RESENHA CRÍTICA - “Viver, aprender e trabalhar: habitus e socialização de crianças em uma comunidade de pescadores da Amazônia” de Luiz Fernando Cardoso e Cardoso, Jaime Luiz Cunha de Souza

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DISCIPLINA: Sociologia III - Novas Sínteses Teóricas PROFESSOR: José Carlos Gomes dos Anjos ALUNO: Pietro Barreto Menin RESENHA CRÍTICA: “Viver, aprender e trabalhar: habitus e socialização de crianças em uma comunidade de pescadores da Amazônia” de Luiz Fernando Cardoso e Cardoso, Jaime Luiz Cunha de Souza (Universidade Federal do Pará)

O artigo apresentado realiza uma abordagem etnográfica da vida dos moradores da comunidade Matá, no baixo Amazonas (Pará, Brasil), dando atenção às suas atividades de subsistência e a participação das crianças nas mesmas. O objetivo do artigo é demonstrar que as atividades das crianças na pesca não tratam-se de exploração e uso de ‘mão-de-obra gratuita’, mas que funcionam como introdução das crianças na vida social da comunidade, como um fator estratégico para fortalecer os laços familiares, sociais, e realizar a passagem entre a fase infantil e a adulta. Busca-se, portanto, compreender o sentido de trabalho enquanto mecanismo de introdução das crianças nas tradições locais, como uma maneira de assimilação do habitus. Dentro deste contexto, questiona-se a inexistência de um limite, no Estatuto da Criança e do Adolescente, entre o que seria trabalho infantil, digno de punição, e o que seria de extrema importância cultural, na reprodução e socialização de novas gerações destas comunidades rurais. A inexistência deste limite coloca estas comunidades em uma posição de ilegalidade, pela falta de uma reflexão mais atenciosa e profunda sobre o assunto. O primeiro problema encontrado é a definição do que seria ‘criança’. Na sociedade em que vivemos esta categoria foi construída socialmente, e é dada através de parâmetros numéricos – no Brasil, uma pessoa até completar os quatorze anos de idade é considerada criança, dos quatorze até completar dezoito é considerada adolescente, assim, a maioridade é dada a partir dos dezoito anos completos – esta categorização nada mais é que uma criação arbitrária com fins práticos e simbólicos. Nas comunidades tradicionais, o que constrói a “maioridade” não é um parâmetro numérico, mas sim o domínio do saber trabalhar no seu determinado contexto. Para ser considerado um ser já

completo, pleno, deve-se dominar os sistemas de saber culturais: “É saber como e por que fazer.” (pág. 168). O conceito de habitus, introduzido por Pierre Bourdieu, terá importância para compreendermos o problema do trabalho infantil na comunidade Matá. Habitus caracteriza o conjunto de esquemas geradores de ação incorporado ao longo da trajetória de um sujeito, é a historicidade incorporada no próprio corpo do humano. São esquemas estruturantes, que a partir deles se produzem as percepções e ações do sujeito. Este conceito ajuda-nos a articular as estruturas objetivas constitutivas do espaço social, e as estruturas internas da subjetividade. O habitus funciona como produto e produtor das estruturas, gerando e estruturando as representações e práticas. Na comunidade Matá, não existe a divisão arbitrária do trabalho por parâmetros numéricos, de faixa etária. Como já dito, a idade não é o que caracteriza a vida adulta, mas sim as responsabilidades e a capacidade de lidar com os sistemas de saber culturalmente estabelecidos. Todos, a partir dos cinco aos sete anos de idade, são engajados em manter a sociedade funcionando com êxito, e isto é o que constrói no sujeito o habitus pescador, camponês, tornando-o formado, pleno, dentro de sua cultura. A vida não é segregada entre adultos e crianças, no diaa-dia, pois ambos estão juntos em atividades rituais, de trabalho e nos diálogos da comunidade, em geral. O trabalho infantil é visto como um princípio fundamental da formação do sujeito, não o colocando com externalidade em relação a outras esferas da vida, mas sim, no centro, caracterizando a vida em si. Uma característica interessante da sociedade Matá é a existência da divisão do trabalho a partir do gênero: os meninos realizam as atividades já realizadas por seu pai, enquanto as meninas seguem os passos de sua mãe. A diferença entre os tipos de trabalho é dada pela força física, usada para justificar as diferenças entre eles. Esta é uma esfera do artigo que considero de grande potencial para ser colocada em reflexão a partir de uma perspectiva bourdieuana, mas que não foi o objeto de análise dos autores: a construção da masculinidade e da feminilidade nas crianças da comunidade do Matá. A distinção entre os gêneros é construída socialmente, a partir dos sete ou oito anos de idade, em um processo que está diretamente relacionado ao trabalho.

