Resenha adoniran

June 7, 2017 | Autor: Luciano Lunkes | Categoria: Music Education, Popular Music
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Resenha

Adoniran Se o senhor não está lembrado

MOURA, Flávio; NIGRI, André. Adoniran. Se o senhor não tá lembrado. São Paulo: Boitempo, 2002.

Adoniran, se o senhor não está lembrado é a primeira obra lançada da Coleção Paulicéia. O conjunto de seis livros, publicado pela Boitempo Editorial, retrata a história, o cotidiano e personagens de São Paulo. Objetivando o resgate da memória da capital paulista e de outras regiões do estado, a coleção é organizada em quatro temas: ‘retratos’ apresenta perfis biográficos de personagens considerados icônicos para a história de São Paulo; ‘memória’ narra fatos e lugares marcantes da cultura; ‘trilhas’ traz depoimentos pessoais sobre bairros e lugares e, por último, ‘letras’ reúne romances e contos de autores ou temáticas paulistas e paulistanas. Destinadas a um público amplo - embora possamos imaginar que o alvo seja, em primeira mão, o leitor paulista e paulistano - as obras propõem narrativas pouco conhecidas e viabilizam o contato com um patrimônio cultural ainda pouco explorado e desconhecido pela maioria. O perfil de Adoniran Barbosa, compositor de sucessos como o Trem das Onze, Tiro ao Álvaro e Saudosa Maloca, é apresentado pelos jornalistas Flávio Moura e André Nigri. Moura, paulistano, é mestre em letras. Nigri é mineiro e trabalha no Jornal da Tarde. O texto, organizado em 16 capítulos, segue a trajetória de João Rubinato (Adoniran Barbosa), iniciada com o embarque de seus pais, em 1895, partindo da Itália rumo ao Brasil, e finalizada com a morte do compositor na cidade de São Paulo, em1982, causada por uma forte crise de bronquite decorrente de um enfisema pulmonar. Os autores, entretanto, não se limitam a um esquema biográfico simplista. O percurso histórico de Adoniran é atrelado à própria história de São Paulo, a seus desenfreados processos de urbanização, expansão e modernização, desencadeados a partir da década de 30 e que estão precisamente registrados na obra musical do compositor.

Escrito em estilo linear e descritivo, o livro de 168 páginas desenvolve, com detalhes, a formação da mentalidade fantasiosa e lúdica do artista, fruto de suas vivências enquanto imigrante pobre em uma cidade de proporções inicialmente moderadas, mas em vertiginoso processo de metropolização. O texto é acompanhado por um conjunto de fotos, caricaturas e imagens de época retiradas do acervo do Museu Adoniran Barbosa e de arquivos pessoais. Ao final, os autores apresentam a discografia completa e dois textos curtos e complementares. O primeiro, Adoniran Barbosa, é de autoria de Antônio Cândido. Escrito em 75, o texto tem profundo impacto na vida tardia de Adoniran, pois estabelece a aliança do compositor - desprezado até então pela alta cultura paulistana – com a intelectualidade metropolitana. O segundo artigo, Samba, estereótipos e desforra, é de autoria de José Paulo Paes e aborda temas como a malandragem, a positividade do trabalho, além da irreverência e do humor na produção musical do compositor. Também propõe um contraponto entre o samba paulistano de Adoniran, de veia “industrial” e circunspecta, e o estereotipado samba marginal da favela carioca. A principal bandeira hasteada por Moura e Nigri em Adoniran, se o senhor não está lembrado, é clara: os jornalistas propõem a tese de que Adoniran inaugurou, através de suas composições que descrevem o cotidiano, as pessoas e os lugares, uma espécie de crônica social da cidade, praticamente inexistente na época. Para eles, a noção do que hoje se entende por identidade paulistana tem relação imediata com a obra testemunhal do compositor. Os sambas escritos, principalmente entre

as

décadas

de

40

e

60,

documentam

as

incessantes

metamorfoses da metrópole. As argumentações do livro são descritivas e comparativas. Em uma linha de tempo crescente e contínua, organizada por décadas, Moura e Nigri

