Reprodução e Produção Reflexiva: números de um Brasil menos fecundo

July 19, 2017 | Autor: Marcia Agostinho | Categoria: Economics, Complexity Theory, Production and Society
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Revista Interdisciplinar da Universidade Veiga de Almeida ISSN: 14148846

Reprodução e Produção Reflexiva: números de um Brasil menos fecundo

Marcia Esteves Agostinho1 Alyne Lopes2

Resumo O presente trabalho tem por objetivo explorar a relação entre a acelerada queda da taxa de fecundidade e o fenômeno da intelectualização da produção no Brasil - ambos expressões da capacidade reflexiva humana, potencializada com o alargamento da educação. Com base em dados quantitativos levantados pelo IBGE e em pesquisas qualitativas encontradas na literatura especializada, mostra-se como uma população mais instruída influencia tanto a produção econômica quanto a reprodução biológica. Mais educadas, as mulheres perceberam que eram competitivas no mercado de trabalho, mas que precisavam gerenciar sua fecundidade. A redução da taxa de fecundidade emerge, então, como uma resposta adaptativa das mulheres às pressões de uma organização do trabalho moldada para o homem. Palavras-chave: Taxa de fecundidade; Intelectualização da produção; Organização do trabalho.

Abstract This study aims at exploring the relationship between the rapid decline in the fertility rate and the phenomenon of intellectualization of production in Brazil. Both of them are expressions of the human capacity for reflection, enhanced with the expansion of education in this country. Based on data collected by IBGE and also on quantitative and qualitative studies found in literature, it is shown that a more educated population influences both economic production and biological reproduction. Once more educated, women realized that they were competitive in the labor market. However, they needed to manage their fertility. As a consequence, the reduction of fertility rates emerges as an adaptive response to pressures from a work organization which has been shaped to men. Keywords: Fertility rate; Intellectualization of production; Work organization.

1

Doutora em Engenharia de Produção pela COPPE/Universidade Federal do Rio de Janeiro (2001) e Mestre em Engenharia de Produção, pela mesma universidade (1994). Graduou-se em Engenharia Química pela Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro (1989). Tem experiência na área de ensino e pesquisa em Engenharia de Produção, com ênfase em Sistemas Organizacionais - [email protected] 2 Engenheira de Produção - [email protected]

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Introdução As últimas décadas têm testemunhado dois fenômenos que sinalizam a modernidade do Brasil. O primeiro deles é o crescimento do que podemos chamar de um processo de “intelectualização da produção” (VALLE, 1996), o segundo é a queda da taxa de fecundidade que atingiu o patamar europeu de menos de dois filhos por mulher (IBGE, 2010).

Certamente, ambos estão relacionados ao crescimento econômico e à

predominância do padrão de vida industrial-urbano. Tais fenômenos expressam, porém, mais do que isso, a capacidade reflexiva humana, potencializada com o alargamento da educação escolar e o desenvolvimento dos meios de comunicação. Tal qual vem ocorrendo com outros países emergentes, a sofisticação tecnológica da produção cria um mercado de trabalho cada vez mais exigente em competências adquiridas por meio da educação formal. E esta, por sua vez, ao ser recompensada com níveis salariais mais altos e, em muitos casos, com ascensão social, tende a ser almejada por todas as classes sociais. Uma população mais instruída e conectada não influencia apenas a produção econômica, mas também a reprodução biológica, a qual deixa de ser uma questão de destino para se tornar uma escolha. A educação abre caminho para a “reflexividade”, que no atual estágio da Modernidade, assume a conotação de “uso regularizado de conhecimento sobre as circunstâncias da vida social como elemento constitutivo de sua organização e transformação” (GIDDENS, 2002, p.26). Neste contexto, é possível ir além da ideia de “intelectualização da produção” – relacionada à introdução da microeletrônica e da mudança nas relações de trabalho – e pensar em termos de uma produção reflexiva. Esta expressão pretende ressaltar a importância do trabalhador como sujeito reflexivo, inseparável de sua condição de cidadão. Tal inseparabilidade abre espaço para as escolhas que este sujeito faz em relação, inclusive, à sua reprodução. Levando em conta as mudanças econômicas, sociais e demográficas ocorridas no Brasil nas últimas décadas, o presente trabalho tem como objetivo explorar a relação entre produção reflexiva e reprodução, no momento em que o país alcança uma taxa de fecundidade inferior à de reposição da população. Os dados quantitativos aqui apresentados foram levantados pelo IBGE, em sua maioria na PNAD (Pesquisa Nacional de Domicílios) Janeiro/Junho de 2014 – pág.56

