Resenha de \"ABC da Literatura\" de Ezra Pound

May 23, 2017 | Autor: Artur Rozestraten | Categoria: Poética, Metodologias de Pesquisa
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RESENHA – Artur Rozestraten POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultrix, 2006. In KATINSKY, Júlio Roberto; MUNARI, Luiz Américo de Souza; ROZESTRATEN, Artur Simões; D'OTTAVIANO, Maria Camila Loffredo; LEITÃO, Karina Oliveira. Caderno de resenhas. [S.l: s.n.], 2014. Em 1934 o poeta Ezra Pound publicou um livro que pretendia ser um roteiro ou um manual para o estudo da poesia. A partir de sua vivência e de seus percalços intelectuais como poeta, estudioso da poesia, assumia os riscos de enfrentar didaticamente a questão de como estudar poesia. O autor pretendia compor uma obra que pudesse ser lida por todos - poetas, estudantes e professores -, dentro de um programa de educação formal ou não, “tanto com prazer como com proveito” (p.19), e advertia de início que o livro não se destinava “aos que chegaram ao conhecimento do assunto sem conhecer os fatos” (p.15). Esta restrição marca o fundamento da proposição metodológica do poeta: a valorização dos fatos - as obras de arte, os poemas -, como elementos fundadores de conhecimento. Por sua vez, as interpretações e opiniões a respeito dos fatos são elementos relevantes, mas complementares na construção de conhecimento. No âmbito da formação científica de pesquisadores, nas áreas relacionadas às Artes, dentre as quais está a Arquitetura, interessa rever e rediscutir a contribuição metodológica desta obra. A metodologia, como campo de análise crítica sobre métodos, procedimentos e estratégias, quando se volta à pesquisa científica pode envolver várias abordagens interelacionadas. Há sempre uma instância metodológica interna à pesquisa que demanda reflexão permanente do pesquisador sobre seus próprios procedimentos de trabalho. Mas há também aproximações metodológicas dedicadas à reflexão sobre os processos relacionados à representação, produção ou difusão, dos fatos, fenômenos ou objetos de estudo. É possível supor uma pesquisa dedicada ao estudo dos procedimentos projetuais de Lina Bardi, por exemplo, que investigue em que medida tais modos foram desdobrados nos procedimentos e estratégias dos arquitetos que com ela trabalharam. Sobre este escopo esquemático já se pode imaginar não apenas uma, mas várias instâncias metodológicas entrelaçadas passíveis de desenvolvimento pelo pesquisador. No texto de Pound, ao menos dois enfoques metodológicos comparecem: o primeiro é voltado aos procedimentos ou estratégias para o estudo/ensino/pesquisa da poesia; o segundo reflete sobre a produção poética. Apresentação O “ABC of Reading” teve seu título traduzido para o português como: “ABC da Literatura”. Melhor seria “ABC da Leitura”, “Cartilha poética” ou ainda “Beabá da Poesia”, que talvez agradasse mais a um espírito afeito às brasilidades como o de Mario de Andrade. Em se tratando de uma cartilha ou beabá, a noção de uma progressão didática de construção de conhecimento sobre a poesia é valida para o compêndio poundiano, começando por elementos fundamentais em direção aos temas mais complexos. A questão que move o poeta é eminentemente metodológica:

“O MÉTODO adequado para o estudo da poesia e da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber, exame cuidadoso e direto da matéria, e contínua COMPARAÇÃO de uma ‘lâmina’ ou espécime com outra.” (p.10)

