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May 28, 2017 | Autor: Gabriel Dos Santos | Categoria: History, História do Brasil, História, História Do Brasil Colonial
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Resenha crítica do livro Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia

Introdução
O gênero ensaístico era utilizado como um esforço de síntese, no qual o autor discorria sobre os processos que originaram a sociedade brasileira e, por vezes, apontando para possibilidades de superação do modelo de social vigente. Até a instituição dos primeiros cursos de pós-graduação em História no Brasil, a partir da década de 1960, esse gênero de escrita histórica, foi bastante utilizado na intenção de se construir sínteses da História brasileira, na intenção de se explicar as origens da sociedade brasileira e os motivos pelos quais ela se encontrava naquele grau de desenvolvimento de então. Mesmo com o declínio desse gênero de escrita histórica, foi dentre as obras que surgiram dentre suas fileiras que figuram vários dos livros mais cultuados no que tange à explicação das origens e desenvolvimento da sociedade brasileira. Figuram dentre estes as obras Casa grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, que até hoje são identificados como "os livros que inventaram o Brasil". Cada um em sua linha analítica, esses três autores visaram explicar o surgimento da nação brasileira explicando a formação de seus aspectos mais marcantes.
A obra Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia, de Caio Prado Júnior, é um trabalho de síntese vibrante que, a partir de uma linha de interpretação Histórico-materialista, objetivou demonstrar, nas palavras de Fernando Henrique Cardoso, "cada passo da consolidação do sistema colonial mostrando sempre as incertezas e contradições que finalmente o minavam". Essa característica presente na obra em questão pode ser atribuída à própria trajetória do autor.
Nascido em São Paulo, no ano de 1907, data da publicação de Capítulos de História Colonial, de Capistrano de Abreu, Caio Prado Júnior possui uma trajetória que culminou em sua consagração como mais influente historiador brasileiro após a década de 1930. Formado em Direito e Geografia, Caio Prado Júnior, de origem aristocrática, filho de uma família cafeicultora paulista, se tornou um "intelectual orgânico do movimento operário brasileiro" (REIS, 1999, p. 32). Foi militante e político associado ao PCB, dedicando-se à análise de qual forma de marxismo seria mais adequada à realidade brasileira. Por esse motivo, talvez, tenha se tornado um tanto heterodoxo dentro do próprio partido.
A partir de sua análise, "a história social brasileira apareceu sob uma nova perspectiva até então desconhecida. A partir de então, inaugurou um estilo de pensar a realidade brasileira, uma perspectiva crítica que discute as relações entre o passado e o presente e examina as possibilidades de mudanças no futuro". Por esse motivo, sua obra ainda figura entre os clássicos, figurando-se viva e sempre passível de ser citada.
A intenção deste trabalho é a de analisar a obra de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia, apresentando um breve resumo das ideias dispostas pelo autor para o Sentido da Colonização e a Organização Social do período retratado no livro. Em um segundo momento, o trabalho discutirá brevemente alguns dos seus argumentos, contrapondo-os a análises acadêmicas mais atuais em seus respectivos campos de análise, com a intenção de demonstrar de que forma ainda podemos observar alguma influência das ideias de Caio Prado Júnior na produção historiográfica, seja em um sentido de relativização ou corroboração.
A formação da sociedade contemporânea
Em Caio Prado Jr., a formação da sociedade brasileira, está intrinsecamente ligada a dois fatores em específico, a saber, a exploração comercial da terra, o que teria originado o impulso à colonização, e a escravidão. Nesse aspecto, os capítulos "Sentido da colonização" e "Organização social" sintetizam a ideia do autor em relação a esse processo, o contexto no qual ele se insere e as consequências originadas a partir do mesmo. Por conta disso ele visa explicar esses dois aspectos que moldaram a sociedade brasileira a partir de uma base materialista, comparando os modelos de colonização e de escravismo em seus vários aspectos para estabelecer um parâmetro de análise de sua contemporaneidade.