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de 2009. Com a intenção de compreender melhor os comportamentos humanos que levam aos números agregados presentes nas estatísticas, recorreu-se a pesquisas qualitativas encontradas na literatura especializada.

Mulher e produção Até meados do século XX, o lar era o domínio primordial das relações produtivas femininas. Seguindo o padrão de muitas sociedades tradicionais, a sociedade brasileira seguia a prática de manter a mulher em casa e o homem na rua. Antes que a industrialização e, junto com ela, as grandes metrópoles viessem a fazer parte da realidade do país, havia poucas alternativas aceitáveis para a mulher da classe média que quisesse trabalhar fora.

As principais eram ser professora, enfermeira ou

secretária. A primeira destas ocupações era quase uma unanimidade para as “moças de família”, já que as professoras precisavam ter contato apenas com crianças e outras mulheres, diminuindo o risco de que fossem “difamadas”. Enquanto as mulheres das classes média e alta podiam sobreviver exclusivamente na esfera da vida privada, as mais pobres e menos instruídas precisavam se submeter à “ameaça à honra feminina representada pelo mundo do trabalho” (RAGO, 2004, p.585). Presença marcante na nascente indústria da década de 1920, às mulheres – em grande parte, imigrantes europeias – cabiam tarefas não especializadas e mal remuneradas. Concentravam-se especialmente na indústria de fiação e tecelagem, enquanto os homens predominavam em ramos industriais mais modernos. Àquelas que não queriam se submeter às precárias e abusivas condições de trabalho das fábricas, restava pouca coisa além de se tornarem lavadeiras ou empregadas domésticas. Muitas mulheres, inclusive viúvas ou solteiras da classe média, trabalhavam em casa como costureiras para alfaiatarias. Entretanto, tal fonte de remuneração só era uma possibilidade para aquelas que tinham a competência técnica necessária. A partir da década de 1920, quando os argumentos de eficiência do taylorismo trouxeram melhores condições de trabalho para as fábricas do Brasil, os homens passaram a predominar na indústria. “Assim, enquanto em 1872 as mulheres constituíam 76% da força de trabalho nas fábricas; em 1950, passaram a representar apenas 23%” (RAGO, 2004, p.582).

No mesmo período, a industrialização crescia, substituindo produções antes Janeiro/Junho de 2014 – pág.57

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realizadas em domicílio, tais como a de pães, doces e vestuário. Além de provocar uma desvalorização das atividades domésticas, a concorrência com a indústria viria a comprometer uma importante fonte de remuneração feminina. Por boa parte do século XX, a questão do trabalho feminino foi mediada por duas visões: uma, segundo a qual a mulher precisa trabalhar para sobreviver e ajudar sua família, justificava a exploração das mulheres pobres – principalmente mães, e outra que, por valorizar a maternidade e sua função como formadora dos futuros cidadãos, mantinha a mulher em casa, protegida das ameaças à moralidade presentes no mundo do trabalho. Ambas, porém compartilhavam a relevância que dão à reprodução. A ascensão da classe média nos anos 1950 marcou bem a diferença entre os dois tipos de mulher. Uma é a pobre e, de seu trabalho braçal e mal remunerado, depende o sustento da família. Outra pertence à classe média e tem como missão preparar-se para ser boa mãe e boa esposa e, de seu desempenho doméstico, depende o sucesso de seu marido – o “chefe da família”. Tal cenário começa a mudar quando, por volta dos anos de 1960, juntamente com o surgimento da pílula como alternativa anticoncepcional, ocorre a ampliação do sistema educacional, incorporando parcelas crescentes da população, tanto masculina quanto feminina. Mais instruída e dotada de meios modernos de gerenciamento da fecundidade, a mulher inaugurou o século XXI com forte participação no mercado de trabalho.

