Representações Literárias no Jogo The Sims 4

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Marxismo e Modernismo em época de literatura pós-autômoma

Capítulo V Representações Literárias no Jogo The Sims 4 Adriana Falqueto Lemos1

1 - (PPGL-UFES-FAPES) Adriana Falqueto Lemos é graduada em Letras Inglês pela Universidade Federal do Espírito Santo (2012), Mestre em Letras, também pela UFES (2015). Atualmente é doutoranda em Letras e bolsista da FAPES, no programa de pós-graduação em Letras da UFES. É escritora e professora de Inglês na rede estadual de ensino do Espírito Santo (SEDU). Faz pesquisa (principalmente) nos seguintes temas: leitura, literatura, videogame e literatura de horror. Integrante do Grupo de Pesquisa Literatura e Educação.

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Os estudos textuais contemporâneos conduzidos por Alan Gailey (2011) e Roger Chartier (2002) consideram os suportes como elementos que são indivisíveis da produção do sentido do texto já que Os textos não existem fora dos suportes materiais (sejam quais eles forem) de que são veículos. Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam profundamente da construção de seus significados. O “mesmo” texto, fixado em letras, não é o “mesmo” caso mudem os dispositivos de sua escrita e de sua comunicação (CHARTIER, 2002, 6162).

Essas questões se tornam prementes quando o estudo se volta para a mediação e remediação de textos em mídias digitais, assunto do artigo “Beyond Remediation: The Role of Textual Studies in Implementing New Knowledge Environments” (2011) de Alan Galey e demais autores. Seriam estes objetos digitais novas textualidades? De acordo com os autores, o processo de remediação de um texto o reconfigura e, por isso, altera seu sentido. Ao deixar de ser a mesma representação textual que era, deixa também de oferecer as mesmas possibilidades de apropriação anteriores a remediação. Além disso, o avanço tecnológico está intrinsecamente embutido na cultura e em como as pessoas se comunicam e se relacionam, colocando as novas mídias como formas de cultura e de transmissão de informações contemporâneas. Por causa disso, o estudo do texto eletrônico/digital não pode estar descolado do estudo textual já existente, afinal, a leitura do videogame que, segundo Alan Galey, é caracterizado como “digital narrative, assim como electronic literature e videogames” (GAILEY, et al, 2011, p. 234, tradução nossa), pode ser feita de maneira a incorporar métodos tradicionais de estudos de texto. De acordo com os autores do artigo, através dos estudos textuais (Textual Studies) é possível fazer uma leitura da história das práticas de produção e apropriação de textos, desde o passado através do futuro, de maneira a compreender as implicações técnicas das novas culturas de textos digitais, unindo o tradicional e o inovador. Esse é um dos pensamentos organizadores da pesquisa que vem sendo desenvolvida atualmente no plano da pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, intitulada Literatura, Videogames 79

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e Leitura: intersemiose e multidisciplinaridade e que terá a sua defesa em 2015. Os videogames são objetos culturais contemporâneos altamente populares e, por isso, merecem um olhar crítico do pesquisador do campo das letras, aquele que pode ler o texto do jogo de modo a estudar os sentidos ali cristalizados, para além de informações técnicas da mídia. A pesquisa da dissertação, apesar de não se apresentar neste texto, serve de arcabouço teórico para a análise aqui desenvolvida. O corpus e o recorte escolhido para esta análise se dão por dois motivos: a) O jogo The Sims 4 (2014) acaba de ser lançado mundialmente para Microsoft Windows – traduzido para inglês, alemão, francês, russo, polonês, sueco, espanhol, italiano, holandês, norueguês, dinamarquês, finlandês, português brasileiro, tcheco, chinês tradicional, japonês e coreano; b) como se trata de uma simulação, interessa entender de que forma a leitura literária e a literatura são representadas no jogo, já que isso pode indicar aspectos da própria sociedade contemporânea. The Sims 4, jogo popular e extremamente difundido no Brasil, contém elementos variados que propiciam ao jogador uma enorme liberdade criativa. Observa-se isso nos anúncios publicitários: Sims com Grandes Personalidades: crie e controle uma geração nova de Sims com grandes personalidades, emoções novas e visuais distintos. Novas Possibilidades: os Sims com grandes personalidades e emoções novas lhe dão possibilidades infinitas para criar histórias ricas, divertidas e estranhas (EA GAMES, 2014, online1).

