REPRESENTATIVIDADE E PARTICIPAÇÃO: INTERPRETAÇÕES, IMPASSES E DESAFIOS NA GESTÃO ESCOLAR.

June 2, 2017 | Autor: S. Fernández | Categoria: Participação Política, Administração e Gestão Educativa, Representatividade
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Os nomes são fictícios.


REPRESENTATIVIDADE E PARTICIPAÇÃO: INTERPRETAÇÕES, IMPASSES E DESAFIOS NA GESTÃO ESCOLAR.
Silvina Julia Fernández
UFRJ – UFF - CNPQ
[email protected]

Introdução.
Este trabalho apresenta reflexões parciais surgidas da pesquisa de doutorado denominada "Gestão escolar e cidadania: memórias, diálogos e encruzilhadas nas relações mães-escolas" (2011). A pesquisa estuda o cotidiano da gestão escolar no que se refere aos processos de democratização escolar e do exercício da cidadania nas relações entre as mães e a escola. Aqui, a partir de considerar a introdução do princípio da representatividade na escola e as suas dificuldades de implementação no cotidiano institucional, exponho algumas interpretações que professoras, funcionários e mães de uma escola pública municipal da Zona Sul carioca de Ensino Fundamental têm sobre a participação das mães neste âmbito e a ação das suas representantes no governo escolar. Isto, no entendimento de que essas interpretações estão na base de suas escolhas com relação a participar ou não das instâncias representativas da instituição, assim como das formas de fazê-lo. Focalizando nas interpretações relacionadas às mães representantes, procura-se compreender os impasses que essas interpretações geram em função de uma efetiva participação deste grupo no governo institucional, assim como levantar alguns desafios na perspectiva de garantir o direito da gestão democrática na escola pública.

