Resenha - BRESCIANI, Maria Stella. Projetos políticos nas interpretações do Brasil da primeira metade do século XX

June 7, 2017 | Autor: C. Marcusso Berna... | Categoria: Pensamento Social Brasileiro
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Universidade Estadual de Maringá Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Disciplina: Pensamento Social Brasileiro

BRESCIANI, Maria Stella. Projetos políticos nas interpretações do Brasil da primeira metade do século XX. Revista

de

História,

Brasil,

p.

187-214,

jun.

2010.

Disponível

em:



RESENHA

Cássius M. T. M. B. de Brito

Neste texto, a autora propõe analisar autores fundantes da tradição do pensamento social brasileiro a partir das relações entre suas obras, as imagens a respeito do “caráter nacional” que delas erigem e prefigurações de um futuro social no interior das quais se constroem projetos políticos mais ou menos definidos. Para tanto, ela focaliza textos de Oliveira Viana, Paulo Prado, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Hollanda, escritos entre os anos 1920/30. O intuito da autora é compreender como as análises que aqueles pensadores faziam da sociedade brasileira podiam abrigar um aparente paradoxo: uma certa concordância diagnóstica combinada com projeções utópicas diferenciadas, seja no sentido astronômico do termo (retorno a formas anteriores que recuperariam certa “autenticidade”, “originalidade”), seja no sentido de instauração do novo. Para Bresciani, os autores supracitados partiam de uma unidade em torno de dois aspectos principais: a) uma determinada posição intelectual frente às teorias externas; b) um consenso a respeito do tripé conceitual que formaria a base comum a partir da qual eles enquadrariam a definição do “caráter nacional”. Primeiro, todos eles recusavam o que consideravam ser a importação acrítica das teorias europeias e norte-americanas para pensar a nação que surgia a partir do fim da escravidão e da instauração da República: a transposição direta de concepções, instituições e projetos nacionais a partir do ideal de cidadão abstrato derivado das revoluções burguesas clássicas seria absolutamente inadequada à natureza do povo brasileiro. Isto porque o meio ambiente, a constituição racial do povo (miscigenação) e as marcas da colonização teriam legado uma distância entre as ideias liberais-federalistas e o caráter patriarcal/patrimonialista da sociedade brasileira, onde estariam ausentes as bases fundamentais que sustentam a constituição do cidadão. Constatada a distância, era mister, então, encurtá-la. As discussões presentes neste quatro autores ensejavam, segundo Bresciani, a elaboração de “projeções políticas cujo objetivo constituída fazer do Brasil uma nação apoiada em cidadãos bem formados, homens conscientes de direitos e deveres conjugando o bem comum” (p. 192). Embora críticos da importação passiva de esquemas teóricos estrangeiros, é possível entrever uma certa convergência de objetivos, uma vez que a constituição de uma ordem social que equilibrasse as contradições entre os interesses egoístas do indivíduo, das famílias, dos grupos sociais e a racionalidade impessoal do Estado enquanto garantidor do bem comum é o centro da discussão da teoria política liberal desde os contratualistas clássicos. Não obstante esta confluência de horizonte, os caminhos pensados para alcançá-lo são divergentes entre os quatro autores elencados.

Para Oliveira Viana, o povo brasileiro tinha um caráter completamente diferente dos parâmetros europeus e norte-americanos. As influências da relação entre o homem e o ambiente tropical/rural desenvolvidas ao longo da colonização teriam dotado o nosso povo de um caráter oposto ao ideal liberal, urbano e civilizado preconizado pelas teorias modernas e importadas pelos “estetas das constituições” brasileiras. Para ele, ao invés de invocar o poder performativo da linguagem que caracteriza a história das revoluções burguesas clássicas – onde a palavra superou o conteúdo (Marx) –, seria necessário voltar à “investigação científica” do caráter do nosso povo. Assim, entre a situação de dependência vertical sem constituição de vínculos de solidariedade horizontal dispersa por um amplo território e o ideal de nacionalidade prescrito pelas teorias estrangeiras haveria um grande hiato a ser preenchido por um projeto político no qual o Estado centralizado, unitário, dominador e inquestionável teria como função realizar milagrosamente a racionalidade desta nacionalidade ainda não existente. Neste sentido, Oliveira Viana combinaria uma teoria das elites com um projeto filofascista, na medida em que confere às elites do CentroSul (Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo) a responsabilidade de direção de um projeto de Estado, no interior do qual seria fundamental a tutela das organizações dos trabalhadores em gestação a partir de uma 1

