Resenha de \"O Suplício do Papai Noel\" de Levi-Strauss

May 23, 2017 | Autor: Artur Rozestraten | Categoria: Imaginário, Imaginarios sociales, Estruturalismo
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RESENHA – Artur Rozestraten LÉVI-STRAUSS, Claude. O suplício do Papai Noel. São Paulo: Cosac Naify, 2008. In KATINSKY, Júlio Roberto; MUNARI, Luiz Américo de Souza; ROZESTRATEN, Artur Simões; D'OTTAVIANO, Maria Camila Loffredo; LEITÃO, Karina Oliveira. Caderno de resenhas. [S.l: s.n.], 2014. Em 2008, em comemoração aos 100 anos de Lévi-Strauss, a editora Cosac Naify publicou em português o curto ensaio do antropólogo francês “O suplício do Papai Noel” com tradução de Denise Bottmann e com um projeto gráfico “vermelho” e precioso de Elaine Ramos. Publicado originalmente em 1952, em francês, no número 77 da revista Temps Modernes como “Père Nöel supplicié”, este texto já havia sido publicado em português como artigo na Revista Anhembi, número 16, também em 1952, em São Paulo, traduzido por José Carlos Rodrigues como “Papai Noel supliciado”. Embora não figure entre as mais conhecidas obras de Lévi-Strauss, o ensaio tornou-se referencial no campo dos estudos humanísticos por seu caráter conciso, sua densidade e rigor científico, além de apresentar uma aguda perspectiva original e crítica sobre um tema contemporâneo prosaico, aparentemente raso do ponto de vista antropológico. Sendo assim, pode ser tomado como modelo de tese. O ensaio de menos de 20 páginas, acrescido de certos elementos formais – que em suma detalham e expõem certos fundamentos e referenciais intelectuais já presentes no ensaio –, tais como uma revisão bibliográfica extensiva, uma exposição detalhada dos objetivos, uma descrição de procedimentos metodológicos e uma lista de referências bibliográficas, ganharia uma forma acadêmica completa. A aproximação a este trabalho de Lévi-Strauss é metodológica, visa reconhecer 'como' foi feito o estudo em pauta: quais são seus elementos estruturantes, suas estratégias de abordagem e desenvolvimento, seu modo de expor argumentos e interpretações, seus aspectos específicos e seus aspectos gerais, que podem vir a auxiliar reflexões quanto a desafios semelhantes pertinentes ao campo de estudo da Arquitetura, do Urbanismo e do Design. Desenvolvimento O ponto de partida é um fato específico, analisado a partir de sua difusão na mídia impressa: “Papai Noel é queimado no átrio da Catedral de Dijon diante de crianças de orfanatos” (p.8). A notícia do jornal FranceSoir publicada em 24/12/1951 refere-se ao fato ocorrido na tarde do dia anterior, domingo, e que fora coordenado por religiosos cristãos, católicos e protestantes, como clímax de uma estratégia de esclarecimento quanto ao verdadeiro sentido natalino: a celebração do nascimento de Cristo salvador. O ensaio se desenvolve apresentando, de início, a polêmica em torno do suplício do Papai Noel. Há opiniões diversas em cena, divergências, reações emocionais, contradições e o etnólogo as contextualiza e aborda o tema como pertinente à História das Mentalidades - nos moldes dos estudos de Marc Bloch (1983) – e aos estudos do Imaginário, como preconizado por Gaston Bachelard e Gilbert Durand. O pesquisador atento reconhece no fato prosaico a “ocasião tão propícia para observar, em sua própria sociedade, o crescimento súbito de um rito, e até de um culto” (p.11) atento às causas, impactos e aspectos simbólicos envolvidos.

