Resenha do livro \"Dos Delitos e das Penas\", de Cesare Bonesana-Beccaria.

July 25, 2017 | Autor: R. Ferreira Corrêa | Categoria: Sociology, Criminology, Social Sciences, Direito
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Dos Delitos e das Penas - Cesare Beccaria

Cesare Bonesana, aristocrata italiano nascido em 15 de março de 1738, é considerado o principal expoente da vertente de pensamento do Iluminismo Penal. O contexto histórico dentro do qual o autor fora criado, a península itálica do século XVIII, era caracterizado por um regime de governo despótico em que a sociedade era submetida aos poderes autoritários da Igreja e da Monarquia. Porém, no âmbito cultural, floresciam na Europa as teorias iluministas, aliadas à difusão da literatura humanista e da racionalista, o que criava um ambiente de efervescência cultural e agitação social propício à realização de mudanças nas bases da sociedade. Beccaria graduou-se em Direito em 1758 na Universidade de Pavia, assumindo, em 1768, a cadeira de Economia Política na Escola Palatina de Milão, cargo que ocupou por apenas dois anos. Em 1771, foi nomeado conselheiro do Conselho Supremo de Economia, onde ficou por mais de vinte anos. Além de seu principal livro, produziu também outros escritos na área econômica, como 'Del disordine e de' rimedi delle monete nello stato di Milano nell' (1762) e, postumamente publicado, 'Elementi di Economia Pubblica' (1804), mas foi sua obra mais estudada aquela cuja influência no Direito Penal se expandiu por distintos períodos e países ao redor do continente europeu. Sua morte deu-se por acidente vascular cerebral, em 28 de novembro de 1794, quando tinha 56 anos.
As características do Direito Penal em sua época eram a repressividade, a incerteza, a abusividade e a corrupção. Apesar de essas características ainda subsistirem, a privação do direito à liberdade, à vida e à propriedade não se dava em observância ao devido processo legal. Havia acusações secretas e as condenações baseavam-se em provas sem consistência. O poder discricionário dos juízes, quanto à punição aos condenados, era ilimitada, variando as penas em função da vontade dele ou da classe social do indivíduo. Havia penas de morte, antecedidas por torturas aplicadas por determinação judicial, e não havia, na prática, diferença entre acusado e condenado, pois ambos eram colocados na mesma instituição e eram alvos de encarceramento, independentemente de idade ou sexo.
A obra 'Dei Delitti e Delle Pene' (BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 1.ed. São Paulo: Martin Claret, 2002), escrita originalmente em 1764, tornou-se conhecida por criticar a condição do modelo penal existente sob governo despótico (sem contudo criticar profundamente a estrutura social). No início da obra, o autor resume o seu raciocínio e expõe a razão que o fez escrever o livro, que seria o interesse em humanizar o direito, principalmente o direito penal e a execução da pena, que estavam entregues à discricionariedade do monarca e do órgão julgador. Seu intuito foi criticar a crueldade das penas e a irregularidade dos procedimentos criminais e revoltar-se contra as atrocidades cometidas em nome da lei, da justiça e da ordem pública.
O livro se compõe de 42 capítulos: I – Introdução; II – Origem das penas e direito punir; III – Consequências desses princípios; IV – Da interpretação das leis; V – Da obscuridade das leis; VI – Da prisão; VII – Dos indícios do delito e da forma dos julgamentos; VIII – Das testemunhas; IX – Das acusações secretas; X – Dos interrogatórios sugestivos; XI – Dos juramentos; XII – Da questão ou tortura; XIII – Da duração do processo e da prescrição; XIV – Dos crimes começados; dos cúmplices; da impunidade; XV – Da moderação das penas; XVI – Da pena de morte; XVII – Do banimento e das confiscações; XVIII – Da infâmia; XIX – Da publicidade e da presteza das penas; XX – Que o castigo deve ser inevitável. – Das graças; XXI – Dos asilos; XXII – Do uso de pôr a cabeça a prêmio; XXIII – Que as penas devem ser proporcionadas aos delitos; XXIV – Da medida dos delitos; XXV – Divisão dos delitos; XXVI – Dos crimes de lesa-majestade; XXVII – Dos atentados contra a segurança dos particulares e principalmente das violências; XXVIII – Das injúrias; XXIX – Dos duelos; XXX – Do roubo; XXXI – Do contrabando; XXXII – Das falências; XXXIII – Dos delitos que perturbam a tranquilidade pública; XXXIV – Da ociosidade; XXXV – Do suicídio; XXXVI – De certos delitos difíceis de constatar; XXXVII – De uma espécie particular de delito; XXXVIII – De algumas fontes gerais de erros e de injustiças na legislação e, em primeiro lugar, das falsas ideias de utilidade; XXXIX – Do espírito de família; XL – Do espírito do fisco; XLI – Dos meios de prevenir crimes; e XLII – Conclusão.
