Representações visuais de meninos e meninas: Relações entre imaginário e gênero RELATÓRIO FINAL 2011

June 3, 2017 | Autor: S. Rangel Vieira ... | Categoria: Gender Studies, Visual Studies, Visual Culture, Educational Research, Childrens Drawings, Research with Children
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RELATÓRIO FINAL

Representações visuais de meninos e meninas: Relações entre imaginário e gênero Profa. Dra. Susana Rangel Vieira da Cunha

Relatório Final

Representações visuais de meninos e meninas: Relações entre imaginário e gênero Profa. Dra. Susana Rangel Vieira da Cunha Bolsistas: Camila Bettim Borges (2006-2008) UFRGS-FAPERGS Ana Cristina Crossetti Vidal (2008-2010) UFRGS-CNPq Letícia Bandeira Guimarães (2009-2010) FAPERGS Alice Seibel Wapler (2010-2011) FAPERGS

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Sumário

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 3 CAPÍTULO 1: ATRAVESSAMENTOS TEMÁTICOS DAS PESQUISAS ............................................. 8 1. SOBRE AS PESQUISAS PARTICIPANTES ....................................................................... 8 1.1 Dilemas da pesquisa com crianças .......................................................................... 8 1.2 Resumo das pesquisas .......................................................................................... 11 1.3 Mediações investigativas nas pesquisas ................................................................ 15 1.4 Tratamento de dados ............................................................................................ 17 1.5 Apontamentos finais das pesquisas ...................................................................... 17 2. ELABORAÇÕES DE UMA NOVA PESQUISA ................................................................... 20 2.1 Tratamentos de dados .......................................................................................... 22 2.2 Formulação das Categorias de Análise .................................................................. 22 CAPÍTULO 2: O QUE É ISSO QUE NOS ATRAVESSA? ............................................................... 24

CAPÍTULO 3: REPERTÓRIOS CULTURAIS: OS MODOS DE SER INFANTIL ................................ 37 3.1 Estereotipias, naturalizações e homogeneização ................................................... 51 3.2 Binarismos/ diferenciações e exclusão ................................................................. 54 3.4 Multiplicidade na unidade/ desenho infantil .......................................................... 56 3.5 Considerações ...................................................................................................... 61 CAPÍTULO 4: CONSUMO: A ORDEM DA VEZ PARA A INFÂNCIA .............................................. 63 CAPÍTULO 5: IDENTIDADES: A REGULAÇÃO ENTRE OS PARES ............................................... 80 5.1 Auto-regulação: nos limites do quadrado .............................................................. 88 5.2 Imagem um do outro ............................................................................................ 99 5.3 Considerações .................................................................................................... 107 CAPÍTULO 6: ESPAÇOS ESCOLARES: MENINOS E MENINAS CADA UM SO SEU QUADRADO! .. 108 6.1 Os quadrados na escola ...................................................................................... 112 6.2 Considerações .................................................................................................... 129 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 130 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 133

Introdução

A resposta certa, não importa nada: o essencial é que as perguntas estejam certas. Mário Quintana

Por que pesquisamos? Como elegemos temáticas para nossas pesquisas? O que nos chama a atenção em nossos cotidianos de professoras? Como as experiências docentes nos interrogam e se transformam em questões que buscam, mesmo que provisórias, de respostas? Inicio este relatório de pesquisa lançando essas questões com o intuito de mostrar aos leitores os caminhos que nos levaram a olhar o cotidiano escolar como campo de pesquisa e as

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crianças, que fazem deste lugar “a escola”, como nossas

principais

interlocutoras,

instigadoras

e

propulsoras de nossos questionamentos. Na maioria das vezes são acontecimentos da nossa vida profissional

e

pessoal

que

nos

provocam,

causando

estremecimentos nos solicitando a olhar com mais atenção e sensibilidade determinados aspectos do cotidiano. Elliot Eisner

O investigador qualitativo deve experienciar as qualidades que impregnam uma aula para ter uma base para qualquer tipo de interpretação teórica. As teorias e conceitos, os esquemas e categorias, proporcionam elementos chaves para a observação, mas estes elementos são somente indicadores (EISNER, 1998, p. 267).

fala a respeito de uma sensibilidade refinada que aponta para aquilo que tem significado para nós, formando assim um domínio de interesse a partir de nossas experiências.

Este relatório é a etapa final da pesquisa Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero (2005 até a presente dada) coordenadas pela Profª Drª Susana Rangel Vieira da Cunha que agrega outras quatro investigações inter-relacionados. As pesquisas envolvidas desenvolvem reflexões sobre as relações entre a Cultura Visual, através de seus inúmeros artefatos, e os modos de ver a infância, assim como os modos de ser criança e como as crianças estão se constituindo nas inteirações com esses artefatos. As pesquisas que contribuíram com seus dados foram presenciais e com crianças escolarizadas. Essas investigações correspondem aos trabalhos de

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conclusão do Curso de Pedagogia, assim como trabalhos investigativos de Bolsas de Iniciação Cinetífica, todos orientados pela Profª Drª Susana Rangel Vieira da Cunha.

Participantes da Pesquisa Coordenadora : Profa. Dra. Susana Rangel Vieira da Cunha (Profa. Faculdade de Educação, PPGEDU/UFRGS) Membros da equipe:



Profª Bárbara Bassani Rech (orientanda do Curso de graduação em Pedagogia – 2007)



Profª Clara Coelho Marques (orientanda do Curso de graduação em Pedagogia – 2008/2)



Profª.Micheli Schmidt da Silveira (orientanda do Curso de graduação em Pedagogia – 2008/2)



Acadêmica Alice Siebel Wapler (Bolsista IC/UFRGS– 10/2010 até presente data, aluna de Graduação Instituto de Artes / UFRGS)



Acadêmica Ana Cristina Crossetti Vidal (Bolsista de IC/CNPQ- 08/2008 até presente data, aluna de Graduação FACED/UFRGS)



Acadêmica Camila Bettim Borges (Bolsista de IC/FAPERGS – 05/2007 a 06/2009, aluna de Graduação FACED/UFRGS)

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Acadêmica Letícia Bandeira Guimaraens (Bolsista IC/ FAPERGS – 09/2009 a 03/2010, aluna FACED/UFRGS)



Acadêmica Iara Barata Collet (Bolsista IC/ FAPERGS – 04/2010 a 10/2010, aluna FACED/UFRGS)

O relatório é composto por seis capítulos que analisam recorrências encontradas nas pesquisas participantes. O primeiro capítulo, Atravessamentos temáticos nas pesquisas aborda de maneira global o corpo das pesquisas participantes e as interrelações entre elas, assim como o processo encontrado para a elaboração de uma nova pesquisa que gerou a produção desse relatório final. No segundo capítulo, O que é isso que nos atravessa? é tratada da influência dos artefatos culturais na forma como vemos o mundo e a nós mesmos. Esses artefatos são constituídos de significações atribuídas pela sociedade e que, quando naturalizadas, regulam práticas sociais, influenciam nossas condutas e participam da formação da nossa personalidade. O papel da mídia, do consumo e da indústria cultural na reprodução de verdades por meio de imagens é apontado no capítulo, assim como a anormalidade atribuída ao que se encontra fora dos padrões dominantes. Posteriormente, no terceiro capítulo abordamos a questão dos Repertórios culturais: os modos de ser infantil, no qual discorremos sobre como o imaginário infantil absorve referencias das produções culturais que produzem, reproduzem e reforçam uma estética homogenia e hierárquica, assim como padrões de comportamento e valores. Desta forma, os artefatos assumem a função de educadores ao participarem do processo de incorporação dos personagens midiáticos, tanto na aparência quanto nos modos de ser criança.

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No quarto capítulo, Consumo: a ordem da vez para a criança é abordada a inserção da criança ao mercado do consumo e quais os mecanismos deste para atrair o público infantil, assim como a participação de determinados produtos na constituição das identidades das crianças. No quinto capítulo, Identidades: a regulação entre os pares é tratado a influência dos artefatos culturais e da cultura visual na formação das identidades das crianças. A auto-regulação aparece aqui como a preocupação das crianças em corresponder aos padrões comportamentais destinados aos gêneros. No sexto capítulo, Espaços escolares: Meninos e meninas, cada um no seu quadrado! aborda as relações das crianças com os espaços escolares que habitam periodicamente, assinalando que a partir de usos e ocupações tem se produzido territórios generificados dentro das instituições de Educação Infantil.

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Atravessamentos temáticos nas pesquisas 1. DILEMAS DA PESQUISA COM CRIANÇAS Muitos pesquisadores/as, nacionais e internacionais, que têm como foco de estudo a infância e as crianças, como Steinberg (1997), Buckingham (2002), Ferreira (2004), Sarmento (2000), Rabello de Castro (1997), Faria (2002), Quinteiro (2002), Felipe (2004), Dornelles (2002), Bujes (2000), entre outro/as, reivindicam mais ênfase nas pesquisas sobre a infância e, especialmente, COM crianças para entendermos, a partir dos posicionamentos infantis seus modos de compreender o mundo. Jucirema Quinteiro (2002, p.41) sublima o estado da pesquisa no campo da infância: “com exceção da psicologia do desenvolvimento que mantém tradição e regularidade nos estudos sobre a criança, raras são as áreas de conhecimento que a priorizam em suas investigações. Mais raras ainda são as pesquisas que buscam articular a relação infância e escola.”

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As pesquisas aqui reunidas procuram “decifrar” e entender os pontos de vista das crianças em suas diferentes manifestações expressivas: falas, conversas, ações, representações visuais e corporais a fim de compreender seus posicionamentos frente aos artefatos culturais endereçados a elas. Para nós pesquisadoras, às vezes se torna difícil estar, pacientemente, nesse lugar de escuta sensível e atenta, nos despindo de nossas suposições sobre o que são aquelas crianças. Sabemos da impossibilidade de zerarmos nossas suposições sobre as crianças e das distancias entre o que pensamos sobre as crianças e o que as crianças pensam, apreendem, transgridem, questionam, agem e expressa sobre suas relações com o mundo, no caso, o mundo da cultura visual. Mesmo com toda a vontade de tornar mais visível os modos de ser das crianças, são os pontos de vista do pesquisador que farão os recortes, as ênfases e/ou exclusões nas pesquisas. E como assinala Buckingham (2002, p. 47) em relação aos discursos acadêmicos sobre a infância: “Estas imagens e estes textos não são somente a encarnação das idéias sobre a infância, são também sobre a própria infância de seus autores: os sentimentos de medo, a angústia, a nostalgia, o prazer e o desejo. Como tais, nos dizem muito mais sobre os adultos do que sobre as crianças.” (tradução da autora). Assim, partir de várias situações de pesquisa com crianças, faço alguns questionamentos: Por que temos dificuldades em decifrar os territórios infantis a partir das falas, ações e produções expressivas das crianças? Será que muitas vezes, nossas investigações já, de antemão, supõem determinadas respostas sobre os infantis? Podemos entender as infâncias que vivem a pós-modernidade, sendo que muitas vezes o ideário de infância que temos é o da modernidade?

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De um modo geral, estudos empíricos sobre a Cultura Visual nas escolas, junto às crianças pequenas, são recentes no contexto acadêmico brasileiro. A respeito das pesquisas da cultura visual e as análises no campo educacional, Fernando Hernández (2003, p. 4) alerta que: Ainda não está claro como se podem abordar os temas relacionados com o visual por meio de estudos empíricos nas escolas. Mesmo havendo produção sobre as questões visuais, não há quase indicações sobre métodos de interpretações e de como usar estes métodos. Enfim, “criar” e desenvolver pesquisas com crianças sob a perspectiva dos Estudos da Cultura Visual ainda é um campo experimental, nômade, povoado mais por dúvidas do que certezas, instável, mutante, ou como Hernandéz (2007, p.79-80) salienta: “ (...) uma perspectiva que não considero pronta, acabada, mas em permanente construção. (...) tal abordagem sobre uma prática crítica não nos diz qual é o método (a maneira de) que devemos dialogar – no duplo sentido de travar e de gerar relações – com as imagens e com os artefatos da cultura visual”. Entretanto, mesmo não tendo “modelos” ou denominações, classificações para nossa pesquisa, as investigações sob a abordagem da cultura visual, devem partir de alguns pontos de referência e das experiências investigativas em outras áreas, como a etnografia, em especial os estudos de Luiz Eduardo Achutti (1997, 2004) sobre Fotoetnografia, os estudos de Mirian Celeste Martins (1997, 1998, 2003, 2005, 2007, 2008) que envolvem as inter-relações entre sujeitos/imagens e a mediação cultural e as proposições de Fernando Hernandéz (2007) baseadas na compreensão crítica e performativa das representações da cultura visual. Além destas referências de

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estudos, buscamos referências da pesquisa etnográfica com crianças em Willian Corsaro (2005) e Manoel Jacinto Sarmento.

(2000,

2004,

2007)

Saliento,

que

mesmo

com

“balizas”

teóricas,

muitas

vezes,

nossos

encaminhamentos, ferramentas de pesquisas se estabeleciam no próprio campo, nas nossas interações com as crianças e nas situações que estavam ocorrendo.

1.2. Resumo das pesquisas As pesquisadoras e os trabalhos de investigação mencionados e utilizados nesse relatório são:



DESENHO DE MENINOS E MENINAS: RELAÇÕES ENTRE IMAGINÁRIO E GÊNERO realizada pela Profª. Drª Susana Rangel Vieira da Cunha e pela acadêmica de Pedagogia Camila Bettim Borges no ano de 2008/2010. Resumo da pesquisa A pesquisa discute uma das temáticas de uma investigação mais ampla em torno de como a infância está sendo vista a si mesma, entre seus pares e pelos outros, através dos diferentes artefatos visuais. Aqui será enfocada a etapa inicial de uma investigação desenvolvida durante 24 meses com crianças de 04 a 06 anos de uma escola infantil. Nosso objetivo foi entender como as crianças investigadas estão constituindo seus posicionamentos sobre gênero, mediados, principalmente, pela cultura visual contemporânea, presente dentro e fora do espaço escolar. Procuramos perceber como a cultura visual produz pontos de vista sobre o “ser menina, ser menino”. Sobre esta perspectiva 11

teórica, entendemos que a cultura visual formula conhecimentos, visões sobre o mundo, sobre as pessoas, modos de ser e de agir. Os instrumentos da pesquisa foram situações lúdicas-expressivas acompanhadas de conversas durante e após as atividades, bem como observações nos espaços escolares. Os materiais analisados foram produções gráfico-plásticas das crianças, gravações, fotografias e anotações do diário de campo. Nossa abordagem de análise foi descritiva interpretativa, onde buscamos entender as percepções das crianças em seu contexto.



IMAGINÁRIO INFANTIL: DESENHOS DE MENINOS E MENINAS realizado pela acadêmica de Pedagogia Bárbara Bassani Rech no ano de 2007. Resumo da pesquisa O presente trabalho apresenta uma pesquisa desenvolvida em uma escola particular de Porto Alegre com crianças de 5 a 6 anos sobre os desenhos que as mesmas realizaram. Através desse estudo, a pesquisadora tinha como finalidade perceber e analisar as diferenças entre os desenhos de meninos e de meninas, verificando a influência da cultura visual nas produções gráficas e na construção das identidades de gênero das crianças. Barbara Rech discute sobre o papel que as imagens exercem no desenho das crianças e o quanto os personagens midiáticos fazem parte do cotidiano das mesmas, estando presentes nas falas, nas brincadeiras, nos produtos e nos desenhos livres. A pesquisa apresenta o desenvolvimento de algumas propostas pedagógicas diferenciadas de trabalho, que possibilitaram discussões sobre gênero com o grupo e o resultado obtido após o desenvolvimento das atividades. A pesquisa e o desenvolvimento do trabalho fundamentam-se nos estudos da Cultura Visual, uma vez que esta abordagem possibilita reflexões sobre os diferentes materiais visuais como práticas culturais e as significações produzidas pelos mesmos. Nessa pesquisa, Barbara Rech entende que as identidades não se instalam no sujeito de forma irremediável, pois são plurais, múltiplas, se transformam e não são fixas. A pesquisadora conclui 12

que nos constituímos enquanto sujeitos pertencentes ao gênero masculino ou feminino através das e nas relações sociais, marcadas pela historicidade e pela diversidade cultural com a qual interagimos durante nossa existência. 

