representações de acordo com simbologias e metáforas, bem como com as outras figuras de linguagem das quais ele se utiliza para elaborar seus

16

discursos laudatórios. Buscaremos, enfim, compreender o que significava ser “bárbaro” no Império Romano de Sidônio Apolinário e como funcionavam os jogos políticoidentitários conforme os anseios do autor. Nas Considerações Finais resumiremos os resultados obtidos durante a análise dos

Panegíricos

e

das

leituras

historiográficas.

16

1.

O CONTEXTO DE SIDÔNIO APOLINÁRIO 1.1 OS BÁRBAROS E SUA INTEGRAÇÃO NO IMPÉRIO ROMANO

O contexto por nós trabalhado, os séculos IV e V, mais especificamente o século V quando viveu Sidônio Apolinário, é um período em que temos um movimento progressivo de integração entre os romanos e alguns dos povos germânicos que já viviam nas fronteiras imperiais desde os tempos do Principado7. Tais povos terão grande influência social, cultural e política sobre os romanos durante esse período e alguns líderes “bárbaros” empreenderão movimentos visando obter os benefícios políticos que gozavam os que eram cidadãos romanos. Assim, essas integrações e esses acontecimentos forjarão a própria sociedade romana tardia, sendo uma de suas marcas. Uma das principais características desse período será o processo de independência política de regiões ocidentais com relação à sua capital Roma, ou, mais para o fim do período após reconfigurações políticas, Milão e Ravena, a partir da formação de reinos romano-bárbaros dentro das terras imperiais por segmentos aristocráticos “bárbaros” e romanos. Para Renan Frighetto (2012) isso não representou o colapso da civilização romana, uma vez que talvez represente a força do regionalismo, uma característica dos conflitos militares tardo-antigos. Observamos também que alguns desses reinos se veem ideologicamente vinculados a Roma ou a Constantinopla e como representantes do imperador em uma determinada parte. Devemos destacar que é nesse momento também que, como um movimento inerente à integração, o conceito de civilização clássico-helenística foi sendo substituído pelo de civilização cristã, fenômeno que mostra que elementos da civilização clássicohelenística greco-latina se fundiram com elementos patrísticos e deram origem a este novo conceito, que, aos poucos, por sua vez, se transformou do conceito de uma civilização cristã abrangente para o de uma civilização cristã católica que não era capaz de compreender elementos heréticos. Durante o período que segue vemos também a ideia de príncipe cristão sacratíssimo ser transportado dos imperadores romanos para os reis romano-“bárbaros” (FRIGHETTO, 2012, p. 133-134).

7

Compreendemos como Principado o período dos três primeiros séculos do Império Romano, de Augusto a Dinastia dos Severos.

17

O século V, em que viveu Sidônio Apolinário, viu ocorrer o desaparecimento do Império Romano Ocidental enquanto entidade política, um dos acontecimentos mais polêmicos e estudados da História, que aconteceu no momento em que Odoacro, rei dos hérulos da Itália, depôs Rômulo Augústulo, considerado o último imperador romanoocidental. O total esvaziamento de poder imperial romano no Ocidente fez com que esse acontecimento fosse considerado o marco do fim da Antiguidade e o início da Idade Média. Todavia somos capazes de perceber que por todo o século V a perda do poder militar centralizador de Roma sobre as províncias ocidentais já era fato que se consumava lenta e progressivamente, e que os conflitos regionais existentes nessas províncias com relação a Roma e com relação a elas próprias, bem como a Bagauda8, enfraqueceram o desejo político de dominação imperial. Por isso, talvez, o golpe foi capaz de se instalar sem maiores resistências (FRIGHETTO, 2012, p. 135). Um dos povos germânicos que fizeram parte desse processo foi os francos. Frighetto (2012, p. 161) diz que desde a segunda metade do século III esse povo se encontrava nas regiões limítrofes das províncias romanas da Germânia e da Bélgica, e que nessa época eles se fixaram como aliados dos romanos dentro de suas terras. Dominique Barthélemy (2010, p. 60-61) nos informa que os francos, juntamente com os alamanos, invadiram e saquearam as terras gaulesas em 257 e forçaram as cidades galoromanas lá estabelecidas a se retraírem e se tornarem oppida9 novamente, à maneira celta, com grandes castelos que perdurarão até o período medieval. Podemos supor que após um período de saques e disputas pela Gália, os francos firmaram pacto de federação com os romanos e lá se estabeleceram. Barthélemy também nos informa que o bispo Isidoro de Sevilha diz que o nome deles significa “feroz” e “livre”, logo, guerreiro. Os francos se formaram a partir de uma liga daqueles que o historiador romano Tácito chamava de catos juntamente com seus vizinhos, e parecem ser próximos dos alamanos. Barthélemy (2007, p. 64) ainda nos diz que em 267, quando os francos foram detidos no norte da Gália, e, logo depois, federados, eles adquiriram um novo estatuto 8

A Bagauda foi um tipo de rebelião de caráter social ocorrida na Gália e na Hispânia levada a cabo por multidões rurais sob o domínio patronal, juntamente com monges fanáticos e camponeses. Esse tipo de rebelião foi duramente reprimida pelas forças imperiais. Mais sobre esse tema ver: SILVA, U. G. Rebeldes contra o Mediterrâneo. MARE NOSTRUM: História e Integração no Mediterrâneo Antigo, v. III, 2012, p. II-1. 9

Cidades célticas fortificadas que tomarão a forma de castelos da Antiguidade Tardia, perdurando até a mutação do ano 1100.

18

social e modificaram alguns de seus costumes germânicos, como por exemplo, quando deixaram de incinerar seus mortos e passaram a enterrá-los. O historiador ainda diz que o grupo de francos que ficou na Gália desde o século III assimilou elementos gauleses e são, portanto, galo-francos. Nas palavras do autor “a história verdadeira não é tanto aquela de uma invasão brutal quanto a de uma infiltração progressiva em um mundo romano

onde

o

Estado

finalmente

se

enfraquece

diante

da

aristocracia”

(BARTHÉLEMY, 2010, p. 65). Portanto, como vemos não houve uma substituição total de elementos romanos por elementos bárbaros germânicos, como muitas vezes a historiografia baseada na ideia de queda do Império Romano tratou, mas uma integração lenta e progressiva. Já para os francos renanos, defensores do Império, o século V inicia em 31 de dezembro de 406, quando os vândalos se libertam do limes10 e pressionam as fronteiras imperiais. No entanto, será preciso esperar o ano de 470 para que Sidônio Apolinário os descreva entrando na cidade de Lyon sob o príncipe Sigismero (BARTHÉLEMY, 2007, p. 66). Clóvis foi eleito como rei dos francos em 481, e unindo a maior parte dos clãs, combateu os seus rivais unidos em torno de Siágrio, em 487, e começou a desenvolver uma relação de amizade com os galo-romanos, o que facilitou sua expansão por outras regiões da Gália. Os alamanos foram combatidos pelos francos liderados por Clóvis, e derrotados na batalha de Tolbiacum, em 496. Reza a lenda que a conversão de Clóvis ao cristianismo niceno é uma consequência dessa batalha, ao estilo da conversão de Constantino, uma vez que o rei dos francos também teria tido um sonho antes da batalha. Frighetto (2012, p. 162) aponta que o bispo Remígio de Reims, integrante da corte de Clóvis, e a princesa burgúndia Clotilde, com quem ele se casou, podem ter influenciado sua conversão, o que facilitaria sua aproximação com os galo-romanos. Clóvis, em 507, auxiliado por francos renanos, pôs fim ao Reino Visigodo de Tolosa, atendendo aos interesses dos galo-romanos que há tempos já não mais se satisfaziam com a existência desse reino na Gália. Clóvis enfrentou uma hoste de 20 mil homens, entre os quais estavam aqueles trazidos por Apolinário, filho de nosso autor, na batalha de Vogladum (atual Vouillé, França) (BARTHÉLEMY, 2010, p. 69). Anastácio, o imperador oriental, por conta disso, concedeu ao rei dos francos nessa época os títulos

10

A forma como os romanos se referiam às fronteiras limites do território do Império, podendo serem marcados por diversos tipos de fortificações ou até mesmo abertos e em maior conexão com os povos de fora do território romano.

19

de Augusto e Cônsul, o que possibilitou que sua autoridade régia fosse reconhecida sobre toda a Gália em 511 no Concílio de Orleans. Clóvis morreu neste ano e dividiu o patrimônio para seus quatro filhos, Teodorico I, Childeberto I, Clodomiro e Clotário I, que estabeleceram suas respectivas cortes em Orleans, Paris, Reims e Soissons, todas na metade norte da Gália romana. Outro povo de origem germânica a guerrear e a se integrar de alguma forma às estruturas do Império Romano do Ocidente11 no contexto que trabalhamos foram os godos. As tribos greuntungo-godas foram derrotadas pelos hunos nas regiões sul da atual Ucrânia nos anos 375-376, sob o rei Ermanerico. Os godos que viviam nas regiões limítrofes com a província romana da Mésia, na beira do Danúbio, sob os chefes eleitos Alavivo e Fritigerno, solicitaram seu ingresso nos territórios imperiais romanos, o que foi aceito pelo imperador romano oriental Valente. Este fato propiciou o surgimento de um poder paralelo ao imperial dentro das terras romanas, evento que teria grandes 12 consequências no século V até o século VIII (FRIGHETTO, 2012, p. 136-137).

1 - Mapa mostrando o deslocamento de visigodos e outros povos em territórios do Império Romano

11

Após as experiências tetrárquicas de Diocleciano e as peripécias político-territoriais da dinastia constantiniana, o imperador Teodósio, em 395, dividiu definitivamente o Império Romano em dois: Império Romano do Ocidente, com capital em Milão, inicialmente, mudando-se para Ravena em 402; e Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla.

20

Disponível em: http://www.ancient.eu/uploads/images/242.gif?v=1431031357 Acesso em: 14/08/2016

Os grupos godos estabeleceram-se no Oriente romano enquanto federados militares, e deveriam receber soldo e annona13 por parte do governo imperial. Todavia, o empobrecimento do Império impediu que esse trato fosse cumprido tal como combinado, o que serviu como pretexto para os godos iniciarem uma revolta contra o poder romano sob o rei Alarico. Alarico pertencia à família aristocrática goda dos Baltos, que estavam ligados às lideranças que prometeram ao resto do seu povo ainda no Danúbio que eles forjariam um reino dentro das terras romanas e receberiam provisões por parte do poder imperial. Alarico foi eleito rei dos godos entre 395 e 398, quando o imperador oriental, Arcádio, o honrou com o cargo de mestre militar do Ilírico, o que fez com que os godos se dirigissem a uma parte mais ocidental das terras

13

Nome dado à forma de tributação em víveres presente no Império Romano após um determinado período da Antiguidade Tardia em que as moedas feitas de metais preciosos se tornaram demasiadamente escassas no Mar Mediterrâneo por conta da crise comercial romana.

21

romanas, onde enfrentaram o imperador ocidental Honório e seu tutor e líder das legiões itálicas, o “bárbaro” de origem vândala Estilicão (FRIGHETTO, 2012, p. 137-138). Alarico invadiu a Itália entre 401 e 402, sendo derrotado na batalha de Pollentia (atual, Pollenzo, Lombardia), e, nos preparativos para a campanha, Estilicão fez com que a Britânia romana fosse evacuada a fim de que as legiões ajudassem a conter os godos na Itália. Radagaiso, um dos aristocratas godos impedidos de alcançar a condição régia por conta do poder inquestionável de Alarico, reuniu alguns dissidentes, como soldados de origem sueva, vândala e burgúndia, e invadiram a Itália novamente em 406. Desta vez Estilicão fez com que toda a região do Reno fosse esvaziada de legiões romanas, o que trouxe drásticas consequências para as províncias ocidentais devido à consequente invasão dos suevos, dos vândalos e dos alanos (FRIGHETTO, 2012, p. 138-139). Alarico aproveitou-se da instabilidade política que se fez presente no Ocidente logo após a transferência da capital militar de Milão para Ravena e do assassinato de Estilicão para exigir que os itálicos cumprissem a sua parte no acordo feito com os godos após a derrota em 402, e, com a negativa, ele convocou seu cunhado Ataulfo, acompanhado de soldados hunos, para estabelecer novo cerco à Itália em 408, o que terminou em um tratado com Alarico, que recebeu avultada quantia em ouro para abandonar a antiga capital. Mas, em 409, houve outro assédio, com a presença efetiva de Ataulfo, e um último em 410, que resultou no saque de Roma pelo godos. Esse saque causou grande comoção nos pensadores pagãos e cristãos, sendo que os pagãos acusaram o abandono dos cultos ancestrais e o fechamento dos templos por parte de Teodósio como a causa da desgraça, ao passo que os pensadores cristãos, como Agostinho, viam o acontecimento como positivo, uma vez que estava ligado ao desenvolvimento escatológico da própria história (FRIGHETTO, 2012, p. 140-141). Após o saque de Roma, os godos rumaram para o sul da Península Itálica para tentarem chegar à África e estabelecer lá o seu reino, onde havia grande produção de grãos de trigo dos quais Roma e a Itália praticamente dependiam. A morte repentina de Alarico fez com que o plano não conseguisse ser concretizado, e as lealdades aristocráticas godas elegeram Ataulfo, o cunhado de Alarico, como o seu sucessor. Esse rei rumou ao norte da Itália e após um tratado com o imperador Honório, foi à Gália com o objetivo de derrubar o usurpador Constantino III, que governava aquela província há quatro anos. Como ele já havia sido derrubado pelo usurpador Jovino, os godos se limitaram a derrubar esse segundo usurpador e seu irmão Sebastião, entregando-os ao

22

imperador Honório. Segundo Frighetto (2012, p. 141-142), esse é um sinal da grande dificuldade enfrentada pelo Império do Ocidente para administrar suas províncias. A vitória dos godos possibilitou que eles exigissem grãos de trigo por parte do imperador Honório, que negou, uma vez que o Império não dispunha daqueles recursos no momento; ele impôs como condição para que o acordo fosse cumprido que os godos devolvessem sua irmã capturada desde o saque de Roma em 410, Gala Placídia. Os godos se desagradaram da negativa do imperador e como resposta tomaram a cidade de Narbona (atual Narbone, no sul da França), onde, no começo de 414, realizaram o casamento de Ataulfo e Gala Placídia, portando ricas vestes romanas num ambiente suntuoso que visava imitar o estilo da corte imperial. O imperador reagiu a isso mandando o novo mestre militar da Itália, Constâncio, para expulsar os godos de Narbona, que cercados e carecendo de toda a sorte de provisões, deixaram a Gália em direção à Hispânia, matando seu rei em Barcino (atual Barcelona, Espanha), em 415. Os godos falharam na tentativa de atravessar o estreito de Gibraltar para consolidar um reino na África e viram-se numa posição muito difícil na Hispânia, assolada pelas tribos suevas, vândalas e alanas. Eles tiveram de refazer um foedus com os romanos, devolvendo Gala Placídia e se comprometendo a combater os “bárbaros” da Hispânia. Esse pacto foi firmado em 416, e em 418 os godos expulsaram os vândalos silingos e os alanos das regiões mais ricas e romanizadas da Hispânia. Assim, os godos foram convocados a comparecer à Gália, onde receberam dos romanos terras na região da Aquitânia Secunda, com algumas regiões urbanas da Nouempopulania e da Narbonense Prima, onde ficava a cidade de Tolosa (atual Toulouse, França). A partir daí, a história posterior os reconheceria como visigodos, embora aqui continuassem a ser chamados de godos. A realeza tratou de estabelecer seu domínio sobre os súditos visigodos e romanos, realizando os sonhos da aristocracia goda desde que entraram nas terras romanas: constituir um reino dentro do Império Romano com um poder paralelo ao dele. Esse era o Reino Visigodo de Tolosa, o primeiro reino romano-“bárbaro” constituído dentro do Império Romano (FRIGHETTO, 2012, p. 143-144).

2 - Mapa do Reino Visigodo de Tolosa

23

Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=reino+visigodo+de+tolosa&rlz=1C1VASS_enBR545BR545&espv =2&biw=1093&bih=530&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwixyYbmp4_QAhVII5AKHbb YBioQ_AUIBigB#imgrc=Rzsthdd6N4uLTM%3A Acesso em: 04/11/2016

Frighetto (2012, p. 145) nos diz que as aristocracias de origem romana e autóctone dessa região viam com bons olhos o estabelecimento dos visigodos ali, uma vez que eles defenderiam a região contra o ataque de outros “bárbaros”. O autor diz que deve ter havido conflitos por causa de disputas de patrimônios, mas não foram significativos porque a lei que estabelecia que as terças partes das terras seriam para a aristocracia romana e o restante para os nobres visigodos só valia para aquelas terras que integravam o fisco imperial, não recaindo sobre as que já pertenciam a aristocratas galo-romanos. O fato dos visigodos terem contido os vândalos e os alanos, bem como a Bagauda na Península Ibérica, fez com que eles adquirissem grande influência no local, onde dominaram alguns dos principais postos militares das regiões mais ricas da

24

Hispânia, sempre com o objetivo de serem os representantes do poder imperial romano ali (FRIGHETTO, 2012, p. 146). Já na Gália, um dos principais eventos ocorridos durante a existência do Reino Visigodo de Tolosa, que contou com a participação da realeza visigoda, foi a Batalha dos Campos Catalúnicos (Campos Mauriacus, nas proximidades da atual Paris, França), no qual as forças romano-bárbaras lideradas pelo mestre militar da Itália, Aécio14, contiveram as forças de Átila, o huno, e dos soldados “bárbaros” que ele controlava, como hunos, ostrogodos, hérulos, lombardos, vândalos, suevos e outros. Apesar do rei visigodo Teodorico I ter perecido durante o combate, a realeza visigoda foi a grande beneficiada com essa vitória romana sobre os hunos, pois a partir dela, os visigodos, representados por Teodorico II (453-466), passaram a adotar elementos de corte romana, como o trono, a estola e a púrpura (FRIGHETTO, 2012, p. 148-149). 3 - Mapa mostrando a região dominada pelos hunos.

Disponível em: http://www.ancient.eu/image/3174/ Acesso em: 14/08/2016

Em 472 o pacto de federação entre visigodos e romanos deixou de existir. Isso ocorreu durante o reinado do visigodo Eurico (466-484). Eurico redigiu o seu Codex Euricianus, na tentativa de legar a seus sucessores de forma escrita as tradições políticas visigodas juntamente com as tradições romanas por eles assimiladas. O poder

14

Flávio Aécio foi mestre dos soldados itálicos no período do reinado do imperador Valentiniano III (425455), desde, inclusive, o período de sua infância, no qual o Império era regido pela mãe do imperador, Gala Placídia.