Democracia, representatividade e escola.
No âmbito escolar, os sentidos envolvidos na relação escola-democracia são de longa data: da educação do cidadão da Revolução Francesa em diante podemos rastrear inúmeras propostas que têm essa relação como referência. No Brasil, o tema cobra relevância nacional apenas no início do século XX, a partir do Manifesto dos Pioneiros e, em especial, do trabalho incansável de Anísio Teixeira. Podemos dizer, inclusive, que as primeiras décadas do século passado instauraram uma "pedra de toque" para o campo educacional brasileiro, pois não raramente as discussões posteriores têm se referenciado à produção desta geração. Ao longo desta história, a relação escola-democracia foi sendo complexificada ao ponto de chegar a se inscrever expressamente na Constituição Federal de 1988, em alusão direta à gestão educacional pública.
Na referência democrática moderna, baseada na experiência do Estado-nação europeia, democracia remete a três dimensões que se entrecruzam: respeito pelos direitos fundamentais, cidadania e representatividade dos dirigentes (TOURAINE, 1994: 61-70). Juntas, essas dimensões sustentam a ação política moderna, dependendo de espaços e tempos diferenciados que nela incorporam outros entendimentos, complexificando os seus sentidos. No entanto, na implementação do princípio da gestão democrática nas escolas públicas brasileiras procedeu-se a enfatizar o princípio da representatividade como vetor cardinal no processo de democratização escolar, resultando numa concepção de gestão democrática que "... não tem sido interpretada com base na totalidade do processo educativo e em seu significado político-social" (FONSECA: 1994: 85). Ao mesmo tempo, a introdução da representatividade na escola se deu secundarizando ou apagando as ambivalências e desacertos que a representatividade tem manifestado em outros âmbitos sociais, gerando uma "confiança cega" em que, através dos mecanismos de escolha de representantes, poder-se-ia democratizar a escola.
Nessa implementação, portanto, surgiram diversos problemas, alguns similares aos acontecidos em outros âmbitos, como podem ser: o declínio das relações de identificação entre representantes e representados, por exemplo, por causa da cooptação dos representantes em função do desenvolvimento de projetos que beneficiam outros setores sociais; a falta de confiança nos representantes, como se dá perante casos de corrupção ou malversação de fundos públicos; a oscilação entre os mecanismos da delegação e os da alienação da ação política no representante, sendo que, no primeiro caso, os "representados" transferem algumas instruções vinculativas ao representante desligando-se de qualquer outra forma de participação e controle, enquanto que, no segundo caso, lhe são outorgadas a este incumbências ilimitadas.
Entretanto, outros problemas surgiram trazendo à tona aspectos que colocam em evidência as tramas micropolíticas da instituição escolar e seus fortes entrelaçamentos com a história sociopolítica. Problemas que emergem nas questões mais relacionadas à firme verticalização das escolas, em parte ancorada em uma suposta hierarquia epistemológica que privilegia determinados saberes socialmente legitimados em detrimento de outros, contribuindo para configurar os sentidos atribuídos ao exercício da autoridade.
Assim, cabe citar a introdução dos conselhos escolares como dispositivo democratizador, com suporte na Lei de Diretrizes e Bases nº 9394/96, quando trata dos princípios da Gestão Democrática no inciso II, dispondo a "participação das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes". No entanto, a introdução desse dispositivo se fez sem a realização paralela de modificações substantivas com relação à figura do diretor. Como sabemos, o exercício de cargos executivos – como a direção de escolas - está diretamente associado à capacidade de decidir e controlar os processos de tomada de decisões. Mas, neste exercício, quanto de regularização procedimental e quanto de arbítrio pessoal se requerem para que uma função executiva funcione adequadamente, quer dizer, seja ao mesmo tempo eficaz e controlada socialmente?
A resposta habitual a essa pergunta nos sistemas democráticos modernos tem se encaminhado no sentido de delimitar atribuições em forma precisa para cada cargo, estabelecer o controle cruzado entre os diferentes poderes institucionais, junto com a realização de eleições periódicas. Mas, nas escolas públicas, apesar de pertencerem a uma estrutura estatal supostamente democrática, representativa e com a divisão de poderes republicana, a resposta dada a essa pergunta historicamente tendeu apenas à delimitação precisa de atribuições para os cargos executivos.
Entretanto, buscando um maior controle social das ações escolares, a introdução de instâncias deliberativas nas escolas acompanhou o processo de institucionalização de modo amplo da gestão democrática do sistema público de ensino, mesmo antes da sua inscrição na Constituição de 1988. Assim aconteceu na Prefeitura do Rio de Janeiro, através da implementação do Conselho Escola-Comunidade (CEC), que surgiu em 1984, através da resolução SME nº 212 da Secretaria Municipal de Educação.
O CEC objetiva "valorizar a representatividade para uma educação cidadã, fazer da escola um espaço legítimo para a reflexão e discussão da sociedade e fazer do CEC elo integrador entre escola, família e comunidade". Ele deve ser composto pelo diretor da escola, dois responsáveis por alunos, três professores ou especialistas da educação, dois alunos, um funcionário ligado à educação e um representante da associação de moradores, que integrariam o CEC através de eleições feitas a cada dois anos. Os componentes do CEC não recebem nenhuma remuneração, porém o projeto recebe recursos da prefeitura, através do SDP (Sistema Descentralizado de Pagamento) e do PDDE (Programa Dinheiro Direto nas Escolas), do Governo Federal. Essa verba deve ser utilizada em benefício dos alunos e o Conselho deve prestar contas de como esse dinheiro está sendo usado. Ainda, segundo essa normativa, os representantes do CEC devem se reunir para elaborarem propostas e apresentá-las, para serem discutidas, ao diretor da escola. O papel do CEC iria desde a organização de turmas até a participação na elaboração e desenvolvimento do projeto político-pedagógico da escola.
Mas, em muitos dos casos, a introdução deste tipo de dispositivos não chega a garantir a sua efetivação nem sequer em termos formais. Assegurar a presença da comunidade inclusive no dia da votação para representantes torna-se uma difícil tarefa a cumprir em numerosas escolas. Cabe perguntar, assim, quais são as interpretações que os sujeitos escolares têm, entre outras questões, sobre a sua participação na escola e a ação dos seus representantes no governo escolar? Como essas interpretações influenciam as suas escolhas com relação a participar ou não dessas instâncias representativas, assim como das formas de fazê-lo? Buscando responder essas questões, no título seguinte, focalizo nas interpretações relacionadas às mães representantes, assim como os impasses que essas interpretações geram em função de uma efetiva participação deste grupo no governo institucional.