“ESSA É LINDA, HEIM!”: O FEIO E O BELO ATRAVÉS DO UNIVERSO DA BARBIE realizado pela acadêmica de Pedagogia Micheli Schmidt da Silveira no ano de 2008. Resumo da pesquisa Neste trabalho a pesquisadora investiga e analisa como os desenhos animados, mais especificamente os desenhos da Barbie, através de suas pedagogias culturais, contribuem para a construção e afirmação das representações ditas “belas” e “feias”. Para tanto, Micheli da Silveira partiu de uma pesquisa de caráter qualitativo em uma turma de Educação Infantil (4 e 5 anos) de uma escola da rede pública federal, de classe média, na cidade de Porto Alegre. Para contribuir com as suas análises e reflexões sobre Cultura, Cultura Visual, processos de embelezamento, artefatos culturais como desenhos animados e brinquedos, pedagogias culturais, a pesquisadora utilizou como suporte teórico autores como Stuart Hall, Susana Vieira da Cunha, Denise Sant’Anna, Henry Giroux, Leni Dornelles e Shirley Steinberg. A pesquisa consistiu em encontros com o grupo de crianças, análise e reflexão das falas e ações das mesmas, e análise do filme “Barbie e as 12 princesas bailarinas”, assistido com a turma. As falas e atitudes das crianças durante a pesquisa demonstram que as suas representações de belo e feio aproximam-se das representações (re)afirmadas nos desenhos animados analisados. Ainda, os modos de ser belo apontados pela turma vão ao encontro, segundo Silveira, das representações valorizadas em nossa sociedade, como por exemplo: ser branco, jovem e magro.



COM QUE ROUPA EU VOU? ROUPAS INFANTIS: PRODUZINDO MODOS DE SER MENINO E MENINA realizado pela acadêmica de Pedagogia Clara Coelho Marques no ano de 2008.

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Resumo da pesquisa Este trabalho buscou investigar e analisar como crianças de 3 a 4 anos realizam suas identificações de masculinidade e feminilidade, expressas através das roupas. Para tanto, foi realizada uma pesquisa qualitativa, com crianças de alto e médio poder aquisitivo, de uma turma de educação infantil da rede privada de Porto Alegre, onde a pesquisadora Clara Marques realizou seu Estágio Curricular. Nesta pesquisa Marques procurou entender as formas pelas quais essas crianças estabelecem suas preferências por determinada vestimenta. Compondo o corpus de análise de seu trabalho, considerando as falas das crianças sobre o que é adequado para meninos e meninas vestirem. Como suporte teórico, buscou embasamento nos estudos sobre Cultura Visual (HERNÁNDEZ, 2000 e CUNHA, 2005) e nos estudos sobre Infância (DORNELLES, 2005). A pesquisadora também traz os estudos de Philippe Ariès (2006) a fim de analisar como as concepções de infância estão intimamente relacionadas com os modos de vestir das crianças.



ESPAÇOS ESCOLARES: TERRITÓRIOS GENERIFICADOS realizado pela bolsista de Iniciação Científica e acadêmica de Pedagogia Ana Cristina Crossetti Vidal no ano de 2008/2009. Resumo da pesquisa Partindo dos dados e resultados da pesquisa em andamento: Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero, essa pesquisa, de caráter empírico, propõe identificar os marcadores de gênero nos espaços de uma EMEI de Porto Alegre e examinar as relações construídas entre estes espaços e a formação das identidades masculinas e femininas, ou seja, como os espaços escolares produzem territórios generificados e como as crianças estabelecem relações com eles. Levando se em consideração que esses espaços apresentam-se carregados de aspectos culturais e simbólicos, frutos das apropriações sociais e individuais de cada criança que serão representadas a partir de vivências, interações culturais e o imaginário infantil. Entendo

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que a formação das identidades faz parte de um processo entremeado pela cultura visual contemporânea, sendo que. estamos cotidianamente expostos a essa cultura que expõe materialidades simbólicas marcadas pelas questões de gêneros. A metodologia da pesquisa é inspirada nos pressupostos da etnografia e a ferramentas são as observações do cotidiano escolar, as interações das crianças com os espaços, registros fotográficos e verbais, diário de campo.

1.3. Mediações investigativas nas pesquisas Nas pesquisas analisadas a proposta de mediações tem fundamento a partir do conceito de Martins (2010) de mediação cultural no qual a autora refere-se sobre uma ação específica a ser pensada, revelando-a como um canal de comunicação que permite estudar o processo como um todo, atentando para os sentidos produzidos a partir desta comunicação. Segundo Martins (2010, p.71), a mediação cultural pode ser compreendida como “estar entre muitos”. Entendemos desta afirmação as várias maneiras elaboradas e percepções produzidas que colaboram para a aproximação do objeto de pesquisa e realização assim sua investigação. Foram realizados diferentes tipos de mediações por parte das pesquisadoras quando estavam em campo atendendo aos objetivos de seus respectivos estudos. A pesquisadora Micheli Schmidt da Silveira enfoca sua investigação na análise e na reflexão das falas e das ações das crianças desencadeadas principalmente após a apreciação do filme da Barbie - “Barbie e as 12 princesas bailarinas” – utilizando ainda como apoio uma posterior produção solicitada por ela em que as crianças deveriam

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desenhar o personagem que mais haviam gostado chamando a atenção aos argumentos de cada criança para justificar sua escolha. Por fim, transpondo o universo do desenho animado que ela havia optado por trabalhar, a pesquisadora amplia as caracterizações do que se apresenta como feio e belo para as crianças solicitando que procurem em revistas o que eles consideram que tenham tais aspectos e colem em um cartaz evidenciando seus pensamentos. Já a pesquisadora Clara Coelho Marques ao sondar os efeitos da moda na infância optou por “entrevistá-los” (conversar) individualmente tendo como ponto de partida uma imagem que cada criança pode escolher dentre várias que foram oferecidas por ela. Durante a conversa (embasada nesse roteiro prévio) ela estimulava a criança para que expusesse seus argumentos sobre a escolha bem como o consequente descarte das outras imagens e ainda abria espaço para problematizar se essa era a única opção possível para aquele figurino. Por fim, na pesquisa de Bárbara Bassani Rech o interesse de estudo exige que as crianças realizem algumas produções para posterior análise do material, enfatizando uma reflexão conjunta com as crianças e não apenas como um parecer da pesquisadora. Seu foco se constitui nas diferenças entre os desenhos de meninos e de meninas e para tal ela apresenta propostas pedagógicas diferenciadas de trabalho, que possibilitaram discussões sobre gênero com o grupo. Sua atuação em campo mesclou atividades de observação mais passiva e atividades provocadas (conversas, desenhos, criação de uma nova figura humana, etc.) a fim de desencadear discussões pertinentes ao seu objeto de estudo, ou seja, os pensamentos acerca do gênero oposto que, aos poucos, mas paulatinamente, vão construindo diferenças e criando marcas entre os sexos. Na pesquisa da Profª. Drª. Susana Rangel Vieira da Cunha e da bolsista de Iniciação Científica Camila Bettim Borges as pesquisadoras optaram por analisar a partir de uma abordagem descritiva interpretativa, isso quer dizer

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que muito mais do que uma descrição dos acontecimentos ocorridos durante a pesquisa, elas buscaram entender estes acontecimentos/vivências em seu contexto. Como ponto comum, cada uma das pesquisadoras partiu da observação de elementos do cotidiano infantil, como falas, brincadeiras, produtos, produções gráfico-plásticos como instrumental nas relações e triangulações que possibilitaram a elaboração de categorias de análises.

1.4. Tratamento de dados Nas investigações de caráter interpretativo, adotamos a perspectiva de Graue e Walsh (2003, p.35) que sugerem que “os registros de dados são construídos pelo investigador a partir de dados que ele próprio recolheu”. Todas as pesquisas analisadas utilizaram diversas estratégias para relacionar os dados obtidos e estabelecem relações desses dados a partir do diálogo de diferentes ferramentas. 1.5. Apontamentos finais das pesquisas Bárbara Rech aponta em suas considerações finais uma relação íntima e provocadora das imagens, que percorrem os meios midiáticos e os artefatos culturais vinculados ao universo infantil, na elaboração das produções gráficas das crianças, nas quais se enfatiza diferenças de gênero percebidas pela pesquisadora. Da mesma maneira, Clara Marques salienta a influência das imagens midiáticas na formulação dos modos de ser das crianças.

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A pesquisadora observa como os discursos sobre moda e consumo tem provocado a produção das identidades infantis constituídas em diferenças entre ser menino e ser menina. Em relação ainda às imagens e aos artefatos, Micheli Silveira atenta para a posição desses elementos na afirmação de uma estética infantil na qual se revela a homogeinização e a hierarquização de valores construídos culturalmente. A pesquisadora reflete sobre a maneira como o universo da boneca Barbie tem revelado essas questões de maneira determinante para a reafirmação de conceito de beleza, condicionando esse conceito ao ser branco, heterossexual, classe média, jovem e magro, desvalorizando assim, as demais formas de ser. Em suas considerações finais, as pesquisadoras assinalam para a necessidade de trabalharmos junto às crianças as questões abordadas nas investigações, e analisadas sobre a perspectiva dos Estudos da Cultura Visual, tais como, as relações de gênero, moda, consumo e beleza. As pesquisadoras consideram relevante a iniciativa de provocar outros olhares sobre aos artefatos visuais com a finalidade propiciar nas crianças reflexões em relação às imagens que figuram no universo infantil. Tais imagens têm auxiliado na elaboração do imaginário infantil, assim como de identidades e modos de ver a si e aos outros. A pesquisadora Barbara Rech sugere o desenvolvimento de propostas temáticas referentes às relações de gênero, assim como promover discussões sobre sexualidade, procurando problematizar situações ocorridas no ambiente escolar. Clara Marques ressalta a importância de questionarmos as naturalizações de posições generificadas, nas quais as crianças têm constituído seus modos de ser, apoiadas pelo consumo, pela mídia e pela moda. A pesquisadora sugere a reflexão dos padrões ofertados por esses meios com o intuito de provocarmos outra narrativa para infância que se descole de verdades estabelecidas.

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As pesquisadoras Profª. Drª. Susana Rangel Vieira da Cunha e da bolsista de Iniciação Científica Camila Bettim Borges inferiram que ao problematizar as próprias imagens nos artefatos endereçados a elas, onde são explícitos os marcadores de gêneros, elas passavam a perceber o masculino e feminino não como um atributo fixo, normativo, como um papel a ser interpretado dentro de convenções, mas como algo mutável e relativo. Os posicionamentos infantis sobre os papéis de gênero se desestabilizavam quando se problematizavam as próprias imagens. Outra constatação considerada importante pelas pesquisadoras é que as formas de pensar das crianças podem ser transformadas quando são criadas situações onde elas possam “brincar” com seus pontos de vistas, portanto situações lúdico-expressivas possibilitam acionar os imaginários infantis, fazendo com que as crianças se descolem, e decolem, um pouco, das aprendizagens efetuadas pela kindercultura. Deste modo, as pesquisadoras consideram interessante que as instituições escolares repensem os aspectos pedagógicos dos artefatos visuais/culturais endereçados à infância e direcionem um olhar atento e crítico ao universo visual.

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2.

ELABORAÇÕES DE UMA NOVA PESQUISA A proposta de agrupar as cinco pesquisas possibilitou o alargamento sobre a temática investigada de forma a enriquecê-la com os diferenciados contextos nos quais foram realizados os trabalhos de investigação. O diálogo entre as pesquisas permitiu o aprofundamento das discussões levantadas sobre as relações existentes entre os Estudos da Cultura Visual e os modos como as crianças tem se constituído na contemporaneidade. Ao reagruparmos os dados das pesquisas foi possível gerar hipóteses de investigação que versavam sobre as similaridades e recorrências encontradas no cotidiano infantil. Esse reagrupamento gerou categorias de análise embasadas nas recorrências temáticas dos trabalhos. Sendo assim, os capítulos desse relatório são protagonizados por temas como artefatos, consumo, repertórios, identidades infantis e espaços escolares. Na elaboração do relatório final tivemos a intenção de apresentá-lo de outras formas que não as convencionais. À preocupação com o conteúdo escrito foi repartida com a forma de expor esse conteúdo, ressaltada na diagramação do texto, assim como na inserção de narrativas visuais convivendo com palavras e textos. Na linha de pesquisa que atuamos, tendo como referencias fundamentais, os Estudos da Cultura Visual, constantemente utilizamos as imagens como formas de relatar e demonstrar nossos argumentos e hipóteses investigativas, produzindo assim um texto imagético. Entendemos que as imagens têm força textual e persuasiva, porém muitas vezes, na pesquisa acadêmica, desconsidera-se seu potencial de comunicabilidade, e

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deixamos de olhar as imagens como produtoras de narrativas, nas quais se formulam e se expressam modos de ser, práticas culturais e visões de mundo. Desse modo, ao elaborar narrativas visuais sobre a infância, tivemos a intenção de enfatizar a pertinência de utilizá-las com a mesma força de um texto escrito e ponderarmos sobre as possibilidades de produzir uma “argumentação visual” (HOCKNEY, 2001) na pesquisa acadêmica com e sobre crianças. Novamente o estudo das cinco investigações nos forneceu dados que somados a uma ampla pesquisa de imagens associadas à infância em diversos meios midiáticos foram essenciais para a produção das narrativas visuais contidas nesse relatório. Esses materiais ao serem levantados, mapeados e analisados revelaram recorrências do cotidiano infantil que demonstravam as relações das crianças com elementos e situações tais como, o consumo, os artefatos culturais, os espaços e as relações de gênero e entre si. A sobreposição dessas etapas do trabalho e a relação entre os dados geraram unidades de análise que por sua vez possibilitaram a produção de textos visuais. Considero que os textos visuais são uma outra forma de entender, analisar e dar visibilidade aos processos de uma investigação. Acreditamos que pelas imagens, o vedor, tem a capacidade de perceber outras informações que não estão contidas em um texto. A função das imagens, na pesquisa acadêmica, está em extrapolar o texto escapando da condição comum de ilustração ou de reforço à escrita. Sendo assim, consideramos importante aproveitar essas diferentes maneiras de entendimento proporcionadas pelas narrativas visuais como uma outra forma de suscitar, ampliar, problematizar, analisar e demonstrar situações e temas que muitas vezes as palavras não são suficientes para “dar a ver” (FERREIRA, 2009).

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2.1. Tratamentos de dados A partir das análises das pesquisas participantes foram elaboradas relações com os dados e as constatações apresentadas de forma que estes dialogassem entre si. O resultado desse diálogo possibilitou um reagrupamento dos dados originais. O novo reagrupamento, organizados por assuntos de uma mesma temática, passaram a constituir o corpo desta nova pesquisa na forma de categorias de análise. O modo como foram trabalhados os dados baseia-se na triangulação, entendida aqui como a inter-relação dos dados e dos enfoques das pesquisadoras. Em outras palavras, nosso olhar é lançado em vários ângulos sobre assuntos que se mostram caleidoscópicos. 2.2. Formulação das Categorias de Análise Durante a elaboração do relatório final de pesquisa, os estudos comparativos a fim de identificar as recorrências presentes no conjunto pesquisas nos possibilitaram estabelecer unidades analíticas principais, tais como: espaço, identidade e gênero, consumo, padrão e diferença. Os dados gerados a partir das pesquisas analisadas e as especificidades observadas puderam ser compilados de muitos modos. Tal como um caleidoscópio, os elementos estavam ali dispostos e a cada organização apresentavam novas estruturas que refletiam diferentes aspectos destes dados. Para se chegar as unidades analíticas demandou muitos momentos de diálogo entre a equipe, arranjos e rearranjos até chegarmos naquelas que consideramos 22

mais apropriadas. Entendemos que produzir esse relatório considerando essa concepção de tratamento de dados permitiu que fossem evidenciados e enfatizados elementos importantes que tem permeado a cultura infantil e, consequentemente, o universo escolar.

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O que é isso que nos atravessa?

O olhar que lançamos sobre o que nos rodeia quando andamos pelas ruas, entramos em lojas ou em supermercados e a forma como interpretamos o que esse olhar nos devolve é composto e influenciado por muitas variáveis, entre elas os artefatos culturais. Podemos dizer que eles constroem visões sobre nós e sobre o mundo. Constata-se a presença de um movimento cíclico que incide no processo de construção simbólica desses artefatos, no qual é permitido, enquanto se instituem que ganhem relevância em nossas vidas. Um artefato cultural, segundo Paul Du Gay (1997:5), é algo que possui um conjunto particular de significados e práticas culturais em torno dele. São conceitos construídos em torno de um objeto, de uma produção cinematográfica, de um tipo de sapato, de uma boneca, de um aparelho eletrônico ou em torno de campos conceituais mais amplos como infância, maternidade, educação (CUNHA, 2005, p.25).