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Frente ao fato e suas ressonâncias, Lévi-Strauss apresenta as questões que irão mover suas investigações: quais as razões que levaram à invenção do Papai Noel?; seria o Papai Noel um símbolo da irreligião, uma figura pagã esdrúxula, um intruso no rito natalino? O cientista compartilha com seus leitores a oportunidade de abordar um tema familiar – contemporâneo e sincrônico – e tentar construir conhecimento a seu respeito explorando tanto o aprofundamento em aspectos presentes, quanto a análise diacrônica de aspectos ritualísticos profundos, enraizados no passado. A linguagem e a argumentação do autor são claras, diretas, buscam um diálogo de amplo espectro, tanto com leitores com formação específica na grande área de humanas, quanto com leitor sem formação específica. Na construção de um contexto, o autor percebe na Europa, entre fins do século XIX e meados do século XX, uma crescente valorização da celebração do Natal para a qual convergem uma série de elementos ritualísticos antigos retomados e reformulados. Sua análise identifica também, na França pós-segunda Guerra Mundial, a “difusão por estímulo” (p.16) de aspectos do american way of life, inclusive de seus costumes natalinos. Duas perspectivas históricas entrelaçam-se então neste trecho do ensaio. Uma de visada mais curta, que interpreta a França dos anos 1940-50 à luz das transformações econômicas e culturais recentes, e outra que mira uma “longa duração” e reconhece formas simbólicas antigas, medievais, reorganizadas em uma dinâmica moderna no rito natalino norte-americano. Mas estaria este enigmático personagem a serviço de uma ardilosa estratégia ianque consumista e desvirtualizadora dos verdadeiros valores natalinos? O autor sugere que o Papai Noel pertence a uma família de divindades relacionadas aos ritos de passagem e iniciação que, tradicionalmente, regem trocas simbólicas, oferendas, presentes entre adultos e crianças, vivos e mortos. A construção desta hipótese exigiu uma análise comparativa entre mitos e ritos de tempos e lugares distintos. Os exemplos mais distantes, por suas semelhanças 'estruturais' validam o alcance universal do fenômeno, enquanto que os exemplos mais próximos expõem 'sobrevivências' e eventuais vínculos destas mesmas 'estruturas' com o fenômeno em pauta, no caso, especialmente com os ritos de solstício das Saturnais romanas, e com as tradições dos “peditórios infantis” (p.39) medievais. Cabe ao Papai Noel articular as passagens para que sejam ciclicamente renovadas as trocas simbólicas entre mortos e vivos: “os presentes de Natal continuam a ser um verdadeiro sacrifício à doçura de viver, que consiste, em primeiro lugar, em não morrer.” (p.45) Sem dúvida o Papai Noel é uma reformulação de divindades pagãs que convergiram – de modo um tanto errático – para a a construção simbólica deste personagem natalino que conhecemos. Entretanto, seu papel na celebração natalina, como divindade articuladora dos ritos e ofertórios de renovação e o culto à vida, não está em desacordo com os valores cristãos, ao contrário, está perfeitamente afinado com a celebração do nascimento do menino Jesus. E o sacrifício do Papai Noel em Dijon na frente dos órfãos, como pode ser interpretado então à luz destes vínculos pagãos?

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Um dos antecedentes principais do Papai Noel seria o princeps das Saturnálias romanas comemoradas no solstício de inverno. Segundo Lévi-Strauss (p.46), o estudo de Frazer (1922) sobre o tema aponta que o “protótipo antigo” do princeps, ao final das celebrações marcadas por excessos e inversões de papéis, era então imolado no altar do Deus Saturno. Para supostamente “matar” o Papai Noel, em Dijon, a queima do Papai Noel na frente de seus súditos saturnais, o reconduziu em sacrifício ao altar pagão de Saturno restaurando assim “em sua plenitude, após um eclipse de alguns milênios, uma figura ritual cuja perenidade, a pretexto de destruí-la, coube justamente a eles (os eclesiásticos) demonstrar.” (p.47) Esta conclusão preciosa não poderia ser apresentada aqui de forma esquemática sem empobrecê-la. O recorte não faz jus à construção original do ensaio que converge para a demonstração final com lógica quase geométrica. Seria mais conveniente, talvez, mantê-la em suspenso e conduzir o leitor ao texto original e às suas próprias perspectivas e conclusões críticas. Encerrada a leitura, o vermelho que pontua o texto no projeto gráfico da edição aqui referenciada é reinterpretado. É uma cor natalina, sem dúvida, mas também Saturnal. É a cor sanguínea, ígnea e solar que interage com um amplo espectro semântico, e deve cobrir o corpo de um Deus ciclicamente sacrificado e ressuscitado. Aspecto iconográfico É curioso que Lévi-Strauss não retome neste ensaio as relações entre o Papai Noel e os reis “magos” que, guiados por uma estrela, teriam vindo de distantes lugares distantes do oriente trazendo presentes ao menino Jesus. A iconografia bizantina dos magos - como a que comparece no mosaico de Santo Apolinário Novo em Ravena (c.526) -, apresenta além das vestes ricamente ornamentadas, barretes frígios

