Resenha do livro \"A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento\", de Janaína Martins Cordeiro.

May 24, 2017 | Autor: Gustavo Alonso | Categoria: Ditadura Militar, Consenso Emocional, Comemorações Históricas, ufanismo, apoio
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TALLER (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina Vol. 4, N° 5 (2015) ISSN: 0328-7726

JANAÍNA MARTINS CORDEIRO A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento, FGV, Rio de Janeiro, 2014. 360 páginas.

GUSTAVO ALONSO1

Em épocas de intensa produtividade na academia, quase sempre se perde em qualidade diante da quantidade. Alguns preferem o caminho fácil da reprodução de fórmulas já entronizadas, reproduzindo leituras clássicas. Evitando correr riscos, poucos têm a coragem de pisar em terrenos movediços. Não é o caso desse livro da historiadora Janaína Cordeiro, recentemente publicado. Fruto de tese de doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense, a obra intitulada A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento, publicada pela Ed. Faperj/FGV, é ousada desde o início. Começa abordando um pária, uma figura non grata: o militar-presidente-ditador Emilio Garrastazu Médici. É através da solitária morte do ex-ditador em 1985, em plena redemocratização, que a autora polariza momentos-chave na reconstrução das memórias da ditadura, apresentando seu tema. Como problematiza Janaina Cordeiro, com prosa condutora e de fácil leitura, ao funeral de Médici compareceram apenas 300 pessoas. Tal fato contrastava com as multidões que foram ao funeral de Tancredo Neves. O mineiro Tancredo havia apoiado o golpe de 1964, mas conseguiu se desvincular a tempo, salvando sua memória até hoje elencada como de um digno democrata. Não seria o único. Quase todos abandonariam Médici. O caso de José Sarney, demonstra a autora, é paradigmático. O maranhense, que havia sido figura orgânica do partido de sustentação da ditadura, a ARENA, abandonara o barco aos quarenta e cinco do segundo tempo quando, à convite de Tancredo, ingressou na chapa que levaria o Brasil indiretamente à redemocratização. Quando morreram Tancredo e Médici, Sarney era presidente. Ele concedeu a Médici honras de chefe de Estado, declarou luto oficial de 8 dias, mas considerou precipitado ir ao velório. Em suas reticências, Sarney era símbolo de uma sociedade que renegava o passado de forma ambígua. Equacionando seletivamente o passado inglório, mas sem desligá-lo completamente de suas entranhas, a sociedade brasileira apagava o entusiasmo que outrora sentira pelos ditadores.

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Gustavo Alonso é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense. Sobre sua produção ver: Gustavo Alonso Simonal: quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga, Ed. Record, Rio de Janeiro, 2011 e Gustavo Alonso Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2015. Contato: [email protected] [179]

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Como pode um ditador que foi amado pelas multidões, num nível muito semelhante ao que Vargas fora outrora idolatrado, tornar-se pária da história sem que a sociedade refletisse sobre o apoio concedido a este ditador? Esse é o mote de Janaína Cordeiro para nos transportar a uma época muito visitada pelos historiadores. Mas ela o faz sem cair nos marcos de sempre. Sem repetir os temas de sempre. A historiadora nos leva por caminhos tortuosos, por vezes incômodos, quase sempre escorregadios, para nós e para ela própria. Especialmente por que seu objeto é uma figura estranha para a historiografia do período. Para mapear o entusiasmo popular pelos ditadores, ela analisou em profundidade os grandes festejos que vivemos no Brasil quando da comemoração dos 150 anos da independência do país - o chamado Sesquicentenário da Independência. O livro-tese de Janaina Cordeiro possui nove capítulos. Nenhum deles pisa em território seguro. Com grande ousadia, aborda temas incomuns. No primeiro, o funeral de um ditador aposentado, como vimos. No segundo, já introduzindo o tema das festas do regime, seu alvo central, a historiadora aborda o translado dos restos mortais de D. Pedro I para o Brasil e as festas promovidas pelo regime com intensa participação popular por todo território nacional, que circulou por todas as capitais de Estados e territórios. No terceiro, um olhar para Tiradentes, o outro herói condecorado pelo regime, e a abertura dos festejos do Sesquicentenário. No quarto capítulo, como não poderia deixar de ser, ela aborda com maestria as relações entre política e futebol. E o faz de forma original ao analisar a fundo a pequena "Copa do Mundo" realizada no Brasil em 1972, hoje esquecida, que contou com participação intensa da FIFA, das seleções de diversos países, de homens do regime e da antiga CBD, assim como da participação intensa da população. No quinto analisa a vinda dos restos mortais de D. Pedro trazido pelos ditadores e a interpretação cinematográfica oficialesca (ou não) do filme "Independência ou morte", grande sucesso com Tarcísio Meira no papel do imperador [que faz contraponto ao vanguardismo de "Os inconfidentes", analisado no capítulo 7]. No sexto capítulo Janaína estuda como o regime organizou os festejos. Para além de ver direcionismo governamental, a autora consegue - proeza rara enxergar a participação e envolvimento popular, as vezes em conjunção, as vezes demandando, as vezes indo além dos interesses dos ditadores. Sem se deixar simplificar pelo espírito ufanista de seu objeto, no sétimo capítulo a autora analisa as oposições ao regime. E aqui há um avanço considerável. Conhecendo a imensa bibliografia sobre o tema, a historiadora não ignora aqueles que se opuseram frontalmente aos ditadores. Mas sua lente aponta para outras resistências, quase nunca contempladas pelo olhar historiográfico. Especial atenção é dada para aquelas resistências perturbadoras, como de figuras como Alceu Amoroso Lima, que de apoiador da ditadura desde o seu início, tornou-se um democrata fora de época em 1972, pedindo em praça pública que o regime, então praticamente sem inimigos a combater, voltasse a normalidade. No oitavo capítulo ela analisa o fim dos festejos, que tinham data marcada para terminar. O nono capitulo funciona como conclusão, apontando para além da memória do período de terror que a ditadura representou. Trata-se de um trabalho corajoso. Estruturalmente, por que foge ao padrão tão batido das teses acadêmicas, que em grande parte ainda têm escrita que separa discussão teórica e análise de fontes, como se estes fossem mundos à parte. Tematicamente

