Resenha de \"Obra Completa\", de Murilo Rubião - Jornal \"Valor\"

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Espantoso sem espalhafato

7/23/16, 14:51

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15/07/2016 - 05:00

Espantoso sem espalhafato Por Miguel Conde

Murilo Rubião contava as

Murilo Rubião, um dos maiores escritores brasileiros do século XX

histórias mais descabidas de um jeito impassível, um pouco à maneira da comédia carrancuda dos filmes de Buster Keaton. Ou daquelas tiradas que só funcionam se pronunciadas com certo sangue-frio. Praticava "um humorismo áspero", na expressão de Mário de Andrade. Embora muito comparado a Kafka, com quem tem afinidades evidentes, seu jeito meio sonso de ser abrasivo talvez esteja mais próximo de Machado de Assis, que citava como leitura decisiva. Seus contos são estranhos o suficiente para que todas essas associações sejam duvidosas, ainda que sirvam de pista inicial. É bom dizer de saída: foi um dos maiores escritores brasileiros do século XX; sua obra completa resume-se a 33 contos, que se deixam acomodar com folga em menos de 300 páginas; a tentativa de descrever o efeito esquisito produzido em suas histórias levou o crítico literário Davi Arriguci Jr. a cravar, nos anos 70, uma metáfora inspirada - "espanto congelado". Rubião nasceu em 1916 em Silvestre Ferraz, atual Carmo de Minas, pequena cidade do Sul de Minas Gerais. Seu centenário de nascimento, que se completou no dia 1º de junho, veste roupa de gala com o lançamento de uma edição comemorativa de sua obra completa. No livro, que acaba de ser lançado, o autor ressurge acompanhado de guarnição dupla: um breve perfil escrito em 1974 pelo crítico e professor da USP Jorge Schwartz faz as honras da casa, servindo de rápida apresentação geral; um ensaio original do romancista Carlos de Brito e Mello arrisca uma atualização de perspectiva crítica, em diálogo com Freud, Blanchot e Paul Ricoeur. Dada a importância da ocasião, faz falta uma nota editorial que situe as edições originais dos contos e explique os critérios de estabelecimento do texto de cada história, muitas delas republicadas várias vezes em versões diferentes, que Rubião estava sempre a retrabalhar. A edição é um dos marcos principais das comemorações do centenário, que têm como outro ponto alto um número especial do "Suplemento Literário de Minas Gerais" dedicado ao escritor, responsável por criar a publicação em 1966 (o número está disponível na internet e traz uma reunião valiosa de imagens, documentos e novos e antigos textos sobre o autor). Feitas as contas dos festejos, pode-se dizer que a fatura não é a de um completo desconhecido, mas tampouco de alguém de todo familiar. Tudo certo. A obra de Murilo Rubião se agita numa zona http://www.valor.com.br/imprimir/noticia_impresso/4635235

