Resenha - ARAUJO, R. B. Guerra e Paz Casa-Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos Anos 30

June 7, 2017 | Autor: C. Marcusso Berna... | Categoria: Pensamento Social Brasileiro
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Universidade Estadual de Maringá Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Disciplina: Pensamento Social Brasileiro ARAUJO, R. B. Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. RESENHA Cássius M. T. M. B. de Brito Inicialmente pensada como percurso investigativo das características específicas de relacionamento da obra de Gilberto Freyre com as propostas modernistas das primeiras décadas do século XX no Brasil, o estudo de Ricardo Benzaquen de Araújo acaba enverando para uma recuperação do que ele considera ser o que essencialmente marca a tese freyreana sobre a sociedade patriarcal, sua crise, suas transformações e os eventuais desdobramentos disso na ação do pensador como intelectual preocupado com os problemas do seu tempo. Para isso, Araújo divide seu estudo em duas partes: na primeira parte, ele se debruça mais sobre Casa-Grande & Senzala, enquanto, na segunda parte, ele alinha outros textos do mesmo período, especialmente Sobrados e Mocambos. Assim, ele pretende mostrar como Gilberto Freyre apresenta a sociedade patriarcal em dois takes: seu apogeu no período colonial, sua crise no Império e as consequências disso para a formação social brasileira. Para além dessa estruturação mais formal, Araújo recorre também a uma analogia para lateralmente introduzir uma das suas interpretações sobre a obra de Freyre. Apresentar uma análise social recorrendo ao estudo das relações familiares, a partir do qual se descreve tipos sociais característicos e a forma característica como teriam se relacionado durante o período colonial – como está posto em Casa-Grande & Senzala (CGS) – teria duas características básicas: anteciparia a proposta de uma “história das intimidades” ao mesmo tempo em que apresentaria a descrição de grupos sociais de forma semelhante a que Tolstoi fizera em seu célebre romance Guerra e Paz. Tanto Freyre como Tolstoi tem como foco as contradições presentes no processo de dissolução de sociedades tradicionais e suas formas específicas de estruturação das relações sociais, ao mesmo tempo violentas e apaziguadas. Araújo tem também um outro objetivo: resgatar a obra de Freyre do que ele considera ser um duplo engano, seja da parte dos que tem com Freyre uma atitude acrítica recepcionando a sua obra como um todo acabado e perfeito, seja, por outro lado, da parte dos que, por excessivamente críticos, acabam não considerando o que existiria de específico e profícuo na obra do pensador pernambucano: sua marcante ambiguidade, o que traria, um “entendimento mais complexo e nuançado” (p. 43) sobre a obra de Freyre. Com este objetivo em mente, Araújo recorre a uma exposição que remete a discussão de Freyre a um quadro intelectual mais amplo, colocando-o em diálogo com seu caldo cultural para buscar, a partir daí, um caminho interpretativo que tenta evidenciar a característica específica do autor. Vários exemplos são encontrados no texto, mas vamos nos deter na apresentação de duas, que consideramos ser suficiente para demonstrar o recurso do autor. Durante o fim do século XIX e o início do século XX, a discussão sobre o significado social da mestiçagem tinha duas linhas mestras principais. A primeira apresentava a mistura de raças como fator de inviabilidade de um povo, posto que seria fonte de degradação da pureza racial. Como a marca de Caim, a miscigenação seria entrave para o desenvolvimento da civilização entre nós. A segunda via a miscigenação com sinal invertido, isto é, apresenta a mistura das raças como vantagem civilizacional, na medida em que percebe o mulato como intermediário entre o negro e o branco que, contudo, está em um processo de branqueamento. Não mais mancha de Caim, mas estigma: marca de redenção. Ambas as perspectivas, contudo, tinham em comum o pressuposto de uma supremacia branca: “a primeira julga os constrangimentos que supostamente daí derivaram como totalmente insuperáveis, enquanto a segunda,