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Convivemos diariamente com uma violenta profusão de imagens que vinculam através de variados meios como a mídia, materiais gráficos e a própria internet. Percebe-se então o poder desses artefatos visuais, que são muito numerosos e atrativos. E na medida em que os vemos, que os olhamos e “apreendemos” essas imagens, nos abastecemos de formas de interpretar o mundo. Passamos a olhar para o mundo embebidos de significações, que não são propriamente nossas, mas que a cultura nos confere através dos apelos imagéticos (MARQUES, 2008, p.24). Atualmente há uma série de artefatos culturais endereçados à infância convertendo-se em fonte de desejo para muitas crianças (e também para muitos adultos), uma vez que tê-los gera uma sensação de pertencimento, estipula determinadas características desejáveis para si e permite que certas posições sejam ocupadas. No entanto, alguns desses artefatos são forçadamente dirigidos à infância, uma vez que não se constituem em objetos per si para o mundo infantil, mas que ganham legitimidade ao ostentar imagens que pertencem ao contexto da infância, tais como super-heróis, personagens de desenhos e bonecas. Em

contrapartida,

alguns

artefatos

que

atenderiam

ao

público

infantil

sem,

necessariamente, exibir personagens infantis são reforçados por meio desses e são “adotados” por esse público. Por meio da pesquisa de imagens realizada pela equipe podemos constatar a presença dessas significações atreladas a determinados produtos. Um bom exemplo disso é a exibição de personagens infantis em embalagens de alimentos e produtos de higiene.

25

26

Poderíamos ainda destacar outra situação derivada dos sentidos que o artefato atribui. Pensemos em um produto que por sua natureza pode atender muito bem o público adulto e o infantil sem qualquer distinção, como, por exemplo, uma balança. Contudo ao receber uma imagem pertencente ao contexto infantil e, portanto, configurando-se como um artefato, esse simbolicamente adquire outro significado e torna-se específico para um determinado público. Situações similares são encontradas quando um pequeno ‘detalhe’ cria diferenciações entre objetos, outrora idênticos, e os torna próprios (ou até exclusivos) para o uso feminino ou masculino. A influência desses artefatos é tão significativa na vida das crianças e aparece tão fortemente imbricada em suas produções que esses poderiam, à primeira vista, serem compreendidos como algo ‘natural’. Contudo, esse conjunto de significados atribuídos pode, com o passar do tempo, tornar-se naturalizado a ponto de não gerar questionamentos. Como consequência, ao não nos darmos conta dos significados que atribuímos a determinadas ‘coisas’, subestimamos sua importância e seus efeitos sobre o cotidiano das pessoas. Stuart Hall (1997, p.3) chama a atenção sobre esse aspecto dizendo que “os significados culturais não estão apenas ‘na cabeça’. Eles organizam e regulam as práticas sociais, influenciam nossas condutas e, consequentemente, têm efeitos reais, práticos”. Dessa forma, compreendemos que essa significação não é inata buscamos problematizar a questão.

27

Os produtos destinados ao público infantil são intensamente permeados por personagens veiculados por diversos meios midiáticos, tornando-se difícil para as crianças não fazerem uso deles diariamente. Essas imagens estão presentes no cotidiano delas, deixando aparentes suas preferências, participando ativamente da formação de suas personalidades e definindo diferenças entre meninos e meninas.

Se o uso do uniforme não fosse obrigatório na escola na qual

trabalho,

veríamos

nas

roupas das crianças uma série de Barbies e super-heróis, mas como elas

não podem exibir

suas roupas, carregam consigo uma série de outros produtos com

personagens

midiáticos.

(RECH, 2007, p.17).

28

Assim, neste modo de se relacionar com a cultura e seus artefatos, TER e SER se confundem e parecem estar tão ligados, que cada vez mais as crianças têm se preocupado com a sua própria aparência e com a maneira de se vestir, entendendo a força que a imagem tem, hoje, nesta sociedade de consumo.

Somos aquilo que possuímos. No caso da cultura infantil, os artefatos que a constituem, são escolhidos não pela sua funcionalidade, mas pelos valores e significados que eles representam dentro de nossa cultura. Uma mochila infantil se diferencia de uma outra direcionada aos adultos não pelo tamanho, adequação ou função de armazenar materiais, mas sim por trazer os “emblemas” produzidos pelas corporações de entretenimento infantil. Por meio dos artefatos, passamos, supostamente, a fazer parte de um mesmo grupo social, as diferenças são borradas superficialmente e os artefatos sustentam as supostas “igualdades” (CUNHA, 2005, p.29).

Atrelado aos artefatos há outra questão que, praticamente, garante a sobrevivência desses, a saber, o consumo. Podemos dizer que o consumo e a mídia – a exemplo da publicitária, a televisiva, entre outras - são condições necessárias para que um determinado artefato se propague e se perpetue.

29

Vale ressaltar, entretanto, que não existe um determinismo fatal frente aos artefatos culturais da contemporaneidade. Conforme aponta Cunha (2005, p.31): Embora reconheça que os artefatos culturais possam situar os sujeitos, categorizar grupos sociais, normatizar condutas e pontos de vista, modular identidades e delinear práticas sociais, argumento que há diversidade nos modos de nos relacionarmos e reagirmos diante destes inúmeros artefatos.

Nesse sentido, Sarmento (2007, p.10) também chama atenção para a postura das crianças, pontuando que elas não são passivas na recepção desses artefatos: “As crianças são receptores interpretativos e frequentemente críticos, ainda que usualmente desavisados, da cultura de massas”. Cultura essa, que sob o ponto de vista do autor, busca homogeneizar as crianças, independente de suas realidades sociais e culturais, e que, durante esse processo, utiliza-se de artefatos culturais.

30

Foi possível constatar que os meios de comunicação e os diferentes artefatos culturais exercem forte poder sobre as crianças, mantendo as imagens vivas e em circulação, a ponto de serem representadas inúmeras vezes no papel. Além disso, através dos variados produtos que

habitam

demarcam

as

o

universo

infantil,

diferenças

entre

os os

mesmos gêneros,

separando cores e brinquedos apropriados para cada sexo, uma vez que essas diferenças também continuaram sendo explicitadas nas produções (RECH, 2007, p.42).

31 Imagens acervo de pesquisa

Diferentes

produções

culturais

têm

procurado

incitar

questionamentos acerca do que nos rodeia de modo já tão naturalizado. Na literatura infantil podemos ver hoje títulos como “Até as princesas soltam pum!”, “Três Lobinhos e o Porco Mau”, “A Verdadeira História da Chapeuzinho Vermelho” que buscam apresentar outro aspecto do mundo fantástico que circunda os contos infantis e, mais recentemente, no cinema presenciamos a adaptação da obra de Pedro Bandeira “ O Mistério de Feiurinha”.

32

A sociedade, por meio da mídia e da indústria cultural, produz imagens que criam verdades e classificam como anormal as identidades que se diferenciam do padrão hegemônico. Os infantis não são indiferentes à cultura visual e seus artefatos. Da mesma maneira que busca integrar-se ao padrão ditado, a criança percebe que ao seu redor esse padrão nem sempre corresponde ao observado. Sobre o assunto, SILVEIRA (2008, p.35) relata em sua pesquisa a experiência que teve ao assistir junto às crianças ao filme da boneca Barbie “Barbie e as doze princesas bailarinas”. Durante a sessão surgiram comentários que evidenciaram a influencia dos artefatos culturais na interpretação dos infantis: O comentário mais interessante foi em uma cena que as princesas estão dançando ballet: “Nossa, parece que elas tão de perna-de-pau, elas têm as pernas muito finas”, e a outra menina completou: “São os braços que parecem palitos de tão finos”. Achei um comentário riquíssimo para essa temática. As personagens são praticamente meninas anoréxicas, que representam um padrão extremamente valorizado na nossa sociedade atual: corpos jovens e magros.

33

Uma postura diferenciada e questionadora pode ocorrer, porém, a normatização dessas imagens e a força de significância desses artefatos podem inibir a percepção do sujeito, sobressaindo o estereótipo ditado pela sociedade e pondo em evidência a fragilidade dessas posturas.

A preocupação em corresponder aos modelos impostos, não tem permitido uma reflexão mais aprofundada sobre essas referências. Os artefatos já estão naturalizados de maneira que não os questionamos. Muito das percepções das crianças deve-se a presença intrínseca, e consequente influência, dos artefatos culturais que contribuem para a elaboração dos imaginários. Surge então a importância e a necessidade de uma

34

problematização em relação a essas representações fixadas na nossa cultura e principalmente pelos meios midiáticos. É necessário ressaltar que os modelos fornecidos pelos meio midiáticos, publicitários entre outros tantos artefatos estão tão presentes em nosso imaginário que não conseguimos perceber outras formas de representação. Nossas atitudes perante os artefatos culturais podem oscilar quando eles não carregam em si formatos com os quais estamos habituados, como o registro de SILVEIRA (2008, p.35) de comentários feitos pelas crianças participantes durante a exibição do filme “Barbie e as doze princesas bailarinas”: A Barbie é a única das doze princesas que tem um admirador, no qual ela corresponde. Mas ele é o sapateiro real. Quando fica nítido o clima entre os dois, ouço um comentário ao meu lado: “As princesas têm que casar com príncipes

35

A tia das princesas faz uma análise de suas atitudes, chegando à conclusão de que teriam que passar por uma forte transformação de comportamento para serem aceitas como princesas. Uma das grandes mudanças foi trocar os vestidos coloridos das meninas por vestidos cinzas e uniformizados. A resposta à isso foi: “Princesa de cinza? Tinha que ser rosa”. O convite à reflexão sobre o espaço que os artefatos ocupam na sociedade e na cultura, a produção de modelos homogêneos pelas mídias, assim como a autoridade impositiva que exercem sobre as crianças, tem como pretensão provocar questionamentos, novos olhares a respeito da construção de significados e produção de valores ofertados por esses artefatos. O olhar crítico e apurado em relação à mídia nos possibilita uma abordagem pedagógica dos artefatos culturais, desnaturalizando a idéia de que as crianças aprendem apenas na escola e em casa. Perceber como esses materiais estão influenciando no modo como as crianças se percebem, percebem os outros e o mundo nos possibilita intervenções e problematizações a cerca de determinados assuntos, incentivando o senso crítico e reflexivo a cerca das visões e conceitos dominantes na nossa sociedade (SILVEIRA, 2008, p.26).

36

Repertórios culturais: os modos de ser infantil

É preciso ressaltar que eu olhava os desenhos animados (filmes e séries) e criava, a partir do que eu via, um ideal de família, um ideal de vida, um ideal de mim mesma e dos outros. Conforme fui crescendo, muitas frustrações surgiram disso: minha vida não parecia com aquelas histórias (por mais que eu desejasse muito); eu não me tornei uma linda princesa (ideal de beleza - pensando nas representações apresentadas nos desenhos); os relacionamentos não aconteceram com todo glamour e romantização no qual eu havia planejado (SILVEIRA, 2008, p.09).

37

Como observamos, nas quatro pesquisas aqui discutidas, o imaginário infantil está carregado de referências das produções culturais, entre elas, os artefatos culturais endereçados às crianças. Podemos dizer que os artefatos, e as imagens que os constituem, funcionam como formas educativas em nosso cotidiano. Os modos como os artefatos visuais operam sobre nós, produzem ensinamentos sutis, explícitos, suas ações educativas denominamos de pedagogias visuais (CUNHA, 2005). As pedagogias visuais nos formatam, realizam intervenções poderosas em nossos corpos e mentes. Nossas identidades se configuram, se (trans)formam nas aprendizagens. Desde muito cedo podemos observar que as pedagogias visuais atuam sobre as crianças: os quartos dos bebês já os esperam com as cores que socialmente convencionamos atribuir aos meninos e meninas; as mamadeiras são adornadas por carros velozes ou flores; o móbile acima do berço também é repleto de figuras, formas, cores que previamente foram instituídas para cada gênero. Deste modo, a convivência continuada e multiplicada com inúmeros artefatos no cotidiano contemporâneo faz com que eles se tornem “a referência” sobre o mundo. Percebemos, a partir do envolvimento das pesquisas realizadas, que as imagens existentes e recorrentes nos desenhos animados, livros infantis, brinquedos, materiais escolares, vestuários e diversos outros artefatos agregam em si determinadas características que passam a ser aceitas e apreciadas pelas crianças. Notamos que as crianças participantes das investigações elegiam seus ídolos baseados nas imagens vinculados a esses artefatos. Geralmente eram as personagens “do momento”, porém ainda existiam as que eram fiéis aos personagens “fora de moda”, ou seja, aqueles que não eram veiculadas com tanta freqüência na mídia.

38

Para exemplificar, temos a turma de Jardim B, participante na pesquisa “Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero”, nela havia um grupo de meninas, na qual os personagens das Meninas Superpoderosas eram as preferidas, destacando-se por serem personagens atuais, frequentes e marcantes em vários meios midiáticos. Em outro grupo de meninas evidenciava-se a presença das princesas da Disney, personagens que podemos considerar como atemporais. Outras meninas tinham como preferência a boneca Barbie, sendo que uma dessas meninas chamava a atenção das pesquisadoras por chegar ao ponto de travestir-se como a boneca. Neste sentido, Silveira (2008, p.32) também realizou observações semelhantes e comenta em sua pesquisa: [...] observei que o grupo é um grande consumidor crianças

dos

têm

produtos

filmes,

da

cadernos,

Barbie.

As

mochilas,

roupas, acessórias e brinquedos relacionados à boneca. A busca por uma aparência semelhante ao

modelo

da

Barbie

também

pôde

ser

observada entre as crianças, principalmente entre as meninas.

39

Também em relação ao posicionamento das meninas, e reforçando as observações feitas na pesquisa “Desenhos de meninos e meninas: relações entre

imaginário

e

gênero”,

as

pesquisadoras

(CUNHA e BORGES, 2007) sugerem que as meninas são mais suscetíveis ao processo de incorporação do personagem, procurando alcançar semelhanças com a boneca Barbie, por meio de uso massivo de artefatos estampados com essa personagem. O fato das crianças pesquisadas serem consumidoras, em todos os sentidos, dos artefatos visuais provoca o desejo e a possibilidade de se tornarem “a imagem e semelhança”

tanto

comportamento.

Em

na

aparência

alguns

casos,

quanto

no

elencados

e

[...] desde bem cedo, que elas (as meninas) representem esses padrões e valores. Essas imagens mostram meninas parecendo bonecas artificiais, mulheres adultas, disputando para ver qual se encaixa mais nesse estereótipo ‘Barbie’ (SILVEIRA, 2008, p.23).

mostrados por meio de imagens pesquisadas por Silveira (2008), a procura das meninas em alcançar o modelo, extrapola em utilizar a marca “Barbie”. Conforme as reflexões da pesquisadora (SILVEIRA, 2008, p.23) há uma ação da mídia e da publicidade que incentivam estes modos de viver a infância, através das suas campanhas, dos seus produtos, da sua rede de consumo, que leva às crianças a desejarem ser e possuir tudo que essas bonecas 40

(os)/personagens são e têm. Dessa maneira, podemos destacar na pesquisa de Silveira (2007), que a boneca Barbie é um dos exemplos mais contundentes dos efeitos das pedagogias visuais-culturais na elaboração de referenciais estéticos-femininos que dificilmente permitem e possibilitam a manifestação de outras formas de beleza, de corpo, enfim, de ser. Nas percepções de Silveira (2008, p.23) o modelo Barbie, já parte de uma norma, impede outras formas de representação corporal serem tão desejadas quanto esta. O belo se limita a uma forma de ser, excluindo os outros modos de constituição. Silveira assinala que as crianças participantes, tanto meninos quanto meninas, de sua pesquisa apresentavam uma condição de beleza e encantamento atrelada à personagem, gerando uma busca de identificação com a boneca. Conforme a autora relata sobre um episódio ocorrido em sua turma de pesquisa durante a exibição do desenho animado “Barbie e as 12 Princesas bailarinas”:

As crianças ficam realmente encantadas. Um menino comenta bem alto: “Essa é linda heim, é a mais linda. Essa é a que eu gostei”. No

mesmo

instante

as

meninas

em

coro

começam a dizer que são aquela personagem (SILVEIRA, 2008, p.35).

41

Por meio das falas e observações das crianças, percebemos como as concepções estéticas produzidas por elas estão ancorados a um modelo midiático de beleza, do qual a boneca Barbie está revestida, tornando-se uma das principais protagonistas e veiculadora do belo no universo infantil. É pertinente trazer a essa discussão como as imagens de corpos que circulam nos meios midiáticos (TV, livros, desenhos e filmes infantis e etc.) e publicitários, nos quais a maioria do grupo infantil pesquisado tinha acesso, levam a estereotipias e características específicas de beleza no qual figuram como principais aspectos a magreza, branquidade, juventude e corpos perfeitos.