O exemplo didático escolhido para esclarecer os leitores é a estória do professor Agassiz, seu aluno e o peixe-lua. Ao final de seus estudos de pós-graduação o aluno procurou o naturalista Agassiz para receber as últimas orientações. O professor pegou um peixe-lua e lhe pediu que o descrevesse. Rapidamente o aluno retornou com a descrição tomada de um manual de ictiologia, com o nome científico do peixe e sua taxonomia. O professor leu aqueles “termos usados para sonegar do conhecimento geral o peixe” (p.23) e pediu novamente ao estudante que o descrevesse. Logo em seguida o aluno retornou trazendo um pequeno texto de quatro páginas. Agassiz, então, pediu ao aluno que olhasse para o peixe. “No fim de três semanas o peixe se encontrava em adiantado estado de decomposição, mas o estudante sabia alguma coisa a seu respeito.” (p.24) É este o método científico moderno proposto por Bacon e Galileu. Começa sempre com a observação atenta e interessada do fenômeno e sua descrição minuciosa. Pound defende o emprego deste mesmo método para o estudo da poesia e da literatura. A partir desta observação, o cientista procura compor hipóteses reunindo conhecimentos que já detém e há um sentido poético nesta construção. Afinal, trata-se de uma forma simbólica como já havia defendido Ernst Cassirer em 1923 (2004) que promove a passagem de um ‘não-ser’ ao ‘ser’, ou seja, que inaugura algo original, distinto. Para Pound o cientista age como o poeta chinês quando pretende definir o vermelho, sem fazer um desenho com tinta vermelha (FENOLLOSA, E. The Chinese Written Character as a Medium for Poetry, 1920). O poeta reúne ideogramas referentes a certos fatos comuns, conhecidos por todos, que convergem para a formar o vermelho: rosa, ferrugem, cereja e flamingo. Forma-se assim por aproximação, por hipótese a representação em ideograma do vermelho. Os fatos - ou manifestações da cor - são sempre particulares - uma certa flor, uma determinada porta, uma fruta específica, um dado pássaro - enquanto o vermelho é um universal. Como apreender o universal senão pelos particulares? Questiona a tradição empírica aristotélica. É preciso ver pinturas para que se adquira conhecimento em Pintura. É preciso perceber e vivenciar edifícios e espaços urbanos para que se constitua conhecimento em Arquitetura e Urbanismo. Vale o mesmo para a Música. Pound afirma que a experiência direta dos fatos é o “meio certo” (p.28) para o estudo da poética, mas não esgota a apreensão nem encerra o conhecimento de uma área. Trata-se de um fundamento empírico, e não de um fim em si mesmo. A experiência sensível deve ser complementada por juízos conceituais.

Estes juízos ou afirmações gerais e abstratas, por sua vez, só podem ser válidos se corresponderem aos fatos. Em outras palavras, as representações textuais sobre os fenômenos só se sustentam se a sua estruturação lógica encontra ressonância coletiva nas diversas experiências sensíveis dos fenômenos em pauta. A ignorância dos fatos não impossibilita a formulação de afirmações deste gênero. Qualquer pessoa é capaz de formular juízos gerais sobre atividades que ignora como pintura, arquitetura, música, etc. Sem o conhecimento dos fatos, contudo, qual a chance de tais juízos serem válidos? A mesma ignorância, por outro lado, dificulta muito o questionamento crítico de afirmações abstratas, conceituais, sobre um determinado campo de conhecimento. Como avaliar o que procede e o que não procede sem um domínio básico dos fenômenos? Já o conhecimento dos fatos, como fundamento científico, possibilita tanto a formulação consistente de conceitos quanto sua aferição, podendo conduzir questionamentos precisos e as necessárias revisões nas hipóteses. No mundo moderno, o domínio de uma área - como a poesia ou a arquitetura - demanda a vivência de um amplo conjunto de experiências sensíveis, e também o conhecimento de uma gama abrangente de conceitos e abstrações propostos ao longo do tempo. Tal domínio ultrapassa os esforços do indivíduo, é um empreendimento que só pode ser alcançado coletivamente. Esta ponderação, no entanto, nunca foi parâmetro para as pretensões intelectuais do poeta: “Com 30 anos eu decidi que iria saber mais sobre poesia do que qualquer outra pessoa, que conheceria poesias significativas de toda parte, qual parte da poesia era ‘indestrutível’, qual parte não poderia ser perdida em traduções e - não menos importante - quais efeitos só poderiam ser obtidos em uma determinada língua, não sendo passíveis de tradução. Nesta busca aprendi mais ou menos nove línguas estrangeiras, li coisas orientais em traduções, questionei cada universidade e cada professor que tentou me fazer aprender assuntos outros e que me aborreceu com exigências e pré-requisitos.” (Tradução do autor. LEVY, 1983) Como crítica ao ensino tradicionalista, que cerceia e tutela a curiosidade do estudante, o poeta modernista fez de sua própria trajetória um ensaio, um laboratório. Na medida da organização desta experiência particular como procedimento metodológico, intencionou estimular uma formação crítica autônoma, que só pode se dar plenamente com conhecimento criterioso dos fatos, o que confere condições de questionar teorias e opiniões a respeito dos fenômenos de interesse. Em seu ABC, Ezra Pound torna universal o que teve validade particular: suas próprias estratégias para, a partir de seus interesses, construir conhecimento sobre a poesia.