aparentemente, aposta na sua futura eliminação. De qualquer modo, tanto em um caso quanto no outro, é a postulação da supremacia branca que dá sentido ao argumento” (p. 29). Freyre romperia com esta dicotomia apresentando uma terceira posição: diferenciando raça de cultura e demonstrando a contribuição da cultura lusitana, negra e (em menor medida) indígena para a composição da cultura nacional, Freyre valoriza a mestiçagem enquanto tal, “como base de uma verdadeira identidade coletiva, capaz de estimular a criação de um inédito sentimento de comunidade pela explicitação de laços até então insuspeitos entre os diferentes grupos que compunham a nação” (p. 30), mesmo que o preço disso seja a criação de uma imagem idílica da sociedade colonial (p. 31). A ambiguidade de Freyre, neste caso, seria a separação entre raça e cultura anunciada pelo autor não foi plenamente alcançada. Para Araújo, na verdade, Freyre ainda opera com um sentido neolamarckiano na sua noção de raça: “isto é, uma definição que, baseando-se na ilimitada aptidão dos seres humanos para se adaptar às mais diferentes condições ambientais, enfatiza, acima de tudo a sua capacidade de incorporar, transmitir e herdar as características adquiridas na sua – variada, discreta, localizada – interação com o meio físico” (p. 39). Assim, a obra de Freyre seria marcada “pela mais terrível e absoluta imprecisão” (p. 33). O segundo exemplo é central no argumento de Freyre em CGS e diz respeito à avaliação da escravidão. Para Araújo, na tradição clássica greco-romana a violência e o despotismo se fundiam na estrutura escravista, mas ambos tinham o escravo como alvo predileto, uma vez que, segundo ele, a autoridade do pai sobre o filho ou sobre a esposa “tinha que respeitar o fato de que estes eram seres basicamente livres, o que importava na consideração das suas necessidades e, eventualmente, até mesmo dos seus desejos” (p. 50). Mesmo que o escravo fosse aceito no oikos1, ele estava absolutamente subordinado a vontade do senhor e qualquer sua contribuição deveria necessariamente passar pelo julgamento e autoridade deste (p. 51). Assim, haveria entre a família e o escravo, na perspectiva de Araújo, uma relação marcada pela combinação de violência, despotismo e distância. O contraponto à perspectiva greco-romana é a cristã. Nesta tradição, a escravidão é associada ao pecado e, portanto, ao castigo, que tinha virtualmente o objetivo da reabilitação moral. Para que esta reabilitação fosse possível, a violência e o despotismo eram associados a uma proximidade paternal entre o senhor e o escravo, que é admitido no convívio familiar para presenciar o comportamento do senhor e tomá-lo como exemplo para a sua conversão. Freyre teria, na avaliação de Araújo, adotado uma terceira posição, que incorporaria elementos das duas anteriores. A violência e o despotismo característicos da escravidão greco-romana conviveriam com a intimidade própria da tradição cristã, ao mesmo tempo em que a característica poligâmica da família patriarcal e a ausência de qualquer motivação catequética na escravidão a distanciava da perspectiva cristã. A escravidão brasileira era, portanto, específica a violência e o despotismo do senhor compareciam paralelamente à intimidade dos escravos resultando em uma combinação cultural sincrética (e não sintética) em que não há formação de uma nova totalidade. A mestiçagem brasileira é resultado da escravidão, que é marcada pela ambiguidade, em que as contribuições principalmente de portugueses e africanos se combinam: a violência do senhor não impediria a “colonização da casa grande pela senzala”. Neste sentido, para Araújo, o que caracterizaria a obra de Freyre seria a construção de uma imagem da sociedade patriarcal colonial brasileira como sendo marcada por “antagonismos em equilíbrio”. Neste sentido, a aristocracia brasileira seria diferente das formas tradicionais de aristocracia, pois não encontraríamos nela a concretização de um ideal de distância aos escravos. O imã que aproximava os polos opostos da sociedade patriarcal descrita em CGS era, na perspectiva de Araújo, um excesso de natureza 1

A descrição da estrutura social grega feita por Araújo é muito imprecisa. Se consultarmos a célebre Política, de Aristóteles, facilmente perceberemos que o oikos não é na verdade o lar, mas a família, que, por sua vez, era a unidade básica da sociedade grega e era constituída pelo pai, esposa, filhos e escravos. Estes não eram externos, mas internos ao oikos (“os elementos primários e mais simples de uma família são os senhor e o escravo, o marido e a mulher, o pais e os filhos” – capítulo II, de Política). Embora tivesses um status absolutamente diferente dos escravos (Aristóteles os definia como “animais que falam”), as mulheres e os filhos, embora fossem livres, estavam longe de serem “iguais” (cf., p. e.x., capítulos II e V de Política).