42

Como já salientado anteriormente por Silveira (2008), a formação de uma estética homogênea e de modelos específicos de beleza, propulsionado pelos meios midiáticos, leva as meninas ao desejo e consumo. As meninas são mais conduzidas a seguir os parâmetros estabelecidos, aceitando, desejando e buscando os ideiais de magreza, de cor – pele branca, cabelo loiro e olhos azuis – e de temperamento – dócil, comportado e recatado, como se fosse a única possibilidade de ser considerada bonita, boa e aceita pelo grupo em que se insere. Essa suposta perfeição que as crianças, tanto meninas quanto meninos, atribuem, principalmente ao corpo feminino, produz uma busca intensa para ser alcançada, e quando mostra-se inatingível, há um forte sentimento de não pertencimento, de uma imagem de “não belo”, ou até mesmo de feiúra. Esse fato ficou nítido nas observações das crianças reveladas a partir de intervenções e práticas pedagógicas realizadas por Silveira (2008, p.38) as quais geraram as seguintes observações da pesquisadora: Estilos ditos alternativos, como pessoas com piercings e tatuagens, homens de cabelos compridos, também foram considerados feias e feios. Pessoas com características de “não brancos” (cabelos escuros e crespos ou pele escura) foram considerados feios. Nariz grande, verrugas, marcas no rosto também foram sinais de feiúra.As pessoas consideradas bonitas eram todas jovens, magras, brancas, na maioria modelos e artistas. Ficou evidente na fala das crianças que o cabelo loiro e liso é mais belo que o cabelo escuro (liso ou crespo). Uma polêmica surgiu quando um menino indicou como feia uma modelo branca, de olhos azuis, com cabelos lisos e castanhos. Para ele, a mulher era feia porque seus cabelos eram escuros.

43

“As princesas”, outras personagens principais e constantes em desenhos animados, livros infantis, filmes, vestuário, materias escolares e uma infindiade de produtos destinatos às crianças, também, são modelos fortes para a elaboração de concepções, semelhantes entre si, de beleza corporal. Essas referências, novamente, são caracterizadas por um modelo europeu de beleza formulado a partir de bases etnocêntricas que hierarquiza certas formas e características físicas em detrimento de outras. Podemos exemplificar essa constatação no registro do diário de bordo da pesquisa “Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero”:

Num momento de roda a professora questionou

se

a

bela

adormecida

poderia ser negra (mostrando uma boneca Barbie negra com roupa de princesa)

e

uma

respondeu

que

das

não

crianças

poderia

ser,

porque ela tinha que ter o cabelo amarelo

cor

poderia

ter

de os

ouro

e

cabelos

que

não

pretos

(GUIMARÃES, Diário de Bordo, 2009).

44

Outro fato exemplar que podemos utilizar para reforçar como as crianças estão produzindo suas concepções sobre sí e sobre os outros dentro de referenciais das produções culturais, encontra-se no relato de Borges (2007) a partir de uma proposta realizada com as crianças que consitia em mostrar a elas montagens fotocopiadas de alguns personagens infantis. Nessas montagens os personagens encontravam-se miscegenados, ou seja, a junção de parte do corpo de um com parte do outro:

As crianças se questionavam sobre como o Salsicha poderia ser o homem-aranha ou que as princesas não poderiam ser as meninas super poderosas, porque as princesas são delicadas e as meninas super poderosas são fortes e que não teria como elas serem diferentes. As características dos personagens parecem ser muito ancoradas nos padrões estabelecidos pelas grandes corporações midiáticas, sendo muito difícil para as crianças que haja uma mudança no

tipo

físico

das

princesas da Disney, por

Arquivo da pesquisa.

Arquivo da pesquisa.

45

exemplo (BORGES, Diário de Bordo, 2007). Torna-se interessante salientar com esse exemplo, como foi difícil para as crianças conceberem outras formas de ver os personagens, não mais atreladas as características que eles conheciam e admiravam. Dessa forma, inferimos que a dificuldade das crianças de verem de outras maneiras os personagens está diretamente relacionado com a dificuldade de aceitarem outras propostas nos modos de ser. Consideramos a partir da reação das crianças da pesquisa como é forte a apreensão do formato dos personagens em questão e como as imagens desses personagens produzem um discurso visual intenso ao ponto de gerar referências e normatizações de certas características. Em pesquisas anteriores CUNHA (2005) evidencia o quanto as escolas, ao invés de realizar um trabalho na contramão das pedagogias visuais, colocam as imagens em lugar de destaque. É tão forte a presença, dentro das escolas de Educação Infantil, de artefatos e imagens midiáticas que muitas vezes elas assumem a designação da própria turma. Sobre este aspecto, Silveira (2008, p.33) ao descrever a turma participante de sua pesquisa, salienta: A turma é constituída por 19 alunos, sendo que 16 são meninas e 3 são meninos. Conhecida

na

escola

como

a

“turma

das

46 Arquivo da pesquisa.

princesas”, esse grupo tem uma particularidade: além do grande número de meninas, a maioria representa um estereótipo muito valorizado na nossa cultura: são meninas brancas, loiras e de olhos claros. O “apelido” da turma já é um grande indício da forte presença desses padrões estéticos nas escolas infantis - até porque a escola está incluída na sociedade e na cultura, e não é uma instituição “neutra”, ou seja, ela também produz e reproduz valores que circulam e predominam na nossa sociedade.

Ao realizarmos as pesquisas sobre e com as crianças, percebemos nas falas infantis que a imagem vinculada tanto à boneca Barbie quanto as princesas da Disney e a outros personagens escolhidos e idealizados pelas crianças se tornam parâmetro de beleza para estas, assim como determina uma postura moral condicionada a esse parâmetro.

O

belo

geralmente

assume posturas que evidenciam seu bom caráter, assim como, a delicadeza de movimentos e a docilidade de condutas. Do lado oposto e contrário, aparece o feio que, sem nenhuma outra perspectiva, exerce ações que se relacionam ao mau, ao errado, ao não aceitável e desejado.

47

Esse aspecto mostrou-se evidente para Silveira (2008) a partir da reação das crianças ainda durante a exibição do desenho animado referido anteriormente: Ao chegar a tia Rowena no castelo, as crianças começaram a fazer comentários como: “Ela é malvada”, “Ela é feia”, fazendo uma nítida correspondência entre o mau e o feio (SILVEIRA, 2008, p.35).

48

49

Como foi visto nas pesquisas, principalmente de Silveira (2008), torna-se evidente a participação dos acervos imagéticos advindos dos artefatos culturais na elaboração dos modos de ser criança e/ou do que elas almejam ser. Tais acervos favorecem a construção de parâmetros que estabelecem e reforçam “estéticas” próprias. Considerando dados das pesquisas, podemos ponderar que as crianças, meninos e meninas, formam de maneira semelhante seus gostos, desejos, necessidades e modos de ver nas suas relações com os artefatos. Os repertórios fornecidos e utilizados pelas crianças da pesquisa na formação de suas concepções sobre o que é belo mostram a produção de uma estética forjada dentro da cultura em que vivem. Cunha (2005) aponta que as crianças não ficam aparte dessa formulação estética, pois a autora considera que: [...] a cultura infantil demarcada por seus artefatos, produz tanto os modos particulares de estar e ver o mundo quanto um repertório “estético infantil”, no sentido que Maffesoli (1999) dá a palavra estética: compartilhar das mesmas coisas, emoções, valores dando sentido aos modos de existência. As crianças das pesquisas mostraram que elegem suas preferências estéticas, sobre variados temas, a partir do que vivenciam e experienciam em seus cotidianos, tanto na escola quanto nos lugares externos a essa. Como já mencionado anteriormente, os artefatos culturais tais como, desenhos animados, programas televisivos, literatura infantil, brinquedos entre outros, são, em grande parte, responsáveis por fornecer as referências. Durante a experiência docente de Silveira (2007, p.10), esta registrou: Tive muitos exemplos na

50

minha prática docente de como esses conceitos de “feio” e “bonito” estão presentes no cotidiano das crianças. Pessoas negras, gordas, pobres, velhas, raramente eram apontadas como bonitas por elas. Já a beleza era apontada através de pessoas jovens, brancas (até bronzeadas), normalmente com pouca roupa (biquíni, por exemplo), com corpos esculturais e sensuais. Conforme a leitura e associação de Silveira (2008) de Duarte Jr. (1986), a autora ressalta que [...] a experiência estética, considerada pelo autor como a experiência da beleza, seria uma mistura da consciência (influenciada pelo meio social, cultural) e da inconsciência (apreensão direta do mundo – sentimento – primeira impressão que temos das coisas).

3.1 ESTEREOTIPIAS, NATURALIZAÇÕES E HOMOGENEIZAÇÃO Na pesquisa Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero, Cunha (2007), ao analisar as fotografias da pesquisa, observa que as crianças de baixo poder aquisitivo tem os mesmos produtos, roupas, acessórios, entre outros, das crianças das outras pesquisas provenientes de outros contextos

sociais.

Ou

seja,

independentemente

do

poder

aquisitivo, de escolarização das famílias, do tipo de escola infantil

[...] no estereótipo a complexidade do outro é reduzida a um conjunto mínimo de signos: apenas o mínimo necessário para lidar com a presença do outro sem ter de se envolver com o custoso e doloroso processo de lidar com as nuances, as sutilezas e as profundidades de alteridade (SILVA, 1999, p.51).

que as crianças freqüentam, de um modo geral as crianças se

51

assemelham em suas aparências e também em suas ações, como por exemplo: meninos simulando lutas e meninas fazendo poses de modelos. As representações imagéticas, sistemática e recorrente em vários artefatos, assumem um valor de verdade que contaminam, de maneira sutil e silenciosa, os olhares tanto das crianças quanto de nós adultos . Um dos efeitos dessas imagens similares sobre as crianças é a formação de estereotipias nas maneiras de se compor e se mostrar. Por outro lado, as crianças, e nós adultos, ao se verem sempre de modo semelhante, acabam naturalizando estas modalidades de ser e excluem aquelas que fogem das normatizações. Atualmente, passa a ser “natural”, por exemplo, adultos adquirirem soutien e calcinha, uma combinação de roupa íntima para meninas pequenas, até mesmo de 18 meses. Entendemos por estereotipia a concepção apresentada por Silva (1999) na qual o estereótipo é percebido como uma forma de representação que vai além de uma imagem falsa, imprecisa ou distorcida da realidade, mas sim, um processo de simplificação e generalização dessa imagem. Para o autor, o estereótipo carrega em si um núcleo “real”, porém ao receber transformações, simplificações, homogeneizações, amplifica seu efeito de realidade.

52

A naturalização, a homogeneização, a estereotipia são processos que percebemos na análise dos acontecimentos das pesquisas, não apenas relacionados ao corpo, mas também na formas de se comportar e do brincar das crianças participantes. Marques (2008) pondera em sua pesquisa como são naturalizadas e estereotipadas as maneiras de brincar de menino e de menina, evidenciando que as crianças assumem papéis destinados a cada gênero. Na medida em que as crianças representam papéis ficcionais, elas reforçam para si a idéia dicotômica que existe uma maneira de ser menino e uma maneira de ser menina o que conduz a uma série de implicações na forma de reforçar padrões, modelos homogêneos e hierarquizados para se estar no mundo. Marques revela esse aspecto relatando suas experiências como docente: Ao observar o momento de brincadeira das crianças, percebo como estas questões aparecem naturalmente. Quando uma menina faz de conta que é uma princesa em apuros e grita por socorro. Rapidamente, um dos meninos vem e a salva, fazendo de conta que é um super-herói. Mesmo que este nem estivesse brincado disto. O grito de socorro funciona como um sinal para a transformação. Não há combinações verbais entre eles, o enredo da brincadeira já está instituído. Meninos salvam as meninas. Meninas são as mamães e meninos os papais. Quem cuida dos bebês são as meninas, enquanto os meninos saem para trabalhar... Repetindo padrões sociais do que é ser homem e mulher (MARQUES, 2008, p. 84).

53

3.2 BINARISMOS/DIFERENCIAÇÕES E EXCLUSÃO A partir desse exemplo e de outros registrados nesse relatório, percebemos claramente a fixação de binarismos favorecendo, entre as crianças, posicionamentos antagônicos e desconsiderando uma maleabilidade nos modos de ser. Nessas relações binárias, notamos, além do antagonismo, posições dominantes e hierárquicas que certos modelos exercem sobre outros. Essa condição estipulada na diferenciação e no domínio de certos modelos gera no indivíduo a necessidade de “escolher” e eleger seus gostos, suas ações, suas maneiras de estar no mundo. Entendemos que as escolhas se dão pelos referenciais dominantes e pelos significados construídos em torno dos artefatos culturais, também notamos que tais referentes produzem normas de conduta adotadas pelas crianças, criando assim um círculo vicioso no qual as crianças das pesquisas se mostraram inseridas. Na pesquisa de Silveira encontramos o exemplo marcante de uma menina, única negra da famosa “Turma das Princesas” que relatava sua vontade de arrancar a pele negra para tornar-se branca para assim se adequar ao modelo de belo. Também podemos acrescentar o registro de Borges (2007), no Diário de Bordo onde ela relatava a estranheza em que era tratada uma das meninas da turma investigada (Jardim B) por não gostar de brincadeiras e maneiras de se vestir associadas exclusivamente a meninas e preferir, em contrapartida, roupas e brincadeiras consideradas apenas de meninos. Na pesquisa realizada por CUNHA e BORGES (2007) notamos como as crianças oscilavam em seus posicionamentos sobre gênero, ora fixos, de acordo com as convenções do que é de menino/menina, ora móveis, conforme as argumentações entre os pares.

54

Um dos materiais preparados foram folhas A3 com partes de corpos de alguns “ídolos” infantis. Nossa intenção era que as crianças completassem as figuras segundo suas percepções sobre a identidade de gênero do personagem. Antes de distribuirmos as folhas, exploramos as imagens e perguntamos se eles identificavam o personagem, se o personagem era menino ou menino e o que havia ali na imagem que pudesse identificá-lo como menino ou menina. A conversa na roda foi muito rica, pois entre os pares eles questionavam as respostas, por exemplo: ao mostrarmos as pernas do homem aranha, um menino disse que sabia que a figura era de menino, perguntamos como ele fazia esta identificação, e ele respondeu que a figura estava de botas. Muitas crianças, meninos e meninas, fizeram coro dizendo: “e bota mulher não usa?” A partir deste comentário, entre os pares, eles relativizaram suas certezas em relação aos territórios do gênero. Apesar de termos considerado as discussões entre as crianças produtivas, no sentido que eles pensaram e se expressaram, buscando argumentos sobre o quanto os limites de gênero são móveis. Posteriormente, ao escolherem as folhas com os fragmentos

Fragmento de personagem. Arquivo da pesquisa.

Fragmento de personagem. Arquivo da pesquisa.

55

das figuras, as meninas escolheram os personagens femininos e os meninos os masculinos. Notamos que para completar as figuras, os elementos (vestido, calça comprida, entre outros) utilizados pelas crianças correspondiam ao gênero dos personagem. Inferimos que mesmo havendo mudanças nos posicionamentos, as crianças ao se depararem com personagens que trazem as marcas do masculinos/feminino, voltam aos seus posicionamentos binários sobre gênero. Consideramos, então, que o que não segue as normas ou diretrizes estabelecidas nos modelos estetizados ou estereotipados se torna estranho, diferente e, fatalmente, será excluído do grupo dominante.

3.3 MULTIPLICIDADE NA UNIDADE/ DESENHO INFANTIL Evidencia-se nas quatro investigações que existem recorrências similares nos modos como as crianças se expressam, por exemplo: formas de se vestir e de se “compor” com os acessórios, penteados, falas e gírias, performances do corpo, maneiras de brincar, entre outros. Além da aparência exterior, também observamos que em outros modos de expressão, como nas produções gráficas plásticas, as crianças mostraram suas preferências e idolatrias pelas personagens, objetos, filmes. As variadas informações que compõem os artefatos visuais como corem, personagens, composições tornamse um discurso visual e, como já vimos, gerador de referenciais e parâmetros. Muitas vezes, observamos que as

56

características visuais dos artefatos são transpostas para muitas das produções gráfico-plásticas infantis como podemos perceber a partir das pesquisas realizadas por CUNHA, RECH e BORGES em 2007. O imaginário presente nos desenhos das crianças, formuladas a partir de símbolos específicos daquilo que atribuem para cada gênero, também evocam uma configuração de parâmetros uniformes e recorrentes revelados nas produções infantis. A partir da observação do grupo participante de sua pesquisa, Rech (2007, p.10) relata: [...] nos desenhos dos meus alunos de 5 e 6 anos do Nível B, percebi diferenças significativas entre os mesmos. Os desenhos dos meninos geralmente mostram movimento e força, apresentando super-heróis, carros, animais selvagens e cenas de luta ou de guerra; os desenhos das meninas apresentam harmonia, colorido e são compostos por flores, casas, pessoas, arco-íris, árvores e animais domésticos.