25

centralizador e independentista de Eurico revoltou membros da aristocracia romana da região, principalmente no que tangia à afirmação da identidade visigoda baseada no cristianismo ariano. Ainda que o sucessor de Eurico, Alarico II (484-507), tenha tentado reaproximar visigodos e romanos promulgando sua Lei Romana-Visigoda (Lex Romana-Wisightorum), também conhecida como Breviário de Alarico II, e tenha convocado uma reunião conciliar dos bispos católicos das Gálias em Agde no ano de 506, eles perderam o interesse da aristocracia romana, que voltou-se para os francos, sob o rei Clóvis, católico, que derrotou os visigodos na batalha de Vogladum (atual Vouillé, França), e pôs fim ao Reino Visigodo de Tolosa. Os visigodos iniciaram uma nova fase de sua história buscando formar um novo reino na Península Ibérica após um período onde ficaram fixados na Gália Narbonense (FRIGHETTO, 2012, p. 149-150). Um dos momentos mais significativos para a história política do século V foi o momento em que Átila se tornou rei dos hunos, em 435. A partir de então, Átila dominou além dos hunos diversos outros povos “bárbaros” que viviam além das fronteiras do Império Romano, desejando também dominar todos aqueles que se encontrassem dentro do Império. Atacou os burgúndios federados dos romanoocidentais em 437, e suas campanhas provocaram uma série de migrações de povos na Germânia, fazendo com que os saxões passassem à Britânia em 440. Conhecendo a fraqueza dos dois impérios, Átila atacou os Balcãs a fim de exigir pesados tributos do Império Romano do Oriente para que ele se mantivesse neutro. O imperador Teodósio II reconheceu-o como rei dos “bárbaros” e mestre militar do Império Romano Oriental, renovando diversas vezes o pacto na década de 440, sendo que a partir de cada renovação Átila passava a receber tributos cada vez mais altos. Mas a insistência do rei huno em dominar os “bárbaros” federados do Império Romano do Ocidente, como os visigodos, os burgúndios e os vândalos da África, fez com que ele propusesse ao imperador ocidental Valentiniano III de se casar com a irmã dele, Honória. Mesmo conhecendo as fraquezas do Império Romano Ocidental, o imperador negou as solicitações de Átila, no momento em que ele se preparava para invadir a Gália, quando foi derrotado pelos francos, pelos visigodos e por Aécio na batalha dos Campos Catalúnicos, em 451. Após essa derrota, tomou cidades Itálicas enquanto retornava à Panônia, como Milão, Verona e Aquileia, em 452, e, rumando ao sul da Itália, foi demovido pelo Papa Leão I em Mantua. De lá Átila retornou à Panônia e morreu em 453 (FRIGHETTO, 2012, p 147-149).

26

Já em relação aos burgúndios, outro povo de origem germânica que aparecerá em nossa documentação, sabemos que estes habitaram a costa do Mar Báltico entre os séculos I e II d. C. Na metade do século III apareceram já na região do Reno, quando esse rio os separava dos francos e dos alamanos. Atravessaram-no em 406 e alguns anos mais tarde, em 413, assentaram-se na região da Germânia Prima, em territórios que abarcam a atual Renânia e regiões vizinhas, formando um reino com capital em Borbetômago (atual Worms, Alemanha), atuando, num primeiro momento, como federados do Império Romano do Ocidente. Tentaram se expandir rumo ao oeste em 437, e acabaram sendo derrotados por Aécio e pelos hunos. Posteriormente foram assentados por Aécio na região da Saboia em 443, e dali seguiram tentando expandir-se até que foram definitivamente derrotados pelos francos em 434 (KINDLER, 2005, p. 13-14). Por fim, temos os povos vândalos. Os vândalos exerceram uma influência política significativa no Mediterrâneo do século V ao constituírem um reino na região do norte da África. Em 406, como nos mostra o historiador Danilo Gazzotti (2013, p. 89) através da análise da obra de Paulo Orósio, os vândalos se aliaram com outros povos de origens germânicas, os suevos, os alanos e os sármatas, com o objetivo de penetrarem na região da Gália, parte do Império Romano, enfrentando ali os francos numa sangrenta batalha. Descendo a região da Gália, eles passaram também a ocupar partes da Península Ibérica neste mesmo contexto, como aponta Gazzotti (2013, p. 89). Nessa região, os vândalos silingos ocuparam as regiões da Bética, os alanos a Lusitânia e a Cartaginense, e os suevos e os vândalos asdingos dividiram a Gallaecia. Neste contexto de ocupação dos vândalos de partes do Império Romano, destacamos a participação de Genserico. Este líder vândalo nasceu aproximadamente em 389 numa região próxima da Dácia (atual Hungria), sendo filho do rei vândalo silingo com uma escrava. Genserico acompanhou seu povo durante todo o trajeto de ocupação de partes de províncias do Império Romano do Ocidente, estando entre os vândalos quando eles penetraram na região da Gália, juntamente com os alanos e com os suevos, e, posteriormente, quando o fizeram na região da Hispânia. Tornou-se rei dos vândalos e dos alanos em 429 após a morte de seu meio-irmão Gunderico. Entrou na África romana através de Ceuta a fim de conquistar esse território que se encontrava naquele momento desprotegido por conta de um atrito entre o procônsul romano Bonifácio e Gala Placídia, a regente do Império Romano do Ocidente (EGEA, 1997, p. 108).

27

Em regiões africanas, as forças vândalas de Genserico dominaram, primeiramente, a Mauritânia. Em 435 o imperador romano Valentiniano III considerou os vândalos como federados do Império Romano do Ocidente e lhes concedeu a Numídia. Em 439, o rei Genserico dominou a cidade de Cartago e a transformou na capital do seu reino. Em uma aliança política ocorrida em 442, Genserico acertou os termos do casamento de seu filho Hunerico com Eudócia, a filha mais velha do imperador Valentiniano III. Os vândalos dominaram a África romana até a primeira metade do século VI, quando foram derrotados pelas forças do imperador romano Justiniano, imperador do Império Romano do Oriente (FRIGHETTO, 2012, p. 156). Genserico e os vândalos saquearam e dominaram a Sicília em 440 e a Sardenha em 455 e combateram os diversos imperadores e mestres militares que se sucederam no Império Ocidental durante o período turbulento que seguiu entre 455 e 476 (FRIGHETTO, 2012, p. 157). Em 455 levou seus soldados a saquearem Roma, assassinando o imperador usurpador Petrônio Máximo. Por meio de diversas alianças intercaladas por períodos conflituosos com o Império Romano do Oriente, Genserico conseguiu manter a Sicília sob seu domínio até sua morte em 477 (EGEA, 1997, p. 114). Portanto, como vemos, o século V foi um contexto de muitas batalhas e integrações entre romanos e povos germânicos conhecidos como “bárbaros” e entre os próprios “bárbaros” nas fronteiras e dentro dos limites do Império Romano, o que o reconfigurou totalmente. É neste contexto turbulento que Sidônio Apolinário viveu e desenvolveu sua produção escrita, que será, inevitavelmente, resultado de sua contemporaneidade, especialmente se percebermos quem foi nosso autor, um membro dos grupos privilegiados e um atuante ator político no cenário romano-bárbaro, como veremos no próximo capítulo.

1.2 AS DISCUSSÕES ACERCA DO CONCEITO DE ANTIGUIDADE TARDIA O texto de Gilvan Ventura da Silva e Carolline da Silva Soares, O “fim” do Mundo Antigo em debate: da “crise” do século III à Antiguidade Tardia e além (2013), parece-nos bastante elucidativo no que tange aos conceitos usados para a compreensão dos processos históricos que estavam sendo vivenciados pelo Império Romano no momento em que estamos trabalhando. Diante disso, tal texto será um dos norteadores

28

do debate que apresentaremos a seguir, apresentando reflexões sobre os processos que interferiram na criação da ideia de “queda do Império Romano” e nos debates que questionam tal ideia. Segundo Silva e Soares (2013, p. 139-142), o período imperial romano foi dividido pela historiografia em dois subperíodos chamados de “Alto Império” e “Baixo Império”. No entanto, por tais termos poderem ser confundidos com a divisão entre um período de esplendor e riqueza e outro de empobrecimento e decadência, são substituídos pelas expressões “Principado” e “Dominato”, que, por sua vez, são nomenclaturas que se fixam, sobretudo, no âmbito político em detrimento de outros, podendo o nome “Dominato”, então, ser substituído por “Antiguidade Tardia”, termo que, como observamos, destaca também aspectos culturais de tal período histórico, no qual elementos greco-romanos estão hibridizados com elementos “bárbaros”, o que o define como uma época de transformações e não de decadência (SILVA; SOARES 2013, p. 191). Silva e Soares (2013, p. 143-145) explicam que Herodiano e Dião Cássio, historiadores greco-romanos do século III, enxergaram o período em que viviam como uma época que sucede a um período dourado, e, para eles, a dinastia dos Severos seria o começo da ruína dessa “Idade de Ouro” cuja dinastia dos Antoninos havia sido a última a governar. Escritores cristãos como Cipriano de Cartago, por sua vez, viam os mesmos fatores que os pagãos como a causa da ruína, fatores tais como: invasões de povos bárbaros; guerras; usurpações; catástrofes naturais; fome e epidemias. Todavia, estes últimos culpavam a adesão ao paganismo e as heresias como a causa dos males, e diziam que, por causa disso, o Apocalipse estava próximo. A partir das obras desses historiadores antigos, o historiador francês Jean-Michel Carrié (1999, p. 14-17) nos fala sobre os estudos a respeito do “declínio do Império Romano” na Idade Moderna. Segundo ele, Le Nain de Tillemont, que viveu na Idade Moderna, foi o grande precursor do estudo da “decadência do Império Romano”, sob o ângulo único dos estudos dos imperadores cristãos. Também Jean Magnus, em sua História dos Godos e dos Suevos, de 1544, apresentava os “bárbaros” como libertadores do um mundo submetido aos déspotas romanos. Já no século XIX, os nacionalistas buscavam as origens de tal nacionalidade no período final da Antiguidade. Os alemães, por exemplo, se viam como os contestadores do jurisdicismo romano, enquanto o historiador francês romântico Fustel de Coulanges limitava o peso dos germanos nos acontecimentos.

29

O que vimos nos estudos acima mencionados foi uma tentativa de prever os destinos do mundo no qual se vivia estudando o “declínio do Império Romano”. Mas, tais estudos somente reproduziram os clamores e silêncios dos antigos em relação ao mundo deles próprios, sem perceber que esses antigos muitas vezes tentavam achar alguém para culpar pela crise que estavam vivendo no momento, a transformando em crise geral da civilização. Assim, para Carrié, tais estudiosos fizeram leituras sem crítica da documentação. Portanto, é preciso questionar as fontes da Antiguidade, sobretudo as da Antiguidade Tardia, porque é uma época repleta de contradições e conflitos. Existem outras fontes mais objetivas, baseadas em outras ciências auxiliares da História, como a papirologia, a numismática, a arqueologia e a epigrafia, que podem apresentar um contrabalanço com relação aos pontos de vista expostos pelas fontes escritas (CARRIÉ, 1999, p. 17-20). Portanto, ao que nos parece houve uma leitura acrítica da documentação legada pelos próprios romanos antigos por alguns historiadores e pesquisadores. Diante disso, Carrié (1999, p. 11-14) explica que o calor dos conflitos ideológicos da Idade Moderna, sobretudo o Iluminismo do século XVIII fez com que historiadores como Montesquieu, Michel Baridon e Edward Gibbon vissem o surgimento do cristianismo e a barbárie dos povos do norte, mas, sobretudo, esse primeiro fator, como a causa da “queda do Império Romano”. Notável é o fato de que Gibbon destina somente um capítulo de sua obra para falar do Império Romano do Oriente, de Justiniano a 1453, o que abre os olhos dos pensadores do século XIX para os estudos do Oriente romano. Todavia, em um século XIX com uma burguesia temerosa ante um proletariado revoltado, o tema da civilização ameaçada pela barbárie, e, posteriormente, o pessimismo trazido pela Primeira Grande Guerra no século XX, fariam com que esses pensadores fossem seduzidos pela ideia de “fim da Civilização Clássica”, que, como acreditavam os positivistas oitocentistas, estava fadada ao declínio ao mesmo tempo em que o Ocidente também se encontrava na mesma situação. A respeito disso, na primeira metade do século XX, os autores Sergei Kovaliov e Mikhail Rostovtzeff trataram de lançar luz sobre os processos históricos sociais e econômicos pelo qual passou o mundo romano do século III ao V, tirando-os âmbito puramente militar. Rostovtzeff e Kovaliov tinham ideologias políticas diferentes, sendo o primeiro defensor do tzarismo russo e o segundo, marxista. Ainda que o primeiro veja a “crise” como fruto de uma “revolução” infeliz em que um Estado ignorante, violento, corrupto e desonesto toma o lugar de uma bela civilização e o segundo veja uma luta de

30

classes liderada por camponeses e escravos contra uma elite opressora representada pela corte imperial, eles concordam ao verem o declínio do escravismo e a feudalização das terras, bem como o esvaziamento das cidades, como a causa da crise e do declínio do Império Romano (SILVA; SOARES, 2013, p. 148-149). Dessa forma, no século XX, uma série de obras surgiu tentando identificar as causas da “queda do Império Romano”; Santo Mazzarino em o Fim do Mundo Antigo, de 1959, e Luciano Canfora, em Ideologia do Classicismo, de 1980, são grandes expoentes. Arnaldo Momigliano constatará no final dos anos 1970 que os problemas de Roma no tempo da “queda” eram infinitamente menores do que os do Ocidente de sua época, quando já se vislumbrava que o “Baixo Império” deixaria de ser um espelho para as psicoses do século XX (CARRIÉ, 1999, p. 11-14). Já o historiador Joseph Vogt analisa a “crise” do ponto de vista cultural, ligada à necessidade de proteção das fronteiras, o que teria levado o regime à monarquia e ao absolutismo, no qual os cidadãos passariam a ser súditos. Apesar de analisar processos culturais e religiosos, a noção de crise histórica permanece na análise de Vogt, mediante os diversos fatores que teriam provocado o “fim do Império Romano” (SILVA; SOARES, 2013, p. 149-150). Temos nesse período a análise do historiador Roger Rémondon, que fez sua escolha por trabalhar com o conceito de “Baixo Império”, identificando o momento de crise entre os governos dos imperadores Marco Aurélio a Anastácio, fazendo com que pensassem que o período da crise, para ele, abarcaria exatamente essa temporalidade. Rémondon chama esse período de “crise do Alto Império” ou “crise do Império Romano”. Para ele, os governos de Marco Aurélio e de Cômodo anunciam o fim da pax romana, posteriormente a qual uma série de eventos levaram ao declínio do Império. Todavia, Rémondon aponta as derrotas militares empreendidas pelos romanos sobre os “bárbaros”, sobre a imperatriz oriental Zenóbia de Palmira e sobre os persas, como o motivo pelo qual a Anarquia Militar teria acabado; também contribuindo para isso as reformas militares de Galieno e as econômicas de Aureliano e Probo. Rémondon diz que isso fez com que houvesse um restabelecimento do Império ou a substituição dele por um “Império Novo” (CARRIÉ, 1999, p. 10-11). Nesse sentido, em 1981, com o título de um Colóquio organizado e publicado por Edmond Frézouls, Crise e direcionamento nas províncias europeias do Império (metade do século III – metade do século IV), todos assumiram plenamente essa periodização proposta por Rémondon (CARRIÉ, 1999, p. 10-11).

31

Para além disso, na atualidade, a descoberta de uma série de fontes novas escritas e de outras naturezas permitiu que se contestasse efetivamente a ideia de “queda do Império Romano”, e, nesse sentido, Carrié

(1999, p. 24-25) busca defender a

explicação de Marrou sobre o uso do conceito de Antiguidade Tardia. Todavia, Carrié nos diz que a mídia contemporânea parece retroceder ao comparar a decadência romana com as crises da atualidade e os imigrantes do Terceiro Mundo com os “bárbaros”. No entanto, embora a ideia de Antiguidade Tardia como um momento de transformações, negando a ideia de decadência e queda, esteja sendo amplamente usada, atualmente vemos debates que retomam a ideia de queda, embora de maneira reconfigurada. É assim que temos a proposta de Bryan Ward-Perkins, na obra A queda de Roma ou o fim da civilização (2005). Ward-Perkins chamará a atenção para as influências ideológicas e econômicas que dominam a Europa no momento atual e que influenciam na consolidação do que ele chama de nova ortodoxia, que é a visão de que Roma não caiu, e que a despeito da desintegração política, houve uma transformação e uma integração cultural entre regiões distantes do Mediterrâneo na Antiguidade Tardia, termo que ele criticará. Ele dirá que nove décimos da Europa regrediram mil anos ao princípio da Idade do Ferro em termos de conforto e cultura material, e demoraram mais mil anos para se recuperar. Assim, Ward-Perkins trata sobre os dramas e conflitos da relação entre os romanos e os “bárbaros” e diz que de forma alguma esses encontros foram pacíficos. Nesse debate se posiciona a historiadora Semíramis Corsi Silva (2014, p. 430), que diz que os historiadores que optam pelo uso do termo “Antiguidade Tardia” contrapõem-se efetivamente ao uso do termo “Baixo Império”, pois dizem que o período não representa uma época de queda ou decadência e sim de “transformação”, na qual estão presentes fortes integrações culturais e se manifestam de forma tão vívida quanto antes as instituições políticas do Império Romano. Na mesma linha de pensamento que continua se contrapondo à ideia de queda, vemos historiadores brasileiros contemporâneos como Maria Margarida de Carvalho (2003), Renan Frighetto (2012), Norberto Luís Guarinello (2013), Uiran Gebara da Silva (2006), entre outros. Todavia, esses mesmos historiadores divergirão em opinião quanto ao momento em que a Antiguidade Tardia se transforma em Alta Idade Média, o que mostra a complexidade desse processo. Em nossa opinião, é necessário, portanto, que se preste bastante atenção ao caso específico de cada província romana para que se analise em que momento os elementos

32

antigos se transformam em elementos medievais para que, assim, se possa tomar uma posição nessa contenda. Além disso, diante do trabalho por nós aqui proposto, buscaremos analisar a documentação de Sidônio Apolinário para tentar responder a questão da ideia de “queda” e/ou transformação do Império Romano através da visão de um autor que vivenciava este momento, tentando perceber se para Apolinário seu momento era ou não um momento de decadência e quais as razões que o fizeram percebê-lo de tal forma, fazendo, assim, uma crítica documental de uma obra específica, para uma região específica. Diante disso, para ajudar a construir nosso objeto de estudo e ajudar a responder tal questão, faremos no próximo capítulo uma apresentação de Sidônio Apolinário, dos aspectos de sua trajetória política e de sua produção escrita.

32

2. A TRAJETÓRIA E AS OBRAS DE SIDÔNIO APOLINÁRIO

2.1. CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA VIDA DE SIDÔNIO APOLINÁRIO15 Sidônio Apolinário (Gaius Sollius Sidonius Apollinaris) nasceu entre 430 e 433 em uma propriedade rural na região de Lugduno (atual Lyon, na França), na província romana da Gália Lugdunense. Por parte de pai, estava no seio de uma família senatorial de aristocratas galo-romanos. Seu avô paterno havia se convertido ao cristianismo e desempenhado o cargo de Prefeito do Pretório das Gálias sob o governo do imperador usurpador Constantino III. Seu pai fora também Prefeito do Pretório das Gálias sob o imperador Valentiniano III. Por parte de mãe, Sidônio descendia da casa arvernesa, da família dos Ávitos, laços que foram reforçados por seu casamento com Papianilla, filha do futuro imperador Ávito (455-456). Portanto, como vemos, nosso autor era um nobre aristocrata da Gália romana, de grande influência e laços políticos em seu momento histórico.