Parte do impacto positivo criado pelo jogo advém, desde a edição de 2000, da participação do jogador e da liberdade que a estrutura do jogo propicia a ele. Não há narrativas prontas, não há enredo, não há personagens: os jogadores criam os personagens, a casa onde eles vão morar, escolhem os empregos e as personalidades deles. Também escolhem os móveis, as roupas, os cabelos e com quem e de que forma os personagens irão se relacionar. Não há história ou enredo de base no jogo The Sims: há apenas ferramentas para que o jogador possa criar a sua própria narrativa. Há sim textos instrucionais do jogo, que indicam informações como promoções no emprego, acidentes etc. 1 - https://www.thesims.com

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Na 4ª edição, The Sims tem algumas interações ligadas à leitura e literatura: há a profissão “Escritor” e o traço de personalidade em passatempos, como devorador de livros, por exemplo. “Estes sims ganham modificadores de Humor potentes ao ler livros e podem indicar e discutir livros de formas únicas” (THE SIMS 4, 2014). Os sims têm necessidades como sono, banheiro e fome, além de diversão. Quando sims trabalham ou fazem atividades que lhes exigem esforço e que são entediantes, eles sentem necessidade de diversão e, normalmente, atividades como assistir TV podem suprir essa carência. Para aqueles sims que têm gosto por leitura, a edição de 2014 traz esse traço de personalidade, que confere a possibilidade de que o sim possa se divertir lendo tanto quanto assistindo à TV. Sims, no entanto, podem ter vontades próprias e fazer o que sentirem vontade. Na maioria das vezes, o sim criado com esse traço de personalidade acaba simplesmente ligando a TV e se sentando no sofá para assisti-la; é raro que o sim, por conta própria, chegue em casa cansado depois de um dia de trabalho e vá até a estante para pegar um romance para ler, por mais cara que a estante seja (no jogo, objetos de maior valor estimulam o seu uso). Mesmo que não haja TV na casa e que o jogador decida retirá-la para que o sim tenha menos opções de entretenimento e que escolha os livros para se divertir, ele acaba indo até o computador para jogar jogos eletrônicos. Na estante, há livros de literatura além dos já usuais livros técnicos através dos quais o sim pode aprender novas habilidades para subir seu nível no trabalho e ganhar mais dinheiro. Os livros de literatura disponíveis nas prateleiras de qualquer estante simples são A guerra dos glutões, Amor em tempos de sanduíche, Brincando com a comida, Crise no galpão, Fisgando um peixão, Lucas Dark e a série de coincidências cada vez mais improváveis, Não mais um pequeno agricultor: A ruína de Grant Robiek, O primeiro unicórnio, O senhor dos Balanços, Os mortos-lentos, Polca Pizza-Gata, Pudim Orbital, Sai, Salsicha! e Traição indomável do coração. Observa-se abaixo a sinopse do livro O senhor dos Balanços, O senhor dos Balanços Gênero: Infantil / Fantasia De L E. E. Tompkien O parquinho se tornou um lugar perigoso com a volta do valentão da escola. Todos buscam o Um Balanço: um balanço mais alto e mais rápido do que todos os outros. Será que Eduardo e seus amigos podem destruir o Um Balanço

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antes de Byron, o Valentão, coloque as mãos nele? (THE SIMS 4, 2014).

Pelo nome do livro e pelo nome do autor, é possível perceber a visão de mundo irônica do jogo, que usa o livro O senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien, como pano de fundo para a composição de uma literatura ficcional no jogo. O anel é substituído por um balanço, Sauron se transforma em Byron e a terra média é agora um parquinho. Outro fator relevante no tocante ao caráter das representações de literatura e leitura presentes no jogo se encontra nos gêneros dos livros. Quando se tem um personagem que objetiva ser escritor, ele deverá treinar a habilidade “escrita”, que tem graduação de 0 a 10. Observe abaixo o que cada nível da habilidade corresponde em capacidade de escrita, Nível 1 – Praticar escrita / Escrita de livro gênero Infantil; Nível 2 – Escrever livros tristes (se triste), Publicar por conta própria; Nível 3 – Escrever livro de gênero Conto; Nível 4 – Escrever livros de gênero Poesia; Nível 5 – Escrever livros de gênero Não-Ficção, Vender para editora; Nível 6 – Escrever livros de gênero Roteiro; Nível 7 – Escrever livros de gênero Fantasia; Nível 8 – Escrever livros de gênero Ficção-científica; Nível 9 – Escrever livros de gênero Mistério, submeter livros à revistas literárias; Nível 10 – Escrever livros de gênero Biografia (THE SIMS 4, 2014).

