Resenha: Bart D. Ehrman e a existência do Jesus histórico

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RESENHA BART D. EHRMAN E A EXISTÊNCIA DO JESUS HISTÓRICO Gustavo H. S. S. Sartin*

EHRMAN, B. D. Jesus Existiu ou Não? Tradução de Anthony Cleaver. Rio de Janeiro: Agir, 2014. 336p. ISBN 9788522029808. Recebido em: 5 ago. 2016 – Aceito em: 25 nov. 2016

Produzir uma resenha de um livro de Estudos Bíblicos para uma revista da área de Letras é, em um certo sentido, um desafio. A Bíblia obviamente se presta a análises textuais e Bart D. Ehrman é um perito nisso, de modo que aí reside a justificativa da nossa escolha. Ainda assim, é sem dúvida um desafio abrir mão dos jargões comuns aos Estudos Bíblicos e produzir um texto que faça sentido para o público geral. O próprio Ehrman tenta, em alguma medida, fazê-lo – porquanto suas obras têm um caráter também de divulgação – e nós certamente temos ainda mais motivos para fazê-lo nesse espaço. Ehrman é professor de Estudos da Religião na University of North Carolina at Chapel Hill, Estados Unidos, e desde a segunda metade da década de 1980 tem publicado livros que versam sobre questões relativas ao Novo Testamento, especialmente no que diz respeito à sua seleção, transmissão e recepção. Dentre suas obras publicadas no Brasil, cabe destacar “O que Jesus Disse? O que Jesus Não Disse? Quem mudou a Bíblia e por quê?” (Editora Prestígio, 2006) e “Quem Jesus Foi? Quem Jesus Não Foi?” (Ediouro, 2010). Em “Jesus Existiu ou Não?”, Ehrman se engaja em um debate com os que chama de “miticistas”, estudiosos que ou negam a existência de um Jesus * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil. E-mail: [email protected]

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histórico ou defendem que a fundação do cristianismo nada tem a ver com tal existência. Os miticistas, obviamente, ocupam uma posição marginal nos estudos do Novo Testamento – até porque a maioria das instituições envolvidas nesse campo tem um caráter devocional cristão. É notável, portanto, que o autor se disponha a avaliar com seriedade os argumentos apresentados pelos miticistas, ainda que faça questão de ressaltar que dentre os seus proponentes de maior capacidade e relevância, G. A. Wells, Earl Doherty e Robert Price, apenas o último tenha formação em Estudos Bíblicos. Em outras palavras: à exceção de Price, os miticistas seriam amadores muito capazes e eruditos. Isso pode parecer, à primeira vista, um backhand compliment, mas Ehrman trata as posições defendidas pelos miticistas com tal seriedade que deixa claro este não ser o caso. Quais seriam, então, os aspectos fundamentais da posição miticista? De acordo com Ehrman, em um aspecto primordial, ela se baseia num argumentum ex silentio, visto que as fontes textuais gregas e romanas não trariam qualquer referência a Jesus até que o jovem Plínio, Suetônio e Tácito o mencionem en passant na segunda década do século II – ou seja, cerca de oitenta anos após a data tradicionalmente aceita para a crucificação. Até mesmo os Evangelhos seriam fontes de segunda monta para os miticistas, porquanto teriam sido produzidos entre quatro a seis décadas após a morte de Jesus por pessoas que nem sequer haviam sido seus discípulos. Ehrman, até certo ponto, a isso aquiesce: Em geral os estudiosos concordam que esses textos datam do final do século I: o Evangelho de Marcos seria o mais antigo, provavelmente escrito por volta de 70 EC; os Evangelhos de Mateus e Lucas teriam sido elaborados pouco depois, possivelmente entre 80 e 85 EC; e o de João seria o último, no período de 90-95 EC. Os autores desses livros não eram os discípulos originais de Jesus ou provavelmente nem mesmo eram seguidores dos doze discípulos diretos de Jesus. Eram cristãos de épocas posteriores que ouviram as histórias sobre Jesus, disseminadas oralmente ano após ano, década após década, e finalmente decidiram