A divisão de tarefas – meninos auxiliam seus pais em atividades fisicamente mais intensas, como a pesca e o manejo da terra, enquanto as meninas são responsáveis majoritariamente pelas atividades de casa, ou por acompanhar suas mães na roça – me chamou a atenção pelo status que é empregado às funções de ambos: enquanto os meninos têm suas atividades sendo consideradas como trabalho, as atividades domésticas realizadas pelas meninas não têm o mesmo valor simbólico. As meninas não trabalham, apenas ajudam a mãe, assim como a mulher não trabalha, apenas ajuda seu marido. Dentro da perspectiva compartilhada na comunidade Matá, o trabalho feminino não é trabalho propriamente dito. Esta consideração me remete às reflexões de Bourdieu em “A Dominação Masculina”, quando caracteriza o papel das mulheres na sociedade Cabília, como um “ser a ser percebido”, com a corporalidade não estando para si, mas para o outro. O trabalho feminino não é trabalho em si, é ajuda para o outro: o homem. Isto é justificado na diferença de forças – o trabalho propriamente dito, masculino, exige força e agilidade, enquanto o trabalho feminino é um auxílio em afazeres diários – ora, se os meninos, ao longo da história desta população, são inseridos nas atividades que exigem mais intensidade física, assim os desenvolvendo muscularmente, como as

meninas

se

tornariam

mais

fortes

fisicamente,

permanecendo

responsabilizadas por atividades domésticas e de menor exigência física? Esta estrutura de divisão de trabalho é reproduzida ao longo da história dos Matá, portanto, o habitus das mulheres e dos homens se constituem a partir desta realidade objetiva, não sendo somente produtos dela, mas também sendo produtores desta estrutura. Explicarmos as mulheres exercendo funções menos fisicamente

exigentes

do

que

os homens,

simplesmente

por serem

supostamente mais fracas, seria explicar a estrutura de divisão do trabalho de forma espontânea e inflexível, ignorando a participação dos sujeitos na produção e reprodução desta estrutura, construindo os seus habitus. Na comunidade Matá, ter filhos homens, com potencial para trabalhar na pesca é importante para a organização da família e para a liberação do pai de ser obrigado, diariamente, a prover todo o alimento do grupo. Por isso, desde cedo, o menino aprende a construção dos instrumentos utilizados para a pesca, dando acesso ao conhecimento de variadas formas de pesca. Ora, se desde

cedo os meninos aprendem as atividades de pesca e agricultura, é praticamente impossível que não possam realizar estas atividades quando adultos. Para Bourdieu, a prática é a produção da relação entre uma situação e um habitus, que funciona como matriz de ações e percepções. Assim, a prática é relacionada com as estruturas objetivas anteriores a formação do habitus e com as condições definidoras da situação, onde a prática existe. Os conhecimentos adquiridos na pesca devem ser adquiridos desde cedo, pois na medida em que os papéis sociais vão sendo assimilados, se definem as responsabilidades quanto à construção e preservação do grupo familiar. A participação dos meninos nas atividades de pesca e agricultura dão liberdade para seus pais exercerem outras atividades,

assim,

estas

atividades

tornam-se

obrigações do

menino

transformado pelo habitus de pescador, agora já considerado um adulto (com quatorze, quinze anos de idade – importante salientar que o conceito de adolescente não existe neste contexto). Entretanto, mesmo com a obrigação das atividades de subsistência já incorporadas ao menino, a função de provedor continuará do pai, pois se esta função é transferida, o status de provedor na hierarquia familiar é modificado. Portanto, esta passagem acontece só no período avançado da velhice, pois transfere-se também a condição de chefe da família, que modifica sua posição com relação à comunidade como um todo. Um ponto exposto pelos autores que considero de relevância é o aspecto do habitus percebido na utilização das ferramentas de trabalho e nas suas melhorias tecnológicas, com relação às mudanças geradas no habitus do pescador. Os pescadores mais velhos têm dificuldade com as novidades da tecnologia em comparação aos mais novos. Os jovens recusam equipamentos já considerados “ultrapassados” por eles, deixando-os para o uso das gerações mais velhas. Aqui, encontra-se uma tensão entre instrumentos utilizados historicamente