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de ambivalência inquietante entre o próximo e o estrangeiro, o íntimo e o alheio. Algo nos arrabaldes da zona morta aludida no título de um velho filme de David Cronenberg, e que se poderia entender na chave de um espaçotempo límbico, caracterizado pela indefinição prolongada do "nem lá, nem cá". Antes muito pelo contrário. Algo estranho acontece com o tempo nas histórias de Murilo Rubião. Muitos de seus melhores leitores viram aí um traço definidor de sua obra. Seus contos parecem começar pelo meio, lançando o leitor sem aviso no meio das situações mais disparatadas, cujo despropósito em seguida só faz aumentar, até avizinhar-se do nonsense. Tudo é espantoso, mas narrado de maneira tranquila e inenfática, como se nada demais estivesse acontecendo. Daí as comparações com Kafka, sobre quem o crítico marxista Günther Anders escreveu: "O espantoso, em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém" (a tradução é de Modesto Carone). Tem a ver, sim, mas não é tudo. Há ainda outra coisa de bem diferente na obra de Rubião. Dá vontade de dizer, repetindo: um jeito sonso e abrasivo (mineiro?) de narrar as coisas. Um inarredável pé atrás, cujo compromisso a princípio conservador com a discrição e a cautela acaba dando, imprevistamente, num modo anárquico de duvidar, "sotto voce", até da própria dúvida. Se um dia alguém lançar uma coletânea das melhores aberturas da literatura brasileira e lá não estiverem contemplados ao menos meia dúzia de contos de Murilo Rubião, não compre. Numa folheada ao acaso, encontramos histórias que começam assim: "Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo maior". ("O Ex-mágico da Taberna Minhota"); "Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes". ("Os Dragões"); "Quando, numa segunda-feira de março, as mulheres da cidade amanheceram grávidas, Botão-de-Rosa sentiu que era um homem liquidado". ("Botão-de-Rosa"). O que se apresenta de saída como enigmático não é reconhecido como tal. O tratamento sem-cerimônia vai conferindo ao absurdo certo ar ordinário, o que resulta numa espécie de magia rebaixada e mundana. Num ensaio sobre o autor, o crítico José Paulo Paes falaria num "sequestro do divino", de que são bons exemplos alguns dos mais memoráveis personagens de Rubião, como o mágico que não consegue parar de tirar dos bolsos seres extraordinários, com os quais se entedia; Teleco, o coelhinho metamorfo que, ao tentar se passar por gente, transforma-se num canguru chamado Antônio Barbosa; ou o pirotécnico Zacarias, a respeito de quem os amigos repetem sempre a mesma pergunta: "Teria morrido?". Magia, metamorfose, a própria morte: tudo fica no quase, pelo meio do caminho, que é também destinação e ponto de partida. O morto-vivo é uma das muitas figuras de Murilo Rubião em que se encarna um encontro paradoxal entre atividade e paralisia, movimento e imobilidade. Como se o tempo estivesse fora do tempo. Talvez não seja exagero ver nisso a concretização de uma inquietude metafísica: "Jamais consegui me livrar do problema da eternidade, chegando mesmo, na infância, a ser religioso e um tanto místico", disse o autor numa entrevista a José Adolfo de Granville Ponce, incluída na coletânea "O Pirotécnico Zacarias" (Ática, 1974). Algo dessa formação religiosa se desdobra no uso frequente de epígrafes bíblicas, que antecedem cada história como que dando uma pista para a decifração do enigma por vir, promessa que a leitura adia indefinidamente. Jorge Schwartz associou o moto-perpétuo dos contos de Rubião ao mito do Uroboro, serpente que devora o rabo. O próprio Rubião, na entrevista citada acima, definiu assim seu método de composição: "Nunca me preocupei em dar um final aos meus contos. Usando a ambiguidade como meio ficcional, procuro fragmentar minhas histórias ao máximo, para dar ao leitor a certeza de que elas prosseguirão indefinidamente, numa indestrutível repetição".

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Murilo Rubião atravessa nosso tempo literário sob a forma de uma sequência de compósitos: lido por Mário de Andrade e Álvaro Lins, seus primeiros críticos nos anos 1940, debuta na pele de Murilo-Kafka; de lavra própria, na correspondência com Mário, afirma-se mistura de apostador e morto-vivo; transformado em sucesso editorial na editora Ática comandada por Jiro Takahashi, nos anos 70, surfa a onda do boom latino-americano transmudado em Murilo-Márquez-Cortázar-Carpentier; por um átimo, numa carta breve escrita por Antonio Candido em 1967, aparece como Murilo-Resnais, Murilo-em-Marienbad; em livro recente de Eziel Percino ("Murilo Rubião: Senso e Não-Senso", 2014) tropeçamos num intrigante Murilo-Deleuze. Pode-se imaginar outras costuras. Aposto minhas fichas num Murilo-Beckett, que revelaria suas histórias como um grande "código de gestos", retomando ainda a conexão kafkiana, por via dessa expressão sugestiva forjada pelo crítico alemão Walter Benjamin em ensaio sobre o autor tcheco. Nisso tudo, importa mesmo é que Murilo Rubião é a cada vez retomado e reposto em cena por seus críticos e leitores, mas a cada vez retorna diferente, e por meio dessa diferença persiste sua desconcertante repetição. "Obra Completa - Edição do Centenário".

Murilo Rubião. Editora Companhia das Letras, 288 páginas, R$ 44,90

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