Partindo desse princípio, Prado alinha a empresa colonizadora portuguesa em solo americano ao contexto do Mundo Atlântico, situando-a como "um capítulo da história do comércio europeu" (PRADO JR., 2011, p.19). A partir dessa localização, o autor afirma que o empreendimento português não pode ser elevado ao status de uma aventura isolada na história, de uma singularidade. Isso porque a empresa colonizadora se estabeleceu em vários pontos da América por iniciativa também de outras nações europeias. A fixação territorial só adquiriu um caráter de exploração e povoamento, de por questões contingenciais, a saber, pela falta estrutura para que se pudessem estabelecer feitorias, como dantes se fazia na Ásia e na África. Assim "era preciso ampliar as bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção de gêneros que interessassem ao seu comércio" (PRADO JR., 2011, p.21). No caso português a única alternativa restante era a exploração fundiária. Assim a colonização só passou a ter o sentido de exploração territorial, não apenas para os portugueses, mas também para o restante das nações europeias que se lançaram às explorações marítimas, por não restar alternativa viável para se reverter o investimento em lucro com os territórios descobertos. Nesse aspecto, sua análise se aproxima da de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, onde este afirma: "Para os portugueses o ideal teria sido não uma colônia de plantação [...] As circunstâncias americanas é que fizeram do povo colonizador de tendências menos rurais [...] o mais rural de todos..." (FREYRE, 2006, p. 86).
O caráter mercantilista da colonização portuguesa nos trópicos é reforçado pelo autor com o uso do binômio colônia de exploração x colônia de povoamento. Para explicar essa diferença no modelo de colonização, Prado identifica e compara os motivos pelos quais, em sua visão, ocorreu uma bifurcação no modelo de exploração, entre a zona temperada do Norte (no caso as treze colônias), onde se desenvolvera um tipo de organização voltada para o povoamento e a zona tropical, de trato mais difícil, sendo povoada apenas por motivos econômicos. No primeiro caso, os colonos se moveram em direção à América por conta de fatores ligados a conflitos político-religiosos, no caso da Inglaterra, não objetivando a "invenção da América", mas uma espécie de reconstrução ou aprimoramento da comunidade onde viviam. Já no caso dos últimos o esforço empreendido foi voltado exclusivamente para a atividade econômica. E, embora as condições para a permanência do europeu nas zonas tropicais fossem depreciativas em relação às da zona temperada, o apelo comercial era grande o suficiente para sua permanência, visto que a zona tropical oferecia a possibilidade da cultura de gêneros que até então eram caros e pouco encontrados na Europa. Ainda assim, Portugal é posto pelo autor como pioneiro na forma de exploração, na organização da produção e povoamento e na resolução dos problemas acarretados pela nova forma de colonização, apenas perdendo espaço posteriormente para seus "adversários" comerciais europeus.
Para Caio Prado Jr., o sentido da colonização portuguesa nas Américas foi, antes de tudo, voltado para a exportação. Mesmo com o desenvolvimento de uma mentalidade diferenciada do absenteísmo generalizado pelas plantations nas posses inglesas, esse sentido mercantil foi a força motriz da colonização durante os seus três séculos, sendo profundamente marcada na identidade que se desenvolveu durante e após aquele período.
Voltando-se para o aspecto social da colônia, Prado afirma que, antes de qualquer coisa, o que caracteriza a sociedade brasileira às portas do século XIX é a escravidão. Ela era na sociedade colonial uma instituição de alcance universal. Semelhante em muitos aspectos à praticada no restante das Américas, surge também por conta da expansão marítima europeia. "Ela deriva de uma ordem de acontecimentos que se inaugura no século XV com os grandes descobrimentos ultramarinos e pertence inteiramente a ela" (PRADO JR., 2011, p.286). Por conta disso, afirma que a escravidão americana deve ser analisada mediante a visão de que fora "um processo original e próprio" (PRADO JR., 2011, p.286), com repercussões irradiadas a partir de sua particularidade.
Novamente utilizando-se do método comparativo, o autor faz um contraponto entre as modalidades de escravidão do Mundo Antigo e do período Moderno, visando estabelecer as bases da escravidão revivida no período das descobertas, pura e simplesmente na exploração comercial das posses ultramarinas europeias. O motivo para a escravização fora, portanto, a necessidade de uma produção altamente rentável para os europeus em terras americanas. Para o autor essa modalidade escravista comercial é exclusiva das Américas. Assim, a instituição que se desenvolveu em resposta às necessidades econômicas da colonização em terras americanas. Dessa forma, a colonização nas Américas se construiu em bases exclusivamente escravistas.