4 - Mapa da Gália Antiga

Disponível em: http://www.ancient.eu/gaul/ Acesso em: 15/08/2016

15

As informações sobre Sidônio Apolinário que temos foram tiradas dos trabalhos de Eric Goldberg (1995), Paul Harvey (1998) e Agustín López Kindler (2005).

33

Quando casou, Sidônio Apolinário recebeu como dote uma propriedade rural da família da esposa, Avitacum, nas proximidades do lago Aydat na região gaulesa da Arvérnia, próximo a atual Clermont-Ferrand. Segundo Agustín Lopez Kindler (2005, p. 22), Sidônio passou a gostar muito do lugar e lutou com todas as suas forças para mantê-lo independente dos visigodos no final da sua vida, quando já havia se tornado bispo e a região passava por ataques dos soldados de Tolosa, liderados pelo rei visigodo Eurico. Do casamento com Papianilla, Sidônio teve, possivelmente, quatro filhos: Apolinário, Roscia, Severiana e, provavelmente, Alcima, somente citada por Gregório de Tours na sua História dos francos. Sobre sua formação intelectual, como membro dos grupos das elites romanas do Império, sabemos que assistiu aulas de gramática em Lugduno e de retórica em Arelate (atual Arles, França), informação que também nos foi fornecida por Kindler (2005, p. 21). Formou-se nos distintos ramos da filosofia: aritmética, geometria, astronomia e música. Aprendeu com a família os dogmas da fé cristã. Desde jovem demonstrou ter facilidade para compor versos e improvisar, como percebemos ao analisar a facilidade que teve para compor seus panegíricos. O círculo de amigos de Sidônio, com quem ele se correspondia e cuja relação ele nos deixou documentada através de suas epístolas, compreendeu a alta sociedade da Gália, os honestiores, dentre os quais se encontram os grandes proprietários de terras, os membros da classe eclesiástica e aqueles que já haviam ocupado algum importante cargo público no Império e/ou na região da Gália. Dentre estas famílias estão os narbonenses, entre os quais se destacam a família de Magno, com Félix, Probo, Genário e Aranéola, bem como os Consêncios, parentes do imperador romano usurpador Jovino, e León, um exímio poeta que entendia de leis e atuou como embaixador ante o rei visigodo Eurico para conseguir livrar Sidônio da prisão. Da Aquitânia temos os Pôncios, que descendem de Pôncio Paulino, fundador da família, dentre a qual se destaca, no tempo de Sidônio, Pôncio Leôncio. Nessa família também temos Lamprídio, professor em Bordeaux, que contribuiu para que Sidônio fosse libertado da prisão de Eurico também. Esse homem tinha como irmãos Justino e Sacerdote, que também eram da Aquitânia. Na Arvérnia temos testemunhos da amizade de Sidônio com Omâncio, convidado para o aniversário de Sidônio, sendo pai de Ibéria, para quem Sidônio escreveu um epitalâmio, o Poema 11. Catulino também era um aristocrata arvernês, concidadão e talvez colega de Sidônio em algum cargo oficial; ele pediu ao nosso poeta

34

um epitalâmio em 461, todavia, Kindler diz que Sidônio não estava em condições de atendê-lo (KINDLER, 2005, p. 17-19). Portanto, vemos Sidônio Apolinário se relacionando não apenas através de seus laços de parentesco, mas também de amizades (amicitia) com a elite imperial que governava o Império Romano, especialmente na região da Gália, de onde vinha nosso autor. Assim que seu sogro foi nomeado imperador, Sidônio tratou de declamar seu primeiro panegírico, o honrando. Tal panegírico foi declamado em Roma na tomada de posse de Ávito, em 01 de janeiro de 456. Parece que por conta de seu primeiro panegírico, quando nosso autor tinha apenas vinte e cinco anos aproximadamente, Sidônio foi honrado com uma estátua sua erguida do Fórum de Trajano, por decisão senatorial. Após a deposição do sogro de Apolônio, o imperador Ávito, por Ricímero, o mestre militar da Itália, foi nomeado como imperador romano Majoriano. Os gauleses se opuseram a essa nomeação e, para ganhar o apoio dos povos burgúndios, permitiram que eles se assentassem na região de Lugduno. O novo imperador derrotou-os e, ante esse acontecimento, Sidônio se mostrou favorável aos interesses de Majoriano de colocar os burgúndios em sua condição anterior de submetidos. Para obter os favores do novo imperador, Sidônio compôs seu segundo panegírico, declamado em 01 de janeiro de 458. Após esse feito, Sidônio obteve o título honorífico de conde, todavia, Kindler (2005, p. 22-24) nos diz que não se pode determinar com exatidão o que isso possa ter significado na vida do aristocrata. Parece evidente que Sidônio tenha desempenhado alguma função oficial no Império Romano, talvez de tribuno ou notário, e até se têm especulado a possibilidade dele ter acompanhado o imperador em uma expedição à Hispânia, mas não se têm dados precisos a respeito, apenas hipóteses. Os fracassos de Majoriano ante a luta contra o rei vândalo Genserico fizeram com que Ricímero conspirasse contra ele e o assassinasse, pondo Líbio Severo em seu lugar. Esse último morreu em 465, e após dezessete meses com o trono ocidental vago, Antêmio, o genro do imperador oriental Leão I, foi nomeado imperador das partes ocidentais do Império Romano por este. Sidônio vivia em Avitacum desde a morte de Majoriano, mas quando Antêmio ascendeu ao trono, viajou novamente a Roma a fim de expor ao novo imperador as condições da Arvérnia assolada pelos visigodos de Eurico. Por conta da mediação do influente senador Basílio, Sidônio teve a oportunidade de declamar seu terceiro panegírico em 01 de janeiro de 468, e, por reconhecimento, foi escolhido como prefeito de Roma nesse ano nesse ano, importante função que exerceu

35

até o começo de 469. Esse cargo lhe fez responsável pela administração geral da cidade de Roma, seus abastecimentos, suas construções, as assembleias do Senado e da plebe. No entanto, temos um relativo silêncio de Sidônio com relação a essas tarefas, o que tem gerado muitas especulações por parte dos historiadores contemporâneos. Alguns pensam que tal fato deva ter ocorrido porque sua gestão não teve êxito; outros dizem que é porque assumir tal cargo desagradou seus amigos gauleses. Kindler (2005, p. 24-25) aponta que a causa do silêncio de informações nas obras de Sidônio deva ser o costume da época de não incluírem informações pessoais que resultem perigosas em epístolas tanto para o remetente quanto para o destinatário, e, mais ainda, porque essas informações não resultariam interessantes para o público geral. Outra questão a se considerar fundamental na vida e carreira política de Sidônio é sua vida político-religiosa. Sabemos que nosso autor nasceu em uma família cristã da terceira geração, ou seja, nasceu no contexto em que sua família já havia se convertido ao cristianismo. Vemos nesse momento a cultura clássica se mesclar com intensidade à cultura cristã. A educação que era baseada na retórica clássica da mais remota Antiguidade helênica tem agora como elementos mais importantes a serem considerados, os elementos cristãos (BROWN, 1990). As escolas filosóficas de natureza pagã vão perdendo a força até desaparecerem, uma vez que os bispos acreditam que a cultura clássica era negativa, inclusive o teatro. Entretanto, ainda assim temos que considerar que a cultura religiosa medieval receberá grandes influências clássicas, transformando a cultura filosófica greco-romana e reconfigurando em meio aos ensinamentos e às ideias cristãs. No Ocidente do Império esse movimento é ainda mais intenso que no Oriente, pois os bispos ocidentais conseguem interferir na intimidade das famílias leigas com muito mais veemência do que os bispos orientais e os monges (BROWN, 1990, p. 275283). Foi justamente em 469 que o nosso autor tornou-se bispo da Arvérnia, devido à uma tradição ligada ao coroamento da carreira política do aristocrata, que seria uma espécie de aposentadoria, o que o fez retornar de Roma para a Gália. Cumpre destacar que como bispo da Arvérnia, Sidônio agiu contra os visigodos, no mesmo sentido que o bispo Hidácio de Chaves na Gallaecia ante os povos germânicos suevos, o que nos parece ter sido uma atitude comum entre os bispos romanos daquele contexto. Assim, ele lutou com todas as suas forças contra as tentativas do rei visigodo Eurico de anexar a Arvérnia ao reino bárbaro. Entretanto, nos parece que àquelas alturas dos acontecimentos era historicamente impossível impedir

36

que uma região como a Avérnia não passasse a pertencer a um reino “bárbaro”, uma vez que várias regiões do Império Romano do Ocidente estavam sucumbindo às forças bélicas germânicas. Os visigodos, inclusive, já haviam formado um reino na região gaulesa da Aquitânia, o reino de Tolosa, que no momento de embate com Sidônio estava sob governo do rei visigodo Eurico16. Sidônio armou o povo da Arvérnia e lutou contra o rei de Tolosa juntamente com seu cunhado Ecdício, irmão de Papianilla. Nosso autor foi preso em 475 na fortaleza Lívia, próxima à cidade de Cárcaso (atual Carcassone, próxima à Toulouse), e de lá só saiu em 477, por interseção do bispo Leão I, favorável aos interesses de Eurico na Arvérnia. Sidônio aceitou a situação e viveu na Arvérnia em sua proprietária rural, até sua morte, aproximadamente entre 482 e 487. Sobre a conturbada relação de Sidônio com os visigodos, temos uma análise de suas cartas feita por Eric Johannes Goldberg (1995). Segundo este pesquisador, citando outro estudioso chamado Ian Wood, as fontes do século V são confusas e devemos criticar a historiografia positivista por ter marcado esse século como o momento expressivo da “queda” do Império Romano do Ocidente. Golberg (1995, p. 2) diz que autores da época devem ser interpretados do ponto de vista de sua identidade inconstante, e não como se tivessem uma percepção exata da realidade, pois as percepções identitárias são cambiantes e os aristocratas romanos negociam sua cultura para lidar com um mundo em mudança. Com tal afirmação corroboramos e pretendemos mostrar como Sidônio deve ser estudado desta maneira, em atitudes conflituosas e aspectos identitários cambiantes e negociáveis, por meio da análise de seus panegíricos, o que faremos no último capítulo deste trabalho. Sidônio Apolinário publicou vinte e quatro poemas e nove livros de cartas. A primeira edição dos Poemas e o primeiro livro de cartas são anteriores a 469, quando os visigodos ainda eram leais a Roma. Suas outras publicações são posteriores a 476, e podemos comparar seus primeiros escritos com os últimos para ver como ele remodela sua identidade posteriormente a esse intenso período de mudanças políticas que foi a década de 470. Estudos costumam vê-lo como uma personalidade monolítica e imutável, mas ele não está em repouso no meio do universo que se move ao seu redor, pois comparando as duas temporalidades das suas obras, a partir do que, num primeiro

16

Ver o mapa do Reino Visigodo de Tolosa no primeiro capítulo deste trabalho.

37

momento ele é um cidadão leigo da Gália cujos interesses políticos estão de acordo com aqueles da realeza visigoda ariana de Tolosa, e, num segundo, ele é um bispo da Arvérnia que deve primar pelo seu posto político ligado ao cristianismo niceno17 de Roma ao mesmo tempo em que os visigodos hereges se rebelam contra a aristocracia galo-romana, veremos que ele era uma personalidade dinâmica e que chegou a um acordo

identitário,

redefinindo

elementos

em

suas

publicações

posteriores

(GOLDBERG, 1995, p. 2). É visível que a despeito de Teodósio ter proibido que fosse cultuada outra crença que não a cristã nicena no Império no final do século IV, as maquinações políticas gaulesas levaram os aristocratas dessa região a relaxar sua intolerância religiosa contra os visigodos heréticos de Tolosa, encabeçados então pelo reio Teodorico II18. Nesse período os aristocratas galo-romanos desejavam tornar a Gália a província mais importante do Império, e Ávito, futuro imperador, foi Prefeito do Pretório desta província, procurando manter boas relações com os visigodos. Dessa forma, no primeiro livro de cartas de Sidônio percebemos claramente que a Carta I2 é um discurso laudatório que, enviado de forma premeditada a seu cunhado Agrícola, tem por objetivo honrar o rei visigodo de Tolosa. As demais cartas desse primeiro livro falam pouco de religião e Sidônio não demonstra se importar com heresia alguma até o presente momento. Como vimos, uma crise política instaurou-se na Gália no momento em que Eurico rompeu o foedus com Roma em 470. Mas em 475, Júlio Nepos concedeu toda a Gália a Eurico em troca de que ele deixasse a Provença sob domínio romano. Sidônio jamais aceitaria isso e por essa razão tentou impedir que Eurico tomasse posse da Arvérnia. Mas por trás dessa sua atitude estava o fato de que Eurico havia feito bloqueios em estradas gaulesas onde antes pessoas como Sidônio, por exemplo, podiam circular livremente (GOLDBERG, 1995, p. 4-5). Nas cartas posteriores a sua nomeação como bispo, Sidônio enfatizará sua penitência com relação a sua antiga associação com os visigodos convertidos ao arianismo. Assim, escreve quase dois livros a seus colegas bispos descrevendo seu 17

O Concílio de Niceia foi promulgado por Constantino I em 325, para resolver as contendas entre as diversas sedes episcopais, ficando determinado que o arianismo era uma heresia, embora essa decisão continuasse a ser contestada. 18 A partir da leitura dahistoriadora Helena Papa (2013), podemos definir o que foi heresia ariana no Império Romano. No século IV essa crença cristã e a fé também cristã de Niceia oscilaram no posto de ortodoxia, sendo que aqueles que eram adeptos da crença que não estava nesse status eram considerados hereges, como foi o caso dos visigodos de Tolosa e de diversos outros “bárbaros” germânicos na Antiguidade Tardia.

38

importante papel na eleição espiscopal em Bourges e enfatizando seus esforços para defender Clermont durante o cerco gótico (GOLDBERG, 1995, p. 5). O confessionário penitencial dos últimos oito livros vai muito além da humildade cristã primitiva. Sidônio admitiu em sermão público que a queda de Clermont nas mãos dos bárbaros era fruto de sua antiga associação com o arianismo godo, e, por isso, ele recebeu fortes críticas de seus colegas bispos pelo seu passado. Goldberg (1995, p. 5-6) nos diz que no último livro das Cartas, Sidônio fala que deseja que seus escritos da juventude sejam enterrados em silêncio e que nem lembra mais de quantos ele havia escrito. Sobre esta afirmação, Sidônio referia ao seu primeiro livro de cartas e aos Poemas. Sidônio usa os livros VI e VII, em especial, para ressaltar sua nova identidade ortodoxa. Essas cartas estão endereçadas quase exclusivamente a seus colegas bispos galo-romanos. Ele expressa nesses dois livros suas novas concepções ligadas a seus interesses relativos à sua nova identidade católica episcopal: estudos das escrituras, ensinos e composições de sermões, exortações de outros para que levem uma vida cristã, admoestações de clérigos rebeldes, visitas a paróquias e igrejas, reverências de locais santos, louvações de bispos que escreveram tratados teológicos e que atacaram a heresia ariana, etc. (GOLDBERG, 1995, p. 6). Enquanto Sidônio era favorável em manter relações amistosas com os visigodos, ele foi visivelmente distante de sua identidade católica ortodoxa. Após mudanças de atitudes quanto aos godos, para ele, a ordem ideal na Gália passou a ser a de galoromanos ortodoxos ligados à Igreja de Roma em oposição ao arianismo visigodo (GOLDBERG, 1995, p. 7). Os escritos sidonianos mostram como as relações entre católicos e arianos na Gália tomaram rumos diferentes daqueles do norte da Itália e de Constantinopla, pois na província em questão não havia uma autoridade centralizada como existiram Teodósio e Ambrósio, respectivamente, em Roma e em Constantinopla, que liderassem a oposição ortodoxa à heresia. Apesar disso, por meio da obra sidoniana, vemos que mesmo com o Império Romano tendo retirado seus exércitos e sua burocracia da Gália, os galoromanos estavam dispostos a defenderem-se da conquista visigoda considerada herege através do edifício da Igreja ortodoxa na Gália, nem que para isso tivessem de se aliar a Clóvis, rei dos francos. Portanto, estes são aspectos fundamentais da trajetória política de Sidônio Apolinário, a seguir apresentaremos sua obra, de onde os estudiosos tem tirado a maior

39

parte das informações sobre sua vida, material que usaremos neste estudo para compreender as representações de bárbaros por ele.

2.2. SOBRE O CORPUS DOCUMENTAL DE SIDÔNIO APOLINÁRIO Embora tenhamos intitulado este subtítulo com a ideia de corpus documental sidoniano, nos centraremos em tratar aqui de identificar os poemas de Sidônio Apolinário, uma vez que já comentamos sobre o número e propósito das cartas no subcapítulo acima e não objetivamos analisar as mesmas neste trabalho. Conservou-se um total de vinte e quatro poemas e cento e quarenta e sete cartas distribuídas em nove livros da produção escrita de nosso autor, sendo que dentre essas cartas, todas, menos uma, são de sua autoria. Dos primeiros oito poemas estão os que utilizaremos como fonte par nossa pesquisa, dentre os quais o Poema 2, o Poema 5 e o Poema 7 são os três panegíricos a serem analisados por nós, respectivamente em honra dos imperadores Antêmio, Majoriano e Ávito, dispostos na obra na ordem invertida relativa à cronologia de sua composição19. Temos seus respectivos prefácios: o Poema 1, o Poema 4 e o Poema 6, e duas cartas de apresentação versificadas, o Poema 3 e o Poema 8. Entre o Poema 9 e o Poema 24 estão o que Kindler (2005, p. 30) chamará de epigramas ou nugae, que são poemas mais curtos e com temas variados. Entre eles encontramos dois epitalâmios20, o Poema 11 e o Poema 15; uma espécie de panegírico sagrado, em honra do bispo Fausto, o Poema 16; três epigramas propriamente ditos, o Poema 13, o Poema 17 e o Poema 21; uma grande carta dedicatória, o Poema 9; e por fim uma despedida ao livro, o Poema 2421. Vejamos mais especificamente alguns elementos sobre cada um dos textos de Sidônio que utilizaremos na análise sobre as representações de povos bárbaros. O primeiro panegírico escrito por Sidônio é em honra de seu sogro Ávito e tem um tom mais pessoal que os outros dois, possivelmente pelo parentesco entre o autor e o homenageado. O texto está repleto de narrativas ligadas à vida do homenageado, como sua estirpe, nascimento, formação, campanhas militares, missões diplomáticas. Sidônio enfatiza a relação amistosa de Ávito ante os visigodos a partir de o imperador ter conseguido superar os problemas que causariam discórdias entre os povos. Este 19

Os panegíricos de Sidônio são considerados um gênero poético, como os de Cláudio Claudiano, nos quais ele se baseia. São escritos em um estilo versificado, em hexâmetros. 20 Poema em honra a um casal que acaba de contrair matrimônio. 21 A partir desse momento, o autor desejava não mais se dedicar às suas atividades literárias.

