Resenha de \"TERRAS, FLORESTAS E ÁGUAS DE TRABALHO\"

June 4, 2017 | Autor: Rodrigo Barchi | Categoria: Geografia, Antropología, Meio Ambiente
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TERRAS, FLORESTAS E ÁGUAS DE TRABALHO1 Rodrigo Barchi*

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m dos posicionamentos mais pertinentes dessa tese de doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, de Antonio Carlos Witkoski, é a defesa dos conhecimentos dos camponeses amazônicos em relação aos usos da floresta e da terra, além do respeito aos ciclos das águas. Além da própria crítica feita à degradação imprudente que ocorre em grande escala nessa região. Terras, florestas e águas de trabalho: os camponeses amazônicos e as formas de uso de seus recursos naturais, publicado pela Editora da Universidade do Amazonas, é o resultado de uma longa, intensa e minuciosa pesquisa da vida cotidiana do camponês amazônico, que busca perceber as mais diversas práticas de sua adaptabilidade ao ecossistema de várzea. A tese do trabalho é justamente a afirmação na qual os povos tradicionais amazônicos (índios, seringueiros, quilombolas, caboclos, ribeirinhos, ribeirinhos/ caboclos) possuem uma vasta experiência na utilização e conservação da biodiversidade dos ambientes terra, floresta e águas, onde trabalham e vivem. Por serem tributários dos ensinamentos indígenas de valorização das reservas vivas da Amazônia, os camponeses evidenciam-na como lugar de possibilidades de resistência para a criação de novas formas de relacionamento e vida, além das múltiplas estratégias para o desenvolvimento da região. Witkoski, em vários momentos do livro, deixa evidente que o interesse na investigação é justamente divulgar os conhecimentos dessas culturas tradicionais como forma de proteção aos ecossistemas amazônicos e as suas populações. O faz também deixando claro que não faz sentido a idéia de Amazônia como grande espaço intocado, mas como região que durante séculos foi humanizada, sem necessariamente haver uma relação predatória. 1

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WITKOSKI, Antônio Carlos. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2007. (Série: Amazônia: a terra e o homem). 468p. Mestre em Educação pela Uniso. Especialista em Educação Ambiental (USP – São Carlos). Sorocaba/ SP, Brasil. E-mail: [email protected]

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Além dos quatro capítulos em que está dividido, o trabalho traz, em seus apêndices, tanto o percurso metodológico da pesquisa, quanto a justificativa, na qual há o posicionamento a favor do modo de vida camponês, devido à sua perspectiva alternativa ao capitalismo predador e inconseqüente, e em sua provável perspectiva teleológica no conceito de desenvolvimento sustentável, levando-se em conta às cinco dimensões da sustentabilidade: econômica, cultural, ecológica, espacial e cultural. Apesar de ser um doutorado em Sociologia, há intensos e constantes diálogos com outras áreas do conhecimento: Etnologia, Economia, História, Geografia, Ecologia, Antropologia, entre outras. Devido a essa abordagem múltipla, as próprias coletas de dados tiveram que acompanhar essa diversidade, e, portanto, ser constituídas de várias técnicas. Fato que tornou o trabalho difícil de ser realizado, e muito rico em seu resultado final. O autor contou com um grupo de pesquisa da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e do Instituto Nacional de Pesquisa do Amazonas (INPA) para a coleta de dados, realizada entre fevereiro de 1992 e abril de 2000. O trabalho de campo consistiu: de aplicação de questionários, para captar as formas de organização social, política e econômica dos camponeses, além das diversas formas de produção agropecuária e extrativista; de entrevistas semi-estruturadas, as quais eram responsáveis pela captação das representações sociais dos camponeses sobre o mundo do trabalho e também da própria história oral de cada um; e dos diários de campo, para registro de acontecimentos e das próprias interpretações dos pesquisadores no momento da captação dos dados. A pesquisa foi realizada com famílias camponesas de quatro microrregiões amazônicas: Baixo Solimões, Médio Solimões, Alto Amazonas e Médio Amazonas. O autor afirma que nessas áreas estão os camponeses cujos conhecimentos foram herdados dos extintos índios das águas, os omáguas. No primeiro capítulo, “A civilização e os trópicos: adaptabilidade dos ameríndios à várzea amazônica e o seu etnocídio”, Witkoski nos traz justamente quem eram esses índios que viviam nas regiões de várzea, e como se deu o processo de extinção pela colonização portuguesa. Aborda, num primeiro momento, uma breve caracterização dos ecossistemas amazônicos em sua biodiversidade vegetal e pedológica, e a diferenciação entre os rios em relação à coloração da água e potencial de fertilização das margens, sendo os principais: os rios brancos, de águas barrentas – mais férteis – como o rio Solimões, os rios negros – menos férteis – como o rio Negro, e os rios verdes, de

