Resenha: A garota dinamarquesa

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cinema

A GAROTA DINAMARQUESA 119 min – EUA, 2015 Direção: Tom Hooper Elenco: Eddie Redmayne, Alicia Vikander, Ben Whishaw

“Quero ser uma mulher...” Realizado com base na história real da primeira cirurgia de redesignação sexual da história, filme – sem homens como protagonistas – evoca discussão sobre afetos, sublimação e constituição do sujeito por Pedro Ambra

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ma transformação inimaginável, ce servir para relançar alguns probleEiner antecipa Lili mas que pouco a pouco torna-se Se hoje tal procedimento é de como uma unidade mas. evidente, necessária e inevitável. É esse baixo risco, na época suas chances de completa, com o mote que guia a trama de A garota fracasso eram altíssimas. Paradoxaldinamarquesa, dirigida por Tom Hoper. mente, a sobrevivência de Lili poderia sonhos, desejos e Na história, Gerda (Alicia Vikander) e implicar em sua morte. Igualmente, gostos distintos. Einer (Eddie Redmayne), um feliz casal graças à organização política, pessoas E a partir dessa de pintores na Dinamarca do período trans podem hoje encontrar certo representação de entreguerras, tem uma vida a dois que amparo e trocas de experiências e se pode chamar de estável. Tudo muda saberes entre si, o que não era o caso um outro em si após uma brincadeira: Einer traveste-se nos anos de 1920. de mulher e assume o nome de Lili, para mesmo, não há mais Essa diferença serve para destacar volta, funda-se uma o papel central de Gerda, que mesmo acompanhar Gerda em um baile sem ser notado. Esse ato funda uma nova nova subjetividade sabendo que tal caminho implicaria subjetividade e, a partir de então, é Lili no fim de seu casamento, apoia inquem rouba a cena. E, graças à impressionante atuação de condicionalmente Lili na busca por sua identidade e por Redmayne, demonstra que é Einer na verdade a farsa. sua nova vida. Lembremos aqui que o simples fato de Um dos méritos do filme, embasado em uma história uma narrativa se desenrolar majoritariamente entre duas real, é justamente conduzir a narrativa problematizando mulheres já coloca a produção dentro de uma minoria não apenas a experiência de Lili, mas a reação que ela de filmes que não tem homens como protagonistas, o provoca nos amigos, na própria esposa, no contexto que é ainda novo para Hollywood. Tal assimetria é temapúblico, na medicina. O drama encontra seu ápice ao tizada diretamente no filme na medida em que mostra aventar-se a possibilidade da realização de uma cirurgia as dificuldades que Gerda, por ser mulher, encontrava de redesignação sexual – a primeira na história – por para viver de sua arte, ao passo que o (então) marido meio da qual Lili estaria livre do último elo com Einer. Einer, gozava de um sucesso retumbante. No entanto, A escolha de empreender uma produção de grande sua situação muda, ao usar Lili como modelo: sua relaporte como essa, ambientada há quase um século, pareção migra da cama para a tela, evocando uma imagem

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divulgação

acabada de uma das versões freudianas da sublimação, processo psíquico no qual se abre mão de uma satisfação sexual direta em benefício de uma atividade cultural. Gerda conhece assim um sucesso inesperado a partir dos retratos que pinta de Lili, ao passo que esta se recusa a (voltar a) pintar: “Quero ser uma mulher, não uma pintora”, diz. O sucesso do filme mede-se em grande parte pelo momento de seu lançamento. As questões trans estão na pauta do dia do debate público, ainda que em larga medida como uma resistência por parte daqueles que as consideram secundárias ou ameaça à “família”. Mas tais reações só mostram a força do que já pode ser chamado de quarta onda do feminismo e que parece ter vindo para ficar: uma organização horizontal de mulheres que consideram questões trans, de raça e classe econômica, utilizando a internet como meio de difusão e debate de suas ideias. Seja nas escolas ou nas empresas, nas universidades ou nas ruas, questões que eram inviáveis no passado hoje ganham espaço e ajudam a formar o ambiente ideal para a recepção de um filme como esse. É claro que a temática não é nova no cinema. Lembremos de Transamérica (2005), de XXY (2007) e de diversos filmes de Pedro Almodóvar sobre a temática já na década de 80. Mas pela primeira vez ela encontra tanto uma bilheteria quanto uma narrativa para o grande público. E tal mudança faz parte de um quadro maior: a escolha

pelo protagonismo feminino e negro em Star Wars (2015), o drama Carol (2015), bem como a aclamada primeira temporada da série Jessica Jones (2015) – para muitos uma grande metáfora de uma forma contemporânea da dominação masculina e suas formas de resistência – mostram que a indústria cinematográfica está atenta para os novos interesses do público. A polêmica envolvendo a não indicação de atores negros ao Oscar em 2016 é um indicativo dessa mudança. Lili é uma mulher à frente do seu tempo tanto no sentido de vanguarda social quanto da antecipação do sujeito, tal como a psicanálise a concebe. Quando uma amiga do casal, ao ver Einer travestido pela primeira vez, exclama: “Vamos chamar você de Lili!”. Einer antecipa Lili como uma unidade completa – com sonhos, desejos e gostos distintos. E a partir dessa representação de um outro em si, não há mais volta. A nomeação de Alicia Vikander e Eddie Redmayne para o Oscar de 2016 talvez sublinhe o início de uma transformação do tipo de histórias que podem ser contadas. Se a grande questão para Lili é até que ponto uma transformação pode ir sem colocar em risco sua vida, caberia perguntar: estaria Hollywood preparada para uma mudança igualmente radical? PEDRO AMBRA é psicanalista, doutorando em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Université Paris Diderot. maio 2016 • mentecérebro 13

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