Interpretações e impasses da representatividade no governo escolar: a perspectiva das mães.
Na escola estudada, além da figura da mãe representante no CEC, existem as mães representantes de turma, escolhidas durante uma reunião da professora com os familiares das crianças, de presença predominantemente feminina. Várias das mães entrevistadas disseram ter desempenhado esse papel, manifestando os seus pontos de vista quando indagadas sobre essa função, como no caso de Nora,
S – E qual é a função, já que você foi representante?
M – Nenhuma! Eles não informam nada, eles não falam nada, não acontece nada (...) Existir existiu, mas nada foi comunicado o ano todo.
S – E também das mães ninguém veio falar nada.
M – Nada.
S – Então, eu perguntei a você a função realmente...
M – Nenhuma. Não existe.

O desconhecimento ou talvez as indefinições colocadas a respeito da função da mãe representante pela escola e aceitas pelas mães, soma-se à falta de diálogo ou comunicação com as outras mães. Como Nora ressalta, ela conhece a mãe representante atual só "de cara", seu contato é apenas visual. A falta de diálogo também de parte da escola - que ela espera acontecer, mas aparentemente não procura mobilizar -, leva Nora a definir a função de mãe representante como inexistente.
Diferente de Nora, Susana entende a função da mãe representante da turma de um outro modo, como ela explica,
M – Anos anteriores já teve, eu já fui mãe representante da sala dele, tanto no Jardim e quanto aqui, na X, eu fui mãe representante. Agora esse ano não sei se tem.
S – E qual era a sua função como mãe representante?
M – No X quase não tinha muita participação, não. Mais para os passeios, que aí como mãe representante já tinha um pouco de prioridade, assim, com relação às vagas, aí tinha como ir acompanhando à professora e ela me apresentava: "olha, essa aqui é a mãe representante", você tinha alguma autonomia para entrar em alguns lugares sem nenhum problema. Quando não era mãe representante, de repente tinha alguns lugares que não podia entrar, só a mãe representante, com a professora. Fui em muitos passeios com as crianças. No X, no primeiro ano do G., eu participei de vários passeios com eles, com a professora e os alunos. Foi muito legal. No Jardim de Infância fui em todos os passeios.

A única função específica para a mãe representante explicitada no conjunto das mães foi a de acompanhar a turma nos passeios, que aparece como a única atividade concreta atribuída às mães representantes perante a falta de funcionários para dar esse apoio às docentes. Algumas mães, inclusive, procuram ser incluídas nesta função para poder controlar mais de perto a segurança do próprio filho.
Ao mesmo tempo, as formas de escolha de representante de turma assumem algumas formas indicativas, como conta Patrícia,
M – Eu já fui (...) para mim era ajudar nos passeios ou assistir alguma reunião, assim, com as mães representantes ou em eleição na escola, tem que ter algum responsável, já fui. Essas coisas. Mas eu falei pra ela eu vou ser, aceito, porque ninguém quis, ela me escolheu. Falou, "Por favor". Mas eu falei: "Tudo bem, é um acordo. Eu faço algumas coisas, outras não, por exemplo, eu não vou tipo arrecadar dinheiro com mãe pra fazer um bolo para fazer um presente pra... Não quero" Isso é uma coisa que não é bom, dá sempre um fuxico, tem sempre um mal-estar lá fora, essas coisas de dinheiro, então, isso não. Agora, ajudar, recortar um papel...

