Resenha - BRANDÃO, G. M. Linhagens do Pensamento Político Brasileiro

June 7, 2017 | Autor: C. Marcusso Berna... | Categoria: Pensamento Social Brasileiro
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Universidade Estadual de Maringá Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Disciplina: Pensamento Social Brasileiro BRANDÃO, G. M. Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. Dados. Rio de Janeiro: v. 48, n. 2, pp. 231269, 2005. RESENHA Cássius M. T.M. B. de Brito Publicado na forma de artigo, este texto é, na verdade, o primeiro capítulo da tese de livre-docência do autor sobre as Linhagens do Pensamento Político Brasileiro. Esta informação é importante, pois, menos do que apresentar uma descrição exaustiva das referidas linhagens, o texto é uma introdução justificativa da importância do estudo deste tema não apenas para um campo específico das ciências sociais, mas para estas como um todo. Como fica evidente ao longo do artigo, a preocupação com a definição de “famílias intelectuais” no campo do Pensamento Social Brasileiro não se justifica como exercício meramente acadêmico, respondendo, na verdade, por questões em duas frentes: 1) internamente, um tipo de pensamento político que se especializa cada vez mais com recortes cada vez mais “micro”, da qual emerge uma multiplicidade de objetos que reclamam legitimidade e para os quais se elaboram estratégias distintas de pesquisa para contextos específicos, submetendo-se ao caráter excessivamente conformista diante da descrição do status quo; 2) externamente, com a necessidade de se recuperar a característica do pensamento político como campo de reflexões globais sobre a sociedade brasileira e seu processo histórico de formação, no interior do qual o pensamento não apenas percebe a realidade, mas a constitui na medida da práxis ao elaborar a experiência prática e ajudar a organizar a ação política. Mais do que significado de modernização, o crescente “ensimesmamento” das ciências sociais seria um “sintoma” de tempos de crise social e política, diante da qual o recurso à história das ideias sociais e políticas do Brasil calcada nos clássicos poderia funcionar como uma terapia necessária. Para o autor, os clássicos ainda têm um peso grande na constituição deste campo científico, pois eles trazem consigo uma característica essencial das ciências sociais, que é a necessidade de sempre refazer o seu caminho para se chegar aos fins propostos. Haveria, neste sentido, um certo caráter cíclico e uma certa conexão de sentido entre o interesse pelos clássicos “intérpretes do Brasil” e os momentos de crise/mudança social, em cuja relação as transformações nas nossas esferas de existência força a reformulação dos nossos quadros mentais que esquematizam o nosso saber. Nos momentos de crise, a nossa “má formação” fica mais clara e é preciso revisar nosso percurso antes de querer embarcar em uma nova viagem (p. 235). Esta perspectiva é diferente da já célebre imagem de “subir sobre os ombros de gigantes para poder olhar com mais amplidão para o horizonte” ou até mesmo da não menos conhecida analogia hegeliana da filosofia como o voo da Coruja de Minerva (citada, inclusive, pelo autor). É mais como a exigência socrática do “conhece-te a ti mesmo”, que Gramsci, por exemplo, destacou ao afirmar a necessidade de se fazer um inventário crítico da nossa concepção de mundo: “Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? (...) O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um ´conhece-te a ti mesmo´ como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços 1 acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise”. 1

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol 1. Caderno 11. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 94.

Por ter também uma natureza política, a tarefa de pensar o pensamento não é mero procurar de ensinamentos do passado para não repetir os mesmos erros. É enfrentar com postura crítica o próprio processo que nos fez chegar até aqui e, portanto, investigar as próprias raízes, uma auto-análise muitas vezes dolorosa posto que investiga a substância social e histórica de que somos resultado, mas de cuja perscrutação pode surgir sementes de um novo amanhã. Neste sentido, o autor pretende empreender uma identificação das famílias ou linhagens do pensamento social e politico brasileiro como momentos e cristalizações de constelações intelectuais, de conscientização que se materializam no interior mesmo processo de constituição da formação social brasileira e que ganham limites mais definidos em momentos de crise social e política. Diz ele: “(...) as obras mais significativas, os textos fundamentais, as criações teóricas mais típicas são mais capazes – porque mais coerentes, mais amplas, mais profundas e mais autônomas – de revelar a natureza de uma época e a consistência de uma concepção política, de permitir aos homens a tomada de consciência do que fazem e de extrair todas as implicações de sua própria situação” (p. 243). O sentido adotado pelo autor é, assim, parecido com a interpretação que Lukács dá ao conceito de ideologia (obviamente não no mesmo nível de abstração e com especificidades que, por conta disso, não vem ao caso agora). Para Brandão, as ideias (que ele também chama de “processo ideológico”, p. 245) devem ser interpeladas como “momentos de constituição de atores específicos, como tentativas de diagnosticar e resolver problemas reais, de dirigir política e culturalmente a ação de forças sociais determinadas” (p. 243-244). Lukács, por sua vez, em sua Ontologia do Ser Social, tentando recuperar o sentido positivo de ideologia, que, presente em Marx e Engels, teria sido secundarizado na tradição marxista, afirma o seguinte: “A ideologia é sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir. Desse modo, surgem a necessidade e a universalidade de concepções para dar conta dos conflitos do ser social; nesse sentido, toda ideologia possui ou seu serpropriamente-assim social: ela tem sua origem imediata e necessariamente no 2 hic et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade” .

