Resenha crítica do artigo \"A sociedade contra o Estado\", de Pierre Clastres

June 4, 2017 | Autor: Marlon Cardozo | Categoria: Filosofía Política, Antropología Política, Antropología Social, Historia Cultural
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Resenha crítica do artigo “A sociedade contra o Estado”, In: CLASTRES, P. “A Sociedade Contra o Estado: pesquisas de antropologia política”, São Paulo: Editora Cosac Naify, 2003. Por Marlon B. Cardozo No artigo “A sociedade contra o Estado”, o antropólogo americanista Pierre Clastres discute questões que atravessam sua obra como um todo: as que envolvem estruturas das sociedades indígenas sul-americanas (e outras sociedades denominadas ‘primitivas’), principalmente as que passam pela natureza da guerra, da política, da economia, pela figura do guerreiro, pela chefia indígena e também pela conquista e colonização européia no continente americano. Porém, uma questão particular é central nesse artigo: a relação das sociedades primitivas com aquilo que Clastres chama de ‘máquinas estatais’ – o Estado -, e aí incluem-se, segundo o autor: “os grandes despotismos arcaicos – reis, imperadores da China ou dos Andes, faraós -, as monarquias mais recentes – O Estado sou eu1 - ou os sistemas sociais contemporâneos, quer o capitalismo seja liberal como na Europa ocidental, ou de Estado como alhures...”. (p.218) O autor incomoda-se com o fato de que as sociedades primitivas sejam consideradas de forma relutante como sociedades sem Estado, pois tal forma de se referir às sociedades primitivas dissimularia um juízo de valor: o de que tais sociedades estão privadas de algo que é, supostamente, necessário a qualquer sociedade: precisamente, trata-se do Estado. A perspectiva de que as sociedades primitivas sofreriam com a falta de um Estado revela um etnocentrismo mais que arraigado: o de que a sociedade existe para o Estado, o de que este é o destino único de toda a sociedade. Desvelar essa questão revela-se como o objetivo da discussão do artigo, e Clastres apresenta seus argumentos a partir de dados colhidos por etnografias (suas e alheias) e pelas discussões acumuladas do pensamento etnológico. Sua conclusão será a de que as sociedades primitivas, sobretudo as ameríndias, se valem de mecanismos sociais que impedem o surgimento da ‘máquina estatal’. O que também significa que essas sociedades também se valem de tais mecanismos para impedir a divisão interna da sociedade, ou seja, a perda da autonomia da mesma. Nisso, também seria impedido o início de relações de poder baseadas na autoridade e na exploração. Segundo Clastres, essas sociedades não existiriam para o Estado - muito pelo contrário, elas seriam sociedades contra-o-Estado. Uma das falácias refutadas por Clastres é a de que os selvagens seriam miseráveis. Muita insistência houve nesse argumento pelo fato de que as sociedades indígenas não têm mercado, ou pra ser mais preciso (já que escambos e trocas sempre foram fatos admitidos em relação a essas sociedades, e para não confundir o termo ‘mercado’ com esses termos), não haveria produção de excedentes ou acumulação de riquezas entre os selvagens. A insistência no argumento da “miséria dos selvagens” também foi devida à crença de que os selvagens disporiam de um “subequipamento técnico” e sofreriam com uma suposta “inferioridade tecnológica”. Clastres refuta esses argumentos afirmando que o equipamento técnico que os ameríndios possuíam dava conta de suas necessidades mais básicas, e não raro, sobrava até uma certa quantidade de alimentos na colheita, o que é verdade no que se refere a outros produtos ainda. E a divisão social do trabalho fazia com que os indivíduos tivessem que trabalhar por muito menos tempo que os indivíduos da nossa sociedade, que é estatal. Quanto à produção de excedentes, Clastres afirma que era inútil que algum selvagem empreendesse algo nesse sentido. Pois não haveria onde nem quem consumir os bens em excesso, e quando havia, a comunidade não raras vezes se apropriava desse excedente. Outras falácias são desdobradas e refutadas no artigo, inclusive no que se refere à política nas sociedades ameríndias. E é com uma questão política que pretendo concluir esta resenha. Se as sociedades ameríndias são sociedades “sem lei e sem rei” (o mesmo que dizer que são ‘sem Estado’), como há muito é dito, a dimensão política dessas sociedades encontrar-se-ia ausente? O autor responde-nos esta questão a partir da figura do chefe tribal. Se o chefe ocupa uma posição singular nessas sociedades, ainda assim esta não é uma posição de poder, ou seja, o chefe não é um chefe de Estado, o que também quer dizer, usando uma expressão de Clastres, que o chefe não tem a liberdade de “bancar o chefe”. O chefe indígena assegura sua posição, no caso de precisar “restabelecer a ordem e a concórdia”, a partir do prestígio que este conquista perante sua comunidade, prestígio que se deve bastante (mas não somente) ao uso da palavra, à sua habilidade como orador. Porém, “a palavra do chefe não tem força de lei”. (p.219) Ou seja, o chefe “não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar uma ordem”. (p.218) Se não há autoridade, então como a política se dá no que se refere à posição do chefe? Por conta da impossibilidade da servidão, ou seja, da impossibilidade da tribo ficar a serviço de chefe (o que acontece é sempre o inverso), assegura-se simultaneamente, por uma curiosa operação sociológica (ou mais, até), a possibilidade da comunidade primitiva conjurar essa que seria para Clastres a primeira encarnação do Estado: a divisão entre senhores e súditos, entre dominantes e dominados. É a elucidação desta forma tão singular de se fazer política que Clastres busca, fato que pode ser confirmado pela leitura de outros de seus artigos e trabalhos etnográficos.

1

Alusão à conhecida afirmação do rei da monarquia absolutista da França do século XVII/XVIII, Luís XIV (1638-1715).

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