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águas claras – razoavelmente férteis – como o rio Tapajós. Além disso, traz a importância do regime pluvial que tornou possível a ocupação dessas áreas pelos ameríndios. Os omáguas viviam nas várzeas do rio Solimões, nas proximidades do rio Japurá, onde hoje está a região oeste do Estado do Amazonas. De acordo com os cronistas da descoberta do Amazonas, como Gaspar de Carvajal e Cristobal de Acuña, que subiram o rio entre o fim do século XVI e começo do século XVII, citados por Witkoski, os omáguas eram uma sociedade numerosa, cuja agricultura estava intimamente ligada com os ciclos das águas, além das técnicas da transformação dos alimentos para sua comercialização. O poder do governante omágua se estendia por dezenas de kms ao longo do rio. Os outros grupos indígenas que viviam nas matas de terra firme, distantes do rio, tinham grande dificuldade em captar recursos da várzea devido à força dos omáguas nas guerras tribais. Tanto que em cada casa omágua havia um ou dois escravos de alguma dessas tribos, capturados durante os conflitos. Essa sociedade foi extinta já no começo do século XVIII, devido à aculturação, destribalização e às constantes guerras como os colonos portugueses. Os povos da várzea estavam mais sujeitos ao contato com as sociedades européias, pois era mais difícil o acesso à terra firme. Algumas das diretrizes da colonização portuguesa no que diz respeito aos indígenas, e que contribuíram para a sua dizimação foram: a obrigatoriedade da língua portuguesa, a promoção da diferenciação social, o combate às habitações em comum (para os portugueses, esse tipo de moradia gerava devassidão, libertinagem, promiscuidade), a promoção do trabalho e a superação do ócio, a submissão ao Estado português e a repressão às transgressões e fugas. Para Witkoski, o camponês caboclo/ribeirinho da Amazônia – seja ele o sertanejo nordestino migrante do período da borracha no início do século XX, seja ele o remanescente do amazônico colonizado – é o herdeiro legítimo do modo de vida dos índios das águas. Sua direta ligação biológica, histórica e cultural está no fato que os primeiros caboclos foram justamente os índios das águas que foram aculturados, sobreviventes do massacre colonizatório. Também por causa do modo de vida caboclo, adaptado ao ecossistema de várzea de forma semelhante ao dos omáguas. Além disso, a própria influência indígena ainda se mantém presente nas populações das várzeas amazônicas, no que diz respeito à própria alimentação e moradia.

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No segundo capítulo, “O camponês amazônico e o sistema de várzea”, o trabalho busca mostrar a várzea do Solimões e Amazonas como paisagem natural e também paisagem humanizada, território do camponês amazônico, onde habita, trabalha e vive, ou seja, um artefato cultural humano. Traz a relação do camponês com a dinâmica desse diverso ambiente, seu envolvimento com a complexa extensão de terra, floresta e água, que envolve os regimes de cheia, enchente, seca e vazante, os processos de sedimentação, fertilização e erosão de barrancos, assim como o conhecimento que o camponês tem dessa realidade e sua utilização na ocupação do espaço sem exaurí-lo. A partir das entrevistas, o trabalho expõe os motivos pelos quais os camponeses acabam se mudando para a região pesquisada, e como era o lugar quando chegaram. Nesse momento, Witkoski, ao trazer o conhecimento, a história oral e o senso comum dos camponeses amazônicos, evoca o antropólogo Clifford Geertz, ao classificar o senso comum como uma forma local característica, que relaciona-se com a forma como se lida com um mundo onde determinadas coisas acontecem. A multiplicidade de atividades que o camponês amazônico realiza, faz com que o seu modo de vida, assentado sobre condições de existência particulares, tenha formas de relação muito singulares com a natureza, envolvendo a divisão sexual e social do trabalho a própria determinação do tempo aos camponeses devido à rigidez dos ciclos naturais, a participação no mercado em rede, entre outros fatores. As várzeas de trabalho (terras, florestas e águas), como o espaço vital onde o camponês e sua família desenvolvem suas atividades, são analisados no terceiro capítulo, “Terras, florestas e águas: o mundo camponês”, onde Witkoski apresenta os sistemas agroflorestais dos camponeses, aos quais se integram as atividades agrícolas e pecuárias, o extrativismo vegetal, a caça e a pesca. Para o autor, o camponês, mais do que um agente passivo sob a realidade, é um ser ativo aos imperativos que a natureza põe e impõe, estando aí a necessidade de incrementar a produtividade, para assim produzir e reproduzir a própria vida social. As roças amazônicas – que aqui são conceituadas como frações de terras cultivadas anualmente em regime de pousio, policultivo, rotação ou consórcio – acompanham intimamente o regime e o calendário hidrológico do rio Amazonas/ Solimões, e apesar da hegemonia da produção de mandioca e milho, dezenas de outras plantas são também cultivadas: cará, feijão, malta, juta, jerimum, tomate, pimentão, maxixe, melancia, entre outras. O próprio cultivo da seringueira, somada às outras diversas árvores frutíferas