Estrutura A obra está organizada em três partes. A primeira parte, de caráter conceitual e metodológico, que tem este capítulo introdutório comentado aqui, e que se desenvolve em mais sete capítulos. A segunda parte, na qual são apresentados os ‘documentos’ (fatos ou poemas) com os comentários do autor. Na terceira, e mais incisiva parte, o autor simplesmente reúne e compartilha com o leitor uma “mini-antologia do paideuma poundiano”, uma compilação de poemas selecionados sem comentários críticos ou interpretativos. A primeira parte pretende oferecer os recursos instrumentais básicos para o estudo proposto e um mapeamento do campo de trabalho. O autor cuida de expor definições quanto à linguagem e à literatura; apresenta reflexões sobre o contexto no qual é feita a poesia (em geral e também aquela em língua inglesa) e suas trajetórias históricas; defende certos fundamentos dos juízos de valor sobre os poemas; apresentar séries de categorias, como por exemplo, sobre os gêneros de autores (inventores, mestres, diluidores, bons escritores sem qualidades salientes, beletristas, lançadores de modas) (p.42-43); e sua lista de autores insuperáveis em seus domínios. No capítulo VIII, fechando a primeira parte do livro, o poeta apresenta critérios válidos tanto para análise quanto para proposição - poderíamos dizer projeto de poemas - e, em seguida, apresenta exercícios e estudos provocativos para desconstrução e construção de poemas, assim como para a revisão crítica da historiografia da literatura. A segunda parte é um ensaio de crítica literária. O autor professa suas opiniões e expõe suas interpretações estéticas, convocando, na medida de seu discurso, outros autores e informações complementares, históricas, essencialmente. Os comentários dialogam com os poemas, mas não se sobrepõem a eles. Não são verdades definitivas reveladas, mas opiniões, hipóteses sujeitas a averiguação frente ao próprio poema. Parece coerente com a proposta metodológica do poeta então que, na terceira parte do livro, os poemas selecionados compareçam sem comentários, in natura. Interessa a Pound que o aluno se depare com o poema - que aqui é o fato ou o fenômeno - sem intermediações. Afinal, o objetivo didático maior é a autonomia crítica do estudante, de modo que ao final o autor sugere que o leitor se desgarre do ABC e se encontre a sós com os poemas, tendo que buscar recursos próprios para a interação, o diálogo e a construção de suas próprias interpretações. Considerações finais O método comparativo criterioso para o estudo da Arquitetura tem um referencial didático inaugural na publicação do arquiteto e professor da escola politécnica de Paris, Jean-Nicolas-Louis Durand, “Recueil et parallèle des édifices de tout genre, anciens et modernes, remarquables par leur beauté, par leur grandeur ou par leur singularité, et dessinés sur une même échelle” de 1801. A apresentação de edifícios significativos de lugares e tempos distintos na mesma escala gráfica pretende estimular olhares comparativos que possam revisar, criticamente, a história e a teoria da Arquitetura.