Os livros literários são classificados entre Infantil, Conto, Poesia, Não-Ficção, Roteiro, Fantasia, Ficção-científica, Mistério e Biografia, o que os aproxima mais de uma classificação generalizada de textos literários, já que há misturas entre as quatro formas principais de gêneros estudados desde a antiguidade, que são o narrativo ou épico, lírico e dramático e gêneros que são subgêneros dentro do campo narrativo, como Mistério, Fantasia e Ficção-científica. Não-ficção também poderia estar associado à Biografia, que surge como estilo de escrita mais difícil de ser aperfeiçoado; em contra partida, o gênero Infantil aparece como o primeiro e mais fácil de ser aprendido. Pensamos que, talvez, essa classificação auxilie os jogadores (menos acostumados com os gêneros literários e mais 82

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acostumados com a classificação contemporânea que é feita nas livrarias) a terem uma mediação mais facilitada ao compreender do que se trata cada gênero e as possibilidades que o sim tem ao lidar com ele. Mas isso se torna problemático ao passo que desmerece o “gênero” Infantil e o aponta como um tipo de escrita textual fácil e amador. Isso não se reflete na quantidade de dinheiro que se ganha com direitos autorais dos livros que podem ser publicados de três formas: a) por conta própria; b) através de uma editora, e; c) após submissão à revistas literárias. De qualquer forma, quando se coloca gêneros em uma escala de proficiência de 1 a 10, implica-se que há alguns que exigem menos capacidade para escrita e que outros exigem mais. No certame das publicações feitas há, possivelmente, menos escritores de biografias sendo analisados dentro do campo de estudos literários do que os autores de livros infantis; no Brasil, por exemplo, grandes nomes da literatura são autores de literatura para crianças, como Lygia Bojunga e Monteiro Lobato, mas é importante que retornemos ao jogo para que esta classificação possa ser mais bem analisada. Quando um sim tem o sonho de ser um grande escritor, quando a aspiração dele é chegar ao topo da escrita, ele almeja se tornar não um grande escritor de literatura, mas um autor de Best-Seller. Os mais vendidos são, geralmente, além de sucessos editoriais, literatura de massa. O que torna qualquer livro um best-seller é a quantidade de títulos vendidos – seja o livro literário ou não, hoje, há best-sellers que são livros técnicos, de autoajuda e até mesmo manuais. Apesar de haver exceções, livros de auto valor literário estético não estão normalmente no topo das listas dos mais vendidos. Compreende-se então que biografias têm uma tendência maior de se tornarem best-sellers em curto prazo, mas sabemos que é o mercado juvenil que aquece as vendas com títulos como Diário de um Banana, atualmente primeiro da lista no USA Today2 . Mesmo que a lista em si não tenha critérios claros ou que não seja uma transposição do real, ela presentifica uma realidade, já que é uma representação de um formato que está legitimado socialmente. A representação do ato de ler literatura como última alternativa de entretenimento reflete a realidade em que vivemos e que, além disso, não é problematizada para o jogador. Os títulos e as sinopses dos livros da simulação são irônicos e satirizam títulos existentes na realidade; Ler 2 - Top-selling list, USA Today. . Acesso em: 16 nov. 2014.

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é cansativo e os sims perdem diversão e conforto quando estão lendo, ou seja, se o jogador deve ler livros técnicos para aprender habilidades que são necessárias para que os sims subam de nível na carreira e ganhem mais dinheiro, fica circunscrito – através do código do jogo – que o jogador acabará, então, escolhendo ler livros técnicos ao invés de literatura. Os livros de literatura servem apenas para divertir o jogador, ao passo que a televisão oferece ganho maior nas taxas de diversão e menos cansaço – assim como o computador. Até mesmo a representação da posição do sim lendo na cama transparece desconforto e inadequação.

Imagem 1: Sim lendo na cama. The Sim 4, 2014. Fonte:

Muito mais natural seria se ele estivesse deitado na cabeceira da cama, mas a posição que é produzida pelo código do jogo presentifica uma leitura forçosa e incômoda. Observe dois sims lendo no sofá:

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Imagem 2: Sims lendo no sofá. The Sim 4, 2014. Fonte:

As cabeças estão curvadas, as costas eretas, os sims parecem fisicamente desconfortáveis. Diferentemente, é muito mais natural quando um sim está no computador,

Imagem 3: Sim no computador. The Sim 4, 2014. Fonte: < http://segmentnext.com/2014/09/05/the-sims-4-skills-guide-how-to-level-up/3/>