Considera-se a obra um clássico do direito pois ela é tida como uma das bases do Direito Penal moderno e representou a primeira tentativa bem sucedida de apresentar um sistema penal consistente e logicamente construído, que se propunha a substituir as práticas desumanas existentes no sistema punitivo da época. Beccaria é citado por diversos autores contemporâneos, como no livro A verdade e as Formas Jurídicas de Michel Foucault, além da exposição que esse mesmo autor faz no início de Vigiar e Punir, onde é descrita uma prática punitiva degradante, tão comum à época de Beccaria e por ele combatida, na qual fora o réu condenado à tortura e execução sobre supervisão de um eclesiástico de uma das igrejas da época. Inúmeros princípios apresentados em Dos Delitos e Das Penas foram incorporados pela Revolução Francesa, na Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e no Código Penal Francês de 1791, de 1795 e de 1810. Por influência do livro, a imperatriz Maria Teresa, da Áustria, aboliu a tortura em 1776. No Império Russo, a imperatriz Catarina II ordenou a inclusão dos conceitos do livro no Código Criminal de 1776. Em 1786, Leopoldo de Toscana emitiu a primeira lei a adotar as reformas defendidas pelo livro no território atual da Itália. Na Prússia, Frederico, o Grande, também promoveu reformas neste sentido.
Endossam a importância de tal obra jurídica o prêmio concedido em 1765 pela Sociedade Econômica de Berne, com uma medalha de ouro pelo trabalho realizado e pela defesa humanitária. Em 2014, completos 250 anos da publicação do livro, inúmeras discussões e homenagens foram feitas em relação à contribuição de Beccaria e a sua influência na atualidade. No Brasil, foi publicado o livro Beccaria (250 Anos) e o drama do castigo penal, por Luiz Flávio Gomes.
No capítulo I, o autor expõe que há uma necessidade em distribuir equitativamente as vantagens da sociedade entre os seus membros, embora isso não ocorra por uma tendência de concentração, a qual apenas poderia ser eliminada pela elaboração de boas leis. O processo de melhoria qualitativa das leis passaria por um esclarecimento social, a ser forjado por pensadores e humanistas, e é com essa função que o autor se disse motivado a escrever a obra, com foco no sistema criminal, e na análise da necessidade de algumas de suas penas, como a pena de morte, as torturas e os meios mais apropriados para prevenir a criminalidade.
O capítulo II justifica o direito de punir na visão de Beccaria, e se inicia com a declaração de que a moral política, aquela que resulta do consenso social e que difere da moral religiosa e da lei natural, não oferece à sociedade nenhuma vantagem durável se não estiver baseada em sentimentos internos do ser humano. Qualquer lei não fundada nessa disposição interna encontrará resistência, pois em um corpo de aparência sólida, se aplicada continuamente determinada força, o fará ceder a tal pressão. Portanto, no coração do homem devem ser buscados os limites do direito de punir.
Ninguém sacrifica a própria liberdade para o interesse social. Somente interesses pessoais motivam o indivíduo a ligar-se aos demais em uma combinação política que irá limitar sua liberdade. O agrupamento humano deu-se em decorrência da impossibilidade de os indivíduos satisfazerem seus interesses apenas por seus próprio meios e pelas possibilidades da natureza, e as leis vieram para regular esse agrupamento. Tais pessoas, em estado de natureza, vivendo em permanente temor gerado pela insegurança de sua condição, sacrificaram parte de sua liberdade para usufruir do restante com segurança. A soma desses fragmentos de liberdade constitui a soberania da nação, e aquele que fora depositário da gestão da nação constitui-se em soberano. Cada particular tenderia ao despotismo, forte tendência do ser humano, restituindo para si a sua liberdade delegada e usurpando a dos demais, fazendo a sociedade regredir ao estado de natureza, portando legitima-se o estabelecimento de penas a serem impostas contra os infratores das leis e legitima-se o direito de punir como forma de tutela a todas essas pequenas parcelas de liberdade reunidas.
