Resenha crítica do texto \"Freud e os não-europeus\", de Edward W. Said

May 31, 2017 | Autor: Marlon Cardozo | Categoria: Historia Cultural
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Resenha crítica do texto "Freud e os não-europeus", de Edward W. Said Marlon B. Cardozo

Embora a feitura de uma resenha crítica se proponha a ser algo mais que um comentário descritivo sobre uma obra, precisarei fazer a seguinte consideração: o texto com que trabalharei aqui faz, de certo modo, resenhas e comentários de alguns outros textos, inclusive o bastante citado "Moisés e o monoteísmo", de Sigmund Freud (18561939). De forma que não hesitarei em transcrever e esclarecer algumas passagens do texto que se mostrarem chaves pro entendimento dos temas nele tratados. Mas como é dele que se trata, vamos direto ao ponto. Esse texto do pensador Edward Said (1935-2003) é um exercício de reflexão em torno de alguns temas caros às tradições intelectuais e políticas do século XX: a questão da alteridade e da identidade, a trajetória dos judeus antes e durante esse século, e as concepções freudianas relacionadas a essas questões, desenhadas a partir do livro "Moisés e o monoteísmo, lançado em 1939, ano da morte de Freud. E há ainda mais um tema que sinaliza questões mais especificamente contemporâneas (e não menos entrelaçadas com aquelas): a questão da colonização, ou melhor, do contexto póscolonial erigido após as guerras coloniais. O autor afirma no início do texto que há duas concepções da expressão não-europeus: uma da época de Freud e outra que surge depois da segunda grande guerra, quando a questão colonial e a judaica vêm à tona. Vejamos como o autor as explica. A primeira é explicada através da forma como Freud concebe os que seriam nãoeuropeus: por conta de sua educação na tradição judaico-cristã, Freud é acusado por Said de possuir "uma visão eurocêntrica da cultura", justificando, porém, que isso pode ser considerado menos absurdo naquela época do que hoje em dia, pela razão de que aquele mundo "ainda não tinha sido tocado pela globalização, nem pelas viagens rápidas, ou a descolonização, que tornariam aquelas clturas, antes desconhecidas ou reprimidas, disponíveis para a Europa metropolitana".i Ou seja, ao afirmar que até Freud, com todo seu eruditismo, ainda assim possuía um conhecimento deveras distante dos povos nãoeuropeus e de suas culturas, o autor aponta para o modo enraízado como a sociedade europeia em volta de Freud concebia os mesmos antes da segunda grande guerra e das guerras coloniais. Quanto à segunda, esta seria "politicamente mais carregada". Said afirma que depois da segunda grande guerra, "isto é, após a queda dos impérios clássicos e a emergência de vários povos e Estados recém-libertados na África, na Ásia e Américas", a Europa passou a ser vista de uma nova forma, e o mundo não-europeu, igualmente (ou melhor, com o perdão do trocadilho, diferentemente). Citando Frantz Fanon (1925-1961) (que é, segundo o autor, "o herdeiro mais polêmico de Freud" e que escreve nesse período do pós-guerra), o autor alega que ele intenta atacar "todo o edifício do humanismo europeu, que provou ser incapaz de ir além de suas próprias odiosas limitações".ii E alega que esse ataque é aprofundado pelos críticos subsequentes do eurocentrismo nas últimas quatro décadas do século XX. A concepção de não-europeus desenhada aqui seria então uma concepção formulada dentro da percepção, que o autor atribui a Erich Auerbach (1892-1957), de que "uma nova era histórica estava nascendo, cujos contornos e cujas estruturas não seriam familiares justamente porque nelas havia muito que não era nem europeu nem eurocêntrico".iii Dentro dessa explicação da segunda concepção de não-europeus, Said destaca que Freud nunca ousou erigir (ele até sinalizaria recusar) uma "barreira insuperável entre primitivos não-europeus e a civilização europeia". Segundo Said, a diferença qualitativa