40

panegírico é mais pobre em narrativas mitológicas e volteios retóricos do que os outros dois. A história central consiste em uma assembleia de deuses na qual Roma se humilha ante Júpiter falando da desgraça de sua sorte e o deus diz que até ele sofre influência do destino, prometendo a Roma que da Arvérnia surgirá outro Trajano que a salvará, no caso, Ávito. O segundo panegírico foi composto em honra de Majoriano. Kindler (2005, p. 31) nos informa que ele foi composto quando Lugduno se rendeu ante as forças do imperador posteriormente a uma luta encarniçada. O panegírico consiste em uma nova assembleia na qual todas as províncias, também na forma de deusas, se reúnem, e África queixa-se a Roma dos desmandos que os vândalos fazem em seu solo. Roma, por sua vez a consola dizendo que Majoriano a vingará, todavia, antes deverá socorrer a sua querida Gália, que há muito também não vê um verdadeiro imperador que a vingue. Por fim, o último panegírico é composto em honra do imperador Antêmio, quando este festeja seu acesso ao trono imperial, em primeiro de janeiro de 468. O panegírico trata da família de Antêmio, a família real do Oriente, dos milagres que se produziram quando ele nasceu, de sua educação, de seu casamento com Eufêmia, a filha do imperador oriental, Marciano, e de suas campanhas bélicas. Posteriormente, Sidônio apresenta a Itália na forma de uma deusa, esta, então comparece ante o rio Tibre para reclamar dos problemas do Império e o rio encarrega Roma de comparecer ante o palácio da deusa Aurora, a rainha de todo o Oriente22, para que ela conceda Antêmio, como um herói a Roma para que ele derrote os vândalos e a salve da queda. Apresentado o autor e os elementos gerais das obras que analisaremos, os panegíricos, faremos agora a interpretação das representações de bárbaros por Sidônio Apolinário dentro de seus possíveis interesses, ações e negociações identitárias no conturbado

22

contexto

do

Império

Romano

do

Ocidente

no

século

V.

Para Sidônio, o Oriente é uma região que se estende desde o Império Romano do Oriente até a Índia, ou seja, tudo o que os romanos acreditam que exista para além das fronteiras do Império Romano do Ocidente (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Antêmio, entre os hexâmetros).

42

3. REPRESENTAÇÕES DE “BÁRBAROS” NOS PANEGÍRICOS DE SIDÔNIO APOLINÁRIO Buscamos organizar as análises das representações conforme elas aparecem dentro dos panegíricos, agrupando numa mesma análise todas aquelas relativas ao mesmo povo dentro do panegírico em questão, contudo, devido à lógica de algumas representações, optamos por analisar alguns povos juntos. A ordem de análise dos panegíricos condiz com a temporalidade na qual eles foram escritos.

3.1 OS VISIGODOS NO PANEGÍRICO DE ÁVITO Quando Sidônio escreveu o panegírico de Ávito, no ano de 455, os visigodos já haviam conquistado e formado o Reino de Tolosa e em momento de grande expansão de seu território e de seu poder político. Além disso, a nobreza e realeza desse reino, representadas pelo rei Teodorico II, encontravam-se envolvidas na conspiração que levou Ávito ao trono romano. No começo do panegírico, entre os hexâmetros 40 e 45, Sidônio apresenta uma reunião de deuses na Terra, e nela, os rios Reno, Danúbio, que ele chama de Íster, como em grego antigo, Erídano, um dos cinco rios míticos que cortam o Hades, e Nilo, por serem os rios mais antigos, ocupam lugares entre os deuses. Será pelo Íster que Sidônio dirá, ao caracterizá-lo, como fizera com os outros rios, que cavalgam os povos errantes da Cítia. Em geral, Sidônio representará ao longo de todos os panegíricos, os povos germânicos como citas ao se referir à identidade étnica dos mesmos23. Na sequência do panegírico, nessa reunião de deuses, Roma aparece como uma deusa suplicante, falando de suas glórias passadas e pedindo socorro ante suas atuais desgraças e calamidades causadas, sobretudo, por Genserico e pelos vândalos. Júpiter pronuncia palavras de consolo a ela, e nestas palavras, entre os hexâmetros 210 e 215, o deus diz que convém descrever as lutas de Roma. Se deu ordem a ti, Gália, assolada pelas tormentas das guerras, de pagar os presentes de paz ao rei godo; entre elas vieste tu, Teodoro, como refém. E tu, Ávito, seguro em tua fidelidade e por piedade, fazia uma pessoa próxima, lhe 23

Os citas eram um povo nômade que obteve diversas narrativas desde Homero, estando presentes nas Histórias de Heródoto. Os autores antigos, incorretamente, chamavam de citas todos os povos da Ásia central e sudeste da Europa (BAGNIEWSKY, 2008, p. 30). Sidônio teria feito isso com os germanos.

43 reclamas em meio da corte do príncipe vestido com peles (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 215-220).

Sidônio se refere aqui aos eventos ocorridos quando os godos, que se tornariam visigodos logo após, liderados por Valia, derrotaram os vândalos silingos e os alanos na Hispânia em 418. Os vândalos silingos tentavam dominar o território que estava sob a égide dos suevos na Galícia, e os visigodos, que os derrotaram, receberam terras na Aquitânia, constituindo o Reino Visigodo de Tolosa. Nesse trecho vemos que Sidônio fala deste episódio como algo lamentável para a Gália, uma vez que ela estava “assolada pelas tormentas das guerras”, e por isso tivera de conceder espaço aos godos em seu território. Nosso autor mostra Teodoro, um aristocrata desconhecido, como alguém que havia se tornado, segundo alguns autores, refém da corte dos visigodos, que ele em geral trata apenas como godos, e diz que Ávito, o imperador homenageado, por piedade, se fazia uma pessoa próxima nessa corte, a fim de não abandonar aos “estranhos” aquele que fora seu amigo (KINDLER, 2005, p. 178). Em nossa interpretação, apoiado nas análises sobre signos culturais do antropólogo Fredrick Barth (2000, p. 34-35), o fato de Sidônio chamar o rei dos visigodos de “o príncipe vestido com peles”, mostra a apresentação de um signo cultural de diferenciaria os romanos dos “bárbaros”, marcando nas vestimentas um aspecto básico de tal diferenciação. Contudo, na sequência, Sidônio fala que o rei visigodo Teodorico I aprovara a grande mostra de amizade de Ávito, pois isso agradara a ele. Sidônio, então, chama Teodorico de “rei endurecido”. Ele diz que, a partir disso, Teodorico I passa a admirar o comportamento de Ávito e deseja se espelhar no romano, “mas Ávito renuncia a um amigo antes que a Roma”, o que assombra o rei visigodo, que se sente ainda mais admirado de Ávito. Para nós, o fato do rei visigodo aparecer como um rei endurecido mostra a noção de Sidônio sobre as características da personalidade do “bárbaro”, podendo essa ideia ir além de uma simples fronteira étnica baseada em signos visíveis e que deveriam ser demonstrados e expostos, como acreditamos baseados novamente nas leituras de Barth (2000, p. 32), chegando mesmo a representar algo de cunho mental e comportamental. O fato de Teodorico passar a admirar o comportamento de Ávito mostra que ele é capaz de se moldar à brandura das características comportamentais romanas, sendo que Sidônio usa disso para exaltar tais características no seu homenageado, que, por sua vez, se mantêm fiel a Roma, a detentora da ordem cósmica do mundo, conforme a mentalidade aristocrática vigente na época. E o fato do rei

44

“bárbaro” se agradar ainda mais desse comportamento está por trás da ideia de que as virtudes do sogro de Sidônio, o imperador Ávito, são capazes de fazer até mesmo com que povos cujos interesses são duvidosos se curvem diante dos interesses de um cidadão romano. Sidônio, então, compara esse acontecimento ao que teria ocorrido entre Pirro, rei de Épiro e opositor de Roma em favor dos magno-gregos e Fabrício, cônsul romano do período republicano, durante as guerras de Roma contra a Magna Grécia no século III a. C., quando Pirro teria oferecido dinheiro a Fabrício para trair Roma a seu favor, e ele, mesmo pobre manteve sua lealdade a Roma, fazendo do rei um suplicante. O que vemos aqui é uma lembrança da história romana e uma projeção da mesma em Ávito, o homenageado do Panegírico, fiel a Roma mais do que a si próprio. Portanto, nosso autor, como um típico membro das aristocracias que governavam o Império Romano busca na memória e na história de Roma legitimidade para seu homenageado. Entre os hexâmetros 295 e 300, o autor apresenta a derrota que Ávito empreendeu contra um soldado huno na Arvérnia; cita o fato dele ter sido Prefeito do Pretório das Gálias a partir de 439 enquanto ela padecia sob os constantes assaltos empreendidos pelos visigodos24, que aqui aparecem como inimigos dos gauleses, uma vez que fizeram diversos saques a Narbona enquanto dominavam o Reino de Tolosa. Sidônio diz que eles haviam fixado o Ródano como fronteira natural para o reino deles, e que Aécio, o mestre dos soldados itálicos, estava tão desmoralizado que não conseguia fazê-los parar, e eles não necessitavam lutar, se não irromper. Mas quando os visigodos chegaram onde Ávito os esperava liderando soldados hunos, bastou que ele lesse uma carta e os visigodos aceitariam renovar o pacto de federação, numa passagem bem significativa que demonstra o poder que Sidônio atribuía aos romanos, ou que pelo menos ele pretendia que tivessem: Roma, ao não ficar-te a ti nem e a teus chefes outro recurso, tu, Ávito, renovas o pacto de aliança; uma vez lida uma página tua, o rei feroz se esmaga; é suficiente que hajas ordenado tu o que o mundo pede. Crerão isto alguma vez os povos futuros? A carta de um romano desmorona, oh bárbaro, tua vitória. Assim impôs o direito; efetivamente este foi o justo, pois assim se converteu em defensor das leis quem mais adiante seria seu autor, para que quem havia de ser doado aos povos como príncipe, cabeça, imperador, César e Augusto não tiveram experiência só de sangrentas batalhas (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 305-320).

Sidônio coloca a razão sobre a fúria bélica ao dizer que o direito romano é superior à belicosidade “bárbara”, e que somente o direito, que os romanos conheciam, 24

Na época os visigodos de Tolosa ainda eram chamados godos.

45

podia derrubar o poder dos estrangeiros. Dessa forma, Ávito, como imperador, tivera também essas experiências intelectuais, e não somente aquelas ligadas à guerra. Sidônio demonstra a importância cultural que os greco-romanos davam às leis, vistas como parte da unidade estatal e devendo ser seguidas para que ela se mantivesse, sendo capazes de diferenciarem os civilizados dos bárbaros, conforme nos mostra Silva (2014, p. 307, 308). Quando trata da Batalha dos Campos Catalúnicos, quando Aécio esperava em vão os visigodos como tropas auxiliares, sem as quais seria impossível vencer os hunos e seus aliados, Sidônio diz: Assim disse e Ávito, com uma promessa, deu esperança à sua petição. Sai dali sem demora e inflama o ardor dos aliados para o combate. Marchavam atrás das trombetas romanas os esquadrões vestidos com peles e o godo acudia ao ouvir seu nome; o bárbaro teme ser tido por mal soldado e sente horror, não já à ruína senão ante o opróbio. Ávito, já então como agora a esperança do mundo, apesar de ser um homem privado, lhes conduz à batalha (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 345-355).

Aqui, em seu discurso, somente Ávito é capaz de transformar os inimigos em aliados submissos a partir do que Sidônio busca mostrar, e o que se ele fez antes, pode fazer novamente agora que é imperador. Mas mesmo aliados, os visigodos aparecem vestidos com peles, o que mostra a busca por Sidônio de enfatizar a sua identidade cultural diferente, o que não impediria, no entanto, a aliança política. Ele compara essa atividade de Ávito comandar os visigodos com o voo da fênix, uma ave oriental que ressurge das cinzas em um ninho incendiada pelo sol, adquirindo uma nova juventude. A fênix aqui aparece como uma ave capaz de fazer todas as outras preencherem o espaço voando obedientemente, como Ávito fizera com os visigodos. Em outro trecho, Sidônio cita o que ocorrera quando Ávito recebeu de Petrônio Máximo a missão de expulsar os francos, os alamanos e os saxões das terras armoricanas. Ao dizer que eles desistiram de suas investidas ao saberem que Ávito comandaria os exércitos, ele escreve que “os povos e os campos estavam em poder do feroz godo”, o que demonstra a grande extensão territorial que nesse tempo o Reino de Tolosa estava atingindo. Na sequência, Sidônio diz que os chefes militares visigodos estavam a ponto de se lançar em outro empreendimento de guerra quando calmaram sua ira ao ouvirem falar que Ávito estava no território deles com uma mensagem, deixando por um momento o peso de seu poder e assumindo os direitos de um embaixador. Sidônio diz que os visigodos se assombraram, temendo que Ávito desejasse declarar guerra a eles.

46

Ele compara esse acontecimento com o mito da história de Faetonte, filho de Hélio, que incendiou a terra ao guiar o carro do Sol, e Júpiter teve de enviar um raio para jogar esse incêndio no rio Erídano, ao sul do firmamento. Nesse caso, o que lemos, é Sidônio mostrando os costumes comedidos romanos, ligados aos hábitos refinados de sua sociedade, são superiores aos costumes rudes dos bárbaros, e capazes de controlá-los tanto quanto de resolver as desordens causadas pelos estrangeiros. Após, Sidônio começa a falar, ainda dentro do discurso de Júpiter, dos acontecimentos que se fizeram presentes na corte dos visigodos. Ele diz que “certo godo”, referindo-se àquele que havia se tornado rei deles, Teodorico II, após a morte de seu pai na Batalha dos Campos Catalúnicos, se preparava para fazer outra guerra, renovando sua espada e afiando-a com sílex, disposto a lançar-se ao som das trombetas e a sepultar a terra com uma matança de inimigos insepultos, enquanto olhou o nome de Ávito que se aproximava e exclamou: “Acabou-se a guerra; dá-me de novo o arado” (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 417). Sidônio lembra que não foi a primeira vez que Ávito o fazia guardar a espada e faz alusão à “paz anterior”, uma vez que os visigodos se mantiveram pacíficos de 439 até 451. Nosso autor fala disso como algo vergonhoso e diz que a paz a que Ávito ao rei visigodo, sendo fiel a Roma, vem em prejuízo do rei. Kindler (2005, p. 189) mostra que, como poderíamos supor, isso se deve ao desejo dos visigodos de aumentarem seu território enquanto federados dos romanos na Gália. Sidônio escreve que Ávito manda Teodorico II oferecer-lhe os benefícios da paz e ao mesmo tempo dever-lhes a ele, o que significa que Ávito pede a paz em troca de não usar seu poder para acabar com o poder dos visigodos. Eles aceitam ceder à imposição de Ávito, mas continuam irados, quando Mesiano, um emissário de Ávito, os apazigua, e o rei acaba dizendo ao romano que, como nas vezes passadas, ele poderá lutar sob suas ordens, já que não o pode fazer por si mesmo. Nesse discurso vemos nitidamente que Sidônio, o romano, mostra o quanto Ávito, romano também, é capaz de promover a submissão militar de outro grupo étnico, os godos, insistindo na ratificação do poder de Roma sobre os outros povos, sobretudo aqueles que se encontram dentro de seu território como federados, pois deve ser o imperador capaz de garantir a submissão destes povos, o que Ávito já fazia, mesmo antes de sê-lo. “Enquanto o visigodo dava volta a estas ideias em seu insensível coração, se chegou a uma conclusão” (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 431-432). Nessa frase, novamente, Sidônio demonstra a noção que os romanos faziam a respeito dos sentimentos e das emoções dos “bárbaros”, afastados dos romanos por uma

47

fronteira, vista como um espaço de negociação existente entre os dois grupos em disputa, que ia se tornando rude à medida que se aproximava do lado dos estrangeiros, e que deveria ser transposta para que eles se tornassem delicados, dando voz à noção da qual ainda somos reféns até hoje, de que a civilização abranda os sentimentos de seus membros. Sidônio, ainda na voz de Júpiter falando a Roma, diz que Ávito estava vermelho de alegria em frente ao rei visigodo ainda com a cabeça alta ao ter de tomar uma decisão difícil e que lhe era desagradável uma vez que não era o que ele realmente queria, pois ela suprimia a sua soberania. Em seguida, eles entram em acordo, e Ávito segura a mão do rei e com a outra mão, a mão do irmão dele, Frederico, e Sidônio faz alusão a Tolosa como “a Paladiense”, como centro das artes liberais de Palas Atena, título aplicado a cidade por Marcial25 e Ausônio26. Nesse quadro, vemos um ritual de acordo político na qual os “bárbaros” são capazes de abrandar seus sentimentos ao submeterem-se aos romanos, transpassando a fronteira que os separa. Ele ainda usa uma metáfora mitológica para ilustrar esse acontecimento, ligada ao acordo entre Rômulo e Tácio depois que as sabinas raptadas impediram que seus pais as reivindicassem. Novamente vemos Sidônio buscar comparações nas lendas e histórias romanas. Não de outro modo, com as mãos unidas ante as estátuas dos deuses, firmaram um acordo Rômulo e Tácio, quando Hersília interpôs às sabinas entre as espadas de seus pais e seus raivosos maridos em uma guerra entre parentes sobre a colina de Palas (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 335-346).

Neste momento, então, chegou aos ouvidos dos godos a notícia sobre o que havia ocorrido em “Roma”27 devido à invasão dos vândalos e à morte do imperador Petrônio Máximo por esse povo, sendo que os imperadores estavam desterrados, o povo estava sofrendo males, e o Império estava cativo. Sidônio representa de forma bastante significativa uma reunião de anciões godos que ocorrera no dia seguinte em Tolosa: Com o novo dia se reúne o conselho de anciãos segundo o costume dos godos; seus membros permanecem em pé, velhos em anos, vigorosos em suas decisões; o vestido descuidado: os panos sujos pendem de espaldas magras; as peles, amontoadas ao redor do colo, não alcançam a tocar as panturrilhas e, deixando descoberto o joelho, um nó simples ata uma bota feita com pele de 25

Epigramista latino da Hispânia que viveu em Roma no século I e gravitou em torno da corte do imperador Domiciano. 26 Poeta e político romano do século IV que atuou como tutor de Graciano, o herdeiro do imperador Valentiniano I, tendo sido Prefeito do Pretório das Gálias quando seu tutelado subiu ao trono, tendo lutado contra os alamanos. Foi questor e ao final de sua vida, recebeu o título de cônsul. 27 A capital militar do Império do Ocidente era Ravena desde os primórdios do século V, mas Sidônio representa sempre Roma como sendo a capital possivelmente por seu passado de poder que Sidônio parecer querer negar estar em crise em termos político-administrativos.

48 cavalo. Quando essa honrosa pobreza se constituiu em senado consultivo e o rei pronunciou palavras pedindo a paz, o chefe militar disse: [...] (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 450-460).