O autor demonstra adesão à teoria contratualista de Hobbes, utilizando-a tanto para fundamentar a existência do direito penal e das penas quanto para limitar a incidência do poder punitivo, que sofreria afastamento de seu fundamento se não fosse limitado. Para Thomas Hobbes, segundo o conceito Bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra todos), a humanidade, em uma situação de estado natural (pré-social), tenderia a se violentar recíprocamente devido à falta de segurança, e, para evitar tal condição, optam os homens por um contrato social, abdicando de certas liberdades em troca de uma convivência pacífica em sociedade.
No capítulo III, como consequência do princípio de que a tutela do contrato social fundamentou o direito de punir e a existência das punições penais, tem-se que só a lei pode prever as penas aplicáveis e que apenas o legislador pode instituir leis penais. Ainda em decorrência do princípio da legalidade, tem-se que o magistrado não pode aplicar penas sem permissivo legal, pois, sendo o juiz parte da sociedade, não pode ser ele mais severo contra um de seus semelhantes do que permite a lei. A segunda consequência é a de que o soberano apenas pode fazer leis gerais, com punições as eventuais violações ao contrato social, mas não as pode aplicar. Os princípios primeiro e segundo demonstram a vinculação de Beccaria à teoria de Montesquieu, e ao seu princípio de separação dos poderes (defendido na obra De l'esprit des lois de 1748).
O capítulo IV trata da forma de intrepretação das leis, as quais para o autor devem ser aplicadas sobre o caso concreto, via silogismo, se em tal caso houve conduta infringente a expresso texto legal. Tal enunciado poderia enquadrar Beccaria dentre os defensores do positivismo jurídico, dada a função meramente subsuntora conferida ao órgão judicial. Embora à época do autor a mera competência subsuntora constituísse um bom meio de conter o arbítrio judicial e estatal, hoje em dia tal função limitada possui críticos em função das potenciais distorções que decorrem desse modelo, como por exemplo, quando a lei não foi abrangente o suficiente para reger o caso concreto (embora, em direito penal, tal falta de taxatividade fosse resolvida em benefício do réu), ou quando a subsunção estrita e despreocupada com o contexto do delito pudesse promover uma injusta decisão, por exemplo, em casos de furto famélico, em que hoje se considera inexistir tipicidade material, ou quando há falsificação de documentos promovida por um ex detendo que, tentando procurar emprego após sair da prisão, não o consegue dada a estigmatização sofrida por ele por ter sido preso no passado, e só consegue uma função empregatícia após adulterar seu CPF para ser admitido como funcionário.
O capítulo V trata da necessidade de o legislador elaborar leis que sejam claras e de fácil entendimento por qualquer cidadão. O capítulo VI trata da prisão, declarando Beccaria que somente a lei pode indicar casos em que ela é cabível. O autor define inclusive quais tipos de provas ou de fatos ensejam a decretação da prisão (como o clamor público, a fuga, a confissão, o depoimento de cúmplice etc.) e diz que apenas quando as prisões deixarem de ser a mansão do desespero e da fome é que a lei pode satisfazer-se com provas mais fracas para que haja a decretação. Esse raciocínio tem relevância quando se percebe que não houve avanços da época de Beccaria até hoje, pois, ainda que as prisões nunca tenham perdido o aspecto desumano de que sempre se viram investidas, pauta-se a política criminal (dada a elevada carga de influência política a que ela se expõe) por medidas tendentes a elevar os limites abstratos da privação de liberdade nos diversos tipos penais existentes e criminalizar mais e mais condutas à medida que o tempo passa. Pelo raciocínio do autor, a lógica deveria ser inversa, pois quanto mais degradante a realidade prisional, com menos frequência se deveria aplicar a pena de prisão.
O capítulo VII estabelece critérios para valorar provas e elabora uma defesa de um julgamento público com participação social. O capítulo VIII dispões sobre as pessoas que podem ser aceitas como testemunhas, que para o autor pode ser qualquer um que não tenha interesse em mentir, as quais devem receber tanto mais crédito quanto mais atroz o crime cometido. O capítulo IX diz respeito à denúncia secreta, que não deveria existir segundo o autor, e à pessoa que denunciasse caluniosamente se deveria aplicar a pena cabível ao crime imputado ao caluniado. Defende também o autor, em sociedades determinadas, a criação de magistrados com poder de denunciar.