Esse relacionamento físico do leitor com o livro e com outros meios – no caso, a tela do computador, remete ao texto de Roger Chartier em A Aventura do Livro, e o capítulo no qual analisa representações de leitura e as relações que estas imagens estabelecem com os comportamentos de 85

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leitores em diferentes contextos. Assim como é indicado no livro, os leitores eram representados sentados enquanto liam, mas isso não significava que era a maneira como gostariam de ler: “a pintura ou a gravura imobilizam os leitores numa atitude que remete às convenções e códigos atribuídos à leitura legítima. [...] Eles podiam ter práticas de leitura mais livres que não eram consideradas como legitimamente representáveis” (CHARTIER, 1998, p. 79). Pensando através da história cultural dos textos e da leitura, compreenderemos que as representações que o jogo The Sims 4 transmitem a ideia de que a leitura de livros pede um comportamento corporal quase antinatural, muito rijo – a leitura na tela do computador é mais relaxada e usual. Há uma distância quase respeitosa do rosto do sim que lê em relação ao objeto de leitura livro, ao passo que seu rosto parece muito mais próximo e sua expressão é mais interessada quando este faz a leitura digital na tela do monitor. Para Miguel Sicart (2011), The Sims é moralmente complexo porque, por ser uma simulação, preserva certos aspectos do sistema social em que vivemos, e isso implica a maneira como as pessoas se comportam e o estilo de vida que elas têm. Por isso, o jogo pode ser interpretado não só como uma simulação da vida social ocidental, mas também como uma produção de sociedades capitalistas. Nessa perspectiva, o código que pré-programou o jogo age como uma propaganda, reforçando os valores sob os quais ele foi desenhado. Mas o fato de ser uma “propaganda” do modo de vida e da produção capitalista não impede o jogo de ser avaliado e criticado em sua totalidade, porque, de fato, sua intenção não é a de ser uma propaganda: se o jogo é uma simulação da vida real, entende-se que vivemos sob esse regime de maneira tão ingênua e natural que, quando o jogador se depara com a simulação da sua própria forma de vida, simplesmente a aceita da forma como ela se apresenta, sem questionamentos. Ao mesmo tempo, The Sims não foi feito sob o signo da propaganda capitalista – ele é, afinal, apenas um simulador do modo de vida ocidental americano. Se o modo de vida ocidental americano é capitalista, logo, um jogo projetado como simulador também o será, e se vivemos numa sociedade que funciona dessa maneira, então tudo nos parecerá muito natural. Por isso, é importante que se observe as representações de mundo 86

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imiscuídas em jogos de simulação como The Sims 4, que cristalizam visões de mundo sobre como a literatura é pensada e dada a ler em objetos culturais de grande impacto midiático. Se estas representações são vistas como naturais pelos jogadores, elas presentificam um retrato da recepção literária; Se elas são codificadas dentro de um jogo de simulação de vida numa sociedade capitalista, significa que os desenvolvedores e produtores dão a pensar a literatura objetivamente como meio de vida e a criação de livros como um negócio onde o principal objetivo pessoal de um escritor não é necessariamente ser um artista, mas ser um escritor de Best-sellers – o que, dentro do universo do jogo, parece ser a mesma coisa. Fica implícito para o jogador a representação de uma escrita literária e literatura que serve ao capital e que o ato da leitura é tedioso e desconfortável. O estudo de livros técnicos para aquisição de conhecimentos e ascensão no emprego é mais valorado do que a leitura literária; já que ambos tomam tempo e deixam os sims cansados e entediados, é preferível ler o livro técnico, já que o ato será revertido num aumento no salário e diminuição de carga horária, ao passo que a leitura literária apenas entretém – e nem tanto quanto a TV e o computador. Ou seja, a leitura, assim como a escrita literária, serve ao capital. A leitura literária fica em segundo plano, como opção onerosa de prazer.

Referências:

CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Tradução Maria Manoela Galhardo. 2. ed. Portugal: Difel, 2002. ______. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução Reginaldo de Moraes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Edunesp, 1998. GALEY, Alan; CUNNINGHAM, Richard; NELSON, Brent; SIEMENS, Ray; WERSTINE, Paul. Beyond Remediation: The Role of Textual Studies in Implementing New Knowledge Environments. In: New Technologies in Medieval and Renaissance Studies 3. 2011, pp. 21–48.

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2011.

SICART, Miguel. The Ethics of Computer Games. The MIT Press, THE SIMS. Electronic Arts. 2000. THE SIMS 4. Electronic Arts, 2014.

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