Desenho de menino. Arquivo da pesquisa.

Desenho de menina. Arquivo da pesquisa.

57

Rech ainda salienta diferenças estruturais quanto a forma dos desenhos associadas a cada gênero. Conforme a pesquisadora (2007, p.10): [...] os desenhos apresentam repertórios estéticos com características bem definidas para os meninos e meninas, como por exemplo: organização espacial, modos de utilização dos diferentes materiais expressivos, construção das formas representativas, uso de cores e materiais, recorrência de signos e símbolos, entre outras características concretamente observáveis.

Desenho de menino. Arquivo da pesquisa.

Desenho de menina. Arquivo da pesquisa.

58

Da mesma maneira e reforçando as considerações que temos apresentado nesse relatório, a pesquisadora percebeu por meio de intervenções e conversas com as crianças, que estas têm sedimentado concepções sobre o que é pertinente de ser menina e ser menino, como apresenta o seguinte relato: [...] apresentei à turma uma figura assexuada, e questionei: esse boneco lembra algo? Ele é menino ou menina? Em relação a primeira pergunta, alguns alunos disseram que o boneco era o Biscoito do filme Shrek e outros que era o boneco da Vivo. Em relação a segunda pergunta, responderam que não era nem menino e nem menina. Então perguntei como aquele boneco poderia ser transformado em menino ou em menina. A maioria do grupo verbalizou que para ser menino, ele deveria ter cabelos curtos, bermuda e camiseta e para ser menina deveria ter cabelo comprido e usar vestido (RECH, 2007, p.32).

Desenho de menina representando menino. Arquivo da pesquisa.

Desenho de menino representando menina. Arquivo da pesquisa.

59

Estas convenções e concepções apareceram também, quando as crianças foram solicitadas a desenharem e representarem a figura de uma menina e de um menino. As produções gráfico-plásticas nos mostram e revelam como as crianças representam seus próprios corpos e como estes estão condicionados culturalmente aos modos como os vemos.

Na pesquisa Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero, CUNHA (2010, p.66) faz a seguinte observação:

No Jardim B, 5-6 anos, as crianças já produziam em seus desenhos formas representativas.

Observamos

que

as

formas

eram semelhantes,

em grande

parte

constituída de borboletas, monstros, sóis no canto da folha, flores, nuvens, corações, arabescos, entre outras. Ao analisarmos as produções gráfico-plásticas, inferimos que haviam muitas formas estereotipadas, a maioria vinda dos artefatos culturais que as crianças conviviam. Também observamos que em relação à utilização dos materiais (giz de cera, canetinhas, tintas, papéis) não havia variação e exploração dos materiais.

60

3.4 CONSIDERAÇÕES Temos que considerar que os artefatos imagéticos, como Barbies, princesas, super-heróis e tantos outros personagens associados à infância, figuram de modo massivo dentro das escolas de educação infantil, produzindo, reproduzindo e reforçando ideais de corpo, de comportamento, de valores e outras referências. São práticas e modos constantes nas elaborações de ser que vão produzindo os sujeitos infantis em um formato de hierarquização de determinados tipos humanos. A produção de sentidos, a elaboração de identidades, a configuração de modelos estão encadeadas para a convenção de normas e regras sócio-culturais de como devemos ser, nos portar e nos relacionar uns com os outros. Compreendendo que essa “norma”, que implicitamente vai se constituindo, surge o desejo de querer se enquadrar dentro dos padrões homogêneos e hierarquizados produzidos. Ponderamos, a partir das pesquisas, que as crianças desejam ocupar um espaço também privilegiado na sociedade, desvalorizando/excluindo o que está fora da norma ou padrão vigente, como afirma a pesquisadora Silveira (2008, p.43): [...] pude perceber nas crianças de Educação Infantil esse estranhamento, essa rejeição ao diferente, ao que não se encaixa nesta “norma”, privilegiando algumas representações, alguns modos de ser como belo e bom.

61

A norma gera parâmetros limitados e identidade assim como exceção e diferença. Essas normas e referenciais estão produzindo e reproduzindo modos de ser criança, sem problematizar a limitação e o engessamento de se constituir dentro desses parâmetros. Tanto meninos quanto meninas, envolvidos pelas narrativas e representações estereotipadas produzidas pela mídia, pela família, pela escola, enfim, pela cultura que lhes forma, elaboram informações quanto aos referenciais de beleza, normas sociais e morais, parâmetros de masculinidade e feminilidade, gerando assim, processos de diferenciação e exclusão. Dessa forma é essencial que na Educação Infantil se provoque cada vez mais discussões e reflexões sobre a estatização e a hierarquização de modelos, referenciais e parâmetros que se encontram atreladas aos artefatos culturais e geram posições binárias e classificatórias. É necessário, ainda, problematizar que lugar está sendo proposto para perceber e visualizar a criança que não se encontra normatizada.

62

Consumo: a ordem da vez para a infância

Não há como se pensar em uma sociedade que vive no modelo capitalista e não reconhecer o consumo atrelado às suas movimentações econômicas. Contudo, o que

ganha

destaque

como

algo

peculiar

da

contemporaneidade é a abrangência dessa “necessidade” que tem alcançando, cada vez mais, um número maior de crianças. Esta necessidade exacerbada de possuir bens denominamos de consumismo.

63

Atualmente, o que se constata é que as crianças têm ocupado um lugar cada vez mais significativo em diversos segmentos da sociedade. Diante disso, diversos setores do mercado passam a considerálas como público-alvo, pois identifica nas crianças um potencial consumidor ou consumista, assim como as possibilidades de lucro advindas dessa parcela que é o mercado infantil. Em outras palavras, as empresas tornam-se cada vez mais especializadas e trabalham incessantemente em pesquisas para detectar e também “inventar” necessidades, anseios e expectativas desse público para, posteriormente, aplicarem-se na criação de produtos que vão ao encontro delas. Para o mercado, antes de tudo, a criança é um consumidor, ou um consumista, em formação e uma poderosa influência dentro da família nos processos de escolha de produtos e/ou serviços. Além disso, o mercado também se preocupa em cativá-las desde cedo, já que uma vez conquistadas, as crianças tendem a serem mais fiéis às marcas e aos hábitos consumistas que são gerados em torno dessas.

Pesquisa do Datafolha encomendada pelo Projeto Criança e Consumo, do instituto Alana – FEV/2010.  69% dos pais dizem ser influenciados nas compras pelos filhos.  Para os pais, os maiores influenciadores dos pedidos dos filhos são as propagandas (38%), os personagens de TV ou filmes (18%) e programas de TV (16%). Segundo os pais, as propagandas levam os filhos a serem consumistas.  73% dos pais que concordam que deveria haver algum tipo de restrição 64 ao marketing e propaganda voltada às crianças.

Para

conseguir

seus

objetivos,

as

corporações

de

entretenimento, indústrias de roupas, alimentos, mobiliário, entre outras, frequentemente, vinculam aos seus novos produtos personagens e marcas que convivem com o universo infantil na tentativa de atribuirlhes outros significados e despertar o desejo das crianças em possuir esses produtos. Assim a personagem Magali, da Turma da Mônica, vende maças, nuggets, sorvetes, macarrão, biscoitos, entre outros alimentos direcionados ao público infantil. A imagem das Meninas Super Poderosas também é utilizada como ilustração das embalagens de bolacha recheada, achocolatado, chiclete, bala e ovos de chocolate.

Os dados das pesquisas e as reflexões das quatro pesquisadoras apontam o quanto as crianças de diferentes contextos são receptivas aos diversos produtos endereçados a elas. Ressaltamos que nas escolas onde as pesquisas foram realizadas não há evidências de uma preocupação

65

sobre o quanto as crianças são suscetíveis aos produtos mercadológicos.

Na pesquisa desenvolvida, por

Rech (2007, p.17), ela observa que: Na hora do lanche, o festival de personagens continua através das garrafas, das merendeiras e das guloseimas. Convivem diariamente com o Shrek, com as Meninas Super-poderosas, com os Padrinhos Mágicos, com Super-heróis, com o Mickey, como Tom e Jerry, entre outros.

Também na pesquisa de Marques (2008, p.21), ela salienta que: Com suas lojas feitas exclusivamente para as crianças,

lojas

que

vendem



roupas,



sapatos, só brinquedos... Restaurantes com seus pratos Kid’s, lanchonetes que dão brinquedos e parecem deixar as crianças mais felizes. Espaços em shoppings pensados exclusivamente para os pais deixarem seus filhos enquanto fazem suas compras, salões de beleza com poltronas especiais em formatos de carros, para atrair os novos clientes... Enfim,

o

mercado

tem

investido,

e

tornado-se

mais

segmentado no fomento do consumo infantil.

66

Imagens retiradas:

www.jeongmeeyoon.com

67

Outro mecanismo muito utilizado é a possibilidade quase infinita de criar versões sobre um mesmo produto aumentando a abrangência do consumo dos artefatos infantis. A boneca Barbie, como nos mostrou Silveira cria em torno dela infindáveis produtos, provocando assim o impulso ao “colecionismo”. Segundo a pesquisadora (2008, p.22): Além de consumirem os filmes e os brinquedos a publicidade impõe a ideia que não basta querer o corpo e a aparência dos bonecos/personagens, mas sim todo aparato fornecido em relação àquele brinquedo: acessórios – tênis, mochila, roupas, cadernos, etc.

A pesquisa de Rech (2007, p.17) aponta para a presença dos personagens do universo infantil não apenas na vinculação televisiva ou cinematográfica, mas também em muitos objetos utilitários.

Esses se tornam mais

atraentes ao olhar das crianças do que os demais produtos que não apresentam personagens midiáticos, pois vinculam aquele objeto à identidade do personagem: Os produtos que habitam o universo infantil são tão fortemente permeados por personagens que é muito difícil as crianças, principalmente as meninas, não estarem com alguns deles diariamente. A presilha de cabelo de muitas delas são da grife Barbie, assim como o gloss ou o perfume. Seus tamancos são da Hello Kitty, da Barbie ou das Princesas, como também os estojos de maquiagens.

68

Rech (2007, p.20) também observa em seu estudo a presença diária desses personagens que permeiam os produtos destinados ao público infantil: (...) Ao chegar na escola, as crianças tem o hábito de contar suas novidades para os colegas e professora ou mostrar algo trazido de casa, então geralmente contam sobre os desenhos que assistiram, as brincadeiras que fizeram, sobre um acontecimento com os pais ou irmãos; ou costumam mostrar o brinquedo novo que ganharam no Mc Donalds, as novas figurinhas do álbum do High Scholl Music, o tênis novo do Batman ou o tamanco novo da Barbie, etc. Além de aguçar o desejo de possuir objetos, brinquedos, roupas, acessórios,

esses

produtos

situam

as

crianças

em

grupos

sociais

e

“Meninas não podem usar esssas roupas. Elas têm que gostar das princesas!” (Gabriel, Leandro, Fábio)

estabelecem relações entre ter e ser. Conforme Marques (2008, p.40), esta relação é apresentada nas falas e imagens escolhidas pelas crianças:

“Gostei dessa porque é bem colorida e têm rosa, que eu gosto. Esse é o arco-íris das princesas.” (Marina) “Eu gostei mais dessa porque é um vestido. É rosa e tem o desenho das princesas.” (Isabela)

69

“Eu sou muito rápido como Hot Wheels. Por isso eu uso essa roupa.” (Paulo)

“A roupa da Hello Kitty é de menina, por que ela é uma gatinha. Eu gostei porque elas estão usando maquiagens...” (Milena) 70

“A roupa que eu mais gostei foi a Kung Fu Panda, porque ele luta, eu o adoro. Eu usaria essa roupa na escolinha.” (Leandro)

“Eu quero esse poder! Gostei dessa roupa.” (Gabriel)

“A Barbie é muito bonita e as roupas dela também são lindas. Ela desfila e isso é legal, eu queria desfilar com ela.” (Giorgia) “Se os meninos usassem essas roupas seria engraçado. Todos iriam rir deles na rua!” (Isabela e Aline) 71

Na pesquisa de Marques ficou evidente que as escolhas que as crianças faziam acerca do vestuário estavam relacionadas com os personagens que aparecem nas roupas ou nas propagandas das mesmas. Conforme a pesquisadora: A partir das respostas das crianças, observa-se o quanto suas escolhas são influenciadas pelos artefatos visuais. Ou seja, os repertórios têm sido constituídos através das inúmeras imagens a que elas têm sido expostas, sobretudo as advindas dos meios de comunicação de massa, que influenciam diretamente nos modos de ser das crianças. De tal modo, suas preferências já trazem marcas

de

feminilidade

e

masculinidade

naturalizadas

culturalmente e socialmente (MARQUES, 2008, p. 42). Ainda de acordo com Marques, as

“Eu gostei dessa saia da Lilica porque ela é rosa. E eu também gosto de ficar perfumada.” (Luana)

roupas infantis têm ensinado

formas de ser menino e menina. A pesquisadora ressalta o fato de a moda ocupar um lugar de destaque na sociedade contemporânea por não apenas ensinar o que é ou não fashion, mas também por ensinar padrões de comportamento e de estilo.

“Eu achei linda essa roupa porque é igual a da Barbie. Minha mãe também gosta dessa roupa porque ela é menina.” (Aline)

72

Em um tempo, em que cada vez mais, os focos estão direcionados para o que se tem, para o que se aparenta ser e para a imagem das pessoas, as

Os meninos e as meninas estão muito mais antenados ao mundo das compras.

roupas servem, muitas vezes, como marcadores de

- 99% das crianças assistem à televisão, 87% ouvem

identidade, já que usar e ter determinada roupa

rádio e 34% usam a internet com frequência. As

significam ser de um jeito específico. Assim, as

crianças são atingidas em cheio pela publicidade,

formas como as crianças se vestem denunciam seus interesses e desejos de tornarem-se pertencentes a determinados

grupos

sociais

(MARQUES,

2008,

p.10).

ficando mais exigentes nas compras; - A falta de tempo dos pais é outro fator que reforça o apetite de consumo dos pequenos. Mergulhados em trabalho, eles procuram compensar a pouca atenção

Para enfatizar esse tópico a pesquisadora referencia

dada aos filhos com presentes. Quem tem condições

que A moda não é só questão de consumo, mas

não pensa duas vezes antes de comprar um brinquedo

também de identidade. Ser não é ter, mas parecer (MARQUES 2008 apud LOPES 2000, p.155).

ou roupinha infantil – o que, aliás, confere aos filhos um alto poder de barganha. Fonte: Zero Fonte: Zero Hora, 15/03/10, pg. 20 – Maria Isabel Hammes 73

O apoio da mídia, principalmente a publicitária e a televisiva, que cumpre, sobretudo por meio das propagandas, o papel de divulgação dos produtos e, principalmente, de persuasão do público infantil, é imprescindível para que as estratégias de venda do mercado infantil obtenham o alcance ambicionado. Como grande consequência desse processo, vemos crianças sendo expostas a um tipo de relação que envolve muitas variáveis – compras X necessidades X finanças X consumo - sem que estejam,

efetivamente,

entendendo os recursos utilizados para capturálas.

74 Fonte: Instituto Alana

83% das crianças brasileiras são influenciadas pela publicidade 72% por produtos associados a personagens famosos. 42% por influência de amigos. 38% por produtos que oferecem brindes e jogos. 35% por embalagens coloridas e atrativas. Das prateleiras do supermercado até as conversas na escola, tudo pode ser fonte para uma comunicação mercadológica efetiva.

Outros fatores influenciam as crianças brasileiras nas práticas de consumo. Elas sentem-se mais atraídas por produtos e serviços que sejam associados a personagens famosos, brindes, jogos e embalagens chamativas. A opinião dos amigos também foi identificada como uma forte de influência.