Voltando os olhos novamente para a colonização brasileira, Prado classifica a escravidão como um prejuízo à sociedade colonial, visto que o uso da mão-de-obra escrava anulava a expressão cultural dos povos subjugados, projetando sobre eles o fardo da escravidão que exigia apenas um esforço físico, força de trabalho. Assim, ao contrário da civilização romana que teria sido altamente beneficiada pela aglutinação de valores culturais das nações subjugadas pela guerra, a cultura europeia, na pessoa do português, teria sido antes, degradada pelas reminiscências das culturas índia e africanas que se entremeavam por entre a cultura do português explorador. Para o autor, melhor se aproveitaria das culturas dos escravizados se algo próximo do trato romano fosse feito para com esses indivíduos. Não apenas negando-lhes a oportunidade de transmitir seus valores culturais e os consequentes benefícios ao projeto colonizador no Brasil. A "integração" dos africanos escravizados à sociedade colonial era do pior tipo possível. Massas de escravos negros eram trasladadas para o Brasil sem nenhum preparo, estando em um estado de semi-barbárie. Por esse motivo a presença do escravo fora prejudicial para o desenvolvimento da sociedade colonial.
Por esses motivos, a escravidão colonial portuguesa não poderia ser classificada como mais branda, humana ou complacente. O que ocorria, segundo Prado, era que o escravo era "mais bem tratado" em terras portuguesas do que em posses francesas ou inglesas. O motivo para tal comportamento, afirma, seria a "índole portuguesa" (PRADO JR., 2011, p.294), que concorreria para um trato mais afrouxado para com o escravo. Havia uma espécie de regime patriarcal na grande propriedade colonial que aproximava, de alguma forma, o escravo e o senhor, permitindo uma troca mais intensa, mesmo que desigual, de valores culturais entre eles.
Por conta da presença da escravidão, tão arraigada na formação da sociedade brasileira, Prado aponta para a forma como essa relação influenciou as outras formas de trabalho na colônia. Visto que os escravos eram mão-de-obra onipresente na sociedade de então, os trabalhos manuais eram vistos como desonrosos para os brancos pobres ou até mesmo para os mestiços de tez mais clara. Dessa forma as opções de trabalho para faixa intermediária da população eram limitadas. Nesse contexto, a Igreja era o único espaço em que se verificava uma maior "democracia" no sentido de aceitar em suas fileiras uma gama maior de candidatos, mesmo que os negros ficassem aquém da possibilidade de ingressar em uma carreira eclesiástica, tendo os mestiços a possibilidade de conseguir chegar a tanto apenas mediante autorização especial.
Essa "aversão" ao trabalho manual da parte dos brancos e mestiços originou, segundo Prado, um quadro um tanto nebuloso na divisão social da colônia. Apenas duas categorias sociais se encontravam devidamente demarcadas: Os senhores brancos e os escravos negros. A camada que se encontrava entre esses dois extremos sociais, e a maioria da população livre da colônia, por outro lado, era difusa e indeterminada. Contudo era tida como inútil, degenerada e, segundo Couty, sem nenhuma característica que a identificasse como um povo. Sobre essa parcela da população, a visão que o autor apresenta é a de que esses indivíduos são um produto da sociedade escravocrata que, por tão cruel e rígida, acabou por segregar os indivíduos que não se encaixavam nas duas categorias melhor demarcadas.
Essa grande parcela populacional era formada por índios, mestiços, brancos empobrecidos e negros quilombolas. No geral, esses indivíduos eram classificados como degenerados moralmente, embrutecidos e "renegados" aos sertões do Brasil. Para o autor, as agitações que ocorrem no período regencial são, em grande parte, por responsabilidade dessa grande massa de indivíduos que ficam à margem da ordem social. Dividia-se essa "população vegetativa da colônia" em dois grupos: os "agregados", habitantes das regiões rurais que se ajuntam sob a proteção dos senhores, servindo-lhes o papel de vassalos dos grandes proprietários e os "vadios", desempregados errantes, nas cidades e nos sertões, que por vezes se ajuntam em bandos para assaltar vilarejos mais afastados. Para o autor que esses indivíduos são considerados empecilho para o desenvolvimento econômico da colônia, sendo de única serventia sua integração às milícias particulares dos grandes proprietários.