Essa representação pode ser tornar bastante significativa a partir de nossa interpretação baseada nos estudos do já citado Barth (2000, p. 33-35), pois Sidônio nos mostra como os grupos étnico-culturais diferentes em contato elegem fatores diferenciadores para diagnosticarem o pertencimento deles ao grupo A ou ao grupo B, e isso implica que o grupo diferente julgue a performance do outro a partir de seus critério avaliativos. Isso ocorre justamente no momento em que os dois grupos entram em contato, como na situação em questão. Mas quando Sidônio fala de “honrosa pobreza” ele passa a mostrar as características dos “outros” como uma virtude que se distancia da romana. Isso não significa que os romanos devam abdicar da sua engenhosidade comportamental civilizatória, mas que ao comportamento simples dos “bárbaros” também pode ser aplicada uma visão dialética que ressalte suas características positivas. Ávito fala aos godos que preferia ter ficado para sempre em sua propriedade rural do que assumir outro cargo militar após já tê-lo feito três vezes e depois ainda ter sido Prefeito do Pretório das Gálias, mas o fizera porque o imperador Petrônio Máximo (que ele não sabia que a essas alturas já estava morto) o pedira. Então Ávito lhes pede que obedeçam ao antigo tratado, assegurando que “aquele seu amigo” o teria feito, referindo-se ao rei Teodorico I, que havia morrido em 451, há quatro anos do então momento, e diz que a grandeza desse rei morto fora lhe seguir a ele. No panegírico Ávito diz que era imaturo na época para tratar dos assuntos dos godos, e fala ao rei que ele está consciente de que com frequência ignorava o que ele havia decidido, até que o visse realizado, e diz que com o pai dele desapareceu toda a sua influência. Ávito faz alusão ao cerco de Narbona (atual Narbonne, França) empreendido por Teodorico I entre 436 e 437, quando Teodorico II era criança, e diz que Teodorico I havia obrigado com essa medida de saque a milhares de pessoas atemorizadas a comer alimentos mais e mais infames, referindo-se aos habitantes de Narbona. Teodorico I, então, preocupara-se que lhe faltaria o butim por conta do empobrecimento da região sitiada, quando aceitou o conselho de Ávito e dos seus e se retirou. Novamente vemos aparecer aqui a capacidade de Ávito de submeter os outros a si e aos romanos. Ávito fala, garantindo que há anciãos ali que são testemunhas, que Teodorico II, quando bebê, chorava quando a ama de leite o tentava tirar de perto dele, Ávito, para dar-lhe o peito, e pede, por isso, somente um presente de seu antigo amor por ele, antes

49

de dizer que faça isso ainda que não tenha nenhuma fidelidade, que não respeite ao pai dele, que seja insensível e negue a paz. Percebemos que a rudeza comportamental com a qual Sidônio havia caracterizado os visigodos neste panegírico, aqui sede espaço para a possibilidade de ser suprimida, pois ele diz que Teodorico I se comportava de forma louvável e que o filho dele pode fazer o mesmo caso queira, o que lhe aproximaria de virtudes romanas. Nesse momento então, “um murmúrio toma conta da assembleia e de um soluço; a turba rebelde prorrompe em um grito unânime de condenação às hostilidades”, ou seja, a argumentação do romano fez o “bárbaro” ceder. Teodorico II se pronuncia dizendo: „Ilustre chefe, faz já tempo te culpo que solicites de nós a paz quando poderias obrigar-nos e arrastar, como escudeiros, a nossos povos à guerra. Rogo-te não incendeie em mim a inveja nomeando a meu pai: que culpa mereço eu, se tu não ordenas? Tudo o que em seu tempo podia conseguir tu com teus conselhos, agora é suficiente que o queira e só se retrasam teus desejos porque os godos os desconhecem. (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 285-295).

A partir disso, e dessa forma, Teodorico II declara sua completa submissão à vontade de Ávito. E significativamente diz: Graças a ti me agradam desde antigamente as leis romanas e meu pai mandou que desde pequeno aprendera de tua boca o douto poema Maro para que suas velhas palavras suavizassem meus costumes citas. Agora me mostra que queres a paz. Mas toma nota de qual é a condição a nossa obediência: quem sabe aprovarás a ratificação de minha proposta (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 495-505).

Aqui, em nossa leitura, Sidônio mostra exatamente o que Barth (2000, p. 43-47) diz no que se refere aos fatores envolvidos em transformações identitárias, pois o poema de Virgílio Públio Maro é um dos signos evidenciáveis da cultura erudita romana, que caracteriza os romanos como tais, e aprendendo-o, o rei dos godos pôde “suavizar seus costumes citas”, ou seja, transpassar a fronteira que se abranda culturalmente à medida que se aproxima dos romanos, e começar a deixar de ser “bárbaro” e “se civilizar”, na visão sidoniana. Em seguida, o rei fala que da fé pelo nome de Roma que lhe é venerável pelas suas origens comuns de Marte, pois os visigodos também pretendiam ser descendentes desse deus, o que afirma Virgílio ao falar que esse deus era um dos protetores dos campos godos, em sua obra Eneida (KINDLER, 2005, p. 193). Sidônio faz o “bárbaro” dizer que também dá fé pelo nome de Roma porque desde a antiguidade o mundo não tem nada melhor do que Roma nem nada melhor do que o Senado dela, fazendo um

50

discurso político pleno de interesses ideológicos, dizendo que até mesmo os estrangeiros se reconhecem como inferiores. O rei diz que quer manter a paz com Roma e inclusive sanar o pecado do avô dele, o rei Alarico, cuja memória estaria obscurecida pela tomada de Roma em 410. Os deuses eram favoráveis aos desejos de Teodorico II e somente uma vingança naquele momento poderia purgar o crime da vingança passada: que Ávito fosse Augusto. O chefe militar, com sua modéstia, parece querer recusar, e o visigodo continua: Porque declinas essa glória? Convém ainda mais a quem não a quer. Não a impomos, mas lançamos esta declaração: “sou amigo de Roma, contigo como líder militar; soldado, contigo como imperador”. Não usurpas o império a nada; nenhum Augusto reina sobre as colinas do Lácio. Está vazio; o palácio é teu. Declaro que não me basta com não fazer dano e que oxalá sob teu império logre fazer o bem! Minha tarefa é persuadir-te: posto que a Gália te obriga, e tem direito de fazê-lo, que te obedeça o mundo, se não queres perecer‟ (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 510-520).

Em seguida, o rei e seu irmão deram sua palavra de respeitar o tratado com Roma, e Ávito se retirou preocupado, pois não podia aceitar a decisão dos godos sem consultar os gauleses. Ou seja, por mais que os “bárbaros” em questão se submetessem totalmente a Roma graças às investidas de Ávito, e que comprovadamente ele fosse o melhor dentre todos para ocupar o cargo de Augusto, ele jamais tomaria uma decisão sem consultar os seus, sendo evidenciada sua virtude romana da fidelidade ao Senado e às elites imperiais que Sidônio como membro dessa elite mostra compartilhar. Por fim, e já mais adiante, ao final do panegírico, Sidônio, ainda dentro do discurso de Júpiter, diz que Petrônio Máximo, o imperador morto, ocupou Roma, mas poderia ter ocupado o mundo com o apoio de Ávito como mestre se ele houvesse reformado todos os reinos como fizera nos campos belgas, na costa da Armórica e no reino dos godos irados, como quando Ávito reprimiu os nobres de Tolosa que ousaram saquear Narbona. Observamos então, a partir disso, que Sidônio busca sempre enfatizar as fronteiras étnicas presentes nos contatos entre as diferentes nações, deixando transparecer em algumas passagens que elas podiam sim serem transpostas, e o quanto era valioso para os bárbaros passarem para o lado dos romanos; ainda assim percebemos que esses últimos, por esforço que fizessem para abrandar seus costumes, sempre seriam bárbaros, pois ele intenta mostrar a voluptuosidade romana como estando num patamar inatingível para aqueles que dela não compartilhavam. Observamos que ele busca demonstrar sempre uma submissão dos bárbaros presentes no Império ao poder e

51

heroísmo romano, encarnados aqui em Ávito. E, para além disso vemos que a dinâmica das representações, nesse sentido, se torna positiva ou negativa dentro dos valores sidonianos, à medida que os interesses políticos, respectivamente, entram em comunhão ou se desencontram.

3.1 OS BURGÚNDIOS NO PANEGÍRICO DE ÁVITO

Na época em que o Panegírico de Ávito foi escrito, os burgúndios eram federados dos romanos na Saboia e diversas vezes aparecem como estando na corte romana e desempenhando cargos políticos muito próximos ao imperador, como aqui são representados como estando na guarda pessoal de Petrônio Máximo e podendo terem sido os causadores de sua morte. Há também alusões feitas ao tempo em que os burgúndios constituíram um reino com capital em Borbetômago (atual Worms) a partir do que intentaram se expandir rumo ao oeste e foram derrotados por Aécio e realojados na Saboia, conforme havíamos discorrido no primeiro capítulo. Eles aparecem nessa sequência porque no panegírico o segundo povo germânico a ser representado são eles, embora não tenhamos seguido exatamente essa sequência em todos os casos. Na reunião dos deuses na qual Roma se queixa estar massacrada por Genserico e pelos vândalos e Júpiter a consola, e na qual ele fala dos seus antigos feitos grandiosos, Júpiter se refere também a Aécio, contemporâneo de Sidônio, que governou o Império do Ocidente como mestre militar das legiões itálicas enquanto Gala Placídia era regente de seu filho, o imperador criança Valentiniano III, sendo que esse general continuou no comando militar até sua morte em 454 pelas mãos do próprio imperador. Júpiter fala que Aécio fora educado nas múltiplas guerras citas, das quais Sidônio cita a dos jutungos, que ocorrera em 430, quando estes haviam se unidos aos alamanos, tendo origens suevas. Nosso autor citando também as “guerras nóricas”, quando os alamanos estavam unidos, em 431, com os habitantes da Vindelícia (atual Baviera) (KINDLER, 2005, p. 178). E, por fim, Sidônio fala dos burgúndios sendo derrotados por Aécio em Borbetômago. Na voz de Júpiter, Roma ainda aparecia como uma deusa vitoriosa nessa época, capaz de submeter a todos os inimigos, papel que aqui os burgúndios começam a fazer. Ainda no discurso de Júpiter, numa parte já bem avançada do panegírico, quando o deus narra o acordo firmado entre Ávito e o rei visigodo durante uma embaixada na qual o pacto de federação entre Roma e o rei de Tolosa era renovado,

52

Sidônio escreve sobre o que teria ocorrido durante essa embaixada, quando os vândalos invadiram Roma e mataram o imperador Petrônio Máximo, colocando a culpa “no burgúndio”. Sobre essa passagem, Kindler (2005, p. 190) nos diz que se trata de uma alusão à guarda imperial do imperador composta por membros desse povo, que provavelmente o haviam traído. Enquanto tanto te toma pelas armas, desprevenida, o astuto vândalo, ao amparo do infiel burgúndio, obtém pela força que mates, em um acesso de loucura, ao imperador (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 440446).

Os burgúndios aparecem como um elemento incômodo nesse panegírico, mas Sidônio não se esforça para mostrar uma distância cultural entre eles e os romanos, e sim para mostrar o quanto eles são desagradáveis e capazes de se entregar a atitudes moralmente condenáveis. Por trás disso podemos supor que se encontra o temor do nosso autor relativo à proximidade existente entre a Saboia e Lugduno, de onde esse povo poderia tentar se expandir rumo ao oeste como fizeram em Borbetômago, dominando suas terras e toda sua região. Contudo, não há uma proximidade, pelo menos até o momento, entre os galo-romanos e os burgúndios a ponto de Sidônio querer firmar sua identidade ante o fator intruso como fizera com relação aos visigodos.

3.3 GENSERICO, REI DOS VÂNDALOS, NO PANEGÍRICO DE ÁVITO Genserico era o rei dos vândalos que estava dominando regiões da África desde 429, e cujo reino cada vez mais se expandia, sendo que no momento, após a morte de Valentiniano III, o pacto de federação entre vândalos e romanos havia sido rompido e eles assediavam a Sicília e a Itália. Os vândalos são analisados aqui por serem os terceiros representados nesse panegírico. No princípio do Panegírico de Ávito, Sidônio se refere três vezes à presença dos vândalos na África romana. Segundo Sidônio, desde a origem de Roma lhe foi assinalado seu destino, o de crescer à base de males. De acordo com a interpretação de Kindler (2005, p. 166), o último desses males aos quais Sidônio se refere foi o saque da cidade em 455 pelos vândalos, mesmo ano em que o panegírico foi composto e que Ávito ascendeu ao poder. Na sequência do panegírico, como vimos, Roma é transformada em uma personagem na forma de uma deusa. Neste momento, vemos que o autor faz alusão às

53

três Guerras Púnicas. Assim, em um discurso a Júpiter, Roma pede ajuda ao deus para que a salve da desgraça em que havia caído nos últimos tempos, da qual Genserico parece ser o principal culpado: “A ponta de minhas lanças semeou o terror no céu líbico e subjuguei por três vezes o perjuro cartaginês” (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 70-75). Devemos perceber que Genserico, assim como os púnicos, também vivia em Cartago, antiga capital do Império Cartaginês e então capital do Reino Vândalo desde 439. Em nossa interpretação, desta forma, poderíamos acreditar que Sidônio faz Roma implorar a Júpiter, o pai dos deuses na mitologia religiosa romana, para que a livre novamente dos desmandos dessa cidade mediterrânica, uma vez que mais adiante o autor mencionará o saque da cidade itálica em 455, causa da morte do imperador Petrônio Máximo (455-455), episódio que Sidônio chama de Quarta Guerra Púnica. Na continuação do seu discurso a Júpiter, Roma se queixa do fato de que antes ela reclamava dos estreitos limites do mundo que desejava dominar, mas agora nem mesmo tem um muro para si, ou seja, lhe falta proteção, como podemos compreender. Segundo Kindler (2005, p. 170), com quem concordamos, Sidônio parece fazer aqui novamente uma alusão ao saque ocorrido em 455. Na sequência, o deus Júpiter se pronuncia dizendo que surgirá um salvador para Roma vindo da região da Arvérnia, e, ao elogiar esta região, faz questão de dizer que a Líbia se curva diante da região gaulesa onde Ávito nasceu. Ou seja, Sidônio expressa claramente que o imperador Ávito, seu sogro, derrotará o rei vândalo por causa da fertilidade e riqueza de sua terra em comparação com a Líbia de Genserico. Sidônio também compara os vândalos aos godos, equiparando o saque que levou a vida de Petrônio Máximo ao saque dos godos de 410. Nesse trecho, os godos que saquearam Roma em 410 estão cumprindo o mesmo papel de inimigos que os vândalos estariam fazendo no momento em questão. Teu destino havia já quase cumprido o vaticínio dos doze abutres (conheces, Roma, sim, conheces tuas desgraças): Placídio, um semi-homem demente, executou a Aécio; e apenas havias imposto, Petrônio, em tua cabeça a diadema, quando de repente sobreveio uma onda de barbárie e pareceu que os godos iam tomar Roma e a esmagar em seu furor a todo o mundo (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 355-365).

Ainda no discurso de Júpiter, Sidônio o faz falar a Roma que ela conhece suas desgraças, iniciadas no momento em que Placídio eliminou o general Flávio Aécio, que mantinha o Império do Ocidente a salvo por ocasião de um ataque em setembro de 454,

54

semelhante ao ataque dos godos no começo do século V sobre a cidade eterna. E Júpiter diz: Como lobos vorazes (cujo olfato de nariz sagaz rastreia a pista apetitosa das ovelhas no aprisco) se inquietam, agudizam sua fome e se imaginam diante da presa, enganando a fome com uma ampla abertura de suas faces: já quase esperam devorar um terno cordeiro e a presa futura faz esmagar o paladar faminto (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 360-370).

No entanto, e para finalizar, em nossa análise a passagem mais interessante desse panegírico com relação aos vândalos está entre os hexâmetros 440 e 455, quando Júpiter recorda Roma do saque ocorrido em 455, fazendo referência ao fato como uma Quarta Guerra Púnica, como já mencionamos. Sidônio diz: Crime hediondo! De novo as pérfidas trombetas de Birsa, a fenícia, recrudescem as calamidades de uma quarta guerra. Destinos, que desgraça haveis alimentado? O exército macílio havia tomado ao assalto a fortaleza de Evandro, os soldados marmáricos acossavam os montes de Quirino e a cunha dos Barcas recuperou os tributos que uma vez havia tido que entregar ao ser conquistada (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 340-355).

Acreditamos que ela seja a passagem mais interessante porque demonstra a visão cósmica de Sidônio no que diz respeito à posição de Roma relativa à de seus inimigos, representados por Cartago por excelência e pela Cartago vândala. A vingança empreendida pela Quarta Guerra Púnica é vista como uma “desgraça”, ou seja, a ordem natural é Roma conquistar e dominar e não o contrário, e isso representava para ele a decadência da ordem. Observamos então que Genserico já aparece como o inimigo por excelência de Roma desse período, separado dela por uma vasta fronteira étnico-cultural e também por uma fronteira política, e o fato de estar centralizado o Reino Vândalo em Cartago ajuda na metáfora do autor com relação àquela que fora a principal inimiga de Roma em seu tempo de esplendor imperial.

3.4 OS FRANCOS E OS HUNOS NO PANEGÍRICO DE ÁVITO

Francos e hunos são analisado juntos aqui devido à semelhança das passagens nas quais aparecem pela primeira vez no panegírico. Os primeiros, no período, eram federados dos romanos no norte da Gália, não sendo, como falamos no primeiro capítulo, soldados disciplinados e submissos, exercendo, contudo, um importante serviço militar no sentido de preservar a ordem romana nessa região. Os hunos, por sua vez, já se encontravam no processo de desintegração de sua federação que reuniu

55

diversos povos “bárbaros” de fora do Império sob a égide de Átila por alguns anos, que aqui, já havia falecido há dois anos. Átila exercera um papel semelhante ao de Genserico, sendo um dos principais inimigos de Roma de seu tempo, por isso aqui, julgamos que Sidônio mostre os hunos exercendo papeis extremamente arbitrários. Com relação aos francos, no panegírico, enquanto Júpiter fala a Roma suplicante as qualidades de Ávito, ele diz: No sucessivo superas ao hérulo na carreira, ao huno no uso da lança, ao franco em nadar, ao sármata no uso do escudo, ao sálio a pé, ao gelono no manejo da foice; enfim, enquanto às feridas, superas a quem, quando estão de duelo e hão chorado, se ferem a si mesmos, sulcando com a própria arma seu rosto e abrindo com gesto feroz os vermelhos rastros de suas cicatrizes (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 230-241).