Não é possível deduzir-se da obra se o termo magistrado é utilizado no capítulo IX refere-se estritamente a um órgão judicial, pois, há sistemas jurídicos na Europa onde a palavra magistratura serve para designar tanto os integrantes do Judiciário quanto do Ministério Público, mas caso a intenção fosse referir-se unicamente ao órgão judicial, deve-se questionar se a denúncia vinda do juiz pode não trazer consequências distorcivas ao sistema penal devido ao fato de violar a inércia. Talvez o corporativismo comumente verificado no Judiciário pudesse fazer com que aquele denunciado por um juiz tivesse maior chance de condenação ou de ter que cumprir pena mais alta. Ademais, com o primeiro modelo de Ministério Público já existia há época de escrita da obra, não se vê muitas razões para se adotar um modelo de denúncia vinda de um órgão judicial.
O capítulo X trata do modo de se proceder ao interrogatório, mais especificamente quanto à forma de elaborar perguntas ao interrogado e critica a aplicação da tortura em interrogatório. Ao fim, declara que deve ser aplicada pesada pena àquele que se recusa a responder, pois tal silêncio constitui uma ofensa à sociedade e à justiça. Felizmente, tal raciocínio restou ultrapassado hoje em dia, pois, em decorrência do princípio da ampla defesa, permite-se ao acusado permanecer silente, cabendo inclusive Habeas Corpus para garantir a ele o direito de permanecer silente e de não produzir prova contra si mesmo.
No capítulo XI critica-se a exigência de juramento para o acusado que se obriga a dizer a verdade, pois o sentimento natural do homem é preservar-se da condenação, se preciso for mentir, e não se manter à sua palavra e deixar-se condenar. O capítulo XII trata da defesa da abolição da pena de tortura, definindo que ela gera distorções no processo ao condenar um inocente que a ela sucumba e absolver um culpado que a ela resista e atribui a práticas religiosas o costume de purgar a infâmia do acusado com a tortura, pois, a partir do ensinamento de que a dor e o fogo do purgatório apagam as nódoas espirituais, a infâmia do delito (nódoa civil) também poderia ser apagada por uma tormenta física. O capítulo XIII trata da duração do processo, que deve ser curta para que o delito cometido já venha a ser acompanhado da respectiva punição, caso se queira que a repressão ao delito seja um freio eficiente ao criminoso.
No capítulo XIV o autor defende a tese (ainda adotada nos dias atuais) de que a tentativa deve ser punida com a pena inferior à do delito consumado. É também defendida a ideia de que o cúmplice de um delito que o ajuda a ser resolvido deve receber benefício legal, com a diferença de que o autor fala em uma lei geral que prometesse a impunidade ao cúmplice delator, e não meramente a redução da pena definitiva, diferente do que se procede no ordenamento atualmente. Utiliza-se hoje em dia a delação premiada, figura prevista em diversas leis brasileiras, como o Código Penal (art. 159, §4º); a Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro, nº 7.492/1986 (art. 25, §2º); a Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro, nº 9.613/1988 (art. 1º, §5º); a Lei dos Crimes contra a Ordem Tributária e Econômica, nº 8.137/1990 (art. 16, parágrafo único); a Lei de Proteção a vítimas e testemunhas, nº 9.807/1999 (art. 14, que, conforme interpretação doutrinária majoritária, estendeu o benefício para o réu colaborador em qualquer outra infração penal); a Lei de Drogas, nº 11.343/2006 (art. 41); a Lei sobre o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, nº 12.529/2011 (art. 86, que trata do assunto sob o nome Programa de Leniência); e a Lei sobre Organizações Criminosas, nº 12.850/2013 (art. 4º). O instituto, segundo o conceito de Guilherme de Souza Nucci, "(...) significa a possibilidade de se reduzir a pena do criminoso que entregar o(s) comparsa(s). É o 'dedurismo' oficializado, que, apesar de moralmente criticável, deve ser incentivado em face do aumento contínuo do crime organizado. É um mal necessário, pois trata-se da forma mais eficaz de se quebrar a espinha dorsal das quadrilhas, permitindo que um de seus membros possa se arrepender, entregando a atividade dos demais e proporcionando ao Estado resultados positivos no combate à criminalidade". Os benefícios conferidos ao delator que efetivamente colaborar com as investigações variam desde a redução da pena a ser aplicada (até dois terços), a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos, o perdão judicial (hipótese prevista por Beccaria) ou mesmo o não oferecimento da denúncia.