É

interessante notar como decisões íntimas se refletem em números agregados. Em 1950, as mulheres tinham em média seis filhos (SILVA; BARBOSA, 2006, p.42) e elas representavam apenas 14,7% da população economicamente ativa (valor calculado a partir de dados apresentados por CARDOSO, 2006, p.266-267). Em 2009, porém, a taxa de fecundidade no Brasil já havia caído para 1,94 filhos por mulher (IBGE, 2010, p.43) e elas passavam a somar 43,9% das pessoas economicamente ativas (IBGE, 2009, p.130). Observando a relação entre taxa de fecundidade e o grupo de anos de estudos das mulheres, nota-se que o padrão regional é muito semelhante e que, apesar de todas as diferenças econômicas e culturais, de norte a sul, quanto mais alto é o nível de escolaridade, menos filhos se têm. Segundo dados do IBGE (2010, p.43), a taxa de fecundidade para mulheres com até sete anos de estudo é 3,19 filhos por mulher, enquanto entre aquelas com mais de oito anos de estudo, esta taxa se reduz a 1,68. Nos extremos, estes números Janeiro/Junho de 2014 – pág.58

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corresponderiam respectivamente a 3,00 e 1,60 para o sudeste, e 3,61 e 1,97 para a região norte. Em outras palavras, a taxa de fecundidade relativa às mulheres mais instruídas é inferior a de países como Estados Unidos ou Islândia, onde esta taxa é, respectivamente, 2,0 e 2,1 (GORNEY, 2011, p.84). Sinais de um Brasil moderno, reflexivo, aparecem também na distribuição da presença dos sexos por setor de atividade. A tabela 1 mostra que 40,3% dos homens estão ocupados em atividades como agricultura, construção e transporte, enquanto uma proporção equivalente das mulheres (39,6%) dedica-se a serviços domésticos e de educação e saúde. Tais atividades formam dois grupos de setores tradicionais da economia, em que a divisão sexual do trabalho torna-se evidente.

Entretanto, os dados revelam outro grupo de

atividades – características de sociedades modernas – em que é mais visível o fenômeno de intelectualização.

Este grupo, que compreende indústria, comércio e alojamento e

administração pública, responde pela ocupação de proporção semelhante de homens (43,3%) e mulheres (39,1%). É interessante notar, assim, que as atividades em que há maior demanda por escolaridade não privilegiam qualquer um dos sexos. É de se supor, portanto, que conforme a sociedade brasileira se moderniza – aumentando a participação de setores mais marcados por uma produção reflexiva – as relações entre homens e mulheres tenderiam a se tornar mais simétricas.

Setor de atividade econômica

Homem (%)

Mulher (%)

Agricultura

20,5

12,2

Construção

12,6

0,5

Transporte e comunicação

7,2

1,5

Serviços domésticos

3,9

22,9

Educação e saúde

3,9

16,7

Indústria

16,2

12,7

Comércio e alojamento

21,7

21,6

Administração Pública

5,4

4,8

Outros

8,6

7,1

100,0

100,0

Total

Fonte: Adaptado de DIEESE, p.47 (2011) Tabela 1 – Distribuição dos sexos por setor de atividade