As obras teóricas não seriam, portanto, nem epifenômeno do movimento da economia, nem imediatamente justapostas a posições de classe a partir da função destas na estrutura produtiva da sociedade, nem são tomadas como manifestações metafísicas de um espírito a governar o mundo e tampouco são entendidas como idiossincrasias individuais dos seus autores. Pelo contrário, as ideais teóricas examinadas pelo autor são compreendidas como traduções de relações reais entre grupos no interior da sociedade global, que não apenas expressam mas também constituem estes grupos enquanto sujeitos imbricados no conflito social e político. Não são, então, quaisquer ideias, mas aquelas que, por conterem elementos de universalização, se convertem também em referências típicas do seu tempo. Neste processo de investigação, a contextualização das obras clássicas não pode ser perdida de vista, pois o risco presente neste esquecimento é o de pensar que elas sejam contribuições a algum tipo de teoria abstrata sobre a sociedade, a política e a história, também tomadas abstratamente. Pelo contrário, sendo seus conceitos, categorias e processos metodológicos de investigação respostas aos problemas do tempo e das referências com as quais trava disputa no interior de um campo ao mesmo tempo teórico e político, a datação das obras não pode, por outro lado, elidir o fato de que “nenhuma grande constelação de ideias pode ser inteiramente resolvida em seu contexto” (Femmia apud p. 238). Não apenas os conteúdos analíticos e conclusões presentes nas obras, mas sobretudo as formas de pensamento que as caracterizam apresentam traços transistóricos ainda válidos, mesmo porque, em termos da grande estrutura sóciohistórica brasileira, malgrado as importantes e evidentes mudanças ocorridas do período dos intérpretes clássicos para cá, não houve aqui nenhuma mudança ontológica. 2

LUKACS, G. Para uma Ontologia do Ser Social. Vol. 2. São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 431-432.

Mas, se se pode falar de ruptura (mesmo que não ontológicas), em nossa história, ela poderia ser apontada no século XIX com a Independência e com a Abolição da escravidão colonial. Este, portanto, é o ponto de partida para o pensamento social brasileiro. Não que não haja continuidades, mas estas ganham nova configuração de conteúdo e novas formas a partir desta ruptura, inaugurando uma nova fase da história nacional, principalmente porque a internalização dos centros de decisão exigiu desta sociedade que fizesse uso de recursos para auto-conhecimento dos quais o desenvolvimento das ciências sociais é processo indispensável para não apenas a elucidação dos dilemas históricos, mas como húmus de formulações práticas. Estas matrizes intelectuais têm, portanto, a ver com este país em formação, seus momentos de diagnóstico e propostas políticas de intervenção social. Há ainda que se fazer referência que as exegeses dos textos clássicos, para além de conformarem uma tradição, o fazem tendo como conjunto de preocupação os problemas do presente. Assim, a tradição guarda relação com o passado na medida em que o atualiza a partir dos critérios do presente3. O autor chama a atenção para que, uma vez definida uma determinada forma de pensar e um determinado diagnóstico de realidade, dali não se deriva necessária e univocamente uma única linha de formulação política. Pois a política é justamente a medição entre a análise teórica da realidade social e a pergunta “Que fazer?” diante dela, no interior de cuja relação as projeções de ação podem ser as variáveis. Contudo, as formas de pensar a realidade apresentam limites mais ou menos definíveis de acordo com o momento histórico de que são representativos e, não obstante as variações possíveis, é possível detectar laços de parentesco. A constituição das famílias intelectuais não é tarefa fácil não apenas para o esforço de síntese teórica que se queira fazer, mas especialmente porque a matéria (conjunto de reflexões sobre o Brasil) seria errática e, deste modo, as formas de pensamento fossem peculiarmente fluidas, dificultando a detecção de suas formas em torno de continuidades históricas, linhagens definidas. Há, contudo, momentos em que estas formas se explicitam de maneira mais clara, menos por casualidade do que por necessidade histórica, posto que está em jogo a adoção de uma postura específica diante de uma crise social. Nestes momentos de “o que fazer?”, a “consciência que os atores adquirem de sua própria herança” (p. 256) são incorporadas à sua experiência atual e, por isso, ganham delineamentos mais definidos. A) Família conservadora (idealismo orgânico): não é possível construir um Estado liberal em uma sociedade que não é liberal, isto é, a sociedade civil é vista como gelatinosa, amorfa, irracional e, se homem comum não estiver sob o mando de algum barão, somente o Estado pode protege-lo de si mesmo e de seus semelhantes (p. 246). A crítica aos liberais é a de que o Estado não é uma ameaça à liberdade civil, mas a única forma de garanti-la. O Estado é o demiurgo da sociedade no seu sentido de dotá-la de racionalidade. Segundo o autor, para esta família: “Tratar-se-á de educar as elites, evitar a luta de classes, dar prioridade à construção da ordem sobre a liberdade, dar independência ao Judiciário, limitar as autonomias estaduais, organizar a população por meio de corporações, e construir uma sociedade civil (civilizada) por meio da ação racional de um novo Estado centralizado. E só depois – se é que haveria um depois! – admitir a democracia política” (p. 247). Unidade territorial, liberdade civil (não política), Estado centralizador, tutelador e pedagogo: eis o programa conservador. Dentre as principais referências desta corrente estão Visconde do Uruguai, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Francisco Campos, entre outros. B) Corrente liberal (idealismo constitucional): a necessidade de expandir a liberdade individual, de distinguir entre centralização política e descentralização administrativa, definir claramente a divisão das funções dos três poderes são suas teses principais. A questão determinante é, pois, a forma de governo (p. 3