Essa passagem é bastante significativa porque Sidônio, através da fala de Júpiter, está tratando de características que esses respectivos grupos “bárbaros” têm como habilidades reconhecidas, constituindo-se como atividades às quais os romanos também se dedicariam e atos que eles também praticariam. Nesse caso, os francos e os sálios, para Sidônio, respectivamente, têm habilidades em nadar e em andar a pé. Os francos sálios eram um grupo franco que foi justamente o que esteve presente no norte da Gália na fronteira entre a Germânia e as terras de Roma desde o século III d. C. Aqui Sidônio os representa como povos diferentes, talvez se referindo a sálios como os francos sálios do Império Romano e a francos como aqueles que viviam na Germânia, distantes das terras romanas. Todavia, observamos que nadar a andar a pé são habilidades semelhantes que exigem preparo físico, e ambos as deteriam aqui, sendo superados apenas por Ávito. No final da passagem, ele se refere à conhecida atitude que os guerreiros hunos tomaram, como informa Jordanes na Gética, de cortarem suas faces para que o sangue que das feridas que escorreria disfarçasse as lágrimas do choro dos soldados ao verem Átila, o seu rei, à beira da morte em 453 (KINDLER, 2005, p. 180). As feridas aparecem como símbolo de virtude, e, no entanto, Ávito tem mais feridas que os hunos, capazes dessas atitudes extremas, sendo também capaz de lançar a lança melhor do que eles. No hexâmetro 246, Sidônio faz Júpiter falar que Litório, o lugar-tenente de Aécio que havia sufocado a revolta dos armoricanos entre 435 e 437, recebeu ordens de liberar a cidade de Narbona, saqueada pelos visigodos de Tolosa. Nas tropas dele estavam os soldados hunos, que Júpiter diz que saquearam a Arvérnia como se ela fosse uma terra conquistada ao passarem por lá. Eles “assolavam tudo o que lhes saía ao passo

56

com suas correrias, seus incêndios, suas matanças, crueldades e rapinas, encobrindo-as sob o nome vão da paz”. Um dos soldados hunos, então, matou um amigo de Ávito. Tu, um dos mais ferozes entre eles, que pouco depois seria ferido, feres a um amigo de Ávito. Este cai e encomenda seu triste destino a seu senhor ausente levando-se a morrer até a lagoa Estígia a esperança de ser vingado (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 250-255).

Ávito, o protetor do povo, pleno de ira então parte em luta contra os “bárbaros” ao tomar suas armas e vestir com a indumentária adequada, e, ao não ver o causador da desgraça, ataca a todos os que vê, buscando vingar na morte deles o crime do único soldado ao qual buscava. Sidônio compara esse acontecimento com o que ocorreram na Guerra de Troia, quando Heitor matou Pátroclo e Aquiles, buscando vingar Pátroclo, ao não encontrar o causador do infortúnio, atacou os troianos que viu. Nosso autor fala dos troianos como guerreiros depreciáveis por serem inimigos dos gregos, a partir do ponto de vista dos quais se narrava a guerra de Troia, e, nesse caso, os hunos ocupam a posição dos estrangeiros depreciáveis. Sidônio, na voz de Júpiter falando a Roma, fala dos hunos como inimigos dela, sendo que ali, são os interesses da Arvérnia que estão em jogo, mais do que os de Roma. Podemos ver essa representação como um discurso político que busca colocar os interesses do autor e dos seus como sendo os da própria Roma. Contudo, observamos que a Arvérnia também estava dentro das terras dominadas por Roma, e atentar contra ela, era atentar contra a ordem de todo o Império. Quando Ávito finalmente encontrou o guerreiro huno a quem buscava, chamouo de “filho da Cítia que está abaixo da Ursa”, referindo-se às constelações de ambas as Ursas, ou seja, um estrangeiro “bárbaro” que penetrara no mundo cosmologicamente organizado pelo poder romano e que ousava sabotar esse poder com seus comportamentos indesejáveis ali, pois ele lhe disse: Eia, filho da Cítia que está abaixo da Ursa, tu que estás louco e te atreves só com uma vítima inerme, comparece ante um guerreiro armado. Hei-te concedido já muito minha ira: hei-te outorgado a batalha e quero que te defendas; compraz-me haver matado quem planta batalha (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 280-285).

Há uma luta encarniçada entre Ávito, o romano, e o huno, e a lança do primeiro atravessa o segundo, enquanto a multidão vibra ao ver seu desejo realizado. A lança transpassa a couraça do huno, “rota em dois pontos”, e deles verte sangue, sendo que o seu crime é vingado na frente e atrás. Ainda no discurso de Júpiter, nosso autor fala que quando Ávito havia ficado livre de suas funções de prefeito e se entregado à paz do campo, sem jamais ficar

57

ocioso, a barbárie irrompeu sobre a Gália voltando sobre ela todas as tribos do norte. Kindler(2005, p. 184) nos mostra que Sidônio se refere à Batalha dos Campos Catalúnicos, na qual Átila guiou os hunos e outras diversas tribos “bárbaras” a ele vinculadas sobre as terras romanas, enfrentando Aécio e os germanos federados a Roma. O autor cita diversos povos que estavam vinculados a Átila, como os gelonos e os gépidas, e apresenta também os francos e os burgúndios como estando vinculados a Átila, sendo que sabemos que não diziam respeito aos mesmos que estavam federados aos romanos neste tempo, senão a outros que haviam ficado na Germânia. Sidônio diz que Átila se lançou nos campos belgas com suas hostes aterrorizantes no momento em que Aécio não tinha recursos humanos para derrotá-los, e acreditando que os visigodos viriam acudi-los, até que um mensageiro informou-o que eles não o fariam, e Aécio somente lembrou, quando já não lhe restava nenhuma solução, que poderia recorrer a Ávito. Ele fala que a única fronteira para os visigodos era a autoridade de Ávito, o que significa que era o único limite que eles respeitavam, e diz que os mesmos que lhe ofereciam guerra, concediam a Ávito a paz. E, por fim, Sidônio diz que somente Ávito, que já havia derrotado os hunos em dias passados, poderia fazê-lo novamente. Ainda no discurso de Júpiter, mais adiante, o autor fala de uma tríplice invasão empreendida sobre a Germânia Prima e a Bélgica Secunda em 455, causada pelos francos, pelos alamanos e pelos saxões, a quem somente Ávito pode derrotar. Assim também o território armoricano estava ameaçado pelo pirata saxão para quem é uma brincadeira sulcar com seu barco de pele o mar bretão e fender um esquife cozido no verde mar. O franco abatia a primeira Germânia e a Bélgica segunda e tu, feroz alamano, bebias desde o acampamento a água do Reno, arrogante a ambas margens: numa te sentias em casa, na outra vencedor (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Ávito, 369-376).

Fora ele então, nesse discurso, que foi capaz de fazer com que os invasores desses territórios, representados como Armórica (a costa atlântica da Gália, entre o Loire e o Sena, as atuais Bretanha e Normandia), deixassem-na. E ao falar disso, Sidônio fala dos alamanos, dos saxões e dos catos, sendo que estes últimos, como nos informa Barthélemy (2010, p. 59), eram um antigo povo germânico que se aliou com outros formando os francos. Ao passo que os francos são representados como inimigos de Roma por estarem ameaçando a ordem, os hunos são representados muito mais enfaticamente dessa forma no panegírico, pois, numa posição muito semelhante a Genserico, Ática também pode significar o inimigo de Roma por excelência, sendo um dos mais poderosos “bárbaros”

58

do momento, capaz de ameaçar todo o Império com seu poder. É por isso que Ávito personifica as características das virtudes bélicas romanas e é capaz de expulsá-lo no discurso de Sidônio, que sintetiza os desejos dele e de seu grupo de aristocratas, sendo por isso que Ávito é capaz de se tornar imperador. 3.5 GENSERICO, REI DOS VÂNDALOS, NO PANEGÍRICO DE MAJORIANO Os vândalos são o primeiro povo a ser representado no Panegírico de Majoriano, por isso aparecem nessa sequência, sendo que no contexto continuavam a assediar a Sicília e a Itália, fazendo o mesmo com a Sardenha, com a Córsega e com as Ilhas Baleares, negando-se a refazerem o tratado de federação com Roma, que passava por uma conflitos político-militares provocados pelo despotismo de Ricímero, com quem Genserico se nega a negociar. No começo do Panegírico de Majoriano Roma é representada como uma deusa guerreira. A deusa então se senta para receber as oferendas das províncias e a África, transformada também em uma personagem, faz uma intervenção, pedindo que Roma faça algo para livrá-la dos males que estão lhe assolando nos últimos tempos, todos eles causados pela dominação vândala que devora todas as suas riquezas. Venho como terceira parte do mundo, desgraçada pela boa sorte de um solo. Este depredador, filho de uma escrava, depois de eliminar os meus chefes, tem mantido desde muito tempo minha terra sob um cetro estrangeiro; uma vez que é um ambicioso calculista e sem escrúpulos, em sua demência erradicou completamente a nobreza e este louco ambicioso não ama nada que não seja loucura (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 5065).

Sidônio representa a forma desarmônica pela qual Genserico havia se relacionado com a aristocracia africano-romana e com o clero ortodoxo daquele continente, que se opunha à fé ariana dos vândalos28. Na sequência, entre os hexâmetros 85 e 100, a mesma África se desculpa com Roma porque os vândalos lhe obrigam a empreender guerras contra a sua ama, falando de maneira metafórica que apesar da fraqueza do rei vândalo, ele se sente protegido por trás das ondas como um javali que se esconde atrás de bosques profundos. Sidônio representa a nobreza guerreira vândala como uma manada de cães coagindo seu dono a lutar em campo aberto, embriagados de raiva pela voz do dono, esquecendo a dor das feridas. 28

Mais informações ver: FRIGHETTO, 2012, p. 161.

59 Que culpa tenho eu? Os destinos me obrigam a empreender guerras contra ti, queira ou não queira. O inimigo que agora te ameaça, tomba ele mesmo, mas se sente seguro atrás do refúgio das ondas, a maneira do javali peludo que se esconde atrás dos bosques profundos e, ali encerrado, afia as brancas defesas das que está dotado seu negro focinho; uma matilha de cães lhe rodeia com seus latidos; lhe desafiando a lutar em campo aberto, mas ele, por trás da barreira de espinhos, se enche de orgulho, débil em forças, mas forte por sua posição, até que, ai! O caçador de perto da um grito desde a colina. A conhecida voz do dono reaviva o furor dos cães fatigados e então a raiva cega menospreza a dor das feridas (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 85-100).

Percebemos que a metáfora acima aproxima os germânicos, tidos como bárbaros pelos romanos, dos animais e mostra-nos claramente como um galo-romano que se considera civilizado enxerga o inimigo da única sociedade que ele considera “civilizada”. Vemos como para Sidônio os seus ideais de humanidade estão ligados aos greco-romanos, em contraposição aos “bárbaros” animalescos. É o ideal de humanitas, componente central da autodefinição da cultura romana durante o Império versus a ideia de feritas, a irracionalidade dos povos considerados bárbaros (WOOLF, 1998, p. 60), que os condiciona a um estado de animais29. Posteriormente, a personagem África insistirá em suas críticas ao rei, falando, entre os hexâmetros 325 e 335, que os vícios de Genserico arruinaram a força de sua raça e suas virtudes citas. A personagem África dirá ainda, nas palavras de Sidônio, que a vida luxuosa que o rei Genserico leva retira sua virtude, ligada ao vigor e à força que ele detinha quando não possuía tantas riquezas ou poderes. África queixa-se que Genserico arma seus filhos contra ela, que está cativa há uma infinidade de anos, desgarrada em benefício do rei vândalo e reclama que sua fertilidade lhe atrai desgraças, sendo ela obrigada a dar à luz a quem as lhe inflige. Na sequência, antes do hexâmetro 345, a personagem África dirá que Genserico não é capaz de lutar com suas próprias armas, o chama de covarde, e diz que ele coage diversos povos da África, que ela lista, a lutarem juntos. Sobre Genserico, a personagem ainda dirá: Tem a cor pálida de quem abusa do vinho, uma gordura fofa e seu estômago, cheio pelas contínuas comilanças, nem sequer é capaz de dar um arroto azedo, apenas deixa escapar uma respiração fétida. A vida dos seus é parecida (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 335-345). 29

A ideia de humanitas latina; assim como o ideal de paideia gregoe greco-romano do período imperial, seu equivalente conforme Woolf (1998, p. 55); tem sido comumente traduzido como civilização. Cumpre apresentar, no entanto, que este termo aparece, muitas vezes, carregado de um juízo de superioridade moral nos contextos imperialistas do século XIX e XX. Diante disso, o mesmo nos parece adequado para trabalhar com a tradução do ideal de superioridade que autores como Sidônio propõem para sua cultura frente aos considerados “bárbaros”. Porém, não podemos deixar de perceber a ligação do conceito de civilização com lutas imperialistas da época contemporânea.

60

No final do discurso, a personagem África implora a Roma por um guia que a vingue de Genserico para que Cartago pare de lutar contra a cidade eterna: “Por tudo isso te peço que ao menos, depois de tantos séculos, me voltes a dar um guia que me vingue, para que Cartago pare de lutar contra a Itália” (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 345-351). Roma acalma a África dizendo que o atual imperador, Majoriano, é capaz de corrigir todos aqueles males, e que depois de resolver os problemas de sua querida Gália e combater em outras campanhas, ele certamente se dirigirá a África e a salvará, e que o mais difícil, naquele caso, não era vencer, mas pôr-se em movimento, pois Majoriano chegava e logo vencia. Observemos que Sidônio faz questão de deixar claro no panegírico que é mais importante resolver os problemas da Gália do que da África, porque a sua província, por sua vez, encontra-se assolada pelos desmandos de outros povos “bárbaros”, a saber, os burgúndios eos visigodos. A parte mais densa da representação vândala nesse panegírico ocorre entre os hexâmetros 385 e 441, quando Sidônio narra uma batalha ocorrida na Campânia entre os exércitos romanos, liderados por Majoriano, e os vândalos, liderados por Genserico. Sidônio exaltará a bravura e a habilidade guerreira dos romanos em contraposição à covardia dos vândalos e seu desespero ao se verem vencidos. Nessa passagem, Genserico receberá alguns adjetivos depreciativos como inimigo feroz, gordo e pirata (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 385-441). A batalha entre as forças de Majoriano e as forças de Genserico é comparada por Sidônio com a guerra contra Pirro30, que sofre uma derrota semelhante a que o rei dos vândalos havia acabado de sofrer, tendo de fugir de volta a Épiro com o que havia sobrado de sua armada, como Genserico que também teve de fugir com seus guerreiros de volta à África. Entre os hexâmetros 441 e 469, Sidônio narra a preparação da frota de Majoriano para a campanha decisiva contra Genserico, exaltando no imperador as virtudes do desapego virtuoso pelo resultado material do combate, em contraposição ao que ocorreu na África quando Cleópatra ostentou no Egito o tesouro de Ptolomeu. Desta forma, o autor compara Genserico à Cleópatra, uma vez que o rei vândalo ostentava o

30

Rei de Épiro, na Macedônia, no século III a. C. e um dos principais aliados da Magna Grécia contra Roma na Itália.

61

butim de suas vitórias. Sidônio prevê para o Reino Vândalo um destino semelhante ao do Egito de Cleópatra: sucumbir ante as forças de um César poderoso. Tampouco foi tão grande a frota mareótide que cobriu as águas do Ácio no porto leucádico, quando as tropas, que eram seu dote, chegaram de Canopo para a faraônica lutar por seu marido, enquanto ela, a orgulhosa Cleópatra, rodeada de instrumentos pátrios e tendo seus barcos dourados carregados de soldados negros, cobriu a vasta superfície do mar dórico com o tesouro de Ptolomeu. Tu não lutas com semelhante ostentação, senão ao modo dos primeiros, que usam a espada mais forte, a que com razão se submete o ouro do rico covarde. Não obstante, não deprecies a este tipo de rebeldes, porque se bem não enobrecem uma batalha, decoram um cortejo triunfal. E não me pesará haver evocado a estirpe lágida como modelo de teu inimigo atual, pois prevejo para estes dois reinos um destino semelhante, já que a decadência é a mesma de sua parte e da nossa, não é inferior o César (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 441-469).

Na sequência, Sidônio escreve que de nada adianta a Roma não ter medo dos povos africanos que acompanham Genserico nas batalhas se ela não os tem mais como súditos, como antes os tinha. Então, Sidônio narra a travessia dos Alpes pelas legiões romanas comandadas por Majoriano, citando o momento em que um soldado reclama do frio que sofre na neve e Majoriano o repreende dizendo que o frio é causado pela falta de movimento, o coagindo a continuar andando, prometendo-lhe um verão sob as Sirtes31isto é, na África, lutando contra Genserico. Nessa passagem podemos perceber como nosso autor honra o imperador Majoriano por sua valentia, virtude e coragem guerreira. Por fim, Sidônio trata Genserico como o novo Boco africano32, ao profetizar que logo estará escrevendo que Majoriano havia reconquistado a Líbia e as Sirtes, assim como os Alpes e o Mar Mediterrâneo por inteiro, após haver resolvido os problemas da Gália. Como vemos, para Sidônio, Majoriano é um grande conquistador, mas antes precisa resolver os problemas da Gália. Genserico continua a aparecer aqui como o inimigo por excelência de Roma, e dotado das características culturais que o afastam dos romanos, sendo elas, principalmente de natureza comportamental e moral, aparecendo justamente no momento em que os interesses políticos em questão aparecem mais destoantes.

3.6 OS VISIGODOS NO PANEGÍRICO DE MAJORIANO

31 32

Grandes recifes movediços de areia presentes no norte da África. Rei da Mauritânia, sogro de Jugurta (KINDLER, 2005, p. 158).

62

Os visigodos nesse contexto continuam dominando as terras vinculadas ao Reino de Tolosa sob a égide de Teodorico II, após Ávito, o imperador aliado deles, ter sido derrubado do trono e substituído por Majoriano, e aparecem aqui por serem os próximos a serem representados no panegírico depois dos vândalos. No panegírico, enquanto África discursa a Roma lhe pedindo ajuda contra Genserico, ela conta que a mulher de Aécio, o mestre militar da Itália, que governava o Império do Ocidente, através de mecanismos proféticos, previu que Majoriano seria imperador do Ocidente, o que se confirmava devido a suas habilidades bélicas. Ela discursa a seu marido chamando a si mesma de desgraçada e diz: Que reino preparar para meu filho se, depois de ser excluída do trono visigótico, me ignora a república e nosso pequeno Gaudêncio é alienado do trono pelo destino de Majoriano (SIDÔNO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 200-210).

A esposa de Aécio ela era visigoda e casou-se com o mestre militar por conta de uma embaixada. Ela descendia de um rei godo e seu pai havia sido conde do palácio (comes domesticorum) sob o imperador Honório, e seu filho maior lhe havia seguido no mesmo posto. Esse filho foi assassinado nessa época, mas Gaudêncio era o mais jovem, que também foi assassinado em 462, por Genserico. O que vemos aqui é uma nobre de origem totalmente “bárbara” discursando sobre a possibilidade de entregar o “reino”, referindo-se ao Império Romano do Ocidente, para seu filho. Por um lado, isso nada mais é do que uma “bárbara” que se tornou romana, ou que se “romanizou” totalmente, como Sidônio deixa transparecer ao ocultar sua origem no começo do discurso não a enfatizando, pois aqui, ela não faz o papel de “bárbara” e sim de romana. Aécio, contudo, representado como um homem sóbrio e consciente manda-a “conter os desejos de sua alma enlouquecida” quando ela acaba o discurso. É claro que isso pode estar ligado à visão depreciativa que se atribuía à mulher na época, comparada a Eva, mas não podemos deixar de conjecturar que isso também possa ter sido causado pela sua origem “bárbara”, pois ela queria que o trono de Majoriano, um romano fosse dela e do seu filho, ou seja, a “bárbara” quer o que pertence ao romano por natureza. Quando, no panegírico, África termina seu discurso a Roma, sua ama lhe assegura que ela será salva, pois Majoriano o pode fazer, pois corrige a todos os males que Genserico lhe causa através de sua soma de forças estrangeiras, como os visigodos e os burgúndios. Aqui esses dois últimos povos aparecem como aliados dos romanos, sem, contudo, deixaram de ser estrangeiros, o que mostra a capacidade deles de se unirem e formarem alianças sem abandonarem suas identidades étnicas.