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Apesar da clara penetração da mulher em ocupações mais valorizadas, a maternidade ainda impede que seu sucesso profissional seja igual ao do homem. Conforme ilustram pesquisas qualitativas (PORTELLA et al., 2008), grande parte das gestações são indesejadas e a principal justificativa, além da falta de condições financeiras, é o medo de a gravidez levar à perda do emprego. Ainda que tais resultados se refiram a mulheres de classes sociais mais baixas, a mesma relação entre maternidade e comprometimento da carreira é percebida entre mulheres com melhor condição financeira. Haja vista que as universitárias tendem a adiar a fecundidade, considerando 30 anos a idade ideal para ser mãe (PIROTTA, 2008). Vale, então, avaliar como a simetria entre os sexos – supostamente presente entre as classes mais instruídas – se manifesta na gestão da fecundidade. Homem e reprodução A expansão do ensino universitário iniciada na década de 1970 pode ser vista como um ponto de ruptura no tradicional padrão de relações entre homem e mulher. O convívio em sala de aula fez cada vez mais os homens questionarem se, de fato, “as mulheres eram menos racionais” (RAGO, 2004, p.589). Na esfera profissional, eles também começaram a desconfiar que algum valor elas deveriam ter, já que disputavam com eles os cargos que exigiam mais instrução. Certamente, essas inferências não podem ser retiradas de dados quantitativos como, por exemplo, os que mostram que, em 2009, 17,0% das mulheres e 16,1% dos homens nas regiões metropolitanas tinham nível superior, completo ou incompleto (DIEESE, 2011) ou que 65% das famílias com filhos até 14 anos, marido e mulher trabalham fora (IBGE, 2010, p.188). Contudo, pesquisas qualitativas trazem colorido aos números e permitem compreender um pouco como a prática social tem tornado as relações entre homem e mulher mais simétricas – ao menos nos meios mais instruídos. Se quase 18 milhões de famílias lidam com o problema de com quem deixar os filhos, a inserção da mulher no mercado de trabalho transforma a reprodução em um assunto também masculino.

Espera-se, então, poder observar aí uma mudança no

comportamento do homem em relação à mulher.

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Entrevistando homens da classe média paulistana, todos com curso superior, Oliveira et al. (2008) exploraram como homens de duas gerações distintas encaram a reprodução e sua capacidade de nela interferir. É curioso notar que a tão propalada pílula só é utilizada pelas parceiras de seis dos 40 entrevistados, enquanto o preservativo é utilizado por 15 deles. Tais resultados diferem daqueles obtidos de pesquisas com mulheres, e de extratos sociais diversos (DIEESE, 2011), que apontam a pílula como o método mais usado (22,1%), enquanto o preservativo e a vasectomia – métodos considerados masculinos – são empregados em apenas 12,9% e 3,3%, respectivamente. Oliveira et al. (2008, p.287) destacam que “5 dos homens da geração mais madura fizeram vasectomia e outros 5 afirmam que fariam. Na geração mais jovem, há um vasectomizado e outros 11 afirmam que se submeteriam a uma vasectomia, ainda que alguns ponderem sobre as implicações de uma solução definitiva. De fato, chama a atenção a prevalência, em ambas as gerações, de métodos que supõem a participação dos homens e mesmo a negociação com suas parceiras.” Sugere-se, então, que atualmente, nas camadas sociais mais intelectualizadas, os homens teriam mais oportunidades de convivência com mulheres com o mesmo nível de escolaridade, fazendo com que “a força dos conteúdos naturalizados dos gêneros acabe por atenuar-se” (OLIVEIRA et al., p.288). Conforme diminui o espaço para justificativas com viés biológico para a divisão de papéis entre os gêneros, tenderia a crescer a empatia entre homem e mulher, levando à aproximação de seus interesses. Família e reflexividade Enquanto nas camadas mais pobres a gestação parece ser uma consequência da sexualidade – e com a qual a mulher deve arcar –, na classe média ter filhos faz parte de um projeto de vida, frequentemente compartilhado pelo casal. Esta capacidade de planejar o futuro, colocando-se na balança o papel do trabalho e da família, pressupõe o desenvolvimento de uma capacidade reflexiva dificilmente alcançada sem a contribuição da educação e dos meios de comunicação. Embora a queda da fecundidade seja anedoticamente atribuída à introdução da pílula anticoncepcional, na visão de Portella et al. (2008), o menor número de gestações e de gestações indesejadas estaria mais relacionada à interação entre escolaridade e renda do Janeiro/Junho de 2014 – pág.61