Fonte: Instituto Alana

75

A respeito da influencia da mídia publicitária sobre os infantis, a coordenadora do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, Isabella Henriques avalia: “Seria necessário que não houvesse hoje publicidade que falasse diretamente à criança. A influência sempre vai ser muito grande. É uma verdadeira covardia endereçar mensagens comerciais pedindo às crianças que comprem, que consumam serviços, muitas vezes produtos alimentícios, porque elas não conseguem fazer uma análise crítica como os adultos”. Ela cita como exemplo a Suécia e a Noruega, países onde a publicidade na televisão voltada ao publico infantil é proibida. (Zero Hora, 15/03/10, pg. 20 – Maria Isabel Hammes). Em uma pesquisa de imagens em sites de buscas podemos verificar que as imagens que surgem relacionadas ao consumo infantil são crianças sentadas em frente à TV, ou rodeadas por marcas bastante conhecidas ou ainda em situações de compra nas quais, embora acompanhadas por um adulto responsável, elas estão no comando da compra. Outro ponto importante é o apelo visual que está vinculado na incitação ao consumo. Não é por acaso que, em uma sociedade ocidental fortemente permeada pela cultura da visualidade, são utilizados artifícios imagéticos para divulgação e propagação de produtos e idéias, uma vez que, inseridas nesse contexto, eles apresentam alto potencial de sedução. Por sua vez, paulatinamente, são essas referências visuais que vão se conformando como parâmetro para as escolhas de quem as vislumbra. Especificamente no caso das crianças tem-se como agravante o fato delas serem mais vulneráveis a essa overdose de estímulos visuais na

76

medida em que podem não conseguir entender adequadamente e criticamente os inúmeros apelos mercadológicos que lhe são especialmente dirigidos. Em vista disso, temos o consumo como um processo bem mais complexo do que pode aparentar. Se essa estimulação imagética funciona tão bem é porque existe a inegável faceta do consumo visual, no qual poderíamos dizer que se inicia o processo de desejo para possuir algo. Conforme Willis (1997, p.44), “na sociedade de consumo avançada, o ato de consumir

não

envolve

necessariamente

uma

troca

econômica.

Consumimos com os olhos, absorvendo os produtos com o olhar”, e a autora ainda complementa “o consumo visual é de tal forma parte de nosso panorama cotidiano que não nos damos conta dos significados inscritos em tais procedimentos.” Consumimos imagens e produzimos significações em torno delas. Como vimos nas pesquisas, a maioria das crianças estão aprendendo com as pedagogias visuais, caberia as professoras problematizarem sobre as questões apresentadas pelos alunos, provoca-los e convida-los a refletirem sobre as mesmas, assim, de acordo com a pesquisadora Clara Marques (2008, p.48):

77

Deixando de considerar o que está posto como natural, a questão do consumo, por exemplo, que na nossa sociedade não é questionada, pelo contrário, é valorizada de tal modo o que as pessoas possuem, que muitas vezes esquecemo-nos de olhar para o que elas são. (..) Assim, como a mídia e a moda que ensinam as crianças através de seus discursos, mostrando aos pequenos os significados de ser criança, menino e menina.

78

Estimular as crianças a questionarem o consumo excessivo e a supervalorização, que é atribuída aos bens materiais, é uma forma de provocar o exercício crítico frente ao mercado consumista, às imagens vinculados a ele e sobre a própria maneira com que cada um lida com essa questão. Nas pesquisas, em várias situações, as pesquisadoras problematizaram os artefatos, as idolatrias por determinadas personagens, as preferências atreladas aos produtos, entre outras atividades da pesquisa. Porém não era intenção problematizar o consumo em si, pois acreditamos que as crianças não possuem a dimensão dessa prática cultural, de maneira que as pesquisadoras utilizavam os ídolos-personagens das crianças como iscas para redimensionar as supervalorizações atribuídas aos artefatos. As estratégias das pesquisadoras tinham intuito de oportunizar as crianças pensarem a respeito de seus valores.

79

Identidades: a regulação entre os pares

Nossas identidades são produzidas nas interações e experiências com o mundo, não nascemos com elas “instaladas”. Elas são formadas nas relações entre os sujeitos, os grupos, as situações, os contextos nos quais vivemos. Somos mulheres, homens, crianças, pais, mães, avós, professores/as, filhos/as, jovens, velhos, adolescentes, tristes, alegres, brilhantes, transparentes, opacos em um só corpo. Possuímos, reproduzimos e nos apropriamos de diferentes identidades. Muitas deixamos de lado, outras nos acompanham com transformações ou não, ao longo da vida. Para Maffesoli (1996, p.304), “o eu só é uma frágil construção, ele não tem substância própria, mas se produz através das situações e experiências que o moldam num perpétuo jogo de esconde-esconde”.

80

A produção das identidades infantis se faz a partir de vivências e experiências que são entrelaçadas nas relações entre os pares e nas relações com os adultos. Porém, os discursos sobre a infância, os contextos culturais e os diversos artefatos que habitam o universo da infância, constitui-se em um processo entremeado pela cultura visual contemporânea, contribuí significativamente na produção dessas identidades na medida em que intervém na formulação do imaginário infantil e as concepções a cerca dos modos de ser. Durante sua pesquisa, Rech (2007, p.17) percebeu a forte presença dos personagens midiáticos no cotidiano das crianças observadas: Os produtos que habitam o universo infantil são tão fortemente permeados por personagens que é muito difícil as crianças, principalmente as meninas, não estarem com alguns deles diariamente. cotidiano

das

crianças,

As imagens fazem parte do

mostrando

suas

preferências,

contribuindo para a formação de suas personalidades e estabelecendo diferenciações entre meninos e meninas.

81 Imagens do acervo da pesquisa

Para as crianças participantes das pesquisas a associação delas a um personagem midiático mostra o quanto personagens estão “ligados” às crianças, deste modo inferimos que muitas vezes as crianças assumem as características físicas, emocionais, performática de seus ídolos. Na pesquisa de Marques (2008, p. 39-41), ao serem apresentadas a imagens de propagandas de roupas infantis, as crianças se manifestaram do seguinte modo:

“Eu gostei da roupa do Batman, por que eu quero ser como ele é. Um herói.” (Júlio)

Meninos turma Jardim B – pesquisa “ Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero ”

82

“Eu escolho essa roupa porque eu fico linda de saia, eu quero uma saia assim.” (Vitória)

Meninas Maternal – pesquisa “Cultura Visual e os modos de ser criança”

Como é salientado por Marques (2008, p.39), quando ela aponta o quanto as crianças observadas por ela são influenciadas pelos artefatos visuais. Para a pesquisadora, “os repertórios têm sido constituídos através das inúmeras imagens a que elas têm sido expostas, sobretudo as advindas dos meios de comunicação de massa, que influenciam diretamente nos modos de ser das crianças. De tal modo, suas preferências já trazem marcas de feminilidade e masculinidade naturalizadas culturalmente e socialmente”.

83

Porém as identidades infantis não se formulam de maneira linear. Elas são múltiplas, plurais e processuais, pois são diversos os aspectos participantes da produção de identidades, tais como raça, nacionalidade, classe, gênero e tantas outras. No que se refere à formulação das identidades, Louro (2001, p.12) afirma:

É, então, no âmbito da cultura e da história que se definem as identidades sociais (todas elas e não apenas as identidades sexuais e de gênero, mas também as identidades de raça, de nacionalidade, de classe etc). Essas múltiplas e distintas identidades constituem os sujeitos, na medida em que esses são interpelados a partir de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. Reconhecerse numa identidade supõe, pois, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência.

84

Em sua pesquisa, Rech (2007, p.18) recorre também à autora ao discutir sobre a construção de identidades: Ao falar de identidades de gênero falo também em identidades sexuais, uma vez que as duas estão inevitavelmente relacionadas. Segundo Louro (1997, p.26), os sujeitos constroem suas identidades de gênero à medida que são identificados, social e historicamente, como masculinos ou femininos. Por não serem naturais, tais identidades precisam ser constantemente produzidas e normalizadas e os artefatos culturais ocupam um importante papel nesse processo. Cunha(2005, p.194) salienta que: “De diversas maneiras e em várias instâncias sociais, o gênero feminino e masculino é demarcado por objetos, cores, imagens, brincadeiras, entre outros sinalizadores que nos dizem o que deve ser das meninas e o que é dos meninos.” Goellner (2003, p.29) problematiza as atribuições culturais advindas a partir da biologia, apresentando que existem várias formatos de vivenciar o ser mulher ou homem que não se limitam ao corpo biológico. Porém as identidades de gênero formulam-se dentro de um contexto histórico e cultural e dessa forma estão atreladas e referem-se às várias formas aprendidas de viver a masculinidade ou a feminilidade nestes contextos. Dessa forma naturalizam-se modos de ser, impressos em identidades de gênero que funcionam como cartilhas a serem seguidas e condicionam as representações de papéis a serem regulados conforme suas atribuições.

85

Na pesquisa Desenho de meninos e meninas CUNHA e BORGES (2007) observam em uma proposta de pesquisa junto às crianças do Jardim A, o quanto alguns posicionamentos das crianças sobre gênero estão dentro das convenções. Segundo as anotações e reflexões posteriores do Diário de Bordo: A proposta dirigida pela professora foi disponibilizar na roda das crianças, alguns materiais de uso pessoal e outros presentes na sala de aula como, uma mochila das meninas Super Poderosas e outra dos super heróis (super-homem, hulk...), um urso de pelúcia, uma boneca, uma caneca, um balde, um carrinho de boneca, um dinossauro. Com os objetos no centro da roda, ela escolheu três crianças para que elas separassem coisas que poderiam ser de meninos, meninas ou de ambos. A partir destas divisões, ela foi realizando diversos questionamentos sobre as fronteiras do masculino

e

feminino,

relativizando

as

visões

pré-

estabelecidas das crianças. Na situação de conversa, muito explorada pela professora, foi estabelecido um tipo de Imagens acervo de pesquisa

86

discussão com as crianças que como observa FELIPE (Felipe, 2004, p. 37). “raramente é desencadeada na Educação Infantil, questiona[ndo] e discutindo o determinismo social dos gêneros” As crianças puderam participar ativamente, dando opiniões. Pudemos notar que as meninas diziam que usariam as mochilas dos super-heróis masculinos, os meninos, ao contrário, afirmavam que não usariam uma mochila de Barbie ou Meninas Super Poderosas. Nas falas de algumas crianças é possível notar

como,

desde

pequenas,

elas



conseguem

classificar

determinados

hábitos,

objetos,

comportamentos, como sendo de meninos ou de meninas.Torna-se evidente que as meninas tem uma maior flexibilidade com relação aos marcadores de gênero com os quais convivem dentro e fora da escola, pois elas se permitem utilizar objetos “específicos” para meninos, enquanto eles não mostram essa flexibilidade. Jane Felipe (2004), afirma que a preocupação com os meninos parece ser maior do que a dispensada com as meninas, de maneira que o fato de um menino se ocupar com alguma atividade ou objeto não “próprio” possa “a imagem masculina hegemônica” (Felipe, 2004, p. 34). Ainda que haja comportamentos que tentem fugir a essa norma imposta pela cultura e pela sociedade, há um controle extremo e constante por parte da escola, no sentido de garantir que as posições legitimadas permaneçam como sempre foram, havendo ainda “uma severa vigilância em torno da masculinidade infantil, visto ser ela uma espécie de garantia para a masculinidade adulta, o mesmo não ocorrendo em relação às meninas” (Felipe, 2004, p. 34).

87

5.1 AUTO-REGULAÇÃO: NOS LIMITES DO QUADRADO Vivemos em uma constante necessidade de nos enquadrarmos em identidades fixas e pré-determinadas de ser e de agir, cuidando para não ultrapassar as linhas invisíveis e limitadoras que nos classificam e nos inserem em uma adequação social e cultural. Conforme RECH ( 2007, p. 14): No meu grupo de alunos, tenho mais meninos do que meninas, então nas apresentações de dança alguns meninos recusavam-se a fazer par com outros, dizendo que não são “bichas” eles).

(expressão

Após

usada

por

conversarmos

em

grupo, discutindo a questão, os meninos dançaram com os outros, pois

perceberam

que

sua

sexualidade não seria afetada, no entanto,

as

expressões

de

descontentamento de alguns pais eram notáveis quando viram seus

88

filhos dançando com outros meninos. As identidades infantis formuladas a partir das relações de gênero estabelecem em si um sistema binário e oposto, edificando as identidades em masculino e feminino, categorizando e naturalizando os modos de ser de menino e de menina, na forma de papéis a serem desempenhados. As identidades estão encapsuladas nos papéis de gênero, acentuando diferenças e marcas. Tanto são visíveis, fortes e dominantes estas marcas de gênero que as próprias crianças se controlam e se regulam no exercício desses papéis. A situação relatada por Rech (2007, p.14-15) em sua pesquisa exemplifica: [...] quando um menino estava brincando no cantinho do salão de beleza da sala e colocou acessórios no cabelo, pulseiras e passou batons para imitar as mulheres. No mesmo instante, algumas meninas começaram a chamá-lo de “mulherzinha” e de “bicha” e riram de sua atitude. Ao perceber essa situação, convidei todo o grupo a falar sobre o assunto, questionando se o menino iria virar mulherzinha por estar brincando no salão de beleza. A maioria respondeu que não, mas as meninas insistiram dizendo que quem se veste de mulher é “bicha” [...].

89

Esses discursos generificados atravessam o cotidiano infantil, transformando o ambiente escolar em um cenário onde acontecem manifestações, representações e naturalizações de comportamentos pertinentes ao que se delimita ser o papel de menino e papel de menina. Os materiais escolares, os brinquedos, os vestuários infantis, entre outros artefatos culturais direcionados à infância carregam em si marcas generificadas e identificatórias. Dessa forma configuram-se como um reforço, um elemento a mais na produção e na delimitação das identidades de gênero, construindo regras para o que é próprio de menino e/ou de menina.

Deste modo, um inofensivo

marcador como a cor da roupa infantil cumpre a função de representar, nomear, situar, identificar, etiquetar e traduzir os sujeitos femininos e masculinos entre si e para os outros.

A respeito da delimitação do gênero

através das cores, Karin Calvert (1998, p.68) argumenta que: As roupinhas cor de rosa e azul [dos bebês] são a evidências da importância de identificar precocemente o gênero numa sociedade onde tão pouca coisa parece definida.(...) As informações colorísticas, entre

outras,

posicionam

tanto

nós

adultos quanto as crianças numa faixa etária e num gênero. Se transgredirmos a orientação do manual das cores para

90

crianças e comprarmos, por exemplo, uma bicicleta vermelha e preta (indicada para menino) para uma menina (em geral é da cor rosa), talvez esta menina seja vista como “diferente” por usar algo designado aos meninos. Assim, uma criança pode ser vista como diferente pelo uso de uma bicicleta, ou de qualquer outro artefato e isso implica em classificá-la através de um bem que foi programado para definir seu gênero. Na medida em que a idade das crianças avança, os leves tons pastéis se desvanecem e surgem às cores mais marcantes, como as cores primárias e escuras para os objetos masculinos, e as cores suaves, como rosa e o amarelo claro, passam a ser as cores das meninas. (CUNHA, 2005, p.194) Conforme as anotações do Diário de Campo de CUNHA e BORGES (2007): [...] tanto meninos quanto meninas categorizavam todos os objetos e afirmavam que não usariam algo que não fosse atribuído a identidade sexual deles. Entre eles, durante esta atividade, surgiu a palavra gay. Uma menina disse que se um menino usasse a mochila rosa, da Barbie, ele seria diferente, um gay.

91

A normatização produzida nas identidades infantis concorre para uma situação de exclusão dos sujeitos que não se moldam as regras estabelecidas. Qualquer comportamento, “figurino”, opção por determinados papéis nas brincadeiras que esteja fora do contexto é devidamente categorizado e questionado, não existindo a possibilidade de outras configurações. A partir das relações sociais, dos contextos culturais, das relações entre os pares, tanto meninas quanto meninos, formulam maneiras de se ver e de ver os outros, que por sua vez, geram a regulação entre os pares. Seus olhares estão configurados a partir do que se manifesta ser adequado pensar, agir e ser, de forma que os papéis assumidos fiquem bem definidos e delimitados. Louro (1997, p.24) pondera que: “Os papéis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem seus comportamentos, suas roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar. Através do aprendizado de papéis, cada um/a deveria conhecer o que é considerado adequado (e inadequado) para um homem ou para uma mulher numa determinada sociedade, e responder a essas expectativas”.