sexual2 (hybris), que seria responsável pela criação daquelas “zonas de confraternização” que caracterizariam a especificidade do escravismo brasileiro. E, por isso, Araújo recorre ao estudo de Bakhtin sobre a cultura popular medieval, em que as festas de praça, de rua, os carnavais realizados pelas classes subalternas no sistema feudal, a partir da sátira, da deformação dos corpos, da linguagem de baixo calão, quebravam ludicamente o distanciamento imposto pela cultura aristocrática. Assim, colocando em paralelo a descrição da cultura popular medieval e a cultura senhorial da Casa Grande, Araújo afirma que “o domínio do excesso também vai permitir que a afirmação daqueles antagonismos seja perfeitamente compatível com um grau quase inusitado de proximidade, recobrindo de um colorido, de um ethos particular a senhorial experiência da casa-grande” (p. 73). Para Araújo, Freyre opera com diferenças não atribuindo a elas nenhum caráter contraditório (p. 95), de modo que o emblema de sua argumentação (“antagonismos em equilíbrio”) seja sempre a ambiguidade, o paralelismo, o sincrético e nunca a síntese em uma totalidade superior. Além disso, a valorização do excesso é afirmada por Araújo como contraposto ao puritanismo protestante que teria sido a formação inicial de Freyre e que comparece em sua obra como o “cúmplice secreto”. Neste sentido, a imagem da Casa Grande seria formulada como anverso da noção puritana de constância – baliza moral fundamental do puritanismo (p. 101). Além disso, a valorização da ambivalência proximidade-violência seria consequência de uma outra valorização – a de um certo ethos franciscano na formação moral de Freyre. Lendo a obra de Freyre a partir da noção de processo civilizador, Araújo destacará que as obras de Freyre posteriores à CGS apresentarão a desagregação da sociedade colonial de um ponto de vista “com evidente ar de reprovação” (p. 135). A vinda da Coroa portuguesa no início do século XIX e o desenvolvimento da urbanização, da diferenciação econômica interna traria como consequência a conversão do excesso (hybris) da sociedade colonial à moderação dos costumes da corte abrurguesada, de um lado, e a substituição da anarquia política colonial (descentralização) pela centralização do poder nas mãos do Rei e da corte. A alegoria usada por Freyre para ilustrar estas transformações seria a transformações da relação “CasaGrande & Senzala” em “Sobrados e Mocambos” (SM). É certo que haveria entre um momento e outro do processo uma solução de continuidade: o estilo de vida aristocrático e um certo exercício autárquico do poder. Contudo, o aburguesamento da sociedade e a urbanização teria retirado a característica essencial da sociedade patriarcal colonial ao provocar um afastamento, distanciamento entre os senhores e os negros progressivamente libertos. A importância deste distanciamento seria comprovada, na perspectiva de Araújo, pelo fato de que o tema do sexo quase não é abordado em Sobrados e Mocambos, enquanto em CGS ele era o imã que mantinha aqueles antagonismos em equilíbrio. Quando o faz é para sinalizar a diferença entre o excesso da Casa Grande e a repressão do Sobrado, por um lado, e da ausência da poligamia e o surgimento do tema da prostituição por outro (p. 119-20). Interessante notar como aquele “evidente ar de reprovação” aparece de forma curiosa na descrição de SM: começam a aparecer referências à violência masculina sobre as mulheres sem que estas fossem “adoçadas” (p. 59) pelo sadismo dos senhores, como ocorria na Casa Grande. O elemento “edulcorador” da violência do senhor praticamente inexiste em SM, sendo substituído pela noção de dominação masculina (p. 129), no interior da qual são destacados suas consequências negativas sobre a constituição física e moral das mulheres. Freyre afirma que a europeização do Brasil com a vinda da família real, o aburguesamento da sociedade e o relativo distanciamento do que antes estava unido teria um sinal negativo. Araújo afirma que, “para Gilberto, essa autoridade [do senhor do sobrado] parece se tornar totalmente arbitrária e ilegítima a partir do momento em que, levada pela própria força das circunstâncias, para de fomentar aquela instável 2