Um último fator para esse desenvolvimento social tão desnivelado da sociedade brasileira fora uma economia e produção tão instáveis que nunca puderam oferecer bases sólidas para um desenvolvimento de longo prazo, causando rupturas e fragmentações ao fim da cada ciclo de crescimento e com a mudança do foco de produção. Para exemplificar esse movimento cita a atividade de mineração nas Minas Gerais, que teria causado um grande desequilíbrio econômico quando do seu declínio.
Quanto ao que Prado chama de "aspectos organizados" (PRADO JR., 2011, p.304) da sociedade colonial brasileira, o que se pode observar é a presença do "clã patriarcal" como centro gravitacional da organização hierárquica daquela sociedade. Para o autor, assim como para Freyre, é o modelo de família estendida, que lança seus braços a partir do núcleo familiar do senhor de engenho, o grande proprietário colonial, que o modelo de dominação política e econômica se estabelece. Originado do regime econômico, sua influência se faz sentir sobre a autoridade pública, que segundo o autor, é "fraca e distante" (p.305), mais dependendo desse centro de poder local, assentado na produção, do que influenciando sobre as regras que lhes regiam. Dessa forma, o "clã patriarcal" exercia um tipo de força centrípeta que atraía para si uma influência que sobrepujava o poder publico e também tornava dependente de si a organização e distribuição da ação da Igreja na colônia, visto que as capelas se encontravam dentro dos próprios engenhos, bem como as freguesias que tinham seus clientes, em sua maioria, também nas zonas de influência desses "grandes centros" sociais.
É por conta dessa característica clânica e a perpetuidade dessa instituição na sociedade colonial que surge a imagem de que o trato para com os escravos na sociedade brasileira era mais humano, colocando o escravo em uma posição melhor do que a de outras regiões. Dessa forma,
Constitui-se assim no grande domínio um conjunto de relações diferentes das de simples propriedade escravista e exploração econômica. Relações mais amenas, mais humanas, que envolvem toda sorte de sentimentos afetivos. E se de um lado estas novas relações abrandam e atenuam o poder absoluto e o rigor da autoridade do proprietário, doutro elas a reforçam, porque a tornam mais consentida e aceita por todos. (PRADO JR., 2006, p.306)
Esse processo levou a uma aristocratização do proprietário rural. Para isso contribuiu a temporalidade da organização clânica, o fato de centralizar a vida social da colônia e a universalização desse modelo de grande proprietário rural. Isso porque, segundo Prado, esse modelo de organização social, por mais que guardasse seus matizes regionais, mais por conta das atividades econômicas exercidas em cada região, "as distinções sociais e predomínio absoluto e patriarcal do proprietário e senhor são elementos que se associam de uma forma geral a todos os grandes domínios da colônia." (PRADO JR., 2011, p. 309).
O contraponto se dava com a figura do pequeno proprietário com suas terras voltadas para a produção de uma diversidade de víveres para a subsistência e produtos de menor vulto para a venda. Nesse caso, embora a presença do escravo ainda se fizesse sentir, havia uma menor hierarquização nas relações sociais. Contudo para o autor, isso era uma situação resultante das relações entre esses indivíduos em os grandes proprietários, visto que aqueles ainda eram atraídos por estes a uma relação de dependência, como o autor já abordara anteriormente.
A exceção ao padrão de organização social orbitada a volta do grande proprietário se encontrava no modelo de colonização relatado em Santa Catarina, onde as propriedades eram trabalhadas ela família rural, resultando disso um número quase inexistente de escravos e uma maior valorização do papel da mulher naquela parcela da sociedade que fugia do padrão patriarcal, hegemônico no restante da colônia.
Mudando o foco para as cidades, elas teriam partido de um estado em que eram apenas um reduto de vadios e prostitutas para, com o tempo crescer em importância, se tornando lugar em que se poderia encontrar além de um comércio ativo, uma grande quantidade de profissionais nas mais diversas áreas. Entretanto, isso não significa que, em princípio, a "nata da sociedade" que ali se encontrava não tinha origens rurais. Na verdade era o contrário. Os senhores passaram com o tempo a revezar sua estadia na grande propriedade com períodos de estada nas cidades, para negociar ou simplesmente para ter um contato social urbano.