pela

cultura

da

Amazônia

e

instrumentos

produzidos

industrialmente e adquiridos nos comércios nas cidades próximas: entre o ‘velho’ e o ‘novo’. Os pescadores velhos são relacionados aos métodos ultrapassados, porém, são os homens mais dotados de conhecimento sobre a pesca. Dúvidas sobre a atividade pesqueira serão perguntadas a um velho pescador, não a um jovem pescador “moderno”. Esta tensão entre o velho e o novo, entre ‘modernidade’ e ‘antiguidade’, é colocada pelos autores como um dos elementos

produtores das mudanças sociais da comunidade dos Matá. A mudança é dada pela crescente substituição dos equipamentos antigos pelos novos, que aumentam a produtividade do trabalho (o arco e a fecha substituídos pelas malhadeiras de nylon, por exemplo). As divergências de opinião entre os jovens e os velhos em relação aos instrumentos não causam grandes conflitos, pois aprendem-se diferentes formas de comportamento diante da escolha de uma ou outra ferramenta para a pesca, que assim, refletem em modos de sentir, fazer e pensar, levando cada um a agir de uma nova determinada forma. A tensão entre o novo e o velho na comunidade, aproxima-se da definição de habitus híbrido, de Setton (2009). Um habitus caracterizado pelo meio-termo, vindo de uma relação de coexistência de matrizes produtoras de diferentes valores culturais. Outro fato muito interessante relatado pelos autores sobre as relações entre os mais novos e os mais velhos é de que nos meses em que os lagos secam, os homens se reúnem aos sábados, incluindo os meninos, e vão ao lago para uma confraternização: passam o dia fazendo peixe assado, tomando cachaça e socializando, reforçando os laços de companheirismo entre os pescadores. Nesta festa, surgem os parceiros de pesca e os confirmados para as próximas bebedeiras, além de os meninos serem iniciados com a cachaça e fazerem suas primeiras amizades. Podemos perceber que a iniciação das crianças desde cedo, no trabalho e nestas confraternizações com os adultos, as prepara para serem adultos independentes, pescadores, constituírem suas próprias famílias e iniciarem seus futuros filhos no habitus da comunidade, as fornecendo os saberes fundamentais para isto. O trabalho apresentado pelos autores nos possibilita compreendermos o trabalho infantil, dentro deste contexto, não como algo abusivo, mas sim como a reprodução de um aprendizado do que é ser adulto. Por meio de práticas e repetições, vinculadas a grande proximidade de pais e filhos, é reproduzido o habitus que mantém as famílias da comunidade Matá estruturadas, formando o sujeito nas atividades produtivas e paralelamente construindo estes humanos como humanos plenos. O “se formar um pescador” é se tornar um adulto pleno. É uma forma específica de existir como um adulto responsável, uma condição existencial, não é simplesmente um trabalho, aprendido através da “exploração”, mas sim, uma forma da criação do habitus. Através da pesca, pela assimilação

do habitus, os indivíduos se incluem, pertencem e reproduzem os processos de compartilhamento da vida social na comunidade. O questionamento imposto às tais práticas pela visão ocidental de que “o lugar de criança é na escola” ignora uma série de peculiaridades culturais e geográficas em que se encontram estas comunidades, como a comunidade Matá. O habitus pescador adquirido pelos meninos, fornece os conhecimentos fundamentais a respeito das relações entre o humano e a natureza, trazidos e reproduzidos pelas gerações antigas, para que os mesmos tenham condições concretas de continuarem vivendo, preservando seus intensos laços familiares e sua cultura pesqueira como um todo. De que forma o “habitus discente”, adquirido através da educação formal e preso a nossos corpos desde o jardim da infância, ajudaria esta comunidade a manter-se viva? Vivendo da forma que vive, com relações de extrema proximidade entre familiares, relações estas, que hoje estão cada vez mais difíceis de serem encontradas na vida urbana ocidental? Acredito que precisamos

de

mais

sensibilidade

quando

tratarmos

deste

assunto,

principalmente por parte dos órgãos estatais responsáveis por julgamentos unilaterais e assimétricos.

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