Patrícia, segundo as próprias palavras, chega a ser "escolhida" pela professora e aceita, mas propõe um "acordo", buscando não ter que tomar conta de dinheiro. Aparece uma outra função da mãe representante, aparentemente atribuída pelas próprias mães: a arrecadação de dinheiro para algumas comemorações. Essa função, nem sempre bem vista pelas outras mães, gera mal-estar e a circulação de suspeitas sobre a administração dos fundos, dificultando a ação coletiva e remete, assim mesmo, ao individualismo e à fragmentação que é possível perceber no grupo das mães. Pois, a não ser para assumir às vezes sob pressão e como se fosse "de favor", funções solicitadas pela autoridade - cujos conflitos são dirimidos pela mesma -, pareceria que as mães não estão dispostas a "estar prestando contas a ninguém". Isto, num contexto em que a impunidade com relação aos atos de corrupção no manejo da "coisa pública" que se manifesta na sociedade atual espalha uma suspeita indiscriminada sobre aqueles que pretendem assumir cargos de representação coletiva.
A incógnita sobre a função da representante, para além dessas duas atividades (acompanhar nos passeios e arrecadar dinheiro), permanece em aberto. A própria coordenadora pedagógica admite que a função propalada pela escola não é a privilegiada na hora de resolver algum problema:
C – Não, é se as pessoas têm algum problema, alguma coisa, "ah! tem que ter uma reunião com os representantes da turma", aí você vem e depois passa pros pais, entendeu? Tem que ser uma pessoa que esteja sempre presente, que tenha bom relacionamento com os demais pais para poder passar direitinho.
S – Mas, agora, o que eu tenho percebido e você me corrige se não é assim, é que mais do que esse mecanismo é mais fácil, pelo menos é a forma em que vocês atuam, é chamar para reunião quando tem alguma coisa. Vocês terminam optando por chamar a reunião...
C – É, é melhor. Aí chega mais direto, evita passar por outra pessoa.

Nilda, uma mãe, buscando entender quais os sentidos da existência da figura da representante, chega a fazer uma leitura divergente das anteriores,
M – Olha, sobre representante de turma, eu nunca pude assumir um papel desse porque tem que se dedicar, precisa de tempo, eu nunca pude aceitar e também eu vejo, pode ser que eu esteja meio enganada, mas eu percebo que a professora quer tirar uma obrigação dela e passar para a mãe representante
S – Tipo o quê, por exemplo?
M – Qualquer assunto. É assim, você chega lá no finalzinho da saída para falar com alguém e ela fala com você já andando para ir embora e eu, assim, já vi isso acontecer tipo assim: "Ah! Fala com a mãe tal, que ela é a representante" (...) Então eu percebo isso, já percebi que elas têm uma certa obrigação e querem jogar na mãe representante.

Nestes dois últimos depoimentos chama a atenção a necessidade de evitar a mediação implícita na representação. As duas partem do suposto de que o assunto a falar circunscreve-se apenas a questões pessoais relacionadas às crianças, que devem chegar em forma direta ao seu responsável ou professora, evitando "passar por outra pessoa".
A delimitação do conteúdo possível da comunicação a questões pessoais, de certa forma está obviando a integração de outros conteúdos, mais vinculados ao entendimento das escolas como instituições públicas que precisam do debate dos assuntos comuns, como poderia ser o Projeto Político-Pedagógico, a situação orçamentária e infra-estrutural da escola, entre outros assuntos que deveriam chegar, como instância máxima de deliberação e decisão, através das mães representantes de turma, até o CEC. Porém, a julgar pelos depoimentos levantados, não parece ser esse o andamento do CEC nessa escola. Nora, por exemplo, preferiu votar em branco para se resguardar da personalidade da candidata por ela desconhecida:
M – Nem o nome da mulher eu sei.
S – Mas foi e votou.
M – Votei em branco porque eu não conhecia ninguém e votei em branco. E se for uma mãe que eu não gosto?

Entre todas as pessoas entrevistadas, as únicas que declararam conhecer a mãe representante do CEC foram a diretora e a coordenadora pedagógica. Da minha parte, solicitei à diretora algum contato com essa mãe, mas como me foi repetido que as funcionárias de escola não podem passar informações pessoais, fiquei sem a possibilidade de entrar em contato com ela através da instituição. A solução sugerida pela diretora foi que eu ficasse no portão da escola, pois essa mãe costumava aparecer por lá. Porém, após meses de numerosas tentativas e de ficar pedindo informações sobre a representante para todas as mães com as que tive contato, acabei desistindo da busca, assumindo que essa dificuldade expressava a situação em que se encontra o CEC na escola X.
A única das mães entrevistadas que alguma vez teve referência da mãe representante do CEC foi Mariana, mas como ela conta:
M – Mas nunca conheci representante que chegasse pra mim, não sei nem quem era a representante lá, eu acho que teve uma que era M., depois ela passou pra de tarde e não vi mais a M. lá e, mas nunca cheguei nela para falar alguma coisa porque ela logo que foi mãe representante ela passou pra de tarde. Então a gente já não se encontrava mais. E outro representante também não chegou a mim.
S – E você procurou alguma vez por algum assunto?
M – Não, não porque eu ia direto à diretora porque quando vinha algum problema da S.[filha], falado pela S., porque nunca vinha escrito, eu ia direto na diretora, falava com ela...