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– bacabeira, bananeira, coqueiro, goiabeira, gravioleira, jenipapazeiro, jambeiro, mamoeiro, mangueira, peitangueira, taperebazeiro – reafirma a idéia do sítio camponês amazônico como um artefato humano. No qual a utilização e cultivo da terra se dá tanto a partir de culturas locais, como de plantas exóticas introduzidas no local. Além disso, existe uma prática entre os camponeses amazônicos, chamada poisio, que consiste no descanso da terra por um determinado intervalo de tempo, para a recuperação da fertilidade, perdida após algum período de uso. Aqui Witkoski estabelece um paralelo entre o camponês amazônico polivalente e o camponês do sul do Brasil, monocultor, que esgota o solo, para quem deixar a terra descansar torna-se uma postura “anticalvinista”. Importante destacar, na questão das terras de trabalho, a pequena diversidade pecuária, que conta basicamente com a criação da galinha, do pato, do suíno, do boi e, em algumas regiões, do caprino. Aliás, diversidade é o que não falta nas florestas de trabalho. Funcionando como complementar a agricultura e à pecuária, fornece grande quantidade de espécies diferentes aos camponeses: madeira (paxiubarana, marajá, abacaurana, piranheira, muruci, pau-brasil, andiroba, embaúba, virola, mulateiro, entre outras), lenha, borracha, açaí-do-mato, tucumã, castanha, bacaba, copaíba, andiroba e plantas medicinais. Em relação às plantas medicinais, só na pesquisa de campo o autor registrou mais de 60 espécies, entre as quais: bico-de-anum, cajuaçu, jutaí, mulameiro e marimar para diarréia; sabugueiro, cajá e apuí para ferimentos; cipó-nema, jacareúba e envira para espantar insetos; andiroba para reumatismo; açaí para anemia; embaúba para pressão arterial; copaíba para hemorragias e mais uma dezena de propriedades; cipó-tuíra para hepatite, entre outros. O extrativismo animal, por sua vez, participa com uma parcela cada vez menor dos rendimentos do camponês amazônico, principalmente, de acordo com os próprios ribeirinhos/caboclos nas entrevistas, por causa da fiscalização contra a caça na região. Mas algumas espécies, como anta, caitetu, cutia, paca, queixada, tatu, marrecos, garças, jacarés, tartarugas, e outras espécies, ainda são capturados, ainda que com menos freqüência. O autor dá destaque a reduzida quantidade de peixe-boi e sua quase extinção nos rios amazônicos, devido à sobre-caça de décadas anteriores. As águas de trabalho para os camponeses amazônicos podem ser consideradas os espaços mais importantes, já que o rio, sendo o maior fornecedor de proteína animal, é quem dita o cotidiano desses moradores. E é também a maior razão de

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conflitos, os quais ocorrem devido à caça comercial, que ameaça não somente o estoque de peixes e a própria capacidade de recuperação e reposição da ictiofauna, mas também a prática polivalente do pescador, que acaba se transformando em mero pescador profissional, monovalente. Witkoski nos traz o histórico de conflitos ocorridos desde os anos setenta, quando até a Pastoral da Terra do Amazonas se envolveu, ao compreender e divulgar que, mais do que a posse das terras, a questão que se põe é a do estoque de peixes e ao uso dessas águas. No capítulo que fecha o livro, “O camponês e o Mito de Sísifo”, é apresentado o dilema da vida camponesa e sua relação com os poderes econômicos organizados no campo e nas cidades. O autor estabelece um debate intenso sobre o valor do trabalho e dos produtos camponeses, e o valor que se acaba estabelecendo nas trocas com a cidade. Traz os ganhos dos camponeses e os seus gastos com alimentação, utensílios domésticos, remédios, educação, vestimentas, combustível, instrumentos de trabalho, entre outros. Provavelmente, quando Witkoski evoca Sísifo – que desafiou os deuses e acabou sendo punido com a tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, que jogaria a pedra para baixo, fazendo o trabalho ser iniciado novamente e constantemente – o faz a partir de um sentido ambivalente: seja aquele do trabalhador que, determinado pela natureza e dependente dos ciclos dos rios, é obrigado todo ano a recomeçar o mesmo trabalho para garantir a sua sobrevivência; ou então a partir de um ethos, que acaba mobilizando a sociedade camponesa em uma posição contrária à própria ética capitalista do trabalho pelo lucro, e favorável ao aproveitamento máximo dos recursos naturais, de forma que garanta uma suficiente subsistência e nada mais.

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