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porque estamos diante de um estudo que aponta novas trincheiras analíticas acerca deste período histórico tão visitado. Quantos historiadores não se espantaram com a popularidade da ditadura e tiveram que colocar este incômodo para debaixo do tapete, nomear este acontecimento de "aberração", e silenciar-se sobre este fenômeno? Pois é justamente esta "aberração" que a historiadora analisa com cuidado, dedicação e sobretudo respeito às fontes. Apropriando-se de inovações no campo historiográfico levadas a cabo por historiadores Daniel Aarão Reis, Carlos Fico, Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, a tese de Janaina Cordeiro consegue avançar ainda mais no conhecimento do período. Contrariando uma longa bibliografia acerca do tema, a historiadora aborda um silêncio perturbador acerca do período. Tendo como objeto as festas, o alvo da historiadora são os consensos. Devido ao imenso manancial pesquisado e a abordagem instigante, o trabalho proporciona inteligibilidade ao incômodo tema que foi o consenso sob período ditatorial, onde, especialmente no caso brasileiro, apenas a truculência dos ditadores não consegue explicar a intensa participação popular na sustentação do regime. Não apenas a capacidade investigativa chama a atenção. Cumpre louvar também o caráter generalista da obra. Quantas teses há dentro da tese de Janaína? Alguns historiadores se contentariam em analisar apenas o futebol e a "Copa" de 1972. Outros se contentariam em analisar apenas como os ditadores organizaram os festejos. E assim por diante. Cada capítulo da autora daria uma tese em separado. Mas, contrariando o produtivismo atual, que cortaria custos investigativos e focaria em apenas um tópico, a historiadora mostra que há ganhos consideráveis em se abrir a lente. Janaína consegue juntar várias temáticas e - para ganho do leitor - fazer um livro transversal. O que se perde em especificidade é ultrapassado pela ambição da visão total que, embora todo historiador saiba irrealizável, deve ser buscada pelo bom profissional. Futebol, política, funerais, festas, oposições, música, consensos, apoios, dirigismo, participação: todos são temas interligados pela escrita fluida da autora. O entusiasmo, a empolgação e a vontade de participar eram intensos durante o governo ditatorial, e especialmente nos anos do "milagre econômico". Pois é neste período que a historiadora concentra o olhar, focando nas festas do regime, com olhos atentos aos consensos e sobretudo à participação intensa de largas camadas da sociedade brasileira. Ao enfrentar o tema do consenso, que não se explica apenas e tão somente pela repressão, a historiadora dá um passo avante na historiografia. Consenso, a historiadora explica, não é sinônimo de unanimidade. Se dá em diversos graus e é volátil. Mas apesar de ser de difícil apreensão, o consenso não pode deixar de ser analisado pelo bom historiador. Sem fugir deste terreno minado, a historiadora enfrenta o novo tema, buscando verdadeiros atores sociais, e não apenas marionetes que grande parte da historiografia preferiu enxergar. Através da noção de consenso pode-se entender de fato a diferença nada sutil - e é exatamente aí que está o ovo de Colombo - entre sedução e fascinação. Trata-se da diferença que confere à coletividade o papel de ator social ativo e não de massa seduzida, inerte às vontades de líderes todo-poderosos.