Mais uma vez, as referências sobre o conteúdo das possíveis conversas entre mães e escola parecem circunscrever-se apenas a "assuntos pessoais" e a distância das mães entre si compromete a comunicação com a representante. A incógnita ou mesmo a diluição da figura da mãe representante do CEC aparece insistentemente e, no caso de Gabriela, chega a confundir-se com a da diretora:
S – E, vem cá, aquela questão de, por exemplo, o Conselho Escola-Comunidade, você sabe alguma coisa disso, participou alguma vez, teve que entrar em contato (...)
M – Não...
S – Você nunca foi votar conselheiro?
M – Não, não... (...) quando falaram que eu tinha que ir para votar na Sandra [diretora] eu nem fui porque eu não ia votar na Sandra mesmo.

Tentei explicar a Gabriela um pouco sobre a existência desse Conselho e ela fez algumas perguntas mais específicas sobre a função, que fui tentando responder, mas ela conclui levantando uma forte suspeita, ao ponto de pensar que a mãe representante poderia estar recebendo dinheiro para ocupar essa função:
M – É a mãe de um aluno? (...) Deve ser coisa de alguém de lá de dentro, menina. Isso aí é furada. Isso é coisa deles, lá dentro. Porque para uma mãe fazer isso, eu acho, né?, deve ganhar alguma coisa.
S – Olha, eu não sei como é a coisa ali, não. Eu não sei...
M – E o colégio também não sabe? (...) Porque ela deve ser alguém lá de dentro, com certeza. Porque se ela assina embaixo, o nome dela deve estar em algum lugar, na Prefeitura, ou em algum lugar, mas deve estar. (parte em off). Se eu quiser falar, como é que eu vou falar com a pessoa, não tem como falar, é o quê? Isso é entre eles? Isso deveria ser tipo assim, no caso isso deveria ser assim, como é que se chama esse pessoal da turma? Tem uma que vigia quando a professora não está. Como é que se chama? Tipo assim, a professora saiu, é aquela pessoa da turma que fica olhando a turma. Como é que se chama? Já não me lembro mais.
S – Inspetor?
M – Não. É um aluno, por exemplo, ela pega a N. e bota a N. para olhar a sala quando ela não estiver.
S – Como a representante?
M – Isso! Representante! No caso, a mulher deveria ser uma representante e todo mundo teria que conhecer ela, a gente deveria ter acesso a ela, que não tem. Para mim, então, já é alguém de dentro do colégio, pode ter certeza disso que é.

Esse depoimento, que confunde várias figuras (inspetor, representante), traz a suspeita indiscriminada de atos de corrupção nos manejos institucionais, que se espalha na sociedade atual a partir da impunidade com que são tratados alguns destes casos nas organizações sociais. A falta de uma ação propositiva mais contundente por parte da escola e das mães acaba por contribuir com a confusão e a suspeita, já que essa omissão passa a ser entendida como falta de transparência.
Estes depoimentos evidenciam como têm sido os processos de construção desses dispositivos nos últimos anos, pois, apesar da ampla reforma legal acontecida que favoreceu a adoção da gestão democrática nas escolas públicas, ao mesmo tempo, implementaram-se várias reformas e programas incoerentes com esses princípios e mais próximas dos novos modelos de gestão empresarial, que também propiciam processos de participação entendidos com outros sentidos e finalidades.
Assim, a retração e a omissão das partes supostamente envolvidas no governo institucional manifesta um manejo do poder no conselho que passa a entendê-lo mais como um organismo auxiliar na gestão escolar do que como promotor da democratização do poder. Situação à que a professora Marcele acrescenta outras observações,
P – É isso, existe no papel, só interessa para as estatísticas, o mesmo o CEC, quem é o CEC? Eu não votei nessas duas últimas eleições, eu não voto, eu não vou ser conivente com isso, eu não sei nem quem é a chapa, não vi ninguém fazer campanha, aí pega determinado aluno: "você vai ser CEC". Então, o funcionário mais tímido, a professora mais tímida, o responsável mais amiguinho, mas não é amigo, porque amigo socorre, mas também.., né? Então não consigo participar disso, entendeu? Eu me sinto mal porque vivo da educação, mas vivo também para a educação. Tem esse lado da sobrevivência, eu dei 4 horas de aula hoje, aí isso me permite chegar no mercado e comprar arroz, feijão, nós temos essa moeda, trabalho pela minha moeda, mas eu trabalho também pela minha moeda maior, que é a moeda de uma sociedade melhor, aí eu me ressinto porque a gente não está investindo muito nessa moeda.