vermelhos

assemelhados

ao

camauro

papal

e

ao

gorro

natalino

. A articulação entre reis – sempre com poderes sobrenaturais no mundo antigo - e presentes também já estava aí manifesta Um estudo iconográfico detalhado certamente poderia investigar com maior propriedade os vínculos formais entre a representação magos e a caracterização do Papai Noel, São Nicolau e Santa Claus. Investigação similar é desenvolvida no artigo “Cultural codes in the iconography of St Nicholas (Santa Claus).” HaladewiczGrzelak, Malgorzata. Sign Systems Studies; 2011, Vol. 39 Issue 1, p.105, professora do Departamento de Línguas Estrangeiras da Universidade de Tecnologia de Opole, na Polônia. Estrutura e Estruturalismo A partir da análise dos procedimentos do autor para análise e interpretação do fato exposto é possível caracterizar um método estruturalista? Caberia falar em um método estruturalista, ou seria mais apropriado reconhecer uma intensa atividade metodológica na trajetória dos pesquisadores relacionados ao Estruturalismo – especialmente Claude Lévi-Strauss - e em seus trabalhos tidos como estruturalistas?

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Não haveria mais propriamente uma intenção ou um objetivo estruturalista – de produzir representações intelectuais compatíveis com as estruturas universais elementares subjacentes a um fenômeno particular – ao invés de um método? Considerando a necessária validade universal dos procedimentos científicos modernos, seria cabível atribuir ao Estruturalismo procedimentos básicos como: a descrição rigorosa, a análise comparativa, a alternância crítica de posições intelectuais, a busca pela construção de modelos ou representações, o esforço para propor formas universais válidas para a interpretação de certos fenômenos particulares? Não seriam estes procedimentos comuns a toda a Ciência? Roland Barthes desenvolve questões como estas em seu artigo “L'activité structuraliste” originalmente publicado na revista Les lettres nouvelles, n.32 em fevereiro de 1963 e reunido em tradução para o português de Carlos Henrique Escobar no livro “O Método Estruturalista” (1967). É certo que retomar estas reflexões em 2014, depois de décadas de intensa difusão dos estudos de autores ditos estruturalistas nas Ciências Humanas e Sociais, é uma condição muito distinta daquela a que se expôs a publicação original de Barthes. É provável que, no início dos anos 1960, fosse imprescindível enfatizar o diferencial crítico do Estruturalismo com relação a procedimentos marcadamente