Nesse contexto, a partir do maior contato entre senhores rurais aristocratizados e comerciantes reinóis, surgira, na visão do autor, as primeiras disputas entre classes, de onde posteriormente se dariam os embates entre os que se viam como brasileiros e os portugueses. Isso pelo fato de que a administração da metrópole fazia vantagens aos comerciantes reinóis que faziam fortuna nas cidades, principalmente as portuárias, no Rio de Janeiro, em detrimento dos grandes proprietários rurais, que se identificavam, cada vez mais com o "ser brasileiro".
A efervescência originada dessa disputa levaria às agitações da independência e à ruptura da subordinação política do Brasil em relação à Portugal.
Influências e relativizações
Mesmo sendo uma referência nos estudos a respeito das origens da sociedade brasileira e seu passado colonial, identificando os possíveis problemas que a levaram a um presente ainda desigual, a visão de Caio Prado Júnior sobre esse passado, mesmo que ainda ecoe como referência, já foi relativizada em vários aspectos. Por tal motivo, nos é válido apresentar alguns contrapontos atuais para algumas de suas visões apresentadas brevemente nesse trabalho.
A começar pela linha materialista pela qual traça as origens da colonização europeia em direção às Américas, e mais especificamente, em direção ao que viria a ser o Brasil, Caio Prado limita os motivos para a tal expansão apenas aos motivos econômicos (e político-sociais, no caso da Inglaterra e das Treze Colônias). Como já visto anteriormente, fora colocado por ele apenas como "um capítulo da história do comércio europeu" (PRADO JR., 2011, p.19). Entretanto, este fator pode não ser visto como único determinante para a expansão marítima portuguesa e sua legitimação.
Portugal possuía uma identificação intrínseca com a religião cristã, visto que a mesma participara do processo de formação da sua nacionalidade e estava em um regime de padroado, no qual o monarca português estava comprometido com o vaticano em relação à propagação da fé cristã. Dessa forma, a expansão territorial portuguesa, além do aspecto comercial, possuía um aspecto religioso intrínseco, resultante do intenso contato entre os portugueses católicos e os mouros. Encontra-se exemplo disso no livro de Laura de Mello e Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz, onde a autora afirma que:
A fé não se apresentava isolada da empresa ultramarina: propagava-se a fé, mas colonizava-se também. As caravelas portuguesas eram de Deus, nelas navegavam juntos missionários e soldados [...] Dilatação da fé, colonização e fortalecimento do poder monárquico sempre apareceram associados [...] (SOUZA, 2014, p.49,50).
Nesse aspecto, a visão de Caio Prado Jr é relativizada em relação ao determinismo econômico que parece existir em sua interpretação das origens da colonização brasileira. De fato à época, ainda havia uma interseção muito grande entre religião e atividades laicas, visto que a mesma era usada constantemente como justificativa para o comércio ou a conquista de novos territórios.
Outra visão apresentada por Caio Prado Jr que pode ser relativizada atualmente é a justificativa, também puramente materialista para a escravidão moderna. Continuando na mesma linha, de que a expansão marítima portuguesa alinhava aspectos mercantis e religiosos, podemos afirmar que, ao contrário da interpretação de Prado, a escravidão moderna, nos termos do império ultramarino português também se sustentava sobre bases ideológicas religiosas. Dois conceitos intrínsecos à sociedade lusitana do período moderno podem ser apontados para sustentar essa afirmação: o conceito de limpeza de sangue e o de guerra justa. O primeiro, que remete às Ordenações Afonsinas (1446/7), "determinava as diferenciações no seio do povo e limitaria a expansão da nobreza" (MATTOS, 2010, p.144), oferecendo as bases para a segregação social e os limites de mobilidade dentro daquela sociedade. O segundo, autorizado em 1455 pela bula Romanus Pontifex, autorizava o comércio de escravos em nome de uma possível conversão em um contexto de guerra justa, que era deflagrada "em geral, à legítima defesa, à liberdade de pregação do evangelho e, para alguns, à garantia da liberdade de comércio" (HESPANHA E SANTOS, 1993, p.396). Dessa forma, o comércio de escravos africanos tinha, além do apelo comercial, do lucro envolvido e do uso da mão de obra escravizada para o cultivo da terra, um fundamento ideológico ligado à religião.