A busca de interlocutores que garantam um "consenso", que sem questionar muito, legitimem as decisões tomadas pela direção, desloca a ênfase da função política do conselho para uma função técnico-procedimental, reforçando a burocracia escolar, tecnificando o diálogo através da organização excessiva da participação das pessoas (SOUZA, 2009: 275).
Nessa linha, os conteúdos que aparecem como possíveis dentro da agenda institucional não ultrapassam as questões pessoais e, com esse argumento, restringem "prudentemente" os canais de comunicação dentro do "sigilo profissional". O diálogo fica delimitado a assuntos de "ordem privada, particular", perante o que cabe a pergunta a respeito de quem trata ou quando e onde são abordados os "assuntos públicos" da escola. Nesse sentido, a seleção das informações para as diferentes interlocutoras precisa ser realizada cuidadosamente, como explica a diretora, quem buscando proteger os alunos e familiares das falações e boatos prefere restringir seletivamente a circulação da comunicação:
S – A sra. tem que me dizer qual é a mãe do CEC que até agora não consegui achar.
D – Fabíola, a tia da... L.
S – Não conheço, não. Eu gostaria de entrevistá-la também. Então é via a mãe do CEC que as famílias participam do PPP.
D – Olha, outra coisa... às vezes a pessoa vem e pede para falar isso, a gente vê como pode resolver aquilo e, às vezes, para não ficar um problema, porque às vezes pode colocar uma coisa que você me falou sobre a sua filha lá, aí se falar, já vai falar para a outra e vira um...
S - ...boato, algo assim.
D – Porque não tem o discernimento que você teria, entende? Porque aí vem: "Viu, Fulana, eu pensava que era boa, agora..." Na reunião do COC a gente chama os pais, mas como tem que falar das crianças, falam, mas depois tem que sair porque se passar alguma coisa errada.

O deslocamento do CEC para o COC - Conselho de Classe no qual se realiza a avaliação de turmas e estudantes individualmente - não é casual porque neste âmbito o conteúdo das discussões continua a centrar-se preponderantemente nos alunos e alunas "em particular". A coordenadora pedagógica, quando indagada sobre o CEC, aponta para uma função que se localizaria na relação entre a escola e as famílias, merecendo, no entanto, tratamento "público":
C – É muito difícil você encontrar uma escola que tenha o CEC funcionando. Acho que só conheci uma na zona oeste. O CEC que tinha lá... Mas estava numa área militar, quem estudava lá era filho de militar, então a postura é diferente. Então nós tivemos três alunos problemas na minha escola, o tempo inteiro, então o CEC se reuniu porque estavam fazendo muita besteira e botaram os alunos pra fora. Isso em 97, mas hoje em dia você não tem isso, não. Não conheço nenhum CEC muito atuante.(...) mas quando tem um problema sério, a gente chama o CEC. O CEC tem que comparecer, quando é um problema sério.
S – Tipo o quê?
C – Deixa eu ver... Algum problema assim, grave...
S – E o que seria um problema muito grave?
C – Alguma agressão forte, alguma queixa muito séria que houve dessa mãe, desse aluno, algum problema entre professor-aluno, essas coisas assim, aí intervém o CEC, a prestação de contas o CEC tem que estar junto, entendeu? São questões assim, mais sérias mesmo, não coisas corriqueiras, se não, a pessoa já não gosta de ser, aí fica chamando toda hora, ninguém vai querer ser.