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escrevê-las. (p.55)

Cabe notar como mesmo uma citação breve tal qual a trazida acima permite vislumbrar o elemento fundamental da contestação de Ehrman à posição dos miticistas: sua crença na existência de tradições orais acerca da vida de Jesus, nas quais os quatro evangelistas teriam podido se basear. A partir desse argumentum ex silentio, os miticistas argumentaram, grosso modo, que a figura de Cristo primeiro houvesse surgido como uma espécie de divindade mitológica que acabou historicizada, porquanto o Jesus histórico não ocuparia uma posição de destaque em quaisquer escritos do Novo Testamento – à exceção dos quatro evangelhos. Mesmo o apóstolo Paulo teria dito muito sobre a ressurreição de Jesus, mas pouco (ou quase nada) sobre o que Jesus disse ou fez enquanto estava vivo. Ainda que esse não pareça ser o caso, por exemplo, de passagens como a encontrada em I Coríntios 11:22-24, os miticistas por vezes argumentam que as alusões a Jesus nos escritos de Paulo ou seriam adições posteriores ao texto ou que não se tratem de palavras de um “Jesus histórico”, mas de um “Cristo celestial”, transmitidas pelos profetas cristãos e aceites por Paulo. O livro de Ehrman é uma tentativa de dar uma resposta definitiva a questionamentos desse tipo a partir de uma prática investigativa que metodologicamente se enquadra nas ciências históricas e não num ato de fé, ao mesmo tempo que reconhece a legitimidade desta. O capítulo IV, “Evidências de Jesus em Fontes Externas ao Evangelho”, é um tour-de-force em termos de erudição, ainda que o autor por vezes tenha uma visão por demais otimista acerca da multiplicidade de tradições independentes possíveis de se encontrar nos escritos de Pápias (entre as décadas de 120 e 130, conforme a datação de Ehrman), de Inácio de Antioquia (na década de 110) ou em I Clemente (na década de 90). Eis alguns trechos de sua argumentação:

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Algumas das tradições sobre Jesus transmitidas por Pápias podem ser falsas, mas ele afirma de maneira bastante categórica – e não há motivos para achar que ele esteja mentindo descaradamente – que conhece pessoas que se relacionaram com os apóstolos (ou os companheiros dos apóstolos). Não é um testemunho ocular da vida de Jesus, mas é bastante próximo. (p.105)

Ora, Pápias escreveu entre noventa e cem anos após a crucificação, de modo o seu testemunho deve ser encarado no mínimo com cautela. O otimismo de Ehrman faria com que qualquer um de nós pudesse, hoje, ser considerado uma fonte acerca dos últimos anos da vida de Rui Barbosa, morto em 1923. As cartas de Inácio são extremamente interessantes. […] As que mais nos interessam, no entanto, são as que criticam os cristãos que insistem em dizer que Jesus não era uma pessoa verdadeira, de carne e osso. Esses adversários de Inácio não eram versões antigas dos miticistas modernos. Eles certamente não acreditavam que Jesus fora inventado com base em deuses que morriam e ressuscitavam, supostamente adorados por pagãos. Para eles, Jesus teve uma existência real, histórica. Ele viveu nesse mundo e pregou ensinamentos inspirados. Mas era Deus na terra, e não um humano comum, como todos nós. […] Inácio, portanto, nos fornece mais um testemunho independente da vida de Jesus. Novamente, não se pode alegar que escrevia em uma época tardia demais para servir aos nossos propósitos. Não há evidência de que dependesse dos Evangelhos. E ele era bispo de Antióquia (sic), cidade que não só Pedro como Paulo visitaram com frequência, conforme diz o próprio Paulo em Gálatas 2. Suas opiniões também remetem diretamente à época dos apóstolos. (p.106-107, grifo nosso)