legislação trabalhista corporativista . São sob os signos da conveniência e da adaptação que Oliveira Viana projeta uma utopia no sentido de “volta às origens”. Paulo Prado parte deste mesmo diagnóstico de “má formação” do povo para emplastrar um programa de modernização, mas, diferentemente de Oliveira Viana, a proposta tem menos a ver com a relação Estado-Sociedade e mais com um enfoque direcionado a transformações do “espírito nacional” a partir da produção artística. Paulo Prado é mais lembrado como mecenas das artes paulistanas e funda a sua análise da “alma brasileira” a partir da identificação de seus afetos supostamente característicos, como a luxúria, a cobiça, a tristeza e a disposição romântica, que seriam resultado da miscigenação e legaram ao povo não apenas o mestiço, mas também uma espécie de “filosofia da senzala”, marca do predomínio das emoções sobre a razão (o que será recuperado por Sergio Buarque de Hollanda). Esta “raça triste” estaria, então, em um dilema entre o aprofundamento da desagregação pela via da guerra ou por uma tentativa de regeneração pela via de uma revolução, na qual o autor aposta, mas não define. Gilberto Freyre logrou plasmar uma imagem do povo brasileiro na qual a mestiçagem – enquanto signo de originalidade – figurava como elemento cultural positivo, indo na contramão das teorias raciais hegemônicas da época. Esta mesma mestiçagem teria dotado o caráter do povo brasileiro de uma alma recalcitrante aos dispositivos sociais e políticos modernizadores, sem impedir, contudo a formação da “maior civilização moderna dos trópicos” (p. 202). A originalidade desta civilização – para a qual contribuíram especialmente a plasticidade do português, a sexualidade dos africanos e o caráter sorumbático dos indígenas – estaria na relação racial harmoniosa criada num ambiente de reciprocidade: a casa grande (p. 202-203). Deste modo, não seria a formação cultural, mas o peso do regime escravista o responsável pela realidade social brasileira distanciada dos padrões de comparação “civilizados”.

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Uma coisa, contudo, não deve escapar da vista: a crítica ao "idealismo utópico" presente em uma projeção nacional a partir do "homem metafísico" esconde o conservadorismo de pensar que este "homem real não liberal" seja, em si, fatalmente imutável e, por isso, as instituições fundamentais da nação devam se "adequar" a uma suposta essência deste "homem tropical". À abstração universalista se opõe uma pseudoconcreticidade de um retrato fora da história e, assim, também abstrato. Neste enquadramento se perde justamente o caráter formativo da experiência social, não apenas na projeção de futuros mas no enfrentamento das vivências reais de indivíduos, grupos e classes sociais. Trazer para o chão da experiência de construção coletiva as prefigurações de sociedades, não como "ingredientes para os caldeirões do futuro" ou antecipações de um desenvolvimento histórico teleológico, mas como ideias de vivência diferentes a partir da experiência atual é considerar que a formação do que quer seja, no âmbito social, esteja sempre aberta.

Não é, contudo, em Casa Grande & Senzala, mas no Manifesto Regionalista de 1926 que se encontra o projeto político de Freyre. Discordando de Oliveira Viana, que tributava à elite do Centro-Sul a capacidade diretiva para sua utopia de formação nacional, Freyre identifica na “doce aristocracia” do Nordeste a detentora dos valores morais e dos modos de vida supostamente adequados ao caráter do povo brasileiro. Neste sentido, contra a estrutura política “estadualista”, Freyre propõe uma organização “regionalista”, segundo ele mais condizente com a realidade brasileira. O cosmopolitismo identificado ao “modernismo” do centro-sul seria adequado aos ideais estrangeiros, mais afastado do modo de vida regionalizado que Freyre identificava como sendo a essência da nacionalidade brasileira. Sergio Buarque de Hollanda inaugura uma hipótese interpretativa que, inspirada em Weber, quer compreender como se constituiu um povo que vivia “desterrado em sua própria terra”, na medida em que seu modo de vida havia sido importado de terras distantes e não se adequavam às condições dos trópicos. Mais do que isso, a fatalidade de termos sido colonizados pelo espírito cordial dos portugueses em que supostamente predominam as emoções sobre os elementos racionais, teriam criado uma situação na qual a racionalidade característica do modo de vida burguês e a democracia que lhe acompanhava se configuraria, aqui, como um “mal-entendido” (p. 208). A impessoalidade preconizada pela dominação liberal seria impossível de ser realizada nas condições legadas pela tradição colonial brasileira, pois esta, além da emotividade, teria constituído um afastamento do povo da participação política, proporcionando as condições para que o debate intelectual se desse de uma forma apartada da própria massa. Diferentemente de Freyre, Sergio Buarque confere um sinal negativo à herança colonial e sua cultura do personalismo e da afetação pela formalidade bacharelesca. Pouco propensa às “boas maneiras de civilidade”, a cultura da cordialidade só poderia ser superada, segundo ele, pelas transformações imanentes a um processo de urbanização, que lograria – demorada, mas fatalmente – aniquilar as raízes ibéricas de nossa cultura. Partindo de uma postura intelectual frente aos “estrangeirismos” e de um diagnóstico comum a respeito da “má formação” do povo brasileiro, estes autores vinculam suas imagens do “caráter nacional” a propostas utópicas de sociedades futuras. Pela análise de Bresciani, é possível perceber, dentre outras, duas coisas interessantes: a) toda perspectiva teórica sobre a sociedade está associada a e enseja uma determinada perspectiva política; b) o que não significa que de uma mesma análise derive uma única proposta política. Os resultados diagnósticos muito similares dos quatro autores analisados por ela se vinculam a propostas políticas diferentes, o que nos deve levar a refletir sobre o fato de que há, no espaço entre a “análise concreta das situações concretas” e as formulações estratégicas de constituição do futuro, um campo de possibilidades que, embora não flutue sem ancoragem histórica, não é determinado senão pela ação coletiva em suas próprias circunstâncias.

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