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que à oferta de serviços de saúde e contracepção. Vale lembrar que o Sistema Único de Saúde e a pílula estão disponíveis para mulheres de qualquer nível de instrução. Mesmo assim, em qualquer região, mulheres com mais de 8 anos de escolaridade têm quase dois filhos a menos do que aquelas que estudaram menos. A expansão da educação no Brasil a partir da década de 1960 fica evidente através dos dados sobre novos ingressos no sistema educacional. Observa-se que, entre os anos de 1960 e 1998, o número de matrículas no ensino fundamental e médio, respectivamente, quintuplicou e sextuplicou. O ensino superior evidencia mais ainda esta expansão, com o número de matrículas tendo aumentado 21 vezes no mesmo período (HASENBALG, 2006, p.106). Por sua vez, o ingresso da mulher no mercado de trabalho, juntamente com o crescimento da classe média ocorrido nas últimas décadas, representam uma melhora na renda. Entretanto, esta melhora é restringida pelo desafio que cada mulher enfrenta de equacionar o cuidado com a família. Segundo dados do IBGE (2010, p.257), em 2009, as mulheres trabalharam em média 36,5 horas por semana, enquanto os homens trabalharam 43,9 horas, recebendo, respectivamente, R$ 23,60/h e R$ 27,75/h. A questão do trabalho feminino não ser tão bem remunerado quanto o masculino não deve ser considerado de um ponto de vista simplificador, como se fosse um caso de “injustiça” ou de “preconceito” contra a mulher. É preciso levar em conta que a vitimização da mulher, além de não contribuir para a mudança deste quadro, ignora sua capacidade de ação autônoma. A mulher, uma vez sendo a “cuidadora” do grupo familiar, lida continuamente com o dilema entre trabalho e família. As quase 8 horas que trabalha a menos do que o homem devem-se à sua escolha (mesmo que, algumas vezes, inconsciente), como uma maneira de equilibrar carreira e vida doméstica. Tanto para homens quanto para mulheres, o rendimento do trabalho está ligado a duas variáveis, fundamentalmente: escolaridade e disponibilidade. Quanto mais alto o cargo – e, portanto, o rendimento associado – maior a demanda por escolaridade. Porém, ainda maior é a pressão por disponibilidade, tanto de tempo quanto de atenção. Nos últimos anos, o nível de escolaridade da mulher superou o do homem.

Entre os

trabalhadores formais, as mulheres têm em média 10,6 anos de estudo, enquanto seus colegas rapazes ficam apenas 9,2 anos na escola (IBGE, 2010, p.256). Contudo, embora a Janeiro/Junho de 2014 – pág.62

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variável escolaridade seja uma vantagem competitiva para a mulher, a variável disponibilidade, por outro lado, restringe fortemente seu sucesso profissional. Tendo que arcar com as responsabilidades da casa, tanto operacionais quanto afetivas, a mulher tende a abrir mão de cargos em que o retorno financeiro mais alto venha à custa do desempenho de seu papel tradicional. A redução da taxa de fecundidade reflete, então, uma resposta adaptativa das mulheres às pressões de uma organização do trabalho moldada para o homem. As menos instruídas demoram mais a perceber a vinculação entre o número de filhos e a renda, justificando os esforços contraceptivos pelo custo necessário para manter a prole. Para aquelas mais escolarizadas e “conectadas” – geralmente pertencentes à classe média ou à elite econômica – a decisão de reduzir o número de filhos, ou mesmo de não os ter, é expressão de sua autonomia e do desejo de construir seu futuro. Ambas as mulheres, ainda que menos ou mais reflexivas, percebem o conflito existente entre trabalho e vida doméstica. E, na impossibilidade de mudar as regras que regem o mundo do trabalho, elas tentam criar novas regras para suas vidas.

