Resenha \"Disjecta membra\" de Carlos Felipe Moisés

June 14, 2017 | Autor: Masé Lemos | Categoria: Poesia, Poesia Brasileira, Poesia brasileira moderna e e contemporânea
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Revista Colóquio / Letras nº 190 Lisboa, setembro 2015

Literatura Brasileira Po es ia Carlos Felipe Moisés

Disjecta membra São Paulo, Lumme Editor / 2014

«Para que servem poetas em tempo de indigência?»1, tradução do célebre verso «wozu Dichter in dürftiger Zeit?», de Hölderlin, presente na elegia Pão e Vinho (1801), indagava o fazer poético numa época em que os deuses se afastam dos

homens e os homens se esquecem dos deuses. É, então, nesse contexto, que o poeta alemão constata um tempo de pobreza de sentidos e, por isso mesmo, de necessidade da poesia, cabendo «aos poetas descrever o encontro com a natureza, que tem a capacidade de se transformar em encontro com o divino»2. Se em Hölderlin a poesia ainda serve para dar sentido ao homem em sua habitação terrestre, o que podemos pensar sobre esta mesma indagação em nossa época, ainda mais difícil e descrente dos deuses e dos homens, tempo de predomínio de uma prosa industrial. O poeta francês contemporâneo Christian Prigent, em seu livro À quoi bon encore des poètes? (1996), atualiza a pergunta de Hölderlin e indaga sobre a serventia dos poetas e de sua relevância no presente, que francamente desdenha da poesia. É próximo a essas questões que o poeta brasileiro Carlos Felipe Moisés, em Disjecta Membra (2014), afirma na terceira parte do seu livro (também ela dividida em três partes, «O Poeta», «O Poema» e «A Poesia»): «Um tempo ou uma cultura francamente favoráveis à poesia? / Então a / poesia já não será necessária, não fará falta alguma» (74). Entende ele que a poesia está acostumada aos tempos difíceis, ou seja, se o solo da poesia moderna é sua própria crise e impossibilidade, em nosso momento atual o fazer poético é ainda mais «um esforço contínuo, uma conquista de cada dia, de / cada verso» (74). A finalidade da poesia hoje seria talvez menos grandiosa que a desejada por Hölderlin, para se constituir apenas como um ponto de oscilação na linguagem para «que ninguém desista da ideia de que as /coisas podem fazer sentido» (75). O título Disjecta Membra refere-se também ao corpo desmembrado de Dioniso, divindade do vinho, afirmação da vida e 275

exaltação das pulsões, que será reconstruído pelos deuses ou pelo poeta. O livro de Moisés abre com o belíssimo poema de mesmo nome, «Disjecta Membra», e, como já foi dito, divide-se em três partes, como o corpo tem cabeça, tronco e membros. O poema em questão serve de preâmbulo a essas partes, que não podem ser unidas e que o leitor recolhe e organiza livremente, pois afinal esse é seu corpo também: «É você inteiro que aí está / ainda que / desmembrado» (15). Entretanto, esse corpo é constituído ainda de memória impalpável, mas muito «real»: Espanto haverá se você sair por aí a recolher os nacos que nunca formaram um corpo: o gesto aflito a flor que pende do galho mais alto o olhar do amigo os seios da amada a flutuar no azul o carro que se foi estrada envolta em névoa o volante (16)

Disjecta Membra é também uma expressão retirada da Sátira IV de Horácio, onde se lê «inuenias etiam disiecti membra poetae» («aqui encontrarás ainda os membros do poeta despedaçado»), que evoca o mito de Orfeu despedaçado pelas Bacantes. Na poesia moderna brasileira podemos apontar pelo menos dois exemplos onde essa figura é importante e com os quais Moisés certamente dialoga: o primeiro é o livro de Mário Faustino, O Homem e Sua Hora (1955), dividido em três partes, sendo a primeira intitulada justamente Disjecta Membra; a segunda referência é A Rosa do Povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade. Sabemos que A Rosa do Povo é o livro mais radical de Drummond, pois o período do pós-guerra e suas preocupações político-sociais conduzem-no a um ponto extremo, quando o poeta analisa justamente «nosso tempo», um tempo dila276