Em relação ao processo de emancipação política do Brasil, apresentado por Caio Prado Jr como resultante de uma divergência entre a aristocracia rural, já identificada como 'brasileira', e os grandes comerciantes, os chamados "homens de grosso trato", responsáveis pela exportação dos produtos brasileiros, bem como pelo tráfico escravista, aparece, atualmente apenas como parte da questão, nas análises historiográficas mais recentes. Um processo de "interiorização da metrópole", nas palavras de Maria Odila Leite da Silva Dias, teria sido o escopo pelo qual tal emancipação teria ocorrido e, ao contrário do que propôs Caio Prado Jr, teria contornos de continuidade, não de ruptura. O motivo para isso era o de que, "as condições, enfim, que oferecia a sociedade colonial, não eram aptas a fomentar movimentos de liberação de cunho propriamente nacionalista no sentido burguês do século XIX" (DIAS, 2005, p. 18).
Tal processo, dentre outros fatores, se deu por conta da vinda da Família Real e da Corte para o Brasil em 1808. A partir desse momento, várias medidas visando à modernização da colônia foram implementadas. Somando-se a isso, a liberação dos portos brasileiros para o comércio direto com nações amigas, leia-se Inglaterra, representou o fim do Pacto colonial, aumentando a importância do Brasil no cenário do comércio Atlântico. Esses fatores corroboraram para um gradativo aumento da autonomia da colônia, o que criou nas elites, a visão de que o centro do Império se encontrava em terras brasileiras. Nesse aspecto, a influência dos grandes produtores rurais e dos "homens de grosso trato", e não dessas 'classes' em oposição, foi crucial para o desenrolar da emancipação política brasileira.
Embora marcado pelas opiniões divergentes entre os grandes produtores rurais e os comerciantes, o aumento da autonomia comercial do Brasil em relação à Portugal, e o fato da Corte, financiada por ambos os blocos, estar também em solo americano, fez com que dois objetivo se tornassem comuns entre essas elites. O primeiro era um esforço de se evitar uma recolonização, visto que isso representaria grande perda nos negócios obtidos com a abertura dos portos às nações amigas. O segundo era o constante medo do haitianismo, resultante da imensa disparidade entre as elites dominantes e o restante da população. Assim, esses fatores "agiram como força política catalisadora e tiveram um papel decisivo no momento em que regionalismos e diversidades de interesses poderiam ter dividido as classes dominantes da colônia" (DIAS, 2005, p.23).
Nesse ponto, o processo de emancipação política se deu em um contexto bem mais complexo do que o apontado por Caio Prado Jr em seu livro.
Mesmo com a distância entre a interpretação que a obra Formação do Brasil Contemporâneo deu à formação da sociedade colonial e os estudos mais atuais, encontramos também aqueles que parecem ter sido influenciados pela visão de Prado, ou ao menos, endossado algumas de suas afirmações.
Em relação à universalidade da escravidão desde os primórdios da colonização e sua utilização universal como força de trabalho no período colonial, sendo os negros escravizados aplicados em diversas atividades tidas como impróprias para os brancos portugueses, encontramos eco das ideias de Prado em alguns estudos mais atuais, que se utilizaram de relatos do século XVII. Por exemplo, na obra de Charles Boxer, A Idade de Ouro do Brasil: Dores de crescimento de uma sociedade colonial, encontramos relatos de dois extremos do referido século, um de 1702 e o outro de 1771, onde o primeiro afirma que "os brancos só servem de determinar aos escravos o que hão de fazer ou sejão seus senhores ou feitores dos seus senhores" e o segundo confirmando que "o trabalho em este país se faz todo com escravos, com um feitor mulato e poucas vezes branco". Dessa forma,
Fosse como trabalhadores nas lavouras ou nas usinas de açúcar, fosse como carpinteiros navais, marceneiros, sapateiros remendões, pedreiros, e outros trabalhos "mecânicos, os trabalhadores negros, escravos, tinham-se tornado inteiramente indispensáveis, pelo fim do século XVI (BOXER, P. 28).
Do mesmo modo, o tratamento para com os escravos, apontado por Caio Prado como algo que não poderia ser chamado de mais humano ou mais brando, é apontado nessa mesma obra de Charles Boxer como bastante cruel e despropositado, contudo menos cruel do que o tratamento dispensado por espanhóis e ingleses aos seus cativos.