Tipo de arranjo familiar

Ocorrência (%)

Parcela com rendimento inferior ao patamar de pobreza (%)

Mulher sozinha

5,9

11,0

Homem sozinho

5,6

12,7

Mulher sem filhos, com agregados

2,8

24,8

Homem sem filhos, com agregados

1,5

15,5

Mulher com filhos, sem cônjuge

17,3

46,4

Homem com filhos, sem cônjuge

2,2

35,5

Casal sem filhos

17,4

19,0

Casal com filhos

47,3

39,9

Total

100,0

28,2

Fonte: Adaptado de IBGE, p.132 (2010) Tabela 2 – Arranjos familiares por rendimento familiar per capita – Brasil – 2009

A tabela 2 permite que se perceba o quanto pode ser racional buscar reduzir a fecundidade, caso o critério que se queira maximizar seja o rendimento familiar per capita. Janeiro/Junho de 2014 – pág.63

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De acordo com os dados apresentados, qualquer arranjo familiar que incorpore filhos representa um rendimento inferior ao equivalente “sem filhos”. Este padrão não pode ser explicado apenas por uma razão aritmética – a renda familiar seria dividida por mais pessoas, apesar de grande parte dos filhos não contribuir para a geração da mesma. As mulheres sem cônjuge ilustram como a relação entre arranjo familiar e rendimento pode estar muito relacionada à escolaridade e à disponibilidade para o trabalho. Em um extremo, está a mulher que cria os filhos sem um cônjuge, a qual representa 17,3% dos lares brasileiros. Quase metade delas (46,4%) está abaixo do patamar de pobreza (definido como 60% da mediana do rendimento nacional, o que em 2009 era de R$279,00 per capita), o que as coloca na pior situação financeira de todas. No outro extremo, na melhor situação estão as mulheres sozinhas, que respondem por 5,9% dos domicílios do Brasil. É o grupo com a menor parcela de pobres ou indigentes – apenas 11,0% – sendo inferior, inclusive, ao percentual de homens sozinhos (12,7). Tal comparação demonstra que, provavelmente, o que mais dificulta a ascensão econômica da mulher é a sua função de “cuidadora”, ao reduzir sua disponibilidade para o trabalho. Não é apenas a maternidade que reduz seus rendimentos, mas também a responsabilidade pelo cuidado de parentes. Nota-se que os 11% relativos às mulheres sem filhos sobem para 24,8%, caso elas morem com algum agregado. Em contraste, quando é o homem que vive com outros parentes, apenas 15,5% podem ser considerados pobres. É de se imaginar que, estes homens, embora tenham que arcar com o custo financeiro adicional, a presença de um parente em casa pode não significar diminuição de sua disponibilidade. Ao contrário, se ele viver com a mãe ou com uma irmã, é possível até que sua disponibilidade para o trabalho aumente, já que elas cuidariam do lar. Do ponto de vista masculino, este arranjo parece melhor financeiramente do que o casamento, já que entre os casais sem filhos, 19% estão abaixo da linha de pobreza. Imaginando-se que a fecundidade e a família sejam regidas por escolhas racionais – que priorizam a inserção em um mercado de trabalho organizado para manter o isolamento entre as esferas públicas e privadas –, é compreensível que se tenha menos de 2 filhos e que se decida não casar. Esta tendência se evidenciou entre 1999 e 2009, quando ocorreu uma diminuição na proporção de casais com filhos de 55,0% para 47,0%, e também na de casais

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totais, passando de 68,3% para 64,4% (IBGE, 2010, p.100). A questão que se coloca, então, é: qual o preço que a separação entre a eficiência e o afeto cobrará?

Conclusão O presente trabalho procurou relacionar a acelerada queda da taxa de fecundidade no Brasil ao fenômeno da intelectualização da produção, ambos sinais de uma “Modernidade reflexiva”. Argumentou-se que, ao responder às demandas produtivas por mais competências, a sociedade brasileira entrou em um intenso processo de mudança cultural, alavancado pela expansão do sistema educacional. Mais instruídas e reflexivas, as mulheres perceberam que eram competitivas no mercado de trabalho, mas que precisavam gerenciar sua fecundidade. Os homens, por sua vez, puderam aprender no convívio com colegas de escola ou de trabalho que as mulheres eram seres racionais – e competentes. Na aproximação entre homem e mulher na esfera pública, surgiram novas formas de conduta na esfera do privado. Família tornou-se um assunto de ambos e a formação de arranjos – que variam do casal com filhos ao indivíduo vivendo sozinho em um domicílio – deixou de ser destino e virou escolha. Embora os indivíduos tenham mudado, a organização do trabalho permanece praticamente inalterada.