O capítulo XV trata da desproporcionalidade das penas, dizendo-se que é o estado de pacificação social do país determinante do grau de rigor das penas permitidas na lei. A desproporcionalidade das penas, quanto mais terríveis os castigos, mais incitam o infrator a delas fugir, mesmo que para isso deva ele praticar novos crimes para tentar escapar da condenação aplicável pela prática do primeiro deles. Tal raciocínio é endossado por doutrinadores contemporâneos, embora o façam de forma generalizada, pois alguns deles considera que a existência de punições previstas legalmente motivam o infrator a continuar delinquindo para tentar escapar da punição.
O capítulo XVI faz uma dura crítica à existência da pena de morte, por ser esta incompatível com a ideia de contrato social, pois a liberdade delegada pelos indivíduos em troca de segurança (e consequentemente de proteção a suas vidas) não autoriza o estado a eliminar tais indivíduos. O capítulo XVII faz uma defesa da pena de banimento para quem viola as leis, de forma reiterada ou para estrangeiros, a qual pode vir seguida, a depender do delito, da pena de confisco total ou parcial. Em nosso ordenamento jurídico há expressa proibição ao banimento, bem como a proibição tributária do confisco, de forma que a discussão do capítulo se encontra superada.
O capítulo XVIII trata da pena de infâmia, a ser instituída para poucos delitos, com a finalidade de se humilhar moralmente o agente em vista do delito por ele cometido. O capítulo XIX trata da duração do processo, que serve, segundo o autor, para prevenir o delito, pois o grande lapso de tempo entre a ação e a punição cria no agente um incentivo à infração, e a resposta rápida do sistema penal a um delito cometido desmotiva o agente a praticar condutas criminalizadas. O capítulo XX trata da possibilidade de extinguir a punição em decorrência do perdão do ofendido ou da restauração do estado anterior ao dano. Beccaria se opõe totalmente a essa hipótese, declarando que o interesse particular de inexigir a punição não pode destruir a necessidade pública do exemplo, pois o direito de castigar pertence às leis e não a qualquer cidadão em particular. Nos dias de hoje, quando há farta literatura pró justiça restaurativa, em que a vítima e o infrator transigem entre si os meios adequados à reparação do dano, a opinião de Beccaria parece superada, embora seu raciocínio não seja ilógico ou incorreto, apenas parte ele de um princípio que tutela o interesse público sobre o individual, enquanto os partidários da justiça restaurativa priorizem os interesses do indivíduo sobre os do poder punitivo.
O capítulo XXI trata da pena de asilo, cuja necessidade é descartada pelo autor (bem como pelo ordenamento jurídico atual), sob o argumento de que há pouca diferença entre a impunidade e o asilo. O capítulo XXII trata da ilegitimidade de se pôr a prêmio a cabeça de alguém, prática que fomenta homicídios e crimes influenciados pelo poder público. O capítulo XXIII traz uma defesa à proporcionalidade da fixação das penas em relação à gravidade dos delitos, cabendo punições mais graves aos delitos que atentem contra a sociedade, e as menos graves aplicáveis a delitos contra particulares. O capítulo XXIV defende que é o prejuízo causado à sociedade que define o grau ofensivo de cada delito. O capítulo XXV defende que os delitos devam ser classificados entre aqueles que tendem a destruir a sociedade, aqueles que afetam o cidadão em sua existência, bens e honra e os que contrariam determinação ou infrinjam proibição legal. Os demais atos não poderiam ser criminalizados e todo cidadão poderia fazer o que a lei não proibe. O capítulo XXVII trata dos crimes contra a segurança dos particulares, que para o autor devem ser castigados com penas corporais. O capítulo XXVIII trata dos crimes de injúria, que para o autor devem ser punidos com a infâmia. O capítulo XIX dispõe sobre os duelos privados em defesa da honra, algo que perdeu relevância nos dias atuais.