Apesar de ser fundamento de toda sua análise sobre a obra de Gilberto Freyre, a noção de “excesso sexual” não vem acompanhada de nenhuma referência à psicanálise. Durante todo o livro, o autor não apresenta qualquer interlocução seja com Freud (a sexualidade como chave interpretativa não apenas da constituição da subjetividade, mas também das relações sociais), seja com Lacan (para quem a noção de excesso é constitutiva do que ele chama de “retorno a Freud” na psicanálise).

proximidade que associava, até certo ponto, grupos sociais opostos durante o período colonial” (p. 132). O excesso atribuído à sociedade colonial é contraposto à repressão atribuída ao aburguesamento da sociedade, o que leva Araújo a afirmar que considera que a influência europeia como responsável por um projeto de “fechamento”, de sistematicidade de aspiração totalizante que estaria ausente da sociedade colonial, mais aberta (p. 137)3. Além disso, enquanto CGS operava com uma lógica unitária, mesmo que da perspectiva da Casa Grande, SM opera com uma diferenciação unitária, ou seja, o afastamento provocado pelo processo civilizador, embora não tenha anulado completamente a unidade cultural, obrigaria a um tratamento diferenciado as familiares no interior do Sobrado e no interior do Mocambo. Mas não é isso que ocorre. A sociabilidade dos Mocambos não é tematizada durante SM, surgindo apenas ao final do livro como redentora do processo civilizador apartado que teria ocorrido no Brasil a partir do Império. Segundo Araújo, a obra de Freyre seria marcada pela imprecisão, pela ambiguidade, por certa identificação matizada com o passado colonial, mas também por uma ação intelectual que procurasse restabelecer as características atribuídas por ele à sociedade patriarcal colonial. A dominação impessoal típica da sociedade burguesa é reprovada por Freyre, pois implicaria em uma diminuição da ambiguidade própria da dominação colonial. Haveria uma alteração de sentido que “diminui a ambiguidade e amplia decisivamente a vocação excludente da nossa aristocracia: o excesso agora, exatamente como no caso da monocultura de cana, torna-se de pureza e não de miscigenação, hibridismo ou confraternização, na medida mesmo em que a distancia em relação ao meio ambiente, apontada em Nord como típica do latifúndio açucareiro, começa a ser acompanhada pela degradação dos ´cabras´ das usinas e pela discriminação dos habitantes dos mocambos” (p. 164). Assim, Freyre operaria com a noção de “antagonismos em equilíbrio” na qualidade de um valor a ser recuperado (p. 175). O livro de Araújo tenta matizar e nuançar a obra de Freyre, mostrando suas ambiguidades, seus status de inacabamento, de indefinição. Ao fazê-lo, em muitos momentos, ele não se distancia da perspectiva do autor analisado. A mesma ambiguidade percebida por ele em Freyre com relação à sociedade colonial é também passível de ser percebida em sua identificação com Freyre.

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Assim, é possível identificar uma tentativa de estabelecer uma certa dignidade da dominação colonial, reservando a ela um espaço íntimo na Casa Grande, onde aos negros é dada a possibilidade de até mesmo influenciar na composição de um jeito mestiço de constituição do senhor. Freyre não nega a violência da escravidão, apresentando-a não apenas do ponto de vista econômico, mas também nas relações familiares. Mas apresenta uma espécie de compensação aos que são violentados: deixaram sua marca no branco e uma herança cultural, cuja noção de mestiçagem é a alavanca de mobilidade social. Mas e se invertermos os sinais. E se disséssemos que o branco até admite a presença e a influência dos negros em seu ambiente, mas não sem violenta-los a fim de nunca fazê-los esquecer do lugar a que pertencem? A dignidade postulada da dominação permanece a mesma? Parece que, ao se afastar, perde-se de vista o que ocorre do lado dominado da relação e o critério de avaliação das consequências da crise do patriarcalismo colonial fica ligado ao que ocorre com a posição da Casa Grande. A perspectiva da Senzala, antes sobreposta pela da Casa Grande, agora como Mocambo também apaga-se diante dos Sobrados. E a identificação com o senhor de antes se vê desamparado diante da nova relação de dominação. “Narciso acha feio o que não é espelho”.

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