Moldada para um perfil de trabalhador com disponibilidade

máxima – talvez ainda influenciada por uma cultura escravagista – não é capaz de se adequar as restrições de um trabalhador que seja também “cuidador”, que não se dedique exclusivamente ao trabalho. Estabeleceu-se, assim, uma divisão de papéis bem definida: o homem, provedor, no trabalho; e a mulher, cuidadora, em casa. Entretanto, hoje as relações estão cada vez mais fluidas e os papéis sociais mais nebulosos. Além do que, com uma população de homens e mulheres mais educados, o trabalho deixa de ser apenas fonte de sustento e passa a ser também fonte de sentido. Poucos são os que querem abrir mão de uma atividade realizadora, mesmo que já tenham sua subsistência garantida. Ao mesmo tempo o que será daqueles que, em prol da carreira, abrem mão da maternidade – ou da paternidade? Com quem compartilhar o sucesso e as realizações, se palavras como “irmão” ou “tio” desaparecerem do dicionário?

Ainda haverá sentido quando o afeto for

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racionalizado e cuidado com as poucas crianças e os inúmeros idosos for delegado a serviços institucionalizados? Em uma sociedade em que o tempo tornou-se bem escasso frente à tamanha variedade de atividades que se oferecem, não parece justificável dedicar 12 horas por dia a trabalho e deslocamento. Injustificável também parece ser manter os sistemas produtivos operando em ritmo tão intenso para produzir bens e serviços de que as pessoas não precisam e que o próprio planeta não sustenta. Resta saber, então, o que falta para as organizações romperem a inércia e começarem a adaptar a organização do trabalho à realidade da sociedade atual. O que falta para deixar a máquina parar de rodar a todo vapor? Referências CARDOSO, A. Sindicalismo Trabalho e Emprego. In: Estatísticas do Século XX. Rio de Janeiro: IBGE, p.247-286, 2006. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/seculoxx/seculoxx.pdf. Acesso: 12/06/2012 DIEESE. Anuário das mulheres brasileiras. São Paulo: DIEESE, 2011. GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. GORNEY, C. Brasil: la hora de la mujer. National Geographic España, p. 60-85, set. 2011. HASENBALG, C. Estatísticas do Século XX: Educação. Rio de Janeiro: IBGE, p.89-110, 2006. IBGE. Pesquisa Nacional por amostra de domicílios: Síntese de indicadores sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_si ntese_2009.pdf. Acesso: 12/06/2012 IBGE. Síntese de indicadores sociais: Uma análise das condições de vida da população brasileira 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. Disponível em: http://www.sepm.gov.br/noticias/documentos1/SintIndicadoresSociais_2010_Embargo.pdf. Acesso: 12/06/2012 OLIVEIRA, M. et al. Homens e anticoncepção: um estudo sobre duas gerações masculinas das “camadas médias” paulistas. In: MIRANDA-RIBEIRO, P.; SIMÃO, A. (Orgs). Qualificando os números: estudos sobre saúde sexual e reprodutiva no Brasil. Demografia em debate, v.2, Belo Horizonte: ABEP; UNFPA, p. 275-312, 2008. PIROTTA, K. Juventude, gênero e saúde: um estudo com alunos da REDE Estadual de Ensino Público de Santos, São Paulo, 2007. In: MIRANDA-RIBEIRO, P.; SIMÃO, A. (Orgs). Qualificando os números: estudos sobre saúde sexual e reprodutiva no Brasil. Demografia em debate, v.2, Belo Horizonte: ABEP; UNFPA, p.233-258, 2008. Disponível em: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/demografia_debate.pdf. Acesso: 12/06/2012 PORTELLA, A. et al. Contracepção e planejamento reprodutivo na percepção de usuárias do Sistema Único de Saúde em Pernambuco. In: MIRANDA-RIBEIRO, P.; SIMÃO, A. Janeiro/Junho de 2014 – pág.66

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