O capítulo XXX trata da punição do delito de roubo. Defende o autor que ela deva limitar-se a uma compensação pecuniária. Tal tese hoje tem defensores dentre alguns penalistas que se filiam às correntes do Direito Penal mínimo, retirando de quem pratica tal conduta a aplicação da pena privativa de liberdade ou da restritiva de direitos. O autor segue defendendo, para aqueles que roubaram sem condições patrimoniais de ressarcir, a polêmica aplicação da pena de escravidão temporária, a qual hoje em dia encontra-se proibida em todas as democracias constitucionais ocidentais e nos países civilizados, embora, talvez, à época em que o livro fora escrito, ainda pudesse ser comum nos países europeus. O capítulo XXXI defende que para o contrabando seja aplicada a pena de prisão ou mesmo a escravidão temporária do agente em benefício do fisco. O capítulo XXXII trata da punição do delito de falência, que só em caso de má-fé deve receber punição, semelhante àquela aplicável a quem falsifica moeda. O falido de boa-fé deve honrar suas dívidas, mas não pode ser punido criminalmente. Nos capítulos XXXIII, XXXIV e XXXV são analisadas as condutas contra a paz pública, a ociosidade, o suicídio e a imigração, os quais não devem ser punidos criminalmente, mas para a prevenção deles devem ser criadas leis específicas, sendo tal o mesmo caso do capítulo XXXVI, quando se analisam as condutas do adultério, da pederastia e do infanticídio. Nesse capítulo, a opinião do autor demonstra-se muito mais progressista do que a legislação pátria, pois, enquanto ele defende políticas públicas preventivas aos delitos de adultério, pederastia e infanticídio, nossa legislação pune as três condutas, tendo apenas há pouco tempo ocorrido o abolitio criminis do delito de adultério, enquanto a pederastia (art. 235. do Código Penal Militar) segue punida e o infanticídio é crime de competência do Tribunal do Júri. Outra questão potencialmente polêmica da sugestão de Beccaria, é a instuituição de políticas públicas para preverirem a pederastia, em vez de criminalizá-la, pois qualquer das duas óticas gerariam amplos debates e discordâncias acerca da necessidade de ingerência estatal em tal assunto ou mesmo de eficácia de uma medida pública para conter uma opção individual e voluntária de tal natureza.
O capítulo XXXVII trata de crimes impulsionados pela religião, sem que o autor faça menção à forma de punir. Os capítulos XXXVIII e XXXIX tratam de leis que cerceiam indevidamente direitos do cidadão, como a que limita a venda de armas. Aqui novamente demonstra o autor um espírito mais progressista do que aquele que orientou o legislador brasileiro, tendo em vista a existência da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003 (estatuto do desarmamento), que tem por fim a limitação do direito individual de aquisição de armas de fogo para sua defesa pessoal. O capítulo XL trata do modelo de punição anterior ao século XVIII, consistente em um mecanismo estritamente pecuniário de penalidade, onde o patrimônio pessoal do infrator era utilizado para que fosse indenizado ao soberano a lesão praticada contra uma lei editada por ele. O juiz atuava no processo menos como parte imparcial do que como advogado do soberano, e aquele considerado culpado se convertia em devedor do fisco. Tal modelo, analisado sob a ótica do ordenamento atual, resta injusto principalmente pela ausência de ampla defesa, processo legal e proibição do confisco (garantias existentes hoje em dia). O autor, ao falar das penas que possam ser adotadas em um sistema penal, não indica ser a prisão um mecanismo que praticamente monopolize as possibilidade de punição do sistema (o que ocorre atualmente), embora algumas das penas sugeridas por ele (como o banimento e a escravidão temporária) tenham caído em desuso do século XVIII até os dias atuais.
O capítulo XLI é iniciado com a declaração de que a prevenção dos crimes é preferível à punição, embora nossa política criminal não tenha sido orientada segundo tal ditame, tendo em vista a ampla quantidade de encarceiramentos, mesmo que as prisões não suportem, e as estatísticas que apontam ser o Brasil um dos países no mundo que mais têm indivíduos aprisionados. Para Beccaria, a fim de que fosse facilitada a utilização da prevenção em vez da punição, a quantidade de delitos tipificados deveria ser a mais reduzida possível, com leis claras e simples, que não favoreçam determinada classe, protejam cada membro da sociedade e inspirem temor social. Há também a menção à forma mais segura e difícil de tornar o homem menos propenso ao crime é a educação. Tal ponto elencado pelo autor é talvez um dos mais relevantes da obra, pois, embora alguns postulados legitimantes do sistema penal de seu livro não tenham saído da teoria, há uma comprovação empírica de que sociedades com elevado grau de educação não se valem de maneira indiscriminada do encarceiramento para fins de controle social.
O curto livro de Beccaria constitui um importante trabalho humanizador por sua crítica ao sistema prisional e, do ponto de vista de sua aplicabilidade na realizade atual, vê-se a necessidade de adoção de algumas de suas propostas (parte delas mais progressista do que a legislação atual) e a relevância da obra para que se possa discutir meios de reduzir a violência do aparato penal, sem que se fale em abolição da punição penal de delitos tipificados.



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