cerado de contradições, de barbárie e de memórias represadas. Assim, constata-se o uso de «procedimentos retórico-estilísticos representativos das vanguardas do século XX: a enumeração caótica, estudada por Leo Spitzer, e a figura disjecta membra, analisada por Amado Alonso em seu livro sobre Pablo Neruda»3. Se a enumeração caótica mistura partes que não têm necessariamente relação entre si, a disjecta membra funciona como partes metonímicas de um mesmo corpo, pedaços de memória que retornam esfacelados, rotos e muitas vezes percebidos como repulsivos e em vias de desintegração. Funciona também de maneira onírica, calcada nas lembranças da matéria vivida que retornam e são recolhidas pela poesia. No poema de Moisés, «Disjecta Membra», essas imagens surgem também desconectadas: «depois dos estilhaços de alguma / lembrança a bengala sozinha / a saltitar na calçada por fim / liberta do cego que a empunhava» (17). Podemos notar aqui o uso tanto do enjambement quanto da cesura que quebram o verso e o sentido, criando vazios entre pedaços irreconciliáveis destas imagens soltas, desde sempre desunidas e sem serventia; afinal, «ninguém saberá / juntar o que desconjuntado / nasceu» (17). Se o primeiro poema marca uma certa radicalidade no livro de Moisés, as outras partes soam por vezes um tanto conformadas com a pobreza dos tempos e com a impossibilidade de a arte resgatar e reunir homens e deuses ou ainda oferecer resistência à captura do mundo capitalista. A  poesia apresenta-se como um leve sopro, uma canção de amigos, frases soltas de leves especulações sobre o fazer poético, como se vê na terceira parte do livro, onde se encontram diversos fragmentos que foram retirados de Frente e Verso: sobre Poesia e Poética (2014), livro de ensaios do autor, que tem uma consistente carrei-

ra como professor e ensaísta. Entretanto, apesar das homenagens a poetas contemporâneos que estão presentes em seu livro, entre epígrafes e dedicatórias, Moisés parece estar apegado aos poetas brasileiros modernos, como é o caso de Manuel Bandeira, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto e o já citado Drummond, como ele mesmo afirma: «São esses os poetas que, antes dos demais, me ajudam a enfrentar o tempo presente, os homens presentes, a vida presente, hoje.»4 Voltando a Drummond, se em A Rosa do Povo se constata a utilização da figura da disjecta membra para dilacerar as imagens, já no seu conhecido poema «Tarde de Maio», de Claro Enigma (1951), a fragmentação surge de maneira positiva, pela possibilidade de conciliação. Talvez possamos nos aproximar de «Tarde de Maio» para traçar um paralelo com uma possível leitura do livro aqui em questão. Com efeito, na primeira e na segunda partes de Disjecta Membra surgem imagens dóceis e uma requintada artesania dos versos, sem saltos abruptos. Algo que nos faz suportar a águia — a ferocidade de nosso presente  — como no poema «Prometeu», da primeira parte do livro: «Essa águia estúpida / a lhe despedaçar as entranhas / é docemente / suportável» (21). O livro ainda apresenta diversos poemas de refinada carga imagética, como em «Apostasia do Haicai» (36-37), onde é estabelecida uma interessante relação entre o verso e a prosa, ou ainda a beleza radical que encontramos no poema «Gaiola», que a certa altura indaga: «Como voltar ao lugar / de onde nunca partiu?» (45). O pássaro sequer saiu da gaiola e parece conformado com a possibilidade de se consolar através de alguns devaneios: «Gaiola trancada / o nevoeiro se desfaz» (45). E apenas nesse átimo se dá conta de seu tempo, um tempo presente e vazio. Mas tudo parece docemente suportável ao negar o

contemporâneo e suas ranhuras e preferir se refugiar na gaiola de um outro tempo. Masé Lemos Notas 1 Friedrich Hölderlin, Pão em Vinho, trad. José Paulo Paes, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 169. 2 Pedro Süssekind, «Poesia em Tempos de Indigência», Viso· Cadernos de Estética Aplicada, n.º  2, maio 2007; http://www.revistaviso.com. br/pdf/viso_2_pedrosussekind.pdf. 3 Marlene Castro Correia, «Como Drummond Constrói ‘Nosso Tempo’», Alea, vol. 11, n.º 1, Rio de Janeiro, jan. 2009, p. 77. 4 Carlos Felipe Moisés, Frente e Verso: Sobre Poesia e Poética, Rio de Janeiro, Confraria do Vento, 2014, p. 194.

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