Este procedimento visual gráfico-comparativo, amparado nas projeções ortogonais da arquitetura e em desenhos em cortes e perspectivas, marca o humanismo moderno. Consolidou-se no século XVI nos estudos de Leonardo e pautou, desde então, o modus operandi de artistas e cientistas dedicados à representação, à investigação sistemática e ao conhecimento da natureza. Nestas imagens, ganha forma uma natureza delineada e colorida pelas mãos do homem. Uma natureza construída, como se cada um de seus elementos fosse uma pequena arquitetura, representada em várias vistas e em escalas precisas. Plantas, animais e o próprio corpo humano são sistemática e criteriosamente construídos, desenhados e impressos como material indispensável à difusão e aprofundamento dos estudos científicos. Este método científico - que recebeu contribuições significativas da própria cultura de representação dos arquitetos (plantas, cortes, elevações) - retorna ao campo da Arquitetura com o “Recueil et Paralléle” de Durand. Outro exemplo de retorno do procedimento descritivo-comparativo do campo das ciências ao campo das artes é o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg. Neste caso, as representações eram fotográficas e as pranchas sinalizavam uma proposta radical de visualização abrangente dos fatos de interesse, obras de artes de tempos e lugares distintos articuladas por uma mesma pathosformel. Os interessados em história da arte deveriam se deter sobre certas imagens, observá-las atentamente e então compará-las com outras, aproximando e distanciando-as criteriosamente, percebendo e construindo assim relações estético-visuais. No limite Warburg propunha uma história da arte sem palavras. Pound, por sua vez, também trabalhava sobre poemas de tempos e lugares distintos o que o fazia defender vigorosamente o estudo de várias línguas e o estudo contínuo dos clássicos. Esta valorização dos clássicos, aliás, foi bastante rara no âmbito das vanguardas das primeiras décadas do século XX muito mais afeitas à negação e à ruptura. A consideração de um enfoque aberto sobre um amplo horizonte de poemas não significava superficialidade, ao contrário: “Estou firmemente convicto de que se pode aprender mais sobre poesia conhecendo e examinando realmente alguns dos melhores poemas do que borboleteando em torno de um grande número deles. De qualquer forma, uma grande quantidade de falsos ensinamentos é devida à suposição de que os poemas conhecidos da crítica são necessariamente os melhores.” (p.45) O autor é uma figura controversa. Se por um lado, como artista, possui uma obra poética moderna, provocativa e de qualidade inegável, por outro lado, o homem Ezra Weston Loomis demonstrou em reiteradas ocasiões suas opiniões fascistas e anti-semitas. Tais posições políticas geraram fortes reações nos EUA, sua terra natal, e o conduziram à corte marcial, à prisão e à internação psiquiátrica por 15 anos. Retiradas as acusações de traição retornou à Itália. Ao desembarcar em Nápoles em 1958 foi fotografado fazendo uma saudação fascista.

A análise e a contextualização de sua obra poética estarão sempre acompanhadas das questões ideológicas que marcaram sua vida. Entretanto, a crítica tem conseguido lidar com a dificuldade de distinguir o artista moderno Pound do homem reacionário que foi e, assim, - conforme o próprio procedimento metodológico proposto pelo poeta - centrar atenção sobre seus poemas, sobre sua obra poética, os fatos mais relevantes que produziu, considerando como complementares os demais aspectos de sua trajetória pessoal. A formulação de uma opinião própria sobre estas questões exige também uma aproximação aos fatos, um mergulho na obra poética de autor, uma aproximação à sua história e mais uma leitura de seu ABC. Como convite para esta leitura, um poema de Pound: A Girl The tree has entered my hands, The sap has ascended my arms, The tree has grown in my breastDownward, The branches grow out of me, like arms. Tree you are, Moss you are, You are violets with wind above them. A child; so high; you are, And all this is folly to the world.

Menina A árvore entrou por minhas mãos, A seiva ascendeu meus braços, A árvore cresceu em meu peito Para baixo, Os ramos crescem para fora de mim, como braços. Árvore está você. Musgo está você. Você é violetas com vento por cima. Uma criança; tão alta; você é, E tudo isto é folia para o mundo. (Tradução do autor a partir de J.T. Parreira)

Referências bibliográficas CASSIRER, Ernst. A Filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2004. DURAND, Jean-Nicolas-Louis. Recueil et parallèle des édifices de tout genre, anciens et modernes, remarquables par leur beauté, par leur grandeur ou par leur singularité, et dessinés sur une même échelle. Paris: Chez l’auter L’École Polytechnique, 1801. Diponível em: (04/02/2014) LEVY, Alan.Ezra Pound: The Voice of Silence. Sag Harbor NY: The Permanent Press, 1983. POUND, Ezra; FENOLLOSA, Ernest. Instigations of Ezra Pound together with an essay on the chinese written character by Ernst Fenollosa. Nova York: Boni and Liveright Publishers, 1920. Diponível em: (04/02/2014) WARBURG, Aby. Der Bilderatlas Mnemosyne / Aby Warburg; herausgegeben von Martin Warnke unter M i t a r b e i t v o n C l a u d i a B r i n k . B e r l i n : A k a d e m i e V e r l a g ,

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