92

Elementos corriqueiros do cotidiano infantil, tais como uma brincadeira específica ou uma cor e até mesmo uma imagem midiática são, muitas vezes, vinculadas a um único universo, feminino ou masculino, sem possibilidade de transgredir a essa limitação imposta. São barreiras intransponíveis as quais as crianças aprendem desde cedo a não questionar e se limitam a permanecer “cada um no seu quadrado”. Na pesquisa de Marques (2008, p.39 p.41), ao serem questionadas se gostavam ou não das roupas apontadas pela pesquisadora, três meninos se manifestaram a respeito de uma das roupas da marca Tigor, direcionada ao público infantil masculino como intrasferíveis às meninas: Meninas não podem usar essas roupas. Elas têm que gostar das princesas! (Gabriel, Leandro e Fábio). Em outro momento, frente a imagem de uma roupa cor de rosa, associada a Barbie, duas meninas comentam: Se os meninos usassem essas roupas seria engraçado. Todos iriam rir deles na rua! (Isabela e Aline), atestando a impossibilidade de meninos e meninas dividirem os mesmos modelos de roupas. Sobre o assunto, a pesquisadora conclui que Essas escolhas

traduzem

as

identidades

de

gênero,

socialmente aceitas e reproduzidas nas diversas esferas em que as crianças circulam e são educadas. Menino e menina Jardim B- pesquisa “Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero”.

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Talvez por isso seja tão difícil para este grupo aceitar a possibilidade do sexo-oposto usar roupas idênticas às suas. E quando essa possibilidade é cogitada, passa pela ideia do ridículo e da vergonha (MARQUES, 2008, p.42).

Em momentos que os papéis institucionalizados não são cumpridos, são gerados estranhamentos, diferenciações e policiamento entre as crianças para que se ajustem ao que se considera próprio de seu gênero, gerando que os pares infantis se autorregulem tanto nos modos de ser quanto de se ver e relacionar-se. Através dos dados e das anáises das pesquisas, foi possível perceber que a maioria dos meninos tem maior dificuldade de fazer uso de objetos destinados exclusivamente às meninas, enquanto a maioria das meninas mostram menos rigidez em aceitar artefatos direcionados aos meninos.

94

Tendo como referencia os dados produzidos em diferentes pesquisas analisadas neste relatório, notamos que as identidades infantis estão sendo constituídas de modo “generificado”, em grande parte, nas mediações com a cultura para a infância e em seus artefatos tais como, desenhos animados, brinquedos, vestuário, acessórios e etc. que têm contribuído e reforçado esses posicionamentos binários. Como observa Rech (2007, p.15), ao citar Sabat (2004, p.97): É possível perceber que as crianças já trazem consigo desde pequenas, por exemplo, que a heterossexualidade é tida como o comportamento correto, ideal a ser seguido; e a homossexualidade, ao contrário, é vista como algo errado, fora do normal, opção que não deve ser feita. Segundo Sabat (2004), a normalização de algumas identidades, como a identidade heterossexual, tem como efeito a sua “naturalização”, jogando

para

o

campo

da

anormalidade

outras

identidades que se constituem de formas diferentes das hegemônicas.

95

Pesquisando em sua turma, Rech (2007, p.14 p.17) elencou objetos que seus alunos mais gostam e quais eles associam como pertencentes a meninos e/ou meninas: Os filmes que meninos e meninas levam também são diferentes. Os meninos preferem Power Rangers, Transformers, Homem-Aranha, já as meninas, levam DVD’s da Barbie, da Pequena Sereia ou de princesas, como Branca de Neve, Cinderela, etc.

Através de sua pesquisa, Rech elegeu elementos que são pertencentes ao universo infantil feminino e masculino, apresentando a clara distinção entre os objetos marcadores de gênero. O acervo de imagens apresentadas por Rech nos mostra que enquanto meninos usam roupas do Tigor, tênis de cores escuras e acessórios como boné e relógio, as meninas vestem-se com roupas da Lilica Ripilica, tênis cor de rosa, bolsas e acessórios para o cabelo. Os meninos brincam de bonecos e carrinhos Hot Whees, já as meninas preferem os carros da Polly, brincam de casinha e com bonecas. Elas colecionam álbuns de conjuntos musicais e adoram livros que contam histórias de princesas e heroínas, diferente dos meninos, que têm álbuns de figurinhas de futebol e Pokemóns e livros de dinossauros.

96

97

98

A respeito dessa diferenciação de gostos que o convívio com as crianças a fez perceber, a pesquisadora conclui: Penso que as corporações tem um papel fundamental nas escolhas que as crianças fazem pelos artefatos mostrados acima ou por outros tantos que existem, veiculando suas imagens em propagandas, revistas, programas, etc. e enfatizando a importância de consumir o que está sendo mostrado para poder pertencer a um determinado grupo. (RECH, 2007, P.25).

5.2 IMAGEM UM DO OUTRO Em sua pesquisa, Rech (2007, p. 29) elaborou propostas que tinham o intuito de investigar a respeito dos posicionamentos de seus alunos sobre questões de gênero. O desenho foi uma ferramenta utilizada para trabalhar o assunto como ela cita em seu trabalho: Com a finalidade de querer conhecer o que meninos e meninas pensam um do outro, iniciei uma reflexão com a seguinte questão: que coisas vocês acham que são de meninos e que coisas vocês acham que são de meninas? Como algumas crianças ficaram tímidas em expressar-se, solicitei que observassem a sala de aula, os brinquedos, as mochilas, entre outros artefatos e pensassem sobre a questão. Imediatamente, começaram a verbalizar uma série de itens classificados como sendo de

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meninos e de meninas, então propus que desenhassem o que verbalizaram, uma vez que ainda não sabem escrever. Apresento abaixo alguns desenhos dos meninos sobre o que eles pensam ser de meninas, relativos a primeira atividade:

MENINO 1

MENINO 3

(flor, Barbie, coelho, laço, ferro, óculos, roupa, arco-íris, caneca)

(sutiã, calcinha, batom, corações)

MENINO 2

MENINO 4

(compras no shopping, maquiar olho, coração, urso).

(bailarina, urso, borboleta, coração, maquiagem)

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MENINA 1 (Super-herói)

MENINA 3 (roupas, super-heroi)

MENINA 2 (vídeo-game, roupa, bolas)

MENINA 4 (dinossauro, bola, posto de gasolina, camiseta e short)

101

Analisando os desenhos de meninos e de meninas, foi possível perceber o quanto as identidades de gênero de ambos ficaram explícitas e o quanto as crianças determinam o que é de menino e o que é de menina, demonstrando através dos desenhos que ambos não podem compartilhar um mesmo artefato (RECH, 2007, p.32). A pesquisa realizada por Rech , assim como os exemplos trazidos por ela, apontam o quanto é visível nas produções plásticas infantis a diferenciação das cores e símbolos utilizados por meninos e meninas. Os desenhos apresentam repertórios estéticos com atributos de representação definidos para os sexos. Marcadores de gênero apresentam e representam o que é adequado e próprio para meninos e meninas.

Nestes desenhos, e em outros tantos realizados pelas crianças do meu grupo, surgem, repetidamente, marcadores de gênero, que por sua vez aparecem também em roupas, mochilas, calçados, acessórios. Estes marcadores, em geral, apresentam, e representam, o gênero em posição binária, apresentando o masculino movimento, agitação, formas, vários pontos de vista, cores fortes e escuras, temáticas de lutas, etc; e o feminino imobilidade, formas estáticas e frontais, cores suaves, temáticas de flores, corações, etc. Trago abaixo, os desenhos de quatro meninos e meninas diferentes para exemplificar: (RECH, 2007, p.26)

102

MENINA 2

MENINA 1

MENINA 3

MENINA 4

103

Observando os desenhos das meninas, é possível perceber que os mesmos dão uma sensação de harmonia e tranquilidade, dando a impressão de estarem demonstrando sentimentos de amor, carinho e amizade. Noto isso através dos elementos desenhados, da alegria dos personagens, das cores escolhidas, da beleza que as meninas buscaram representar (RECH, 2007, p.27).

Abaixo, apresento os desenhos de quatro meninos diferentes:

MENINO 1

MENINO 2 104

MENINO 3

MENINO 4

Os desenhos dos meninos demonstram seus gostos e preferências, apresentando um jogador de futebol e um esqueleto (menino 1), dinossauros (menino 2), carro extremamente potente (menino 3) e seres de desenhos animados, presentes no imaginário infantil (menino 4). Ao contrário dos desenhos das meninas, os desenhos dos meninos transmitem a sensação de força, velocidade, energia, sendo que todos eles apresentam cores fortes. Os meninos 2 e 4 desenharam personagens que demonstram sentimentos de raiva e de luta, assim como os personagens dos brinquedos destinados a eles nas lojas (RECH, 2007, p.28). Rech também relata, além da recorrência de símbolos e signos, outras características que podem ser notadas nas representações gráfico-plásticas observadas, a exemplo da escolha das cores,

105

enquanto a maioria das meninas opta por cores mais suaves e pertencentes a gama do vermelho e rosa, os meninos preferem cores mais fortes. A organização espacial e a construção de formas representativas aparecem distintas nos desenhos observados.

No desenho da menina 1, por exemplo, a figura humana é estática e está contornada por linhas fechadas, aparecem flores, as cores são claras e não há preocupação de representação espacial. No desenho do menino 4, há movimento e relação entre as duas figuras, detalhes nas roupas e adereços, cores mais escuras e indicação de profundidade na representação espacial (RECH, 2007, p.28).

106

5.3 CONSIDERAÇÕES

A partir dos relatos/análises da pesquisa de RECH, CUNHA e BORGES foi possível perceber que as meninas são mais flexíveis e permitem-se atravessar os limites que separam os posicionamentos de gênero e se dispõem utilizar objetos atribuídos aos meninos. Ao contrário das meninas, os meninos, muitas vezes, são categóricos em não se aventurar no uso de objetos, nas brincadeiras e outros elementos que são destinados ao universo feminino. Podemos supor que este fato acontece pelas meninas não terem um controle social tão ferrenho sobre suas identidades sexuais, por exemplo, familiares, professoras, adultos e outras crianças dificilmente irão comentar se uma menina estiver utilizando uma mochila de homem aranha ou jogar futebol. Porém, se um menino “passar” a fronteira e utilizar algo da cor rosa, ou corações, ou flores em alguma vestimenta, acessório, brinquedo, etc, certamente haverá um questionamento em relação a sua masculinidade heterossexual. Torna-se importante então, que o professor ofereça atividades e conversas acerca dessa temática com a finalidade de instigar seus alunos a pensarem sobre como se enxergam e como enxergam os outros dentro da forte distinção de gêneros existente na sociedade. Ponderamos a necessidade de questionarmos e problematizarmos a presença maciça dos artefatos culturais, principalmente os direcionados à infância, que tem contribuído de forma marcante na produção das identidades infantis.

107

Espaços escolares: Meninos e meninas, cada um no seu quadrado!

Ao nos referirmos ao quadrado, geralmente, pensamos na figura geométrica formada por quatro lados iguais. Porém um quadrado é também uma delimitação do espaço, ou seja, uma área demarcada onde se estabelecem funções, configurações, ocupações e usos (pré-definidos ou não), provocadores de situações específicas nas quais, em muitos casos, predominam o caráter de separação e diferenciação dos espaços e dos ocupantes que os utilizam.

108

Antes mesmo de nascer, uma criança já possui seu espaço, ou no caso, seu quadrado, delimitado. Este primeiro lugar que um bebê irá ocupar será formulado, entre tantos outros aspectos, a partir de práticas culturais já estabelecidas. Podemos ressaltar essa consideração ao apontar que apesar de existir uma gama tão grande de cores, o rosa e o azul, em suas variadas tonalidades, continuam a ser as cores mais utilizadas para decorar dormitórios de recém-nascidos, demarcando assim como essas cores aderem-se ao que espera ser diferenciador e próprio tanto de meninos quanto de meninas.

Por meio de um amplo levantamento de imagens, referentes a espaços destinados à infância, ocorrido durante o período da pesquisa DESENHOS DE MENINOS E MENINAS: RELAÇÕES ENTRE IMAGINÁRIO E GÊNERO, e realizado

A cadeia de significados que construímos em torno das cores pastéis na primeira infância e adotando para nossos bebês cores tonalizadas para dizer que nossos filhos são “suaves”, “dóceis”, “puros”. Há todo um arcabouço visual de formas, cores, tamanhos, texturas, aromas que nos sinalizam para percebermos a primeira infância como um lugar sem conflitos, suave, pacífico, calmo, confortável, enfim, há um conjunto de elementos que nos levam a formar determinadas visões sobre infância. (CUNHA, 2005, p.17)

em diversos meios midiáticos tais como publicidade, internet, TV e outros, podemos notar o quanto as escolhas dos elementos decorativos 109

assumem o papel de representar o que se considera esperado, adequado e normal para os espaços infantis. Dessa forma, na simples determinações de cores, de elementos e objetos decorativos, componentes de um espaço, reforçam-se as idéias de binarismos e diferenças entre o feminino e o masculino.

110

Percebemos, também, a maciça presença de personagens midiáticos estampados em produtos como roupa de cama, tapetes, colchas, cortinas, luminárias e demais itens, que contribuem para a decoração e ambiência de um espaço. Assim como já apontamos

para

as

relações

destes

mesmos

personagens para a elaboração dos modos de ser infantil, suas presenças nos espaços arquitetônicos também colaboram para a instituição de um lugar formulado e em consonância com as maneiras de ser.

111

6.1 OS QUADRADOS NA ESCOLA

Os espaços escolares são cenários erguidos dentro da cultura escolar, e dessa forma são elaborados a partir das solicitações dessa cultura. As salas de aula, os pátios, os

banheiros

e

demais

ambientes

são

projetados,

elaborados e constituídos para atender a organização escolar

e

todos

os

outros

aspectos

surgidos

nessa

organização. Porém, percebemos que os espaços escolares não são incólumes as culturas externas as instituições de educação. Ao observar, registrar visualmente e mapear os ambientes escolares na pesquisa DESENHOS DE MENINOS E MENINAS: RELAÇÕES ENTRE IMAGINÁRIO E GÊNERO notamos a capacidade transmissibilidade entre os espaços

Entendo os cenários infantis como um dispositivo pedagógico, como um dos instrumentos que compõem a educação infantil. Assim é importante compreender o “instrumental” dos cenários infantis como símbolos emblemáticos de nossa cultura [...]. Tanto o espaço cênico contemporâneo quanto os espaços escolares funcionam como um texto narrativo, aqui entendido como uma prática discursiva (...). (CUNHA, 2005, P. 72-73)

arquitetônicos escolares com os espaços culturais e sociais cotidianos. Existe uma ação de refletividade, ou seja, uma ação de espelhamento entre esses lugares, tornando os ambientes escolares suscetíveis às culturas 112

externas a essa instituição. Dessa forma, consideramos existir uma simbiose entre esses diferentes espaços. Rech (2007, p.25) em sua pesquisa descreve a organização de um espaço externo a escola, mas que não se diferencia, em muitos aspectos, ao escolar quanto a sua estrutura organizacional em relação ao gênero: Se prestarmos atenção às lojas de brinquedos, perceberemos que os brinquedos de meninos e de meninas não ficam próximos, ao contrário, ficam separados, pois um lado da vitrine é dedicado às meninas e outro aos meninos. No interior da loja, os únicos brinquedos unissex são os destinados aos bebês, os demais ficam em prateleiras separadas, onde brinquedos de meninos e de meninas não se misturam. Acredito que essa separação indica o local

apropriado

para

meninos

e

meninas

escolherem

seus

brinquedos, praticamente não abrindo espaço para outra opção.

113

A respeito dessa diferenciação observada a pesquisadora ainda considera: Penso que as corporações tem um papel fundamental nas escolhas que as crianças fazem pelos artefatos mostrados acima ou por outros tantos que existem, veiculando suas imagens em propagandas, revistas, programas, etc. e enfatizando a importância de consumir o que está sendo mostrado para poder pertencer a um determinado grupo. (RECH, 2007, P.25).

http://claudinhastoco.virgula.uol.com.br/inauguraca o-flagship-store-da-cea

114

Da mesma forma, Vidal (2008) descreve, em seu diário de campo, um dos ambientes da EMEI participante da pesquisa “DESENHOS DE MENINOS E MENINAS: RELAÇÕES ENTRE IMAGINÁRIO E GÊNERO”. As anotações da bolsista reforçam as observações de Rech em relação aos “mundos” – feminino e masculino – serem organizados, preparados e estruturados de forma diferenciada e oposta, assim como, evidenciam como esses dois espaços distintos – escolar e externo à escola – se aproximam e se refletem.