funcionalistas,

deterministas

e/ou

positivistas

para

marcar

certas

distinções

metodológicas. Se este distanciamento temporal pode ser favorável para uma perspectiva crítica, há que se considerar, por outro lado, uma proximidade geográfica excessiva com o Estruturalismo que pode não facilitar exatamente o reconhecimento dos aspectos pretendidos. Afinal, o que veio a se designar como Estruturalismo se formou, em boa medida, a partir de atividades de ensino e pesquisa desenvolvidas na Universidade de São Paulo. Mais precisamente, a partir da segunda metade dos anos 1930, com o estudo sistemático de temas da realidade brasileira e a interação intensa de pesquisadores brasileiros com pesquisadores como Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide. Teriam estes vínculos históricos definido um modo estruturalista de desenvolver pesquisas na USP? Em que medida as pesquisas desenvolvidas na FAUUSP também teriam sido tocadas pelo estruturalismo? Seria possível reconhecer um estruturalismo na abordagem de temas referentes à arquitetura e ao urbanismo no Brasil? Ao final do texto, Barthes sugere que o estruturalismo pode ser “um pensamento (ou uma 'poética') que procura menos assinalar sentidos plenos aos objetos que ele descobre, que saber como o sentido é possível, a que preço e segundo que vias” (p.62). O diferencial estruturalista residiria então sobre um modo de conduzir reflexões que pretende não ser redutor, nem excessivamente assertivo. Ao invés de buscar sentidos precisos, interessaria ao pesquisador compreender como os sentidos são constituídos, alterados, retomados e deformados. Em outras palavras, mais vale a exploração do campo simbólico e imaginário em torno de um fato do que uma eventual restrição de sentidos possíveis com vista a uma explicação sintética, suficiente e adequada. O caráter poético, entretanto, não está presente, em certa medida, em todas as formas simbólicas, em todas as hipóteses científicas, assertivas ou não?

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Se por um lado a atividade estruturalista não é convergente e restritiva, por outro lado, a intenção a priori de reconhecer estruturas elementares nos fenômenos não conduziria o pesquisador a 'fabricar' ou 'inventar' tais estruturas, transformando-as também em um produto do imaginário? Sem dúvida, a articulação de peças elementares como fonemas, mitemas, fragmentos, abre ao pesquisador uma possibilidade compositiva, vertentes possíveis de construção de interpretações. Tais interpretações, contudo, por mais que tenham uma natureza poética não pretendem deixar de ser científicas, ou seja, não pretendem se apresentar como uma construção puramente plástica, de caráter essencialmente artístico. Esta reflexão parece responder a um dos questionamentos expostos. Há mais clareza quanto a intenções e objetivos estruturalistas do que quanto a um método propriamente dito, assim como há mais validade em uma constante reflexão metodológica nos procedimentos estruturalistas do que exatamente uma estabilidade metódica. Não cabe aqui, nesta breve resenha, avançar sobre questões controversas, amplas, plenas de meandros e oscilações como é as relacionadas ao entendimento do Estruturalismo. São várias as obras que discutem o tema. Como referência vale citar a História do Estruturalismo de François Dosse (2007), o texto de Piaget para a coleção “Que sais-je?”, O Estruturalismo (1974), e a coleção “Que é o Estruturalismo?” da qual se registra aqui especialmente o texto de Tzvetan Todorov, Estruturalismo e Poética (1970). Sobre o método, aliás, Todorov comenta: “...o objeto da Poética é precisamente seu método; compreende-se assim que as discussões metodológicas não sejam uma parte limitada do conjunto da Ciência, uma espécie de produto suplementar, mas que lhe sejam o próprio centro... O método é o objeto da Ciência, e seu objeto seu método.” (p.118)

Talvez o próprio Lévi-Strauss pudesse esclarecer o que se entende por estrutura, o que afinal auxiliaria muito o entendimento do tal Estruturalismo, pois foi justamente isto que pensou o professor Ruy Coelho quando perguntou ao antropólogo (Arruda, 2007): “Claude, afinal, qual é a sua concepção de estrutura?” “Do jeito que as coisas andam, nem eu sei mais!” Referências bibliográficas ARRUDA, José Jobson de Andrade Arruda. Apresentação. In: História do Estruturalismo. Tradução de Álvaro Cabral. Bauru: EDUSC, 2007. BARTHES, Roland. A atividade estruturalista. In: O Método Estruturalista.Textos Básicos de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. BLOCH, Marc. Les rois thaumaturges – étude sur le caractère surnaturel attribué a la puissance royale particulièrement em France et em Angleterre. Paris: Gallimard, 1983. DOSSE, François. História do Estruturalismo. Tradução de Álvaro Cabral. Bauru: EDUSC, 2007. FRAZER, Sir James George. The Golden Bough – a study in magic and religion. New York: Macmillan, 1922.

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Disponível em: (09/02/2014) PIAGET, Jean. O Estruturalismo. São Paulo: DIFEL, 1974.

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