entre 'primitivo' e 'civilizado' usada por Freud parece até "funcionar para a vantagem do último", e de fato a ideia de diferença cultural da forma como Freud a concebeu já havia mudado bastante na segunda metade do século XX, mas isso não exclui o fato de que Freud até foi bastante rigoroso na análise da própria civilização, "que ele vê de maneira decididamente ambígua e até pessimista".iv Portanto, percebe-se que essa segunda concepção (que compreende, de certa forma, a primeira) é mais complexa, e, portanto, mais ambígua. Ela será melhor esclarecida pelo autor no fim do texto. Ao rebater críticas de que estaria "atacando retrospectivamente" grandes autores como Karl Marx (1818-1883) ou o próprio Freud, Said alega: "Os textos inertes permanecem em suas épocas: aqueles que se contrapõem vigorosamente às barreiras históricas são os que permanecem conosco, geração após geração." v O que é também um jeito que Said usa para começar a tratar do livro "Moisés e o monoteísmo". O livro seria uma manifestação do "estilo tardio (Spätstil)" de Freud, onde este já não estaria tão preocupado com as repetições no texto ou com sua já atestada "elegante economia de prosa e exposição". Aqui, o "Freud cientista" e "Freud, o intelectual judeu explorando a sua própria relação com sua fé antiga por meio da história e da identidade de seu fundador" já não estão em consonância. Said encontra nessa obra uma intenção transgressiva e irritada da parte de Freud, o que é confirmado pela própria confissão deste (numa nota de rodapé, no início do livro) de que vai tratar as evidências bíblicas com certa arbitrariedade. O mote do livro, para Said, é a obsessão de Freud em retornar "não apenas ao problema da identidade de Moisés - que, é claro, está no âmago do tratado -, mas aos elementos da própria identidade".vi Porém, é importante não agarrar-se muito a essa acusação de um tema central do livro, pois como Said mesmo diz, outros livros de Freud "foram escritos com um objetivo pedagógico ou didático; Moisés e o monoteísmo, não". O que significa que é como se Freud estivesse nos pedindo, através de "Moisés e..."vii, para que nos atentemos a outros problemas mais urgentes do que aqueles que poderiam nos confortar com conclusões e raciocínios mais herméticos. Duas das principais afirmativas de Freud em "Moisés e...", e que vão receber maior destaque de Said nesse texto, (e que não pretendo descrever com detalhes nessa resenha) é a de que Moisés teria uma identidade egípcia e a de que a noção de um Deus único (no caso, o monoteísmo) teria sido "emprestada" dos egípcios, assim como o deus Yahveh teria sido "emprestado" dos árabes. São suspeitas muito polêmicas, e Said demonstra como essas polêmicas se desdobraram no pós-guerra. Para começar, Said cita um intelectual judeu de nome Yosef Yerushalmi (1932-2009), e uma de suas obras, "O Moisés de Freud: judaísmo terminável e interminável". Segundo Said, Yerushalmi destaca o fato de que Freud era ateu, ainda que cultivasse de forma tênue algum sentimento religioso, ou seja, sua relação com a própria judeidade era "complicada" e "irremediavelmente mal-resolvida". Porém, para além da ambiguidade que Yerushalmi destaca, o mesmo faz a seguinte afirmação: "Se o monoteísmo foi geneticamente egípcio, tem sido historicamente judeu".viii Segundo Said, ele atribui "desmerecidamente uma espécie de salto providencial quase desesperado para Freud". Pois a forma como Freud põe a questão da identidade de Moisés e a do próprio monoteísmo é a de que estas são questões distantes de serem resolvidas, mas que ainda seriam muito problemáticas, alegação que Said diz ser, ainda em sua época, válida. Essa problemática pode ser confirmada pelo o que Freud afirma nas primeiras páginas dessa obra: que ele não faria