63

Como vimos, essa homenagem a Majoriano se deveu a ele ter desmanchado a conspiração dos galo-romanos com os burgúndios para derrubá-lo, em Lugduno, submetida a um pesado imposto do qual Sidônio buscava que ela fosse aliviada através dessa homenagem. Então ele apresentou o Prefeito da Gália no panegírico, Magno, e quando falou que ele ditava leis para toda a Gália, novamente falou dos visigodos como “aliados vestidos com peles”, reafirmando um signo que os identificava como “bárbaros” uma vez que pertenciam a outro grupo étnico, e nem por isso deixava de se submeter às leis deles. O fato da mulher de Aécio ser visigoda não é algo representativo no sentido étnico-cultural aqui, pois Sidônio não deixa claro o que pretende demonstrar a fazendo falar dessa forma. Observamos que ela é uma espécie de antagonista no panegírico, mas por que ela e não outro? Por ela ser mulher? Por ela ser “bárbara”? Embora não possamos afirmar essas são nossas hipóteses. Ao final, observamos Sidônio insistir na obediência dos visigodos, o que era mais do que compreensível por eles estarem na Gália e terem sido os líderes da conspiração que colocou Ávito no trono, que foi deposto para que Majoriano subisse.

3.7 OS FRANCOS NO PANEGÍRICO DE MAJORIANO

Nesse contexto, os francos continuam sendo soldados indisciplinados que ora atuam como mantenedores da ordem romana no norte da Gália, ora são os próprios ameaçadores dela, e nesse sentido, ameaçando também a Sidônio. Eles aparecem numa breve e significativa passagem nesse panegírico na fala de mulher de Aécio, na sequência, e por isso são analisados aqui. A mulher de Aécio, enquanto discursa para seu marido sobre a profecia de que Majoriano será imperador, e começa a tentar comprovar isso mostrando as habilidades guerreiras e todas as qualidades dele, ela diz: Majoriano doma também monstros: aqueles cuja cabeleira vermelha puxada acima cai sobre a parte superior do crâneo; sua nuca reluz ao faltar-lhe o duro pelo; em seus olhos azul-verdosos brilha uma clara mirada e em seus rostos completamente raspados, em lugar de barba, só um estreito bigode se presta ao pente. Uma túnica fechada e estreita cinge os corpos esbeltos desses guerreiros; seu vestido, curto, deixa ao descoberto o joelho; um largo cinturão cinge seu estreito ventre. Divertem-se lançando ao vasto espaço seus rápidos machados de dois fios, calculando de antemão o lugar da caída; volteando seus escudos; precedendo a saltos da lança que hão lançado e caindo antes que ela sobre o inimigo. Desde os anos da infância têm um amor à guerra próprio de homens maduros. Se alguma vez lhes acossa o número (dos inimigos) ou uma posição desfavorável, é a morte que lhes abate, não o

64 medo; nunca se dão por vencidos e resistem com coragem, quase até depois de haverem entregado sua alma (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 235-255).

Esta passagem é uma das mais estudadas dos panegíricos de Sidônio Apolinário. Sobre ela temos estudos de Domenique Barthélemy (2010, p. 66-67). Este historiador diz que o nosso autor pinta os francos dessa forma por volta de 448, todavia, podemos suspeitar dessa datação, pois esse é o Panegírico de Majoriano, pronunciado em Lugduno em primeiro de janeiro de 458. Por que Sidônio teria o escrito nove anos antes? Mas de qualquer forma, suas elucubrações são válidas, pois ele diz que essas maravilhas bélicas das quais os francos são capazes podem ter ocorrido às vezes, mas que o panegírico canta as glórias de Majoriano, que os fez renderem-se e juntarem-se a ele. Ou seja, Sidônio precisava mostrar inimigos vencidos fortes, pois de nada adiantaria homenagear um herói que somente houvesse conseguido derrotar a fracos. Bruno Dumézil (2013, p. 218) enxerga nessa passagem uma visão romana que costumava exaltar as características aguerridas dos “bárbaros”. Não podemos, contudo, ignorar o quanto Sidônio enfatiza a diferença e a rivalidade étnica entre “bárbaros” e romanos aqui através dos signos culturais que os opõem, mostrando que por melhores que os “bárbaros” sejam na arte da guerra, os romanos sempre irão superá-los.

3.8 OS HUNOS E OS BURGÚNDIOS NO PANEGÍRICO DE MAJORIANO Os burgúndios e os hunos aparecem juntos aqui por conta da semelhança por nós observadas nas passagens nas quais são representados na sequência do Panegírico de Majoriano, uma vez que se fossem separados, a compreensão ficaria comprometida. Os primeiros exerceram papel significativo como causadores dos conflitos políticos que levaram à composição do panegírico, pois como citamos no segundo capítulo, se aliaram aos lugdunenses para derrubar Majoriano, recebendo terras na região. Como vimos, essa conspiração foi derrubada e o panegírico foi composto a fim de que Lugduno fosse poupada dos castigos consequentes. Os hunos, por sua vez, não são mais o que foram, porém a memória do que Átila havia conseguido permanece viva na mente dos romanos, e eles continuam a serem representados como cruéis e sanguinários, como vemos.

65

No panegírico, assim que Roma acaba de discursar à África dizendo que Majoriano derrotará Genserico, ela diz que ele fez o mesmo com os povos do Íster, como os bastarnas, os dácios, os belonotos, os alanos, os rugos, os burgúndios, os vesos, os álites, os bisaltas, os ostrogodos, os pirustes, os sármatas, os moscos, e que todos esses povos marchavam sob as águias de Majoriano. Todos esses povos, exceto os álites, são conhecidos por outras fontes e ocupavam regiões bem específicas, sendo, aqui, etnias submetidas ao poder de Roma (KINDLER, 2005, p. 155-156). Sidônio diz que Roma chegou a sucumbir ante essas hostes antes que Majoriano se tornasse imperador, e que de nada adiantaria não temê-los se não fosse para comandá-los. Então nosso autor diz, referindo-se aos hunos: Havias já levantado o campo e se agrupado ao redor de ti milhares de soldados com suas diferentes insígnias, quando uma só nação te nega obediência. Mais selvagem que nunca, havia translado fazia pouco desde as margens do Íster seu exército, indômito porque as guerras lhe haviam privado de guias. Tuldila infunde a este povo arrogante uma fúria guerreira que havia de lamentar (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 475-480).

Aqui, essas etnias são representadas como se o seu dever natural fosse seguir aos romanos. Sidônio comenta que milhares de soldados se agrupavam com suas insígnias ao redor de Majoriano e que somente os hunos se negam a fazê-lo porque aquele exército era indômito devido ao fato de que as guerras lhe haviam privado de guias, que no caso, seriam romanos. Na sequência, Sidônio narra uma travessia de uma tropa pelo Íster no inverno gelado, sob o comando de Majoriano. Um dos soldados se queixa que seus membros estão paralisados de frio. Ele se identifica como cita, ou seja, germano, e escreve: Pergunto-me de que raça houve recebido o ser este a quem eu, cita, não posso seguir. De que tigresa bebeu o leite de criança em uma gruta da Hircânia? Que terra mais dura do que a minha região lhe educou? Eis aqui de se impõe a si mesmo o primeiro posto a frente de suas tropas paralisadas e se ri do frio, porque ele só tem em seu coração um calor ainda mais forte. Quando eu seguia as ordens do rei do Norte ouvia dizer que o exército do imperador romano e a casa dos Césares jaziam adormecidos em uma moleza perene. De nada me serve que meus senhores anteriores hajam desaparecido, quando aqui me faria eu a encontrar um rei demasiado valoroso (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 530-540).

Ele era um soldado germano que estava sob o comando de Átila, “o rei do Norte”, neste tempo já morto, e fala que escutava entre os hunos que na casa dos Césares havia uma “moleza perene”, e que a queria naquele inverno. É significativo que Sidônio tenha usado um soldado “bárbaro” para tecer elogios a Majoriano, pois mesmo aqueles que tinham fama de serem fortes e destemidos e que, como nos informa

66

Barthélemy (2010) buscavam essa aparência e essa imagem, ainda assim, não eram capazes de acompanhar a bravura de Majoriano contra as forças da natureza. Aquele que será imperador o aconselha a fazer da água que está embaixo da neve a sua fonte de aquecimento, isto representa a inteligência dele sob a ignorância “bárbara”, e exalta as habilidades dos romanos sobre as dos estrangeiros. Por fim, percebemos que essa “moleza perene” que havia na casa dos Césares fazia referência à ideia que os “bárbaros” tinham dos romanos com relação a seus hábitos de conforto, que conforme podemos imaginar, eram tidos como degenerativos das habilidades guerreiras. Contudo, Sidônio aqui usa a fala do germano para desconstruir essa crença. Depois, sabemos que a conspiração dos galo-romanos desfeita por Majoriano provocou a declamação do panegírico, e dela participaram os burgúndios, que Sidônio afirma que se submeterão às leis do Prefeito da Gália, que ele apresenta a Majoriano ao final do poema. E, na sequência ele fala de Pedro, o magister epistolarum, detentor do cargo que dirigia a secretaria do imperador. Fora ele que conseguira que os burgúndios deixassem Lugduno, que Sidônio representa aqui como inimigos dos galo-romanos e inimigos dos próprios romanos, embora estivessem conspirando com os primeiros um momento antes e fosse federados dos últimos. Por fim, e por causa disso, eles são representados da seguinte forma: Ah, temerária Clio! Como te atreves a abordar com tuas débeis forças o louvor de Pedro? Por boca sua se digna o César falar ao mundo, apesar de que tem a seu serviço um questor eloquente. O feito é, príncipe clementíssimo, que ele recentemente, após haver tomado reféns, afastou das muralhas de nossa desgraçada cidade a espada que se havia fundido em nossa entranhas (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Majoriano, 265-274).

Hunos e burgúndios aparecem aqui como inimigos de Roma e inimigos da ordem. Sidônio se utiliza dos primeiros para mostrar as potencialidades guerreiras de Majoriano, ainda que eles não representem mais a mesma ameaça que representavam quando o imperador homenageado lutava sob a égide de Aécio. Os burgúndios, no entanto, os são também, como é óbvio que seriam, porque o autor deve se esmerar ao máximo para mostrar o quanto os galo-romanos os repugnam, agora que com eles não podem mais conspirar e precisam voltar a ter a confiança de Roma. Vemos que eles próprios, os gauleses, eram inimigos da ordem durante um tempo, sem que possamos generalizar isso a todos, mas que Sidônio os mostra como totalmente fiéis e submissos, num jogo político cujo objetivo é esconder sua capacidade de se rebelar contra essa ordem. Aos burgúndios resta o papel de inimigos de etnia diferente, incômodos e

67

opositores à ordem cósmica estabelecida, a partir do que a rivalidade política também é um fator de diferenciação identitária, pois ao passo que os galo-romanos respeitavam a cosmologia política natural na qual Roma dominava, os bárbaros burgúndios se negavam a fazê-lo.

3.9 OS HUNOS NO PANEGÍRICO DE ANTÊMIO No período da declamação do Panegírico de Antêmio os hunos não eram mais uma federação imperialista, mas continuavam como grupo forte que assediava a integridade da ordem do Império Romano do Oriente, do qual vinha o homenageado aqui. Eles são os primeiros povos a serem representados no panegírico, que possui menos representações do que os outros. Sidônio, ao discursar, diz que Antêmio, genro do imperador oriental, está agora nessa posição de imperador mais por mérito do que simplesmente por estar posto na próxima posição da linha de sucessão ao trono imperial, falando que a esposa dele era mais o adorno do que a causa do seu reinado, uma vez que o trono fora feito para ser entregue a homens virtuosos e não a filhos. E, em seguida diz que o mundo aprova essa decisão em seus quatro pontos cardeais, pois Zéfiro, que aqui é representado como um vento que vinha do oeste e era reclamado por Roma, buscava-a como guia; o Euro, designado por Constantinopla, era o vento do leste que se orientava por Roma; no Auster Antêmio era temido, ou seja, na região do vento do sul, onde estavam os vândalos da África; e o vento de Boreas, ou boreal, do norte, da região da Cítia, era onde havia combates com os germanos, os hunos entre eles. Na sequência, o autor faz referências às guerras ocorridas nos tempos da República em províncias como a Mauritânia e a própria Itália, representada como Ausônia e à incompetência dos oficiais que comandaram as defesas bélicas. E, após, faz referência a Espártaco enfrentando os gladiadores com seu grupo de escravos rebeldes, que Sidônio diz que são citas, ou seja, germanos, que ele diz que eram “transbordantes de selvageria, cruéis, vorazes, veementes, bárbaros, e concidadãos do também bárbaro chefe huno Hormidac, que compartilhava daqueles costumes, pois pertencia àquele país e àquela raça”. Sidônio continua a representá-los: Ali por onde o branco Tánais a seu declínio da serra Rifeia escorre pelos vales hiperbóreos, habita sob o carro da Ursa um povo terrível de alma e de

68 corpo, de modo que já inclusive os mesmos rostos das crianças inspiram horror. A redonda massa da cabeça se estreita para cima; nas cavidades sob a frente há mirada mas faltam os olhos; a luz que penetra na câmara cerebral apenas alcança as pupilas que somem mas não estão fechadas, pois apesar de sua estreita abertura, abarcam grandes espaços e os pequenos pontos de uma órbita profunda compensam a utilização de uma maior iluminação (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Antêmio, 240-255).

Esses jogos de representações que visam mostrar a bizarrice do grupo em questão vêm no sentido de demonstrar o quão distante eles estão um do outro, o quão extensa é a fronteira que os separa, provocada pela inimizade política, que não se separa da cultural na mentalidade de Sidônio. Eles são o oposto dos romanos fisicamente, e não apenas culturalmente, e essas características vêm justamente no sentido de fortalecer suas diferenças étnico-identitárias. E por isso elas continuam: De outra parte, para que os orifícios nasais não sobressaiam dos pômulos, envolvem o nariz, quando ainda externa, em um curativo para que se adapte ao casco: até esse ponto o amor materno deforma as crianças nascidos para guerrear, de modo que a superfície lisa das bochechas se prolongue ao faltar a interrupção do nariz. O resto do corpo é bonito nos homens: têm peito amplo, ombros poderosos, ventre compacto sob as cadeiras. De estatura média quando vão a pé, são altos se se lhes vê a cavalo; por isso parecem com frequência altos quando estão sentados. Apenas se tem em pé a criança, separada de sua mãe, quando já um cavalo lhe oferece sua garupa: se poderia pensar que os membros deste se adaptam aos do homem, tão unidos se mantêm cavalgadura e ginete. Outros povos se deixam levar a lombos de cavalos, esses vivem neles. Levam no coração os arcos curvos e os dardos; sua mão é temível e certeira; creem firmemente que seus projéteis levam à morte e sua fúria está habituada a fazer o mal por meio de um golpe infalível (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Antêmio, 250-270).

Ao final dessa passagem, Sidônio parece exaltar as habilidades guerreiras dos hunos. Na sequência ele dirá que esse povo atravessou em desordem o Íster33 gelado e deixou suas pegadas no curso do rio. Antêmio saiu de encontro a eles nos campos dácios, lhes cercando, lhes atacando e lhes vencendo em Sérdica (uma cidade próxima da atual Sofia). Poderes bélicos são características presentes e desejáveis em ambos esses povos, romanos e “bárbaros”, todavia, Sidônio faz questão de exaltar que por mais eficientes que os hunos sejam nessas atividades, ainda assim, o romano é capaz de vencê-lo. E na passagem seguinte, quando Sidônio exalta a disciplina dos soldados de Antêmio ali acampados, diz que eles temiam mais ao seu general do que à proximidade do “inimigo”. Então, aqui, os hunos continuam exercendo o mesmo papel: o de inimigos políticos, e por isso são representados como separados dos romanos por uma fronteira delimitada. A habilidade de Sidônio em ressaltar elementos culturais diferenciadores 33

A última parte do curso do Danúbio.

69

nos hunos, apontado sua bizarrice, serve justamente para ilustrar essa distância, pois parece-nos claro que ela é medida pelo grau de discordância política estabelecido.

3.10 GENSERICO, REI DOS VÂNDALOS, NO PANEGÍRICO DE ANTÊMIO Nesse contexto, ao passo que o Império do Ocidente continua sofrendo com os assédios vândalos à Itália, o Império do Oriente resulta em auxiliar seu irmão político a se livrar desse objeto incômodo. Genserico aparece aqui como o último a ser analisado, pois é o último a aparecer no último panegírico escrito por Sidônio, o Panegírico de Antêmio. A primeira alusão aos vândalos e a Genserico aparece em uma parte já bem avançada do Panegírico de Antêmio, quando a deusa Itália, novamente personificada no texto, pede ao rio Tibre que convença Roma a ir ao palácio da deusa Aurora, que ficava além da Índia, onde acreditavam ser o lugar em que nascia o sol. Desta forma, essa deusa, a soberana de todo o Oriente, do Império de Constantinopla até a Índia, deveria atender aos apelos de Roma e conceder Antêmio para ajudá-la a fim de que ele a livrasse do perigo vândalo que todos os anos assolava o solo itálico. A personagem Roma diz que Genserico invertia a ordem do mundo ao fazer Cartago lutar contra si, ou seja, de conquistadora de Cartago, agora ela é conquistada por Cartago. A deusa Roma explica que Genserico, quem ela menciona como pirata, evita o combate ao fugir assim que vê em suas mãos o butim que deseja, e que se nega a fazer qualquer aliança com Ricímero, o então mestre dos soldados da Itália, filho de um príncipe suevo e de uma princesa visigoda. Roma diz que Genserico odeia Ricímero porque o rei dos vândalos era filho de uma escrava e fruto de um adultério entre sua mãe, a escrava, e o rei, ao passo que Ricímero é comprovadamente filho de um príncipe suevo e de uma princesa visigoda, e que poderia vir a ser proclamado rei de dois reinos. Ao mesmo tempo, o avô materno de Ricímero era o visigodo Valia, que havia combatido os vândalos e os alanos na Hispânia antes de criar o Reino de Tolosa. Além disso, a personagem Roma diz que Ricímero dava provas de ser neto daquele homem que havia derrotado violentamente vândalos e alanos, uma vez que ele também era capaz de fazer Genserico recolher a espada. Ademais, o invicto Ricímero, a quem compete o destino do Estado, que apenas pode ele só com sua tropa rechaçar ao pirata que se estendeu por nossos campos e que, evitando a batalha, de fugitivo se converte em vencedor. Quem pode resistir a um inimigo que evita tanto a paz quanto o

70 combate? Porque com Ricímero não firma nenhum tratado. Escuta porque lhe odeia tanto. O vândalo presume ter um pai desconhecido, enquanto sua mãe é com certeza uma escrava; proclama portanto o adultério de sua mãe com a intenção de fazer-se filho de um rei. Pois bem, tem inveja de que Ricímero seja proclamado rei de dois reinos posto que por parte de pai era suevo e por parte de mãe, godo. Recorda também que Valia, o avô de Ricímero, havia abatido em terras de Tartesos os esquadrões vândalos junto com seus aliados de guerra, os alanos, semeando de cadáveres a ocidental Calpe. Para que contar as derrotas passadas, os desastres antigos? Não se lembra do fracasso do campo de Agrigento? Sua fúria vem do fato de Ricímero ter dado suficientes mostras de ser neto daquele herói cuja vista, oh vândalo, te fazia sempre voltar a espada (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Antêmio, 350-370).