De passagem, cabe notar como a lógica aristotélica ainda organiza nosso pensamento: a matéria (obras clássicas e seus contextos) como potência e a forma (aqui, de pensamento) como ato e a combinação de ambas (matéria e forma) como atualização (ato-alização).

247). Aqui o Estado tem também predominância sobre a sociedade civil, mas isso não é visto como virtude e sim como vício, cujas raízes são as heranças culturais e políticas da Europa ibérica. O caráter “gelatinoso” da sociedade civil brasileira é decorrência deste Estado tutelador, que, para garantir sua proeminência, fragmenta a sociedade civil. O foco da discussão nas formas de governo e nos arranjos institucionais é revelador da confiança dos liberais no poder da lei como organizadora da sociedade e, por isso, se destaca nesta corrente a insistência nas reformas políticas sem as quais as reformas econômicas e sociais não seriam possíveis. Os arranjos institucionais e a definição clara dos poderes exigem um Executivo forte (o federalismo sempre fora subsumido à questão do Estado forte), um Parlamento como reflexo de visões de mundo exclusivamente políticas voltadas ao bem comum e um Judiciário em cuja natureza aristocrática é depositada a confiança na manutenção da liberdade (p. 249). Esta família sempre se enfrentou com a temática do federalismo, que, de uma maneira ou de outra, serviu para justificar, em dado momento, o fortalecimento das oligarquias de poder local e, em outro, a defesa do pluralismo social e político contra a consolidação da via prussiana da “nossa revolução” (p. 250). Toda vez que nos encontramos em uma conjuntura crítica em que se coloca em questão o pacto social, a questão federalista é reposta. Por isso, ele transborda os limites do liberalismo, abarcando também parte da esquerda, inclusive a comunista. Entre os principais representantes desta linhagem estão Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, Raimundo Faoro, Simon Schwartzman, entre outros. A exposição de Brandão se assenta sobre a possibilidade de definição de linhagens do pensamento político e social brasileiro. Esta história, apesar de incruenta no plano real (como diria Ianni) apresenta uma grande taxa de mortalidade no plano intelectual. É sobre um cemitério de tentativas frequentemente atabalhoadas de compreensão da dinâmica histórica da formação social brasileira que se erige alguns padrões a partir de empreendimentos intelectuais que lidaram com esta experiência e as reproduziram em categorias, conceitos, enquadramentos metodológicos mais ou menos estáveis no tempo. Estes padrões são, contudo, resultados e não pressupostos (p. 251). Mas estas definições não acontecem de maneira semelhante entre as famílias. As características estruturais do conservadorismo, sua continuidade no tempo, seus laços de parentesco são mais fáceis de identificação, pois eles, nutridos pelo poder, não apenas identificam a continuidade como fenômeno empiricamente verificável como também a tomam como princípio orientador da sua ação. Diferentemente, tanto liberais como a esquerda, vendo o passado como fardo e o futuro como tempestade, isto é, assentando-se sobre o programa da descontinuidade, tem suas linhagens emaranhadas, o que dificulta a realização do mandamento socrático e, portanto, do esclarecimento de sua posição diante dos dilemas históricos e, portanto, de reivindicar-se como representante de grupos sociais que almejam a direção intelectual e moral de toda a sociedade (p. 258). O esforço do autor alinha-se, portanto, com o diagnóstico de que, diante da nova crise social e política que ele já antecipava na metade da década passada (possivelmente influenciada circunstancialmente também pela conjuntura do “mensalão”), é necessário preocupar-se com a consciência precária da historicidade das ideias, o que aumenta a imprecisão orientadora da ação política, favorecendo aquela corrente que, mesmo instintivamente, por estar sustentada no poder, pode influenciar novamente amplos grupos sociais em favor de sua conservadora concepção de mundo.

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