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Através do estudo do consenso, fica mais claro para todos nós como aquele período que aparentemente todos vivemos como "trevas", pode ter sido vivido de forma tão naturalizada pelos brasileiros de então. Que multidões eram aquelas que louvavam Médici no Maracanã? Como podem muitos músicos de gabarito ter louvado o regime em canções e festas do regime - tal como fizeram Elis Regina, Clara Nunes, e Tonico & Tinoco, dentre muitos outros? Quantos brasileiros não viram na Transamazônica o símbolo de um Brasil do futuro? Quem eram os setores populares que aplaudiram com fervor intenso quando, em 1972, o ditador Médici estendeu a Leis Trabalhistas de outro ditador - Getúlio Vargas - para setores até então não contemplados, especialmente os camponeses, as empregadas domésticas, os pescadores? Muitos aplaudiram. Milhares, milhões. Confirmando e indo além da ideia da "reinvenção do otimismo" levantada pelo historiador Carlos Fico em clássico livro, Janaina Cordeiro demonstra que a ditadura se sustentou porque conseguiu alavancar tradições entranhadas de longa data na sociedade, catalisando interesses e efetivando transformações e aspirações que não eram de todo alheias a sociedade. Para além da dura repressão ditatorial e da absurda política desrespeitadora dos direitos humanos, em nenhum momento negados ou suavizados pela historiadora, trata-se de focar uma outra história, de ouvir outras vozes. Vozes que gritavam, mas de empolgação. E que talvez por isso mesmo tenho sido silenciadas nas batalhas da memória. Não se trata de louvar os ditadores e torturadores. Não se trata de negar a opressão. Mas de entender quais os valores permearam determinado consenso, para além do simplismo da violência estatal. Trata-se de algo que análise vitimizadora, que foca apenas na repressão, se silencia. Claro que o consenso forjado foi autoritário, com certeza, desigual, seguramente, mas ainda assim muito eficaz em compreender e canalizar vozes esparsas das multidões. O duro é constatar que estas vozes populares não poucas vezes foram tão ou até mais duras que aquelas que a queriam autoritária e ditatorialmente representar. E assim, beirando o paroxismo, a historiadora mostra um Brasil mais palpável. Ao andar em tal terreno minado apresentado pela historiadora, os mais ingênuos preferirão olhar para o retrovisor. Com frequência prefere-se a história sempre contada e recontada em inúmeros livros que, se foram importantes em demarcar uma verdade da repressão que era preciso que fosse revelada, por outro, com suas explicações unilaterais, cooperaram para a incompreensão parcial acerca desta época devido ao silêncio sobre o consenso construído durante o período. O esforço da autora foi o de compreender a ditadura como produto da sociedade brasileira, reconhecendo, para tanto, que houve apoios declarados, engajados, militantes, mas também silenciosos. Trata-se de um projeto arriscado. Como se sabe, todo dançarino de terreno minado pode, eventualmente, se chamuscar. E talvez aí consigamos avançar criticamente através de seu trabalho. Se, como diz Janaína, o consenso era flutuante, determinado por distintos fatores segundo o contexto, fica a impressão através do livro de que não houve muita variação de contexto. A análise de dois períodos, o auge e o ocaso da ditadura, é uma ótima opção literária para se observar a transição da memória acerca do período. Mas há variações mais tênues em menor espaço de tempo que ainda estão para ser melhor analisadas pelos historiadores. A transição do ufanismo de 1972 [182]

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à vitória do MDB nas eleições de 1974 passam ao largo de qualquer compreensão, seja da autora, seja de nosso campo historiográfico. E qual o peso da crise de 1973 exatamente no Brasil? Ainda é um tópico em aberto. Frequentemente se explica a vitória de 1974 como puro reflexo de crise econômica. Será? Trata-se de um tema a ser melhor investigado. Por outro lado, o suporte historiográfico da autora pode ser visto como problemático. O uso frequente de autores estrangeiros, especialmente aqueles que analisam os casos ditatoriais da Alemanha nazista e da França ocupada durante a Segunda Guerra Mundial como comparativos para se pensar o caso brasileiro, talvez não seja a melhor abordagem para se analisar nossa ditadura. Janaína usa autores como Pierre Laborie, Robert Gellately, entre outros. Poderia se cobrar aproximações com a historiografia latino-americana. De fato, já há uma larga produção historiográfica que analisa contextos transnacionais, especialmente do Cone-Sul. Mas estes têm como objeto sobretudo a história repressiva das ditaduras. Pouquíssima produção há sobre consensos, festas e participação popular nestes regimes.2 De forma que uma análise comparativa mais cuidadosa talvez dependesse do avanço do campo historiográfico como um todo. Essas são as pouquíssimas desvantagens do trabalho de uma historiadora que abre clareiras no saber, de alguém que explora com coragem um terreno pouco habitado, com poucos abertos ao diálogo e muitas indagações. Com audácia e fluidez literária, o livro de Janaína Cordeiro coopera para abrir novos campos de conhecimento através da autocompreensão da sociedade brasileira, para além da autoindulgência e das simplificações da memória.

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Há exceções a esta regra, como a obra organizada por Samantha Quadrat e Denise Rollemberg A construção social dos regimes autoritários, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 2011. [183]

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