O que temos na passagem acima é uma comparação de dois “bárbaros”, o que nos mostra como Sidônio negocia suas representações dos “bárbaros” conforme seus interesses e necessidades. Genserico, o inimigo em potencial, é mais “bárbaro” que Ricímero, também “bárbaro”, mas que não se mostrava como o potencial inimigo do momento. A última frase escrita por Sidônio nesse panegírico diz: “Vê adiante, afortunado pai da pátria e, sob auspícios propícios, libera aos prisioneiros antigos, tu que encadearás outros novos”. (SIDÔNIO APOLINÁRIO, Panegírico de Antêmio, 545549). De acordo com Kindler (2005, p. 116), com a frase acima, Sidônio demonstra que almejava uma pronta derrota de Genserico pelas forças de Antêmio, uma vez que naquele ano de 468, quando o panegírico foi escrito, as duas partes do Império Romano, o Império Romano do Ocidente e o Império Romano do Oriente, iriam somar suas forças para lutar contra Genserico. O historiador supracitado acredita que essa batalha não teve êxito para os romanos, possivelmente, pela astúcia do rei dos vândalos, mas também pela inaptidão do comandante das legiões do Império Romano do Oriente, Basilisco. Já para a historiadora Egea (1997, p. 124), é possível que o chefe militar oriental Basilisco tenha tido interesses em sua própria derrota e de seus aliados, uma vez que ela possibilitaria que o poder de Leão, o imperador de Constantinopla, se enfraquecesse e ele, como chefe militar, tornasse-se imperador em seu lugar. Opiniões historiográficas sobre o resultado da batalha entre romanos e Genserico à parte, acreditamos que o que deva ser considerado nessa situação é que no final do panegírico Sidônio se mostrou confiante na derrota de Genserico, colocando suas esperanças no honrado imperador Antêmio e mostrando-nos como o rei vândalo era temido e necessitava ser vencido.

71

A seguir, nas considerações finais, resumiremos os resultados das análises propostas

neste

trabalho.

72

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como pudemos perceber nas análises das representações dos principais povos germânicos em relação com o Império Romano contempladas nos panegíricos sidonianos do século V d.C., esse foi um tempo, como sabemos, de intensos contatos culturais e interétnicos. Contudo as representações nos permitem ver o quão impactantes tais contatos foram na perspectiva de um aristocrata envolvido nas altas esferas das relações político-administrativas do Império, tanto no que diz respeito à mentalidade relativa a elas quanto às próprias emoções envolvidas nessas relações identitárias. Sidônio mostra, ou deixa transparecer, o quanto os “bárbaros” foram capazes de se utilizar de signos identitários para se aproximarem culturalmente dos romanos, deixando isso bastante evidente quando fala da assembleia visigótica de Tolosa que decidiu colocar Ávito no trono romano. O forte entrelaçamento cultural de que falamos se faz presente então, porque esses grupos “bárbaros” entram no Império Romano com sua cultura germânica, mas como nos é bastante representativo no caso dos visigodos de Tolosa, eles precisaram se moldar às expectativas comportamentais que a eles atribuíam os romanos também para governar e fazer alianças com os grupos locais, bem como com o alto poder imperial. A tais características comportamentais podemos chamar de “jogos de performances”34, de pensamentos e de objetos materiais que esses romanos apreciam ao serem utilizados por outros, que dizem respeito à sua cultura e à sua visão de mundo e que eles consideram como civilizadas e melhores. Nesse quadro, devemos prestar atenção à questão das fronteiras étnico-culturais e sua manipulação e adaptação, atividade presente no centro das negociações vigentes, pois como informam os autores citados ao longo do trabalho, com relação à possibilidade de duas identidades conviverem juntas no mesmo indivíduo no Império Romano, Sidônio deixa isso transparecer com frequência, ao jogar nas suas representações demonstrações de si e daqueles a quem homenageia como perfeitos romanos e defensores dos interesses da capital do Império, demonstrando um interesse

34

A idéia de performance é trabalhada por Daniele Gallindo Gonçalves Silva e Maurício da Cunha Albuquerque (2015, p. 349), adaptada dos estudos de Judith Buttler sobre a Teoria Queer, a partir disso, tais autores apontam que a performance está vinculada à mudança de identidades no contexto romano“bárbaro”, no qual ocorrem pressões da cultura dominante e desejo daqueles que, segundo eles, podem aderir à várias culturas, de obterem vantagens a partir da adesão a elas.

73

constante de defender com isso o interesse do seu grupo, que era a aristocracia galoromana. Nosso autor faz isso, por exemplo, no Panegírico de Ávito em constantes demonstrações do quanto os interesses dos romanos da Gália, e, sobretudo dos aristocratas, estão em comunhão com os interesses da Itália e de Roma, sendo que ele mostra justamente os galo-romanos conspirando para colocar os seus interesses em primeiro plano. O jogo político de Sidônio é notável nesse sentido, pois o próprio Majoriano era rival de Ávito, e, no entanto, em cada um desses panegíricos, nada supera o homenageado, como também ocorre com Antêmio. Sabemos do papel exercido pelos panegíricos na Antiguidade Tardia, e, sobretudo, sabemos para que servia um panegírico. Portanto, não nos admira a negociação estabelecida pelo autor, mas podemos observar, a partir disso, o quanto Sidônio é capaz de manipular a realidade para transformá-la naquilo que ele quer dizer e demonstrar, esse é o sentido de usarmos o conceito de representação tal como propôs a teoria de Chartier (1988). Assim, devemos ter em mente como fato dado que as características atribuídas aos povos representados com o objetivo de afastá-los ou aproximá-los dos romanos são negociações de poder conscientes ou não. A violência do discurso com que Sidônio fala dos hunos demonstra isso, especialmente porque sabemos que Prisco, por exemplo, representa Átila de uma forma bem diferente, como nos mostra Frighetto (2012). Isso nos faz observar que em todas as representações estão envolvidos e servindo como determinante de sua natureza os conflitos e negociações políticas, pois os burgúndios como “câncer” na região próxima a Lugduno e em contato com eles contra Majoriano recebem sempre representações bastante negativas. Vimos em outro poema que Sidônio não se sentia à vontade com a presença deles ali, contudo, vemos interesses políticos bem fortes nas representações desses povos e dos francos no Panegírico de Majoriano, tanto quanto observamos essa mesma inimizade ser demonstrada no sentido mais amplo do Império ao se tratar de Genserico na África, que foi visto como o inimigo por excelência de Roma e dos romanos no período, sendo que os imperadores e os chefes militares do Império Romano do Oriente diversas vezes lutaram contra ele. O que podemos concluir é que esse é sim um tempo de transformações e as obras de Sidônio que analisamos são um testemunho riquíssimo para observação de tais mutações. Não dizemos aqui que o tempo compreendido do século II ao VIII foi uma época de transformações, nas palavras de Frighetto (2012), mas que o século V o foi.

74

Embora concordemos com Frighetto, nossa documentação nos permitiu analisar apenas uma parte da Antiguidade Tardia pela ótica de um aristocrata de uma região específica do Império Romano do Ocidente e, a partir dela, podemos concluir que o século V é um período de intensas mudanças e contatos políticos, étnicos, culturais e identitários de forma geral no que viria a se configurar mais tarde como o chamado Ocidente europeu. Vivia-se um tempo de transformações sociopolíticas intensas e um tempo de renegociações identitárias e culturais. Por fim, mas não menos importante, vivia-se também um tempo de transformações religiosas, no qual os cristianismos se mostravam intensamente ascendentes e em profícua relação e contato com os paganismos e filosofias não cristãs sobreviventes. Tal contato religioso não foi objeto em si deste estudo, mas não pudemos deixar de perceber como nosso autor, embora cristão, não consegue se livrar das representações mitológicas, que dominam os seus panegíricos e que ele usa em inúmeras metáforas. Vimos nitidamente que Sidônio considera o Império Romano uma unidade política plenamente atuante ainda e, de forma alguma, chega a demonstrar que acredita que ela esteja vivendo um período de decadência. Contudo, é significativo o momento em que ele fala no Panegírico de Ávito a respeito da profecia dos doze abutres, quando, no século V, completava doze séculos que Rômulo havia visto, segundo a lenda, os doze abutres que representavam que Roma duraria doze séculos. Sidônio fala disso como uma profecia que possa estar prestes a se cumprir, contudo, sempre dá sequência a seus panegíricos cantando as glórias de seus homenageados e da ordem romana. Portanto, aqui, as continuidades são evidenciadas em detrimento das rupturas, e estamos, neste sentido e em nossa leitura da documentação, vivendo um período que preferimos chamar de Antiguidade Tardia mais do que de Primeira Idade Média.

75

REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS SIDÔNIO APOLINAR. Poemas. Tradução e Introdução de Agustín López Kindler. Madrid: Editorial Gredos, 2005. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO, C. R. Las historias de los godos, vândalos y suevos de Isidoro de Sevilha.Studio, edición crítica e traducción. León: Centro de Estudios e Investigacion “San Isidoro”, 1975. ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p. 166-187, jun.2015. BAGNIEWSKY, A. B. Repensando a teoria da alteridade e a obra de Josefo. Oracula. São Bernardo do Campo, n.4.7, p. 28-41, 2008. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistasims/index.php/oracula/article/view/5874/4747 Acesso em: 30/12/16 BAPTISTA, L. V. Bizâncio em foco: a historiografia produzida sobre Procópio de Cesareia. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo: 2011, p. 1-15. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/13081. 13824_ARQUIVO_Bizancioemfoco.pdf. Acesso em: 23/02/2016. BARROS, J. A. História Cultural e a contribuição de Roger Chartier, Diálogos,v. 09, n. 01, 2005, p. 125-141. BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: Philippe Poutignat e Jocelyne StreiffFenart. Teorias da etnicidade seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. Trad. Elcio Fernandes, São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 185-227. ______. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas (organização de Tomke Lask). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. BARTHÉLEMY, D. A Cavalaria: da Germânia antiga à França do século XII. Tradução de Néri Barros de Almeida e Carolida Gual da Silva. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. BOTELHO, M. Os povos bárbaros, Pergaminho, Patos de Minas, n. 7, nov. 2012, p. 61-70. BROWN, P. A Igreja; O monasticismo. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. (orgs.). História da Vida Privada. São Paulo: Cia. Das Letras. 1990, vol. 1, p. 258-283. BURKE, P. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

76

CARDOSO, C. F. S. Etnia, nação e Antiguidade: um debate. In: NOBRE, C. K.; CERQUEIRA, F. V.; POZZER, K. M. P.(orgs.). Fronteiras e etnicidade no mundo antigo. Pelotas:Anais do V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, 2003. p. 87-104. CARRIÉ, J.-M.; ROUSSELLE, A. L’Empire Romain en mutation: des Sévères à Constatin 192-337. Paris: Éditions du Seuil, 1999. CARVALHO, M. M. de. Paideia e Retórica no Séc. IV d. C.: a Construção da Imagem do Imperador Juliano segundo Gregório Nazianzeno. 1. ed. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2010. CHARTIER, R. O mundo como representação, Estudos Avançados, 11 (5), 1991, p. 173-191. ______. À Beira da Falésia: A História entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. da Universidade, 2002. ______. A História Cultural. Entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. CORREIA, J. P. P. O discurso anti-maniqueu de Agostinho de Hipona na construção da identidade cristã.2014. Dissertação de Mestrado defendida na Centro Universidade Federal do Espírito Santo/UFES, 2014. CRUZ, M. Gregório de Tours e Jordanes: a construção da memória dos „bárbaros‟ no VI século. Acta Scientiarum. Universidade Federal de Maringá, 2014, p. 13-27. Disponível em:http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/ActaSciEduc/article/view/22223 Acesso em: 23/02/2016. COSTA, R. Do fim do Mundo Antigo à Alta Idade Média. International Studies on Law and Education, 7, 2011, p. 97-102. Disponível em: http://www.ricardocosta.com/sites/default/files/pdfs/do_fim.pdf. Acesso em: 31/12/2016. DOSSE, F. A História em Migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Edusc, 2003. DUMÉZIL, B. O universo bárbaro: mestiçagem e transformação da virilidade. In: CORBIN (et al). História da Virilidade. Petrópolis: Vozes, 2013, v.1, pp. 125-152. EGEA, M. E. G. Piratas o estadistas: la política exterior del Reino Vândalo durante el reinado de Genserico. POLIS. Revista de ideas y formas políticas de la Antigüedad Clásica, 9,1997, p. 107-129. Disponível em: dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/148844.pdf. Acesso em: 23/02/2016. FARINATTI, L. A. E. . Panos, moedas e prazeres. Notas sobre os meios de pagamento dos peões da pecuária na fronteira meridional do Brasil (1840-1860). História: Debates e Tendências (Passo Fundo), v. 9, 2009, p. 96-108.

77

FLORES, M. F. C. T. O estudo da Fronteira para a análise da criminalidade apresentação de casos. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Disponível em: Acesso em: 30/10/2016. FRANCHI. A. P. Poder Imperial e legitimação no século IV d. C.: o caso do “Panegírico de Constantino”. 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 2009. FRIGHETTO, R.A Antiguidade Tardia: Roma e as monarquias romano-bárbaras numa época de transformações (Séculos II-VIII). Curitiba: Juruá, 2012. GAZZOTTI, D. M. As concepções do poder régio entre os suevos na Gallaecia do século V: uma análise da crônica de Idácio de Chaves. Dissertação de Mestrado defendida na Universidade Federal do Paraná – UFPR, 2014. GIBBON, E. Declínio e queda do Império Romano. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. GOLDBERG, E. J. The Fall of the Roman Empire Revisted: Sidonius Apollinaris and His Crisis of Identity. Virginia: Corcoran Department of History at the University of Virginia, 1995. Disponível em: http://www.freerepublic.com/focus/news/833941/posts. Acesso em: 25/10/2016. GRIMAL, P. Lendas e realidades dos primeiros tempos. In: ______. A Civilização romana. Lisboa: Edições 70, 1984, p.11-31. GUARINELLO, N. L. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013, p. 85-86. ______. GUARINELLO, N. L. Ordem, integração e fronteiras no Império Romano. Um ensaio. Mare Nostrum, 2010, p. 114-127. HARTOG, F. Memória de Ulisses. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004. HARVEY, P. Dicionário Oxford de Literatura Clássica Grega e Latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. HORVÁTH, E. The Role of Arianism in the Vandal Kindgom.Pisa: Pisa University Press, 2006. HUNT, L. (org.). A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995. KINDLER, A. L. Introducción general. In: SIDÔNIO APOLINAR. Poemas. Madrid: Editorial Gredos, 2005, p. 7-76. MALOSSE, P-L.Introduction. In: PSEUDO-LIBÂNIO. Epistolimaioi Caractheres. In: Lettres pour toutes circonstances. Trad. Pierre-Louis Malosse. Paris: Les Belles Lettres, 2004, p. 11-19.

78

MICHELETTE, P. T. Isidoro de Sevilha e a construção de um conceito de monarquia teocrática no Reino Visigodo, Revista Crítica Histórica, 2013, p. 37-57. MARROU, H. I. Decadência Romana ou Antiguidade Tardia? Lisboa: Áster, 1979. MOKHTAR, G. O período romano e pós-romano na África do Norte. In: ______ (ed.). História Geral da África– Vol. II – África antiga. Brasília: UNESCO, 201, p. 501-560. MORELLO, R; MORRISON, A. D. (Org.).Ancient Letters: classical and late antiquity epistolography. New York: Oxford University Press, 2007. PAPA, H. A. Cristianismo ortodoxo versus cristianismo heterodoxo: uma análise político-religiosa da contenda entre Basílio de Cesareia e Eunômio de Cízico (séc. IV d. C.). Dissertação de Mestrado defendida na Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca, 2009. CAMPOS, B. G. Constructos identitários entre os conceitos de realeza de Temístio e Amiano Marcelino (século IV d.C.). Dissertação de Mestrado defendida na Universidade Estadual Paulista – UNPESP/Franca, 2011. PAULA. J. C. Relações entre Roma e germanos a partir da Germânia de Tácito. 2007. Trabalho de Estágio Supervisionado (Estágio em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. RIOUX, J-P.; SIRINELLI, J-F. (orgs). Para uma história cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. SALIERNO, R. G. Poder y conflicto religioso en el norte de Africa: Quodvultdeo de Cartago y los vândalos.Madrid: Signifer Libros, 2002. SALOR, E. S. Introducción general. In: ORÓSIO. Histórias libros I-IV. Madrid: Editorial Gredos, 1982, p. 7-68. SCHUSTER, J. Retórica e representação: os lugares-comuns na caracterização do modo de fazer guerra de celtas e bretões do norte. Dissertação de Mestrado defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016. SILVA, D. G. G.; ALBUQUERQUE, M. C. Bárbaros ou/vs Romanos? Sobre Identidades e Categorias Discursivas. Mirabilia, 21, 2015, p. 345-359. Disponível em: file:///C:/Users/MEGA-01/Downloads/gallindo-d.-albuquerque-m.-b%C3%A1rbarosversus-romanos.pdf. Acesso em: 31/12/2016. SILVA, G. V.da. Reis, santos e feiticeiros: Constâncio II e os fundamentos místicos da 'basileia' (337-361). 1. ed. Vitória: Edufes, 2003. ______.; SOARES, C. O “fim” do mundo antigo em debate: da “crise” do século III à Antiguidade Tardia e além, Nearco, Ano VI, n. I, 2013, p.138-162. SILVA, U. G. O novo século V. Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006.

79

______. Rebeldes contra o Mediterrâneo. MARE NOSTRUM: História e Integração no Mediterrâneo Antigo, v. III, 2012, p. II-1. SILVA, S. C. A integração entre romanos e bárbaros no Império Romano Tardio. Romanitas - Revista de Estudos Grecolatinos, v. 1, 2013, p. 191-196. ______. O Império Romano de Filóstrato em A Vida de Apolônio de Tiana. Tese de doutorado defendida na Universidade Estadual Paulista – UNESP/Franca, 2014. ______. A Antiguidade Tardia revisada: uma análise da contenda entre Gregório Nazianzeno e o Imperador Juliano (Resenha). Nearco, v. 1, 2014, p. 430-436. TRAPP, Michael. Greek and latin letters: an antology with translation. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. WAARDEN, J. A. van; KELLY, G. (eds), New Approaches to Sidonius Apollinaris, with Indices on Helga Köhler, C. Sollius Apollinaris Sidonius: Briefe Buch I. Leuven, 2013. WARD-PERKINS, B. The Fall of Rome: And the End of Civilization. Oxford: Oxford University Press, 2006. WOOLF, G. Becoming roman, staying greek: Culture, identity and civilizing process in the Roman East, PCPhs, 40, 1994, p. 116-143. ______. Becoming Roman.The origin of provincial Civilization in Gaul. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.