Na brinquedoteca da escola, o olhar encontra rapidamente uma estante de brinquedos, a um canto da sala, que mostra em suas prateleiras apenas carrinhos de brinquedo nas cores vermelho, azul e amarelo. Os meninos da turma (Jardim B) são os únicos que mexem nessa estante. No outro canto da sala, oposto a esse mobiliário, encontra-se o “recanto” utilizado e ocupado pelas meninas, marcado e ocupado por uma série de brinquedos, tais como bercinho, bonecas, fogão e outros, associado ao lado doméstico e feminino.

Imagens da Brinquedoteca da EMEI participante da pesquisa Desenho de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero.

115

A partir de ambos os registros podemos salientar como as práticas culturais de uma sociedade infiltram-se e tornam-se um elemento importante e invisível na elaboração dos espaços. Como analisa Frago (1998) a escola é “um espaço demarcado, mais ou menos poroso, no qual a análise de sua construção, enquanto lugar, só é possível a partir da consideração histórica daquelas camadas ou elementos envolventes que o configuram e definem.” (FRAGO, p.81, 1998). As brinquedotecas ou os recantos de brinquedos das escolas de Educação Infantil são exemplos construídos das práticas culturais e cotidianas que se repetem dentro da escola. Nesses espaços pode-se constatar a partir do layout, da organização, da disposição dos elementos decorativos e do mobiliário existente como se demarcam configurações e modos peculiares de se utilizar esses espaços. Ponderamos, a partir dos relatos das pesquisas que compõem esse relatório, que a imagem produzida pelos espaços recreativos e lúdicos das escolas de educação infantil analisadas sugere a formação de dois ambientes distintos, dois territórios demarcados por uma linha invisível, separando os espaços de meninas dos espaços de meninos apenas pela simples organização dos brinquedos e dos mobiliários ali

A construção/reprodução ou desconstrução/transformação das diferenças e desigualdades de gênero se dá de forma implícita no currículo em ação, e na própria organização dos espaços, objetos e atividades escolares, assim como na divisão do trabalho institucional. Lembrando Bourdieu (1999), o gênero funciona como um princípio de visão e de divisão, que cria classificações para todas as coisas do mundo e todas as práticas, a partir de distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino. (CARVALHO, 2008, p.08)

existentes. Conforme Vidal (2008) descreve: 116

O Dois espaços se destacam em seu antagonismo. De um lado da sala está uma penteadeira, o espelho visivelmente pintado, decorado com padrões femininos. Nesse recanto encontra-se o os brinquedos de aspectos domésticos. No lado oposto a esse, existe outro espelho sem nenhuma ornamentação, além de uma moldura branca. Ainda na mesma parede desse espelho localizam-se prateleiras com brinquedos “de meninos”, ou seja, um grande número de carrinhos. Imagens da Brinquedoteca da EMEI participante da pesquisa Desenho de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero.

117

Também é necessário enfatizar que os tipos de brinquedo encontrados e distribuídos nesses espaços demonstram, novamente, o espelhamento de práticas sociais na organização de um espaço escolar. Os brinquedos associados às meninas, e utilizados quase que exclusivamente por elas em suas brincadeiras, geralmente se constituem em miniaturas domésticas, como ressalta Borges (2007) em seu diário de campo: Fomos também à brinquedoteca, para analisarmos os tipos de brinquedo que constam lá. Notamos que haviam mais brinquedos direcionados as meninas, como: panelinhas,

bonecas,

cozinha,

ambiente

de

sala

de

estar

reproduzindo

casas

convencionais,

do

que os brinquedos vinculados meninos,

aos assim

como as fantasias lá dispostas.

118 Imagens da Brinquedoteca da EMEI participante da pesquisa Desenho de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero.

Há uma associação direta do ambiente doméstico ao gênero feminino que contribuí para reforçar a idéia que existem diferenças de utilização desses brinquedos que geram,

assim,

ocupações

e

usos

desses

espaços

diferenciados pelas meninas e meninos.

[ [...] as crianças se identificam com cores e brinquedos de meninos (carrinhos, objetos de montar ou com motor) e de meninas (bonecas, casinhas ou apetrechos de cozinha). Neste caso, há uma clara desigualdade na distribuição dos brinquedos: meninos utilizam objetos que estimulam a imaginação, a ação e aventura, enquanto as meninas utilizam objetos sempre ligados ao “tomar conta de alguém” ou “cuidar de um espaço”, reproduzindo os papéis estereotipados de gênero. CARVALHO/2008, P. 11

Menina do Jardim B – pesquisa Desenho de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero.

119

As observações e anotações de Vidal (2008) relatam, também, a generificação dos ambientes escolares a partir da maneira como variados elementos estão distribuídos nesses ambientes. Como já relatado pela bolsista, a simples organização de uma estante de brinquedos pode gerar ocupação e uso diferenciado pelo gênero. A maneira como os objetos culturalmente carregados de relações de gênero, tais como bonecas, carrinhos, panelinhas, fogãozino e etc. estão organizados na Brinquedoteca fez com que se estabelecessem em um único espaço, dois territórios distintos e generificados, separados por uma linha imaginária que resulta, entre outras coisas, da distribuição dos objetos e do mobiliário nesse espaço. O resultado dessa organização espacial fornece subsídios para a relação de ocupação e de uso que os “usuários-crianças” têm

nesse

ambiente,

marcando

enfaticamente, espaço de

uso de

meninas e de uso de meninos e suas respectivas

apropriações

(VIDAL,

2008 - diário de campo).

120

É interessante ressaltar ainda sobre os brinquedos “domésticos” a características de suas cores, pois, na sua maioria, esses brinquedos são produzidos na cor rosa e lilás de restrita associação ao feminino. Novamente o papel da cores vem enfatizar a destinação do próprio objeto As imagens pesquisadas amplamente em diversos meios midiáticos e nas próprias lojas de brinquedos nos forneceram subsídios para considerar como a cor nos brinquedos infantis exerce o poder de representar e diferenciar o público (feminino ou masculino)

que

irá

comprar brincar e utilizar tais artefatos.

Dessa forma vemos nos espaços destinados a Educação Infantil elementos que auxiliam na elaboração dos lugares sociais e culturais. Os próprios artefatos culturais, que se constituem dentro da sociedade em que vivemos, ganham cada vez mais espaço nas escolas como um elemento adicional e constituinte da espacialidade. Torna-se necessário entender que espacialidade, na definição de Ferrara (2007), “cria uma teoria do espaço enquanto comunicação ideológica da cultura e exige o resgate das manifestações presentes nas suas constituições históricas (...), mas sobretudo, as características dos seus processos de comunicação.” (FERRARA, 2007, p.12). 121

Um simples material escolar, como as mochilas estampadas das crianças, ao serem carregadas para dentro da escola e colocadas em lugares específicos na parede da sala de aula, estão comunicando e demonstrando a presença de seus donos, mas acima de tudo, estão marcando a diferença entre os ocupantes do espaço: meninos e meninas. Esse fato é evidenciado a partir de anotações de campo de Vidal (2008):

No espaço físico da sala encontram-se determinantes marcadores de gênero, que de tão simples, e aparentemente inocentes, podem passar despercebidos em qualquer sala de educação infantil. Um exemplo disso é o espaço destinado aos cabides individuais das crianças. Cada cabide guarda uma mochila ou cor-de-rosa ou azul. Raramente outras cores aparecem. As mochilas carregam em si, desenhos, personagens ou elementos da cultura midiática infantil, formando um desfile de Barbies, Meninas Super-poderosas, Ben 10, entre outros. Apesar das cores se misturarem nos cabides, criando uma alternância livre entre elas, há uma obviedade na formação de dois grupos distintos, marcados pelo gênero e estruturando, assim, territórios separados, fechados, que raramente permitem um deslocamento entre si.

Mochilas turma Jardim A – pesquisa Desenhos de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero.

122

123

Como já salientamos anteriormente, as imagens que compõem os artefatos visuais endereçados à infância, como brinquedos, vestuários entre outros objetos, são na sua

maioria

marcada

com

estampas

de

desenhos

midiáticos. Os materiais escolares não ficaram à parte da comercialização e da associação personagem-produto que habitam de modo massificado o espaço escolar infantil, como se percebe a partir da constatação de Rech (2007, p.17): Dos dez meninos que compõem a minha turma, apenas um possui a mochila lisa, sem estampa, os demais usam mochilas do Batman, do Super-Homem, do Homem Aranha, do Taz, da Turma do Bairro e do Mickey. As sete meninas que são minhas alunas usam mochilas da Barbie, das Princesas, do High Scholl Music e de ursinhos.

124

O

simbolismo

e

a

condição

representativa

das

imagens, carregadas nos artefatos, colaboram para que se criem delimitações e divisões no espaço escolar.

Quando

percebemos, os variados ambientes de uma escola já estão separados em pequenas ilhas de apropriação, muitas vezes determinando quais os espaços a serem ocupados e usados por meninas ou por meninos, como apresenta Vidal (2008): Enquanto um grupo de crianças desenhava na mesa de trabalho, outro grupo brincava no chão. Na mesa do desenho havia um estojo cor de rosa com a estampa da Barbie sendo utilizado. Apenas um menino realizava a atividade de desenhar junto ao grupo formado por meninas.

O

estojo

cor

de

rosa

tornou-se

um

elemento

diferenciador e provocou a afastamento de outros meninos que procuraram outro lugar para ocuparem com suas brincadeiras. Na mesa ao lado outros meninos se reuniam para desenhar. (VIDAL, 2008- diário de campo) 125 Sala de aula Jardim B – pesquisa Desenho de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero.

Dessa maneira é possível trazer à discussão como os artefatos culturais dentro da escola potencializam-se e determinam modos de ser, de ver a si e aos outros, contribuindo nas relações sociais, comportamentais e, nesse nosso foco, nas apropriações espaciais a partir das representações vinculadas nessas imagens.

A configuração de um espaço físico se estabelece a partir de várias diretrizes, determinadas, na maioria das vezes por um projeto arquitetônico, no qual estabelece quais as funções que serão realizadas naquele ambiente e a melhor disposição dos elementos que constroem esse espaço. Essa disposição gerará e organizará formas de uso, ocupação e apropriação espacial pelo usuário. Porém, o planejamento do espaço por si só não é garantia ou determinante do uso e da ocupação que lhe é permitida ou desejada. Essas determinações acabam por serem manifestadas pelos usuários que irão vivenciar o espaço. Conforme Rocha (2000) existe a possibilidade de surgirem manifestações contrárias ao original do projeto tanto de uso como de ocupação do ambiente por parte dos usuários. A autora afirma que “os espaços são pensados, projetados e construídos para cumprirem funções, [...] como e para que ele será utilizado. Nem sempre, entretanto, estas definições de uso são prevalentes. Às vezes, tais determinações não são cumpridas ou sequer observadas. A elas se fazem contínuas resistências que serão administradas com redefinições ocasionais”. (ROCHA, 2000, p.86).

126

A partir dos registros de Vidal (2008) sobre a sala de aula de uma EMEI participante da pesquisa, ponderamos que em alguns casos há uma resistência a essa função original, determinando formas de ocupações diferenciadas que podem desvirtuar o princípio configurativo do espaço, ocasionando a fragmentação

deste,

em

ilhas,

ou

micro-espaços,

que

possuem diferenciações singulares a partir das apropriações dos usuários que estabelecem seus próprios programas de necessidades e usos do lugar.

Na sala de aula do Jardim B me chamou a atenção

a

organização

e

a

forma

de

guardar

os

brinquedos. Estes eram divididos em caixas plásticas transparentes conforme seu conteúdo. Havia a caixa das bonecas, dos carrinhos, das panelinhas, dos jogos de armar e etc. Essa maneira de classificação dividia os objetos em brinquedos de meninas e de meninos. As caixas

de

brinquedos

estavam

constantemente

em 127

Sala de aula Jardim B – pesquisa Desenho de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero.

movimento, ocupando diferentes locais da sala gerando um nomadismo e instituindo zoneamentos generificados. Dessa maneira o espaço estava sendo dinamicamente redefinido em territórios de meninas e de meninos. Podem-se perceber relações generificadas com espaço a partir dessas novas ocupações e usos, pois conforme os elementos e os objetos são dispostos no ambiente formam-se zonas diferenciadas, ambientes separados e territórios divididos pelas relações entre os gêneros. Esses territórios generificados além de ser uma imagem tri-dimensional produzida nos revelam naturalizações nos modos de ser que se refletem no

uso

e

apropriação espacial.

Sala de aula Jardim B – pesquisa Desenho de meninos e meninas: relações entre imaginário e gênero.

128

6.2 CONSIDERAÇÕES De acordo com Frago (1998) o espaço não é neutro. O espaço educa. Nele encontramos uma força dinâmica, representativa e expressiva na qual se apresentam tensões, devido a sua configuração e organização, que são provocadoras de ocupações e apropriações particulares. Como em alguns casos, as relações com esses espaços fazem com que se reforcem papéis marcados por uma diferença entre os gêneros feminino e masculino. Dessa maneira encontramos dentro dos diversos ambientes escolares, lugares formados por linhas invisíveis, porém marcantes de diferenças determinando assim territórios delimitados, caracterizados e ocupados de forma generificada que agem de forma colaborativa na perpetuação de diferenças e divisões tanto nos modos de ser e agir quanto nas formas de se relacionar com os espaços. Vemos a necessidade de desconstrução desses quadrados territoriais para uma nova forma de estruturação dos espaços escolares, onde as diferenças não sejam marcadores de exclusão e de ocupação dos espaços. Uma nova organização pode ser pensada para que os espaços sejam aproveitáveis para diversas manifestações e apropriações, retirando o caráter de separação, divisão e delimitações que acontecem devido a uma série de prédeterminações espaciais.

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Considerações Finais

Na medida em que íamos costurando as pesquisas umas às outras fomos encontrando ecos, referências, intersecções e inter-relações entre os temas abordados, todos tendo como referência as crianças e seu cotidiano. Tornou-se necessário falar sobre os temas de forma isolada, porém consideramos a dificuldade dessa ação, pois os temas mostraram-se amalgamados e as relações dinâmicas, exigindo que estivéssemos frequentemente, elaborando novos arranjos e disposições que originaram as categorias de análise. A partir do diálogo entre as pesquisas participantes percebemos como ponto importante a construção de repertórios imagéticos que agem sobre as crianças de forma a gerarem referências para os modos de ser. As referências elaboram-se a partir de hieraquizações estruturadas nos valores morais, sociais e estéticos produzidos culturalmente. De tal forma essas referências moldam os 130

gostos infantis e seus modos de ver o mundo que elaboram uma estética própria infantil, transformando assim, determinadas imagens mais desejadas e idolatradas pelas crianças do que outras ao ponto de fomentar um consumo concreto, por meio dos artefatos, e um consumo simbólico por meio do desejar específicas maneiras de ser. As imagens potencializadas por valores hierarquizados colam-se aos artefatos culturais provocando, por meio das redes midiáticas, um consumo peculiar, visto que ao consumirmos esses artefatos, estamos realizando não apenas o consumo do objeto em si, mas também o desejo de ter e ser o que está agregado a ele, ou seja, os valores estéticos e culturais revestidos nas imagens. São modos de ver a si, ao outro e ao mundo que vão estabelecendo modos de ser homogeneizados e naturalizados, muitas vezes estereotipados. Invariavelmente, as identidades das crianças e os modos de viver a infância tem se elaborado a partir dos repertórios e referências instituídas. Essa condição tem provocado a continuidade de certas posições dos sujeitos, invariavelmente, binárias e opostas, como ser menino ou menina, ser bonito ou feio, bom e mau entre outras. Há uma série de relações, causas e conseqüências que acarretam desse posicionamento binário. Entre as conseqüências, podemos considerar não apenas as formulações rígidas das identidades, mas também as ocupações espaciais desses sujeitos infantis que se refletem nas apropriações separadas e territoriais dos espaços escolares.

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O alinhavo entre as pesquisas e a produção desse relatório colaborou para reforçarmos nosso entendimento que as imagens, e mais precisamente as carregadas nos artefatos culturais direcionados à infância, têm sido um importante elemento na produção das identidades infantis assim como na construção de repertórios imagéticos que lhes auxiliam a interpretar o mundo e determinam formas de se relacionarem entre si e com os outros. Nas representações infantis as imagens massivamente despejadas em seu cotidiano aparecem de forma intensa e constante. Devemos considerar que estas imagens, circulantes no universo infantil, não são neutras e nem podemos nos envolver pelo discurso visual intrínseco a elas, ao ponto de não problematizar conceitos e situações naturalizadas em seu conteúdo.

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