nada menos nesse trabalho do que "negar a um povo o homem que ele elogia como o maior de seus filhos". Essa polêmica, desenhada a grossos traços por Said, é aprofundada a partir da reflexão sobre como este livro e as reflexões nele contidas são tratados pelo Estado Israelense, que definiria a si próprio, segundo Said, como "um Estado que assumiu posições legais e políticas muito específicas, efetivamente para isolar essa identidade (a judaica) de tudo o que fosse não-judeu (...); um Estado de e para o povo judeu (...)".ix E ele diz mais: "(...) a legislação israelense combate, reprime e até cancela a, cuidadosamente mantida, abertura de Freud, da identidade judaica em relação ao seu passado não-judeu. As complexas camadas do passado, por assim dizer, foram eliminadas por uma Israel oficial. (...) ao escavar a arqueologia da identidade judaica, Freud insistiu em que ela não teve início em si mesma, mas sim em outras identidades (egípcia e árabe) (...). Essa outra história não-judaica, não-europeia, foi apagada e já não figura naquilo que diz respeito a uma identidade judaica oficial."x Essa posição tomada pelo Estado Israelense em relação a tudo o que é não-judaico, nãoeuropeu, se reflete na posição tomada em relação a Freud. Como este tentou separar a identidade judaica de toda fundação mais sólida, fosse ela religiosa, fosse secular, todo pensamento freudiano associado a tal tentativa acaba tornando-se, virtualmente, pelo o que nos dá a entender Said, inimigo do Estado Israelense. Prova disso seria a arqueologia israelense, que em seu início funcionou, e talvez ainda funcione, como o "principal caminho para a identidade judaico-israelense". Essa identidade seria construída em cima da negação da multiplicidade de ocupações de outros povos em Jerusalém, que constituiria, por exemplo, um "sítio nacional-judaico" para a arqueologia israelense. Nas décadas posteriores a de 40 e a de 50 houveram algumas reviões nessa arqueologia, e hoje já pode-se dizer que a arqueologia palestina refuta muitos pressupostos da israelense. Segundo Said, se para um israelense, "a arqueologia comprova a identidade judaica em Israel e racionaliza um tipo particular de assentamento colonial", para um palestino a arqueologia deve ser desafiada, para que os fatos que acabaram adquirindo um pedigree científico no caminho "sejam abertos para a existência de outras histórias e uma multiplicidade de vozes".xi Ainda que Freud fosse considerado eurocêntrico por Said, este alega que Freud fez um esforço para não menosprezar que Moisés havia sido um não-europeu. Onde Said quer chegar? Isso fica um pouco mais claro na conclusão. Said usa o conceito de judeu nãojudeu de Isaac Deutscher (1907-1967), que é um conceito que se aplicaria a pensadores como Marx, Baruch de Spinoza (1632-1677), e o próprio Freud. Seria um conceito para pensar esses judeus que estão "tanto dentro como fora de sua comunidade"; que geralmente eram "profetas" ou "rebeldes", "primeiro perseguidos e logo excomungados por suas próprias comunidades"; que não colocavam nenhuma raça, cultura ou Deus em primeiro lugar no 'pódio' da virtude e da razão, e que acreditavam, segundo Deutscher, "na solidariedade ulterior do homem". Penso que Franz Kafka (1883-1924) pode ser classificado como mais um desses judeus não-judeus. No que se refere a Freud, Said acredita que sua relação complicada com a ortodoxia da comunidade judaica compreendia um elemento essencial não mencionado por Deutscher: "seu caráter irremediavelmente diaspórico, desalojado". Isso pode querer dizer que a noção judeu não-judeu pode ser pensada até para além do caso propriamente judeu, principalmente em nossa era de "vastas transferências populacionais, de refugiados, exilados, expatriados e imigrantes", que teria tomado a função (talvez, de forma insconsciente) de erigir uma "consciência

diaspórica, errante, vacilante, cosmopolita, de alguém que está tanto dentro como fora de sua comunidade".xii Segundo Said, esta condição, esta consciência, cada vez mais disseminada em nossa era, raramente é compreendida com clareza. No que residiria o mérito de Freud em sua reflexão sobre os não-europeus a partir do ponto de vista judaico: ao alegar que Moisés, "o fundador da identidade judaica", seria ele mesmo um não-judeu, ele aponta para o fato de que mesmo as identidades mais identificáveis possuem "limites inerentes que as impedem de ser totalmente incorporadas em uma, e apenas uma, Identidade". (ibidem.) A não-judeidade de Moisés seria a figura dos limites simbólicos da identidade judaica, identidade que alimenta, embora não apenas, os "rebanhos religiosos ou nacionalistas" em que tantos indivíduos recaem desesperadamente. Essa reflexão não nos ajudaria também a pensar o caso israelense, e as tendências que a arqueologia desse Estado tomou para si? Tanto ajuda para pensar esses casos como para a própria recusa de Freud em Israel, agora perfeitamente justificada. Said intenta apontar para essa reflexão-chave: a forma como Freud discute a questão da Identidade em "Moisés e o monoteísmo" (que nunca pode se constituir "nem sequer se imaginar sem aquela quebra ou falha original radical", que, no caso judaico, se personifica na figura paterna de um Moisés não-judeu), não nos ofereceria a compreensão de que ele encontra uma forma singular de discutir, simultaneamente, a questão da Alteridade, a questão do Outro? Donde posso concluir que a noção de não-europeus, em sua segunda e mais recente concepção (segundo a explanação de Said), mostra-se como uma questão tanto judaica como africana, muçulmana, ameríndia, afro-americana, etc.

NOTAS i

página 48 p.52 iii p. 53-54 iv p.51 v p.57 vi p.59 vii Vou passar a resumir o título dessa forma a partir daqui. viii p.61 ix p.72 x p.73 xi p.78 xii p.81 ii

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