A disciplina era mantida com uma severidade que muitas vezes degenerava em perversidade sádica, no que se refere à aplicação de castigos corporais [...] Esses excessos sádicos eram, naturalmente, evitados em fazendas mais bem dirigidas [...] O viajante francês Froger, que visitou a Bahia em 1696 e descreveu as crueldades ali infligidas aos escravos, acrescenta, realmente: "Embora tudo isso seja bastante mau, o tratamento que lhes dão os espanhóis e os ingleses é ainda mais cruel" (BOXER, P.33).
Dessa forma, pode-se perceber que de fato havia em Caio Prado Jr, a necessidade de expor, a partir da formação da identidade brasileira, já no período colonial, a origem da desigualdade social observada por ele em seu tempo. Não haveria espaço em suas linhas para uma democracia racial, o que, possivelmente, levou a outros autores a seguir na mesma linha de uma análise crítica da escravidão brasileira, de modo a expor sua natureza, mesmo que em alguns aspectos, diversa da escravidão praticada no restante das Américas.
Como pudemos observar brevemente, embora já tido por alguns historiadores como ultrapassada, a interpretação das origens e desenvolvimento da sociedade brasileira enquanto colônia, através dos seus três séculos de existência, ainda se faz presente, influenciando a reflexão ou à crítica, diversos estudiosos da história brasileira. O seu pioneirismo em abordas as questões coloniais de forma mais direta, mesmo que excessivamente materialista em alguns aspectos, faz com que a obra Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia, ainda seja ponto de partida para pesquisas e leitura obrigatória para graduandos. Mesmo por que, assim como outros ensaístas, as reflexões que motivou através de suas ideias, ainda ecoam por entre as fileiras da academia.


















Conclusão
Como afirma Ítalo Calvino em seu livro Porque ler os clássicos, "Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual." Seguindo essa afirmação, o livro Formação do Brasil Contemporâneo é um clássico que não pode ser deixado de lado. A influência da visão de sociedade colonial brasileira desenvolvida por Caio Prado Jr, levou gerações de historiadores ao debate. Sua percepção de nuances da história colonial que até então não haviam sido consideradas, com exceção do seu diálogo com alguns conceitos de Freyre, sua interpretação das origens da sociedade brasileira, a partir de suas ligações com o contexto do Mundo Atlântico, das relações econômicas que se estabeleceram no período Moderno e as repercussões do desenvolvimento de uma identidade nacional que teve suas bases no escravismo, ainda hoje geram discussão e encontram ecos em nossa realidade.
Talvez sua identificação com o social, o proletariado, seu amor pelo país, tenham feito dele um autor que se propôs a encontrar, resgatar e fazer aflorar os motivos para a desigualdade que ele observava em seu tempo. Sua militância era voltada para o social, o povo, antes mesmo do partido do qual fazia parte. Talvez, digo novamente, essa identificação e a necessidade ainda atual da resolução de tantos problemas sociais, façam com que sua obra ainda possua um "quê" de vivo e vibrante, como se ainda clamasse por uma solução daquilo que em suas páginas foi evidenciado.







Referências Bibliográficas
BOXER, CHARLES. A Idade de Ouro do Brasil: Dores de crescimento de uma sociedade colonial. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000, 405p.
DIAS, M. O. L. S.. A interiorização da metrópole e outros estudos. 1ª. ed. São Paulo: Alameda casa editorial, 2005. 163p.
MATTOS, HEBE M. A escravidão moderna nos quadros do Império Português: o Antigo Regime em perspectiva atlântica. In: JOÃO FRAGOSO; MARIA F.BICALHO; MARIA F. GOUVÊA (Organizadores). O Antigo Regime nos trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 142-162.
PRADO JR., CAIO. Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia; entrevista Fernando Novais; posfácio Bernardo Ricupero. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
REIS, J. C.1999REIS, J. C. . Anos 1960: Caio Prado e a Revolução Brasileira. Revista Brasileira de História, Anpuh - São Paulo, v. 37, p. 32-40, 1999.
SOUZA, L. M.. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Volume 1. 542p.











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