narram os altos e baixos da carreira do compositor e descrevem, paralelamente, as transformações da cidade e seus efeitos, na maioria das vezes, devastadores para as classes pobres e operárias e com as quais Adoniran Barbosa se identificava. Dessa forma, os escritores apontam fatos como a implantação da indústria pesada, as migrações em massa, a entrada incisiva das multinacionais, a agressiva especulação imobiliária, a redefinição espacial da cidade, a gentrificação e os deslocamentos da classe operária para a periferia, a desfiguração dos bairros, a automobilização da cidade, a “parisificação” do centro urbano e das elites, a miscigenação de diversas culturas convergentes e a mescla de sotaques regionais, como fenômenos marcantes e de profundo impacto, tanto para a cidade de São Paulo como para as narrativas de seu menestrel. Outras influências, demarcadoras, para ambos os protagonistas, segundo os autores, viriam de fatores como a ascensão e decadência do rádio, o surgimento da TV, a ascensão e a decadência do samba, o cinema, o surgimento do rock, da jovem guarda, da tropicália e da bossa nova, as parcerias com Elis Regina, Gal Costa e os Demônios da Garoa. Por um lado, o texto de Nigri e Moura é esclarecedor, enquanto registro histórico, e evidencia a relevância de Adoniran Barbosa – um homem com a cara da metrópole, multifacetado e fragmentado como sua musa inspiradora – para o entendimento da identidade multicultural de São Paulo, ou ainda, em outras palavras, para a invenção da paulistaneidade. Por outro lado, entretanto, a ênfase na descrição dos acontecimentos que circundam tanto a vida de Adoniran quanto o desenvolvimento de São Paulo leva o texto a perder o foco de suas intenções iniciais, deixando de realizar um mergulho mais profundo nas narrativas propriamente ditas – com raras exceções. Dessa forma, a análise mais

rigorosa e aprofundada dos fatos da metrópole bem como de seus registros na obra do cronista acaba negligenciada. Ao deixarem de aprofundar tais relações, os jornalistas oferecem poucos subsídios para o leitor comprovar a tese inicial, a saber, que Adoniran seria o cronista social mais representativo de uma era de crucial importância para a cidade de São Paulo - a de sua metropolização. Outro aspecto que chama a atenção no texto de Moura e Nigri é o fato de os autores sugerirem que a relevância da obra de Adoniran está ancorada,

primeira

e

unicamente,

nos

registros

narrativos

e

tragicômicos dos lugares da metrópole e do cotidiano de seus personagens. É verdade que, do ponto de vista da identidade paulistana, seus textos, talvez, sejam mais significativos que suas linhas melódicas e expressem essa noção com maior acuidade. Entretanto, o modo de Adoniran cantar e compor suas melodias revela sua própria identidade musical bem como sua representação da cultura urbana paulistana, o que mereceria uma citação, que seja. Suas músicas, bem humoradas e líricas, são, concomitantemente, simples e complexas, com temas bem desenvolvidos, apresentando poucas repetições. Percebe-se claramente, na fluência das linhas melódicas, a fusão de características estilísticas do samba carioca e da música caipira, de um lado, e da ópera e canções italianas, de outro, o que faz de Adoniran um

‘melodista’

de

sambas

consideravelmente

originais

em

comparação a seus pares cariocas, por exemplo. No conjunto, a obra de Flávio Moura e André Nigri constitui uma importante contribuição, tanto para a historiografia da cidade de São Paulo quanto para a compreensão da obra de Adoniran Barbosa como documento testemunhal de parte dessa história. Ao descrever uma época crucial na formação da metrópole - período em que a capital metamorfoseou-se de lugar pacato, na década de 30, para uma das cidades mais fascinantes e cosmopolitas do planeta, já no final do

século xx - os autores apontam as crônicas musicais de Adoniram como um dos principais testemunhos desse processo vertiginoso de transformação. Especialmente interessante para o público que ainda desconhece ou pouco sabe a respeito da voz da cidade e seu significado para a identidade paulistana, o texto não deixa dúvidas quanto à relevância de seu legado para a paulistanidade dos paulistanos. Apesar de os autores não se dedicarem à análise das narrativas dos sambas de Adoniran e pouco enfatizarem o valor musical de suas composições, o mérito da obra está, principalmente, na escrita original e inventiva de seu texto, que, ao abordar paralelamente dois protagonistas – o compositor e a sua cidade -, atrelando-os um ao outro, acabam por evidenciar o fato de que suas histórias ora se fundem, ora se confundem; passa-se a perceber, então, que um, ao final, torna-se a metáfora do outro. Afinal, se São Paulo é cara de Adoniran, Adoniran, por sua vez, é a cara de São Paulo.

MESTRADO EM MEMÓRIA SOCIAL E BENS CULTURAIS DO UNILASALLE (CANOAS)

Trabalho para a Cadeira de Cultura ALUNO: Luciano Lunkes PROFESSOR: Lucas Graeff Dezembro de 2012

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