Escrevendo na mesma época em que o jovem Plínio, Suetônio e Tácito (na década de 110), além de décadas após composição dos Evangelhos (entre 70 e 95, conforme o próprio Ehrman), tomar Inácio como sendo claramente o portador de um “testemunho independente” é sem dúvida um exagero. A carta I Clemente foi escrita pelos cristãos de Roma à igreja de Corinto para resolver situações que os haviam deixado insatisfeitos. […] Há várias citações do Antigo Testamento, e o autor se refere explicitamente à primeira carta de Paulo aos coríntios. Mas ele não menciona os Evangelhos do Novo Testamento e embora cite algumas palavras de Jesus, não indica que vieram de textos escritos. Na verdade, o estilo dessas citações é bem diferente de qualquer dito de Jesus encontrado nos Evangelhos subsistentes. O mais impressionante é que o autor de I

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Clemente, assim como Inácio e depois Pápias, supõe não só que Jesus existiu, mas de que grande parte de sua vida é de conhecimento comum. (p.108)

A confiarmos no julgamento de Ehrman acerca do estilo das citações feitas em I Clemente, eis aí, sim, o que parece ser o testemunho independente da vida de Jesus, ainda que registrado mais de sessenta anos após a data tradicional da crucificação. Nosso propósito não é desacreditar Ehrman. O fato é que parte do material ao qual o autor recorre é por demais tardio para permitir com facilidade algumas das ilações que ele tenta realizar. Não obstante, Ehrman faz um trabalho no mínimo impressionante com a sua análise dos Atos dos Apóstolos, um livro composto na década 80, mas que incorporaria “tradições bem mais antigas” (p.113). Muito de sua análise do livro pode causar espécie num cristão típico, visto que o autor defende, grosso modo, que o discurso ali incorporado revela uma tradição cristã primeva, na qual Jesus e Deus não têm o tipo equivalência que acabaram adquirindo mais tarde e que se tornou parte do dogma. Ainda mais interessante talvez seja a seção que trata das epístolas de Paulo. Nela, Ehrman se engaja minuciosamente com a argumentação dos miticistas, permitindo-lhes inclusive contra-argumentações. O autor acaba por reconhecer que o testemunho paulino não é tão bom quanto os cristãos alegam que seja, ainda que defenda que é muito mais relevante para existência do Jesus histórico do que admitem os miticistas. Num trecho um tanto surpreendente, Ehrman sugere que Paulo talvez não haja mencionado os feitos de Jesus mais frequentemente porque “não saberia muito mais” (p.140) – hipótese que, se verdadeira, pode até não trazer muitas repercussões acerca da questão da existência ou não de um “Jesus histórico”, como defende Ehrman, mas que possivelmente muito diz acerca do caráter de Paulo.

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Embora o livro não tenha por objetivo a discussão, per si, da biografia de um Jesus histórico ou de seus ditos, é o que acaba ocorrendo na última seção, em que o autor defende que ele haveria sido um profeta apocalíptico “que acreditava que em breve Deus interviria no curso da história humana para destruir os romanos e todos os que se opunham a ele (sic), antes de estabelecer o seu (sic) reino na terra.” (p.320) 165

É possível que o leitor, a essa altura, esteja se perguntando qual o nosso posicionamento, historiadores que somos, acerca da existência do Jesus histórico, sobretudo do Jesus histórico construído por Ehrman. Preferimos, todavia, nos abster desse tipo de juízo neste espaço. Não se trata aqui, de discutirmos “verdades” acerca dos relatos bíblicos e tampouco acerca do Jesus histórico de Ehrman. Trata-se, não obstante, de oferecer aos leitores uma análise do livro que lhes permita tirar conclusões acerca de sua utilidade; que lhes permita saber o suficiente de seu conteúdo para que façam uma avaliação bem informada da utilidade de uma eventual aquisição para os seus estudos, sejam eles bíblicos, históricos ou mesmo literários. Esperamos haver realizado esse objetivo a contento.

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