Essa função disciplinária do CEC, que não consta na legislação pertinente, parece não ser exclusividade da escola X. Mais uma vez, o entendimento do CEC como um organismo auxiliar na gestão escolar – neste caso, da disciplina – concorre para aliviar a pressão sobre o dirigente escolar, que costuma ser elevada em casos extremos como a sanção de estudantes. Desta forma: "Dividir as responsabilidades ou, se possível, transferi-las integralmente a um organismo coletivo, como o conselho, parece ser uma saída interessante na visão dos dirigentes escolares" (Ibidem: 280).

Desafios à participação e à representatividade na escola.

Enquanto a indefinição e a incompreensão sobre a função e o sentido da representação comunitária e a técnico-burocratização dos dispositivos democratizadores se instaura nas escolas e na sociedade, o debate sobre as formas de governo institucional nem sempre acontecem. No suposto de que todos entendem um mesmo conceito de democracia, como "lugar comum", e perante as permanentes urgências cotidianas colocadas pela sobrevivência, o velho mistura-se com o novo. Ressurgem velhos tipos de lideranças e de construção do coletivo social sob as marcas de uma nova contratualização que
é, enquanto contratualização social, um falso contrato, uma mera aparência de compromisso constituído por condições impostas sem discussão ao parceiro mais fraco no contrato, condições tão onerosas quanto inescapáveis. Sob a aparência do contrato, a nova contratualização configura a reemergência do status, ou seja, dos princípios de ordenação hierárquica pré-moderna onde as condições das relações sociais estavam diretamente ligadas às posições das partes na hierarquia social. (SANTOS, 1999: 96):

No marco desta nova contratualização social, os gestos apáticos e a inércia das rotinas administrativas e condutas sócio-políticas contribuem com situações que tendem a restringir as margens de manobra nas organizações. Isto pode ser entendido, em parte, devido a que assim como foram instituídos esses dispositivos democratizadores nas escolas, pelo outro lado, pouco ou nada se fez para, ao mesmo tempo, desarticular os dispositivos autoritários, tão presentes nas nossas instituições educativas. Essa situação, portanto, coloca muitos diretores e diretoras em encruzilhadas de difícil resolução, tendo que decidir cursos de ação em meio a dispositivos institucionais contraditórios.
Desta forma, antes que formas transicionais, as dinâmicas estabelecidas encontram-se em estreita vinculação com a correlação de forças dada entre os diferentes atores sociais envolvidos, direta ou indiretamente, tanto na questão educacional quanto social. Os desafios colocados para a escola são diversos. Partem, no meu entender, de recolocar a discussão sobre a gestão democrática no contexto atual, que se torna texto permanentemente nas escolas. Instituir práticas mais democráticas nas escolas, como tem ficado em evidência, não depende apenas do dispositivo legal.
Como enfrentar e desarticular os dispositivos autoritários ao interior da instituição escolar? É isso possível no atual contexto político, marcado pelo estabelecimento de vínculos delegativos entre cidadãos e governantes? É possível construir uma outra representação política, tanto nas macro-instituições políticas quanto nas escolas?
Apostar na participação, no diálogo e na construção de propostas coletivas, no entanto, pode partir de considerar os problemas que vivenciamos nos espaços comuns – muitos deles recorrentes no cotidiano dos diferentes sujeitos participantes - não apenas como problemas individuais, domésticos ou particulares, mas, como assuntos públicos, que merecem fazer parte da agenda institucional.

Bibliografia.

FONSECA, D. M. Gestão e Educação. In: Fonseca, D. M. (org.) Administração Educacional: um compromisso democrático. Campinas – SP: Papirus, 1994.
SANTOS, B. S.. Reinventar a democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. (orgs.). Os sentidos da democracia do dissenso e hegemonia global. NEDIC. Petrópolis, RJ : Vozes, Brasília : NEDIC, 1999.
SOUZA, Â. R.. Conselho de Escola: funções, problemas e perspectivas na gestão escolar democrática. In: Perspectiva, Florianópolis, v. 27, n. 1, 273-294, jan./jun. 2009. Disponível em: http://www.perspectiva.ufsc.br. Acessado em maio de 2010.
TOURAINE, A. ¿Qué es la democracia? Madrid: Librairie Arthème Fayard